Resumo: O presente artigo propõe questionamentos e reflexões acerca dos limites e consequente potencial de efetividade da Lei 11340/2006, tendo como paradigma de pesquisa a interpretação teleológica e sistemática do ordenamento jurídico pátrio, levando o leitor a uma possível lucidez sócio-jurídica.
Palavras-chave: Lei 11.340/2006; Abrangência; Intepretação teleológica e sistemática; Potencial de efetividade; Constitucionalização do Direito Penal.
Sumário: 1. Consideração Zetéticas e Delimitação do Objeto. 2 Os Pressupostos Norteadores da Abrangência da Lei N. 11.340/2006. Um Interpretação Teleológica e Sistemática. A Constitucionalização do Direito Penal.
1. CONSIDERAÇÕES ZETÉTICAS E DELIMITAÇÃO DO OBJETO
Como bem elucida os paradigmas da zetética jurídica, o Direito, in these, reflete o estágio histórico-cultural e o complexo axiológico da sociedade, caracterizando-se por ser um objeto eminentemente cultural.
Atento a esta realidade ideológica, o objeto jurídico – a Lei – não deve se distanciar do solo social sob o qual germina e sob o qual pretende exercer sua eficácia.
A esta necessidade imperativa de permeabilidade do Direito, no sentido de acompanhamento da dinâmica social, objetivando sua maior eficácia, João Maurício Adeodato denomina de “acoplamento estrutural”, o qual viabiliza a “abertura cognitiva” do sistema jurídico.
Em outras palavras, a esta abertura cognitiva do direito entende-se a permanente interação com os demais subsistemas sociais; outrossim, a sensibilidade às influências de novas perspectivas.
Acontece que o “direito autopoiético”, assim como é chamado – caracterizador do direito moderno – é auto-referente para definir o que é lícito e ilícito, ou seja, a permeabilidade do direito efetiva-se segundo critérios e procedimentos controlados pelas próprias regras do sistema jurídico, o que se configura, ao final, o “fechamento cognitivo”.
Sob o título do presente artigo, é preciso que nos façamos alheios, neste momento, às críticas negativas concernentes ao processo de criação da Lei 11.340/2006, à demagogia de alguns dispositivos inúteis, às incoerências de algumas questões processuais, à exacerbação da vitimologia que traz como principal consequencia a eventual desproporção em seu potencial coercitivo.
Aliás, quanto a estes pontos exemplificativos, sabemos que o fortalecimento da ótica repressiva é próprio de sociedades periféricas, em que se procura, através da repressão, uma coexistência pacífica, ou mesmo um instrumento de mudança social.
Neste sentido, já afirmara Beccaria: “as falsas idéias que os legisladores fizeram da utilidade da Lei são uma das fontes mais fecundas de erros”. [1]
No mais, para efeito de elucidação jurídica, façamos um freio à eloquência das paixões. Tratemos da ideia de Justiça de uma forma tanto menos romântica, heróica, vulgar e sensacionalista possível, evitando “ligar a palavra Justiça à idéia de uma força física ou de um ser existente. A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista qual os homens olham as coisas para o bem-estar de casa um”. [2]
Pois bem, o que nos interessa, e penas isto, para efeito do presente artigo, é, uma vez válida a Lei Maria da Penha, quais os seus limites e seu consequente potencial de efetividade, tendo como paradigma de pesquisa a interpretação teleológica e sistemática do ordenamento jurídico pátrio.
Por fim, a breve reflexão, não pretende uma vinculação ideológica não discernida, mas questionamentos sérios quanto uma coerente interpretação do objeto jurídico, levando ao leitor a uma possível lucidez sócio-jurídica.
2 OS PRESSUPOSTOS NORTEADORES DA ABRANGÊNCIA DA LEI N. 11.340/2006. UMA INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA E SISTEMÁTICA. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL
A exegética da Lei Maria da Penha, assim como é chamada, precipuamente sob o ponto de vista de sua abrangência, indiscutivelmente sofre da patologia da imprecisão técnico-legislativa.
Alías, o problema das imprecisões da linguagem é chamado por João Maurício Adeodato de “abismo gnoseológico”, isto é, incompatibilidades recíprocas entre o evento real, a idéia e a expressão linguística.
Concernente à carência de critério para, por exemplo, decidir a abrangência de um termo da norma, Norberto Bobbio chamou de “lacuna ideológica”.
Pois bem. O art. 5º da comentada Lei define a violência doméstica e familiar contra a mulher como: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. [3]
Segundo Heilborn, gênero é um conceito das ciências sociais que se refere à construção social do sexo, distinguindo-o da dimensão biológica:
“o raciocínio que apóia essa distinção baseia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é realizada pela cultura”. [4]
Por isso, prossegue a autora:
“o comportamento esperado de uma pessoa de um determinado sexo é produto das convenções sociais acerca do gênero em um contexto social específico. E mais, essas idéias acerca do que se espera de homens e mulheres são produzidas relacionalmente; isto é: quando se fala em identidades socialmente construídas, o discurso sociológico / antropológico está enfatizando que a atribuição de papéis e identidades para ambos os sexos forma um sistema simbolicamente concatenado”. [5]
Neste primeiro ponto de elucidação no que concerne ao elemento distintivo da incidência pessoal da norma, temos que não se trata do sexo.
Ora, parece-me que se assim o fosse, muito provavelmente estaríamos considerando o sexo masculino um criminoso nato, nos moldes da teoria de Lombroso.
A contrario sensu, o elemento diferenciador da abrangência da Lei 11.340/22006 é o gênero feminino.
Acontece que o sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre coincidem. Nesta ótica, a Lei é dilatada, abrangendo, por exemplo, os homossexuais femininos e masculinos, os travestis, os transexuais e os transgêneros, os quais tenham identidade com o gênero feminino.
No mesmo sentido entende Dias ao afirmar que a Lei Maria da Penha alcança:
“tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros […]. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção”[6].
Ora, um dos grandes desafios da pós-modernidade, diante da maior complexidade social, parece-me ser o que propõe Adeodato quando explica a “ética da tolerância”: “para lidar com a diversidade axiológica […] é fundamental a aceitação de posturas diversificas e o questionamento constantes dos próprios (pre)conceitos”[7]
Em resumo, quanto à incidência pessoal da Lei, a abrangência sob o gênero parece-me mais consoante à teleologia da norma e aos preceitos da Constituição Brasileira (uma interpretação diversa faria da Lei 11340/2006 um instrumento inconstitucional).
Explicas-se: a interpretação teleológica ou finalística impõe ao intérprete a atividade de interpelação sobre quais os motivos que determinaram o estabelecimento do preceito penal.
Pois bem. Criada com o objetivo de desmantelar a realidade de violência contra mulher (gênero), advinda da desigualdade histórica nas manifestações de poder, a Lei fundamenta-se que o gênero feminino é em regra mais frágil e vulnerável tanto do ponto de vista físico quanto emocional, não se tratando, portanto, de uma diferenciação arbitrária e imotivada.
Aliás, a interpretação do princípio constitucional da isonomia não pode limitar-se à forma semântica do termo, valendo lembrar que, igualdade, desde Aristóteles, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das suas desigualdades.
O tratamento diferenciado busca corrigir a discrepância da igualdade formal para o âmbito material na interpretação mais coerente e razoável com o escopo do Estado Democrático Brasileiro.
Data venia, grande parte dos questionamentos da Lei Maria leva em conta que o seu âmbito de incidência adstringe-se tão-somente ao sexo feminino e não ao gênero feminino, pelo que as pessoas, em geral, discutem sob o mesmo problema a partir de paradigmas distintos, e talvez por isso não consigam chegar a uma solução plausível sobre a Lei.
Partindo desse pressuposto, qual seja, que o critério que justifica a diferenciação sob a qual se determina a abrangência pessoal da Lei é o gênero feminino, com a ótica mais desmistificada e lúcida, temos que a violência insidiosa protegida pela Lei tem três aspectos geográficos: o doméstico, o familiar e o afetivo.
A unidade doméstica privilegia tão-somente o espaço que reúne pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive esporadicamente agregadas.
Neste ponto específico a grande digladiação doutrinária concerne à abrangência da Lei quanto à empregada doméstica e à diarista (gênero feminino), bem como à relação de coabitação (a exemplo da pensão) e de hospitalidade. Ora, parece-me que em qualquer destes casos há uma reunião de pessoas, seja com ou sem vínculo familiar, pelo que a Lei 11.340/2006 é perfeitamente aplicável, desde que, obviamente, haja um aproveitamento da condição da unidade doméstica, por parte do agressor(a) em relação à agredida.
No âmbito familiar não se prevalece o caráter espacial, mas o vínculo familiar. A Lei expressa como “comunidade formada por indivíduos que são ou que se considerem aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”. [8]
Neste âmbito, temos a concepção ampla de família a qual atende ao princípio da pluralidade das entidades familiares, em sua dimensão constitucional, abrangendo, neste sentido, o casamento, a união estável, a família monoparental, a união de pessoas do mesmo sexo etc.
A propósito, a família está longe de ser um instituto estático, o que traria como resultado, indubitavelmente, um imobilismo que contrariaria a evolução da sociedade.
Juristas há que ante a nova concepção de família falam em uma crise da família, proclamando sua desagregação e desprestígio. Segundo Maria Helena Diniz:
“o que ocorre é uma mudança nos conceitos básicos, imprimindo uma feição moderna à família, mudanças estas que atende às exigências da época atual […] revelando a necessidade de um questionamento e de uma abertura para pensar e repensar todos esses fatos”[9].
Neste sentido, data venia, não há desagregação ou crise na família, mas apenas modificações para novas e diversas organizações.
No âmbito afetivo a Lei dispensa tanto o caráter espacial quanto o vínculo familiar, sendo expressa no seu art. 5º, III da Lei: “qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação”. [10]
Neste sentido temos que a Lei em comento aplica-se a namoros e ex-namoros, desde que, obviamente, exista um nexo causal entre a conduta criminosa e a intimidade existente entre autor e vítima.
E ainda, uma vez que a lei trata de “qualquer relação íntima”, pode-se afirmar que as relações homossexuais, por exemplo, estão sob o manto da Lei n. 11.340/2006, promovendo a visibilidade da livre orientação sexual, conduzindo as diversas formas de relacionamento humano à plataforma emancipatória. Tanto é assim que o Parágrafo Único do mesmo artigo preceitua: “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.
Por fim, mister destacar que a Lei Maria da Penha requer como pressuposto para sua incidência a condição de inferioridade, seja física ou emocional, do gênero feminino, uma vez que, como dito e ratificado agora, sua teleologia concentra-se em desmantelar a realidade de violência contra mulher (gênero), advinda da desigualdade histórica nas manifestações de poder.
Nesta esteira de raciocínio, a troca de ofensas entre duas irmãs, por exemplo, sem a comprovação da condição de inferioridade, não se insere na abrangência da Lei. Se assim o fosse, qualquer briga entre parentes daria ensejo ao enquadramento da Lei.
Traçadas as breves reflexões, temos que da interpretação teleológica e sistemática da Lei 11.340/2006 construímos uma interpretação casuística do preceito penal em comento.
Em outros temos, as circunstâncias são as balizas que indicarão a aplicabilidade ou não da Lei, sendo certo que para haja a incidência da norma em comento é preciso que estejam presentes, concomitantemente, dois pressupostos até aqui discutidos: a inferioridade do gênero e o nexo causal entre a conduta típica o oportunismo da relação de aproximação para o cometimento do preceito penal.
Esta parece-me ser uma interpretação constitucional, harmônica e conclusiva com o ordenamento jurídico pátrio.
Destarte, a doutrina e jurisprudência estão em processo de formação e amadurecimento sobre a Lei 11.340/2006.
Nas palavras de Luiz Flávio Gomes:
“o Direito relacionado com a violência de gênero (no Brasil) ainda não está completamente delineado. O Direito se constrói do Constituinte até o juiz, passando pela lei. Muitos cabos soltos ainda existem nessa matéria. O tempo vai se encarregar da sedimentação. Há muito trabalho pela frente e a responsabilidade é de todos os operadores jurídicos. Esse é o nosso papel: propor debates, questionar interpretações, assentar entendimentos, pois, certamente o estabelecido agora, nesses primeiros passos, influenciará futuros operadores do direito”. [11]
A Lei n. 11.340/2006 sugestiona uma nova interpretação para o lar e para a família, levando a sociedade a refletir sobre novos limites para estes conceitos, na busca da efetivação da constitucionalização do direito penal.
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