Autor: Isabella Baroni Rivabem[i]
Resumo: O presente trabalho teve como intuito analisar o crescimento exponencial do dano moral dentro do Judiciário e suas possíveis causas. A metodologia utilizada foi através de referências bibliográficas, análise histórica, doutrinária e jurisprudencial. Iniciou-se o estudo com considerações sobre a responsabilidade civil e seus três pilares: culpa, nexo e dano. Aprofundando o estudo do dano moral com a análise da evolução histórica no Direito Brasileiro e a tardia inclusão na legislação e na jurisprudência, verificando o crescimento de sua utilização ao longo dos anos. Ao final, analisou-se as razões para este aumento dos pedidos de indenização moral encontrando como possíveis razões a excessiva judicialiazação da vida, a maior importância da sociedade para com a dignidade da pessoa humana e a corrosão dos filtros da responsabilidade civil que levaram a um aumento das hipóteses de incidência da reparação do dano moral.
Palavras-chave: Dano moral. Indenizações. Judicialização. Dignidade. Responsabilidade civil.
Abstract: The present work aimed to analyze the exponential growth of moral damage within the Judiciary and its possible causes. The methodology used was through bibliographic references, historical, doctrinal and jurisprudential analysis. Begin the study with considerations about civil liability and its three pillars of guilt, nexus and harm. Deepening the study of moral damage with the analysis of the historical evolution in Brazilian Law and the late inclusion in legislation and jurisprudence, verifying the growth of its use over the years. In the end, the reasons for this increase in requests for moral damages were analyzed, finding as reasons: the excessive judicialization of life, the greater importance of society for the dignity of the human person and the corrosion of the civil liability filters that led to an increase the chances of increased moral damage.
Keywords: Moral damage. Indemnities. Judicialization. Dignity. Civil responsability.
Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade civil e o Dano moral. 1.1 Responsabilidade civil e seus pressupostos. 1.2 Dano. 1.3 Dano moral. 1.4 Litígios Envolvendo A Reparação Por Dano Moral. 2. Fatores ensejadores do aumento da reparação do dano moral. 2.1 Judicialização. 2.2 Maior importância da pessoa humana para o ordenamento jurídico. 2.3 A corrosão dos filtros da responsabilidade civil. Conclusão. Referência.
INTRODUÇÃO
Tem-se detectado, nos últimos anos, o aumento exponencial das ações que visam uma reparação por dano moral. Diante dessa situação, o presente trabalho buscou analisar as possíveis razões para esse crescimento.
Primeiramente, fez-se considerações sobre a responsabilidade civil e os pressupostos da obrigação de indenizar: culpa ou dolo, nexo e dano. Após, ainda dentro do campo da responsabilidade civil, analisou-se o dano moral, sua evolução no Direito Brasileiro, inicialmente com sua negação pela doutrina e jurisprudência e após sua implementação no ordenamento jurídico de forma expressa na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, incisos V e X). Também abordou-se as funções atuais do dano moral, compensatória, punitiva e preventiva, ainda discutidas pela doutrina, assim como os parâmetros utilizados pela jurisprudência para valoração desse dano não patrimonial.
Ao final, pontuou-se possíveis razões do aumento da busca por reparação do dano moral, sendo algumas delas a excessiva judicialiazação da vida, a maior importância da sociedade para com a dignidade da pessoa humana e a corrosão dos filtros da responsabilidade civil que levaram a um aumento das hipóteses de incidência da reparação do dano moral.
1. RESPONSABILIDADE CIVIL E DANO MORAL
1.1. Responsabilidade Civil E Seus Pressupostos
A responsabilidade civil “refere-se à situação jurídica de quem descumpriu determinado dever jurídico, causando dano material ou moral a ser reparado”, não significando apenas a reparação, mas sim o dever de reparar o direito subjetivo da vítima (NADER, 2016, p. 6).
A responsabilidade pressupõe a prática de ato (doloso ou culposo), ilícito (legal ou contratualmente), que cause dano à alguém, subordinando-se o praticante dessa atividade as consequências do ato (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 57), busca o retorno do equilíbrio das relações, tendo duas principais funções: a reparatória à vítima, concedendo justiça; e a intimidativa, onde procura evitar a reincidência da violação do direito (NADER, 2016, p. 57).
A responsabilidade civil possui três pilares: a culpa, o dano e o nexo causal. Assim, em primeira análise, para se ter direito à uma reparação civil, necessário demostrar: a) a culpa do ofensor, b) o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e c) dano. Sendo que esses critérios funcionavam como barreiras, chamadas de filtros da responsabilidade civil ou filtros da reparação, selecionando as demandas que realmente poderiam merecer algum tipo de ressarcimento e aquelas que não mereciam (SCHREIBER, 2015, p. 15).
Diz-se dolo quando a conduta praticada é procurada voluntariamente pelo agente do dano (GONÇALVES, 2016, p. 325). De modo oposto temos a culpa stricto sensu ou aquiliana que abrange a imprudência, a negligencia e a imperícia, quando o praticante do ato não teria intenção na produção do dano.
A imprudência é a conduta/ação sem cautela, precipitada, é a ação na qual o agente deveria ter se abstido. Tendo como exemplo quando um médico dá uma injeção ao paciente sem verificar, previamente, se este é ou não alérgico ao medicamento. A negligencia é uma conduta omissiva de não observar as precauções necessárias para a prática de uma ação. Tendo como exemplo uma pessoa que faz uma queimada e se afasta do campo sem verificar se o fogo está completamente apagado. A imperícia é falta de habilidade para praticar certo ato, incapacidade técnica para o exercício de função ou de uma profissão. Tendo como exemplo um médico que desconhece que determinado medicamento pode produzir reações alérgicas comprovadas (GONÇALVES, 2016, p. 327).
Antigamente a culpa era muito difícil de ser comprovada, o que beneficiava as grandes empresas privadas que se eximiam de responsabilização por existirem poucas maneiras de comprovar sua culpa. Um exemplo muito comum era a improcedência de pedido de indenização por acidente de trabalho, pela dificuldade do trabalhador conseguir demostrar a culpa da empresa (SCHREIBER, 2015, p. 15).
Assim, com a impossibilidade da teoria baseada exclusivamente na culpa atender aos anseios de justiça da sociedade crescente (VENTURI, 2006, p. 27) e tentando evitar injustiças, foram criadas técnicas de atribuição de responsabilização objetiva, sendo as principais delas a teoria do risco e a responsabilidade objetiva (SCHREIBER, 2015, p. 15).
A teoria do risco busca o equilíbrio social como também a equidade nas relações. Desse modo, em certos casos específicos o legislador estabeleceu presunções de culpa a fim de beneficiar a vítima, porém, necessário que a vítima comprove a ocorrência do dano e o nexo causal. (SCHREIBER, 2015, p. 32).
A aplicação da responsabilidade objetiva promoveu exclusão da exigência de comprovação da culpa, retirando do juízo de responsabilização a observância da antijuridicidade (SCHREIBER, 2015, p. 191).
Existem três atividades de risco que teriam a responsabilidade objetiva, quais sejam: o risco de empresa, o risco administrativo e o risco-perigo (VENTURI, 2006, p. 29).
O risco da empresa afeta quem exerce uma atividade econômica organizada, sendo responsável até mesmo pelo ato de seus prepostos e empregados, sendo um exemplo a responsabilidade por defeito no produto numa relação de consumir. O risco administrativo trata-se de pessoa jurídica pública que se responsabiliza por danos causados e, portanto, os danos são divididos entre toda a sociedade. Já o risco-perigo é atribuído a quem pratica atividade perigosa, que arcará com os danos ocasionados.
A previsão da teoria do risco no ordenamento jurídico brasileiro encontra-se no art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Dispondo que há a desnecessidade de comprovação de culpa nos casos específicos em lei ou quando a atividade desenvolvida pelo ofensor for de risco (NADER, 2016, p. 33).
Com a vinda da Constituição de 88 também houve a dispensa da necessidade da comprovação de culpa mostrando-se “fortemente comprometida com a reparação dos danos em uma perspectiva marcada pela solidariedade social”. (SCHREIBER, 2015, p. 20). São exemplos dessa dispensa o art. 37 §6 da CF que dispõe sobre a responsabilidade objetiva do Estado, como também, sua reponsabilidade por danos nucleares conforme art. 21 XXIII, d.
A utilização dessas teorias cresceu e acabou por adentar em diversas legislações como na Lei das Estradas de Ferro (Lei nº2.861/12) regulamentando a responsabilidade do transportador ferroviário com base na responsabilidade objetiva. Também foram afetados o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86) e a Lei sobre Atividades Nucleares (Lei nº 6.453/77), Código de Defesa do Consumidor (arts. 12 e 18), Código Brasileiro de Aeronáutica (arts. 246 a 287), o Código de Mineração (Decreto-Lei nº 227/67) (NADER, 2016, p. 33).
A legislação onde houve maior impacto foi o CDC com a responsabilização objetiva do fornecedor perante o consumidor (SCHREIBER, 2015, p. 20-21).
O Código Civil, como dispõe o doutrinador Schreiber, é ‘tímido’ em algumas matérias, porém inovou ao prever a responsabilidade objetiva nos artigos 931 e 927, parágrafo único. Para o autor houve uma evolução da Responsabilidade Civil, a qual se baseava na obrigação de reparar um dano em razão de culpa (responsabilidade subjetiva), para uma responsabilidade advinda do risco sem necessidade de comprovação de culpa (responsabilidade objetiva).
Para Nader (2016, p. 34), a teoria do risco implementa o equilíbrio social favorecendo a distribuição de justiça com a equidade nas relações. As teorias subjetiva e objetiva não são excludentes entre si, mas na verdade se completam.
Desse modo, a comprovação de culpa na responsabilidade civil não é mais um elemento essencial, mas sim acidental, considerando que existem outras espécies de responsabilidade que não necessitam da configuração de culpa. Assim, para Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 74-75), os pressupostos da responsabilidade civil são a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade.
O nexo causal trata-se de um dos pilares da responsabilidade civil, é o “liame existente entre o evento lesivo e o dano, é no que consiste a relação de causalidade, cujo objeto é demonstrar que o dano adveio do fato. ” (BENACCHIO, p. 212).
Sobre o nexo causal existem diversas teorias, parte da doutrina aceita a teoria da causalidade adequada, porém, a outra parte defende a teoria da causalidade direta ou imediata (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 150).
A teoria da causalidade adequada afirma que para a configuração do nexo causal é necessário que o fato antecedente seja necessário e adequado para a produção do efeito obtido. Assim, não é qualquer condição que tenha contribuído para o dano que comprovará o nexo. Deve-se analisar se o fato ocorrido pode ser considerado como causa do dano capaz de gerá-lo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 146-148).
Nessa teoria, somente considera como causadora do dano a condição por si só apta a produzílo, questionando-se se o fato que originou era capaz de dar causa ao dano sozinho (GONÇALVES, 2016, p. 236). A teoria busca verificar se é possível prever, com base no senso comum, a ocorrência do dano, e em sendo possível, se este dano pode ser indenizável. O julgador, nos casos concretos, terá o poder para realizar essa análise (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 146-148) verificando se no momento do dano o fato era previsível (VENTURI, 2006, p. 59).
Já a teoria da causalidade direita, conceitua-se causa “apenas o antecedente fático que, ligado por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse este último como uma consequência sua, direta e imediata” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 148).
Há certos fatos que podem romper o nexo causal, chamados de excludentes de responsabilidade, excluem a responsabilidade do agente, sendo as principais: o estado de necessidade, a legítima defesa, culpa da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior. (GONÇALVES, 2016, p. 364). Tais excludentes quebram o terceiro pilar da responsabilidade cível – nexo, e, portanto, não há indenização ou a indenização é parcial á depender do grau de culpa da parte, como dispõe o art. 945 do Código Civil (GONÇALVES, 2016, p. 373 e 474).
A cláusula de não indenizar, outra excludente da responsabilidade, trata-se do acordo entre as partes que objetiva alterar os riscos de um contrato. O direito brasileiro costuma não aceitar tal cláusula em algumas esferas como na responsabilização das estradas de ferro (Decreto n. 2.681/1912 – art. 12), nos contratos de transporte (Sumula 161 do STF) e nas relações de consumo (Lei n. 8.078/90) (GONÇALVES, 2016, p. 385-386).
1.2. Dano
Para Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 85), o dano é “lesão a um interesse jurídico tutelado — patrimonial ou não —, causado por ação ou omissão do sujeito infrator”.
Assim, dano pode ser definido como subtração de um “bem jurídico” abrangendo, não somente o dano patrimonial, mas também dano contra a honra, a saúde, a vida (GONÇALVES, 2016, p. 366).
O dano pode ser utilizado para conceituar tanto uma lesão a um bem jurídico, patrimonial ou não, como uma afronta ao patrimônio que pode ser transformado em valor pecuniário (MONTEIRO FILHO; ZANETT, 2015, p. 183).
O dano material afeta os bens patrimoniais concretos da vítima, e sua reparação tem como objetivo o retorno do status quo, possibilitando, por exemplo, a compra de um novo bem, para Reis “atinge-se o bem físico, reparando-se a sua perda” (REIS, 2010, p. 7).
Aos danos patrimoniais engloba-se o que a vítima perdeu, assim como o que o ofendido deixou de ganhar, chamados respectivamente de lucros cessantes e danos emergentes, sendo que, nesses casos a liquidação se dará por perdas e danos (VENTURI, 2006, p. 92-93).
Em outra ponta, o dano moral afeta a personalidade do indivíduo, sua honra, sua imagem e bens de natureza espiritual. Neste dano é impossível voltar ao status anterior, desse modo, a reparação tem como objetivo possibilitar à vítima uma compensação com o pagamento de uma soma pecuniária. Para Reis (2010, p. 7), “fulmina-se o bem psíquico, compensando-o através de uma soma em dinheiro que assegure à vítima uma certa “compensação”. Tal dano será melhor analisado no próximo tópico.
Durante muito tempo discutiu-se a cumulatividade de danos patrimoniais e morais, quando oriundos de um mesmo ato ilícito. Porém, tal discussão foi apaziguada com a elaboração de sumula 37 pelo STJ sobre a possibilidade de cumulação de tais institutos (REIS, 2010, p. 29).
Além dos danos comumente vistos na jurisprudência e doutrina como o dano moral e o dano material, atualmente, existem diversos tipos de novos danos como o dano estético e o dano moral coletivo.
Comenta a autora Moraes (2003, p. 166) que ao se taxar a existência de novos danos é falha, uma vez que a cada dia existem novas espécies reconhecidas, “precedentes que poderiam inspirar uma infinidade de novas demandas, abarrotando o judiciário e correndo o risco de banalizar a reparação das lesões de cunho extrapatrimonial.”
1.3. Dano Moral
O dano moral, também chamado de prejuízo moral, dano extrapatrimonial, dano imaterial, é definido por sua natureza não econômica, extrapatrimonial. Segundo Bittar (1993, p. 31) “são turbações de ânimo, reações desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras”. Já Diniz (2002, p. 84) o define como “lesão a interesse não patrimoniais de pessoa física ou jurídica provocada por ato lesivo”.
O dano moral não é um pagamento do valor da dor, mas sim uma indenização pecuniária a fim de satisfazer a vítima lesada, visto que a dor não há possibilidade de se mensurar seu valor (VENTURI, 2006, p. 105)
Para Moraes (2003, p. 192), o dano moral é uma “injusta violação de uma situação jurídica subjetiva extrapatrimonial” decorrente de uma tutela, realizada pela Constituição Federal, do princípio da dignidade da pessoa humana. E para a referida autora (2003, p. 182), a reparação pelo dano moral tem como objetivo garantir à pessoa humana quando houver ameaça ou lesão em qualquer situação da vida social.
Abrange não somente os danos causados à moralidade da pessoa humana, mas também, à integridade física, intelectual, honra, reputação, pudor, segurança, amor próprio, afeição, decoro, crença, dor, tristeza, humilhação vexame entre outros (SANTANA, 2009, p. 198).
Parte da doutrina subdivide o dano moral em subjetivo e objetivo. Sendo o primeiro ligado ao dano sofrido em sua subjetividade e intimidade – sofrimento psíquico ou físico. O segundo, àqueles danos causados ao direito da personalidade – que repercutam na esfera interna (MORAES, 2003, p. 156 e VENTURI, 2006, p. 88).
É necessário diferenciar os danos morais dos meros transtornos ou aborrecimentos. Aqueles não se caracterizam como danos suficientes a justificar qualquer reparação pecuniária, sendo esta separação considerada difícil para doutrinadores e juristas.
Para Moraes (2003, p. 12), a diferenciação entre um dano moral e um mero aborrecimentos pode ser vislumbrada por meio da utilização do princípio da dignidade da pessoa humana como critério para a distinção. Pois, para a autora, qualquer que seja o ato que ofenda ao princípio, não é mero aborrecimento, merece a proteção do sistema jurídico, ensejando reparação.
A ideia de dano moral evoluiu lentamente, tendo seu início gerado diversas controvérsias, muitos acreditam que seus princípios surgiram no Código de Hamurabi, passando pelo Código de Manu, presente até mesmo na legislação Romana. Porém, outra parcela da doutrina acredita que o dano moral somente surgiu no mundo moderno. (REIS, 2010, p. 79)
O direito brasileiro demorou para introduzir este dano à sua jurisprudência, mesmo após já ter sido implementada em algumas leis como o decreto nº 2.681/1912 que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro e em seu art. 22 impõe a indenização por morte de viajante. Este decreto é considerado marco histórico por ser o primeiro a regulamentar dessa maneira o dano moral (GONÇALVES, 2016, p. 485-486). E após, Código de Telecomunicações (Lei Nº 4.117/1962 em seu art. 81 à 88) implementando as indenizações por dano moral para os ofendidos por calúnia, difamação ou injúria pelo meio de radiodifusão.
De acordo com Hector Valverde Santana (2009, p. 198), a consideração do dano moral pela jurisprudência passou por 3 fases. A primeira foi a fase da negação onde não era aceita a utilização do dano moral. Por não haver previsão legislativa expressa este não era reconhecido, um dos argumentos dos doutrinadores que seguiam essa vertente era ser impossível a atribuição de um valor à dor, impossível também atribuir um preço correspondente, além disso, era muito difícil identificar sua ocorrência.
Após essa fase, houve a criação da teoria eclética, também chamada de mista, trata-se de uma teoria de transição, pois o dano moral era concedido, no entanto, somente caso houvesse a comprovação de uma repercussão patrimonial. Esta tese argumentava que a atribuição do dano moral geraria um enriquecimento ilícito à vítima, uma vez que haveria aumento em seu patrimônio econômico, sem que tivesse ocorrido um desembolso de valores, portanto, o dano moral só seria possível se houvesse um prejuízo que afetasse o patrimônio da vítima (REIS, 2010, p. 80-82).
Para essa teoria havia somente 3 situações que ensejavam o dano moral: a) quando o dano moral fosse consequência de um dano patrimonial; b) quando tal dano surgisse de um delito criminal; c) quando existisse expressa determinação legal (MELO, 2004, p. 19).
O primeiro caso de reconhecimento do dano moral foi no Recurso Especial nº 59.940/SP, ação em que foi requerida indenização por dano moral pelos pais de duas crianças falecidas devido a atropelamento. Após o deferimento do dano moral foram repetidas ações que ensejaram a criação da súmula 491 do STF (Sumula: É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado). No entanto, tal julgamento ainda levou em consideração os danos futuros extrapatrimoniais que os pais deixariam de receber.
Após essa decisão, o STF começou a mudar seu entendimento, como pode-se observar pela RF 138/452: “Não é admissível que os danos morais dêem lugar à reparação pecuniária, se deles não decorre nenhum dano material”.
A terceira fase, chamada teoria positivista, foi fundamentada na outorga da Constituição Federal de 1988, reconhecendo assim a “reparabilidade” do dano moral. Os valores extrapatrimoniais da existência digna do ser humano foram consagrados no art.5º da Constituição Federal e deram força para esta teoria, consolidando a reparação por dano moral de modo amplo e irrestrito (NADER, 2004, p. 549).
Hoje, além da Constituição Federal defender tal instituto no art. 5 inciso V e X o Art. 186 do Código Civil dispõe expressamente sobre a possibilidade do arbitramento do dano moral.
Na legislação Brasileira o dano moral chegou em seu ápice com a criação do Código de Defesa do Consumidor, onde o dano moral foi reconhecido de maneira ampla e irrestrita (art. 6º inciso VI), sendo esta uma das leis mais modernas e avançadas do mundo (MELO, 2004, p. 125).
Quando ocorre um dano, material ou imaterial, o responsável se torna obrigado, de forma espontânea ou coercitiva (pela tutela do Estado – processo), a repara-lo integralmente, de acordo com o art. 944 do CC que dispõe que a indenização é medida pela extensão do dano (MAGATÃO, 2010, p. 142). Havendo apenas algumas exceções, por exemplo a disciplinada no parágrafo único do referido artigo que dispõe que nos casos de grave desproporção entre a gravidade da culpa e o dano poderá reduzir-se o valor da indenização.
A estipulação da necessária reparação integral impede que a vítima tenha uma dupla lesão, uma vez sofreria o dano e não seria restituída por todos os prejuízos (MAGATÃO, 2010, p. 143-144). Tal fundamentação também inclui os danos imateriais que mesmo de difícil exatidão de extensão do dano deve ser reparado integralmente (MAGATÃO, 2010, p. 147).
Quanto a finalidade do dano moral a doutrina atual apresenta três finalidades: Compensatória, punitiva e preventiva.
A primeira finalidade é a compensatória, finalidade mais comum do dano moral, é o meio pelo qual se utiliza o valor em dinheiro para satisfazer a vítima de um dano não patrimonial sofrido (MELO, 2011, p. 107).
A segunda finalidade, ainda controversa entre a doutrina, é a punitiva, seu caráter controverso advém da intenção de se punir fora do sistema penal, sendo possível até mesmo uma dupla condenação, uma pelo dano moral no âmbito civil e outra no âmbito penal, causando um “bis in iden”. No direito existe uma separação absoluta entre a pena e a indenização, uma vez que a pena corresponderia ao Estado, e a reparação, pela via da indenização, exclusivamente a vítima (MORAES, 2004, p. 74 e 202).
Outro questionamento acerca dessa finalidade versa sobre a possiblidade de aplicação de uma pena “privada sem expressa previsão legal violando a garantia de anterioridade” (VENTURI, 2006, p. 173). Uma vez que o caráter punitivo, exemplar ou punitivo-pedagógico trata-se de conceito jurisprudêncial, sem embasamento normativo (MORAES, 2003, p. 202).
Tal função se assemelha a punitives damages aplicado na maioria dos estados do EUA. Os punitives damages também chamados de exemplary ou vindicte damages, são uma soma adicionada ao valor devido a fim de punir e advertir o réu a não realizar o ato ilícito. Ainda, possui a finalidade de dar exemplo para outros, desencorajando nova prática de conduta ilícita. Tal valor é destinado à vítima, desse modo, pode ser entendido como um enriquecimento ilícito à vítima (SOUZA, 2013, p. 31-354).
Trata-se de uma verba diferente daquela concedida ao dano moral, que pretende uma punição exemplar para proteção de toda a sociedade. Para o deferimento de tal medida é analisado: nexo de causalidade entre dano e prejuízo da vítima, grau de culpa, existências de outras práticas daquele ato ou ato similar anteriormente, lucratividade da empresa, situação financeira do violador e existência de sanção penal em razão do mesmo fato (MORAES, 2003, p. 23).
Reis (2000, 194) demostra a utilização da adoção de penas econômicas na legislação do trânsito revertendo o número de acidentes no país. Citando a apelação cível de nº 40129 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – DJSC n. 8.063, em que o Desembargador Eder Graf, proferiu em seu acordão: “Em verdade, se não houver uma ação eficaz na quantificação das penas pecuniárias, os abusos sofrerão um impulso indireto do Judiciário para sua continuação, o que não se justifica” (TJSC, 1992).
A função punitiva é comumente aplicada nas hipóteses de responsabilidade subjetiva, buscando responsabilizar aquele que cometeu condutas ilícitas no grau de sua culpa. Porém, mesmo não sendo muito utilizada, pode ser aplicada quando não há a incidência de culpa, por exemplo quando se verifica comportamento reprovável ou descaso contra direitos de alto valor para o direito (VENTURI, 2006, p. 141-143).
Porém a grande utilização dessa matéria punitiva representa para Moraes (2003, p. 329), um obstáculo a certeza do direito pois contribui a insegurança jurídica com o aumento da imprevisibilidade das decisões judiciais.
Ainda, Moraes (2003, p. 33) traz outro impedimento à sua utilização a tentativa de cumprir duas funções antagônicas, pois busca a função punitiva para com o agente do dano e ao mesmo tempo não ensejar o enriquecimento ilícito da vítima (vedada no art. 884 do CC). Segunda a autora, tal situação nunca poderá ocorrer, pois o valor total recebido pela vítima será da junção da quantia compensatória somada à atribuída à título de punição. Assim, sob o ponto de vista econômico, a vítima estará recebendo um valor a mais do que o valor do dano.
Para o doutrinador Theodoro Junior (2016, p. 64) com a utilização de tal parâmetro ocorre: “A avalanche de demandas em torno do dano moral, terreno em que, à falta de parâmetros legais, a liberdade judicial conduz, muitas vezes, a arbitramentos de indenizações milionárias que, lotericamente, enriquecem a vítima e, lamentavelmente, arruínam ou desestabilizam as empresas que as tem de suportar. O “custo brasil”, destarte, se agrava por obra de tal postura jurisprudencial.”
Para Schereiber (2015, p. 217), a utilização do instituto vai contra os pilares da tradição romano-germânica do ordenamento brasileiro, assim como vai contra a evolução da responsabilidade civil que está a se desvincular da noção de culpa, enquanto que o conceito dos punitives damages fundamentam-se no grau de culpabilidade do agente.
Para Venturi (2006, p. 182), na sociedade, a função punitiva é um mecanismo de coibir e desestimular condutas antissociais que afetam interesses coletivos. Para o Autor: “ Costuma-se alegar que a punição da conduta do ofensor por intermédio de uma pena privada não poderia ensejar um repentino e desarrazoado afortunamento da vítima, até porque, em assim sendo, incentivar-se-ia uma verdadeira “loteria forense” na busca de indenizações milionárias, afetando-se indevidamente todo o sistema de responsabilidade civil (VENTURI, 2006, p. 182).”
Afirma Reis (2000, p. 78-79), que o agente do dano receberá uma sanção pelo ato cometido representando uma repreensão, a fim de se conscientizar o agente da necessidade de respeitar os direitos, chegando ao equilíbrio social. Chegando à tríplice função do dano moral na reparação civil: compensatória do dano à vítima; punitiva do ofensor; e desmotivação social da conduta lesiva.
A última finalidade é a preventiva, também trabalhada por alguns autores como pedagógica ou de exemplaridade, dispõe que o dano moral deve ser exemplo para a sociedade que ao se cometer determinado dano, o comportamento será punido pelo Judiciário, gerando um maior respeito da sociedade para com o direito tutelado (MELO, 2004, p. 113)
Para Venturi (2006, p. 202), a responsabilidade civil só conseguirá cumprir sua função social, para além da função indenizatória, quando aplicar sua função dissuasiva, inibindo a ocorrência de novos ilícitos, utilizando-se da função acima explanada como meio exemplar e, assim, alcançar a prevenção.
A função preventiva retiraria dos litigantes habituais a possiblidade de calcular, antecipadamente, possíveis futuras condenações por dano moral. Visto que, muitos dos litigantes realizam cálculo antes da realização do dano, afim de prever condenações por dano moral possíveis, levando em consideração que uma parte dos lesados não procurará a via judicial, que o tempo alto para a resolução do litígio favorece o economicamente mais forte, que o valor a ser arbitrado como dano moral não pode enriquecer a vítima. Verificando, assim, se o possível quantum arbitrado será um valor que permite o descumprimento pois é economicamente baixo e, assim, vantajoso ao causador do dano (SENA; RIBEIRO, p. 03).
Com a implementação da função punitiva ao dano moral, seria impossível para parte prever se a prática do dano poderá compensar ao se sopesar os valores de eventuais condenações e os lucros com a prática do delito (SENA; RIBEIRO, p. 03).
O STJ, por meio de artigo ‘Busca de parâmetros para uniformizar valores de danos morais, publicado no site Migalhas em 25 de julho de 2009, manifestou-se sobre a valoração do dano moral entendendo que deve buscar uma dupla função: “reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor para que não reincida” (STJ, 2009). Assim, o valor do dano moral deve representar uma advertência a quem cometeu o delito e à sociedade de que não se aceita a prática do ato realizado (BITTAR, 1993, p. 220).
1.4 Litígios Envolvendo A Reparação Por Dano Moral
Para Reis (REIS, 2010, p.86) antes da Constituição, o dano moral encontrava-se represado, sem possiblidade de tutela, após, assumiu a “forma de ondas avassaladoras e crescentes de ações indenizatórias em face da ofensa aos princípios fundamentais da pessoa humana.”
Por exemplo, no STJ, as ações de danos extrapatrimonais tiveram um aumento de 28 ações, em 1993, para 5.844 ações ao final de julho de 2005. Para Reis “Tal situação comprova a plena e absoluta consagração do instituto em nossas Cortes de Justiça.” (REIS, 2010, p.73)
Observa-se que houve um crescimento da incidência da responsabilidade civil no judiciário, representando a grande maioria dos casos que chegam ao Judiciário, principalmente nos Juizados Especiais. (CARVALIERE FILHO, 2012, p.536)
Segundo a pesquisa celebrada pelo CNJ, Justiça em Números 2020[1], na competência estadual, em primeiro grau, o pedido por indenização por dano moral alcança o primeiro lugar nas ações de direito do consumidor e direito civil nos assuntos mais demandados, tratando, respectivamente de 4,44% (2.295.880) e 2,63% (1.356.290) das ações em tramite.
Estreitando a pesquisa apenas para os Juizados Especiais, no tema direito do consumidor o pedido de indenização por dano moral corresponde à 14,19% (1.554.088) das ações.
Esse expressivo número de ações demostra a grande busca pela reparação do dano moral, sendo que diversos autores criaram teorias, como a banalização do dano moral, a formação de uma industrial indenizatória do dano moral com a existência de uma loteria judicial.
Disserta Theodoro Junior que a banalização do instituto pode ser observada na busca de indenizações por meros dissabores: “A vida em sociedade obriga o indivíduo a inevitáveis aborrecimentos e contratempos, como ônus ou consequências naturais da própria convivência e do modo de vida estabelecido pela comunidade. O dano moral indenizável, por isso mesmo, não pode derivar do simples sentimento individual de insatisfação ou indisposição diante de pequenas decepções e frustrações do quotidiano social.” (THEODORO JUNIOR, 2016, p. 108)
Gagliano e Pamplona Filho comentam que é tarefa dos magistrados impedirem a “indústria da indenização” com a procedência de ações incongruentes, “formulados com o nítido propósito, não de buscar ressarcimento, mas de obter lucro abusivo e escorchante” (GAGLIANE e PAMPLONA FILHO, 2017, p. 93)
A jurisprudência já se posiciona sobre o assunto, conceituando a banalização do dano moral. Vejamos, primeiramente, acordão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nº1.0024.07.666363-2/001 de 2009: “Ação de indenização por danos materiais e morais. Corpo estranho no alimento. Ingestão evitada a tempo. Dano moral não caracterizado. Inexistência do dever de indenizar. (…) Se o alimento contaminado com corpos estranhos não foi ingerido pelo consumidor que percebeu que o produto estava impróprio para o consumo, não há que se falar em dano. – Somente configura dano moral a dor, o constrangimento e a humilhação intensas e que fujam à normalidade, interferindo de forma decisiva no comportamento psicológico do indivíduo. Nesse diapasão, mero dissabor não é objeto de tutela pela ordem jurídica. Do contrário, estaríamos diante da banalização do instituto da irreparabilidade do dano extrapatrimonial, que teria como resultado prático uma corrida desenfreada ao Poder Judiciário, impulsionada pela possibilidade de locupletamento às custas dos aborrecimentos do cotidiano” (grifo nosso)
Ainda, destaca-se trecho do acordão do TJSP, Ap. 101.697-4/0-00 de 2000, ao julgar ação que pretendia indenização por ter sido retida no dispositivo de segurança da porta detectora de metais de um banco: “Vivemos período marcado por aquilo que se poderia denominar banalização do dano moral. Notícias divulgadas pela mídia, muitas vezes com estardalhaço, a respeito de ressarcimentos milionários por alegado dano moral, concedidos por juízes no país e no exterior, acabam por influenciar as pessoas, que acabam por crer na possibilidade de virem a receber polpudas indenizações por aquilo que, a rigor, menos do que dano moral, não constitui mais que simples aborrecimento.(…) E nem por isso se pensará em, a cada um desses pequenos aborrecimentos, movimentar a máquina judiciária para a obtenção de ressarcimento. Indenizável é o dano moral sério, aquela capaz de, em uma pessoa normal, o assim denominado ‘homem médio’, provocar uma perturbação nas relações psíquicas, na tranquilidade, nos sentimentos e nos afetos” (grifo nosso) TJSP, Ap. 101.697-4/0-00, 25.07.2000.
O STJ já se posicionou contra a banalização do instituto, quando esta ocorre por meio da concessão de indenizações por meros aborrecimentos, conforme voto do relator, Luis Felipe Salomão, no AgRg no REsp 1.269.246/RS de 2014, afirmando que: “a indenização por dano moral não deve ser banalizada, alimentando o que parte da doutrina e da jurisprudência denomina de ‘indústria do dano moral’”.
Cavaliere (2010, p. 11) não concorda com tais posicionamentos, afirmando que “não há indústria sem matéria-prima”, ou seja, somente existem tantos casos buscando pela reparação de dano pois ocorre muita lesão a direto. Com o mesmo posicionamento, Reis afirma que a grande utilização desse conceito demostra tão somente a ampliação da tutela jurídica dos direitos fundamentais da pessoa (REIS, 2010, p. 11). Fundamentando o autor que a consagração do dano moral encerra uma luta de décadas e representa uma grande conquista, uma vez que é através do dano moral que se tutela a dignidade da pessoa humana. (REIS, 2010, p. 232)
2. FATORES ENSEJADORES DO AUMENTO DA REPARAÇÃO DO DANO MORAL
2.1 Judicialização
O desmoronar de barreiras processuais, como a criação dos Juizados Especiais, a gratuidade de acesso à Justiça, as Defensoria Públicas, as ações coletivas, “tem provocado uma verdadeira revolução” afim de assegurar o acesso à justiça, da mesma maneira tem contribuído diretamente para o aumento das ações, principalmente de danos morais” (SCHREIBER, p. 85).
Ademais, identifica-se hoje na sociedade uma tendência de judicialização. Antes o processo era uma necessidade da pessoa para a resolução de um problema. Hoje, a vida social inunda o judiciário. (MORAES, 2003, p. 19).
Moraes (2003, p. 03) afirma em seu livro um processo de vitimização social, pois a sociedade tende a procurar responsáveis por tudo aquilo que não vai bem na vida. Citando Todorov (O Homem desenraizado, 1999, p. 225): “ Se não sou feliz hoje, a culpa é dos meus pais no passado, da minha sociedade no presente: eles não fizeram o necessário para meu desenvolvimento”. Um exemplo citado pelos autores é a ação de indenização por dano moral processada nos EUA, onde 4 obesos entraram com ação contra 4 redes de “Fast Food”, por não terem sido informados que os produtos consumidos poderiam ocasionar a obesidade que hoje possuem.
Essa postura de vitimização incentiva o ajuizamento de demandas “frívolas” onde o autor da demanda busca obter um valor pecuniário as custas de um suposto infrator, nas palavras de Schuch “a vitimização é um fenômeno atual e corriqueiro, não sendo difícil encontrar alguém na expectativa de um ganho fácil”, para o autor a vítima busca ser ofendida, até mesmo contribuindo para a lesão afim de receber um reparação pecuniária (SCHUCH, 2012, p. 64).
A falta de critérios leva o julgador a questões com perplexidade. O dano moral passou da fase de irreparabilidade para a sua utilização desmedida que causa sua industrialização, “onde o aborrecimento banal ou mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações milionárias” (CAVALIERI FILHO, 92-93).
A autora Moraes (2003, p. 11) não concorda com tal posicionamento, acreditando que não ocorre um abuso de direito, ocorre somente a ampliação da tutela jurídica dos direitos da personalidade gerando o aumento da litigância.
Para Reis as pessoas se conscientizaram de que o ordenamento jurídico vigente disponibiliza a tutela ampla e irrestrita dos seus direitos, especialmente aqueles que integram os direitos da personalidade. E essa conscientização, aliada ao amparo jurídico, ensejou um grande aumento de ações buscando indenizações por danos morais ou cumuladas com dano moral. Assim, houve uma “avalanche de ações indenizatórias por danos morais perante o Poder Judiciário” (REIS, 2010, p. 92 e 73).
2.2 Maior importância da pessoa humana para o ordenamento jurídico
A dignidade da pessoa humana é comando imperativo na CF/88, previsto no art. 1º, inciso III, possuindo princípio fundamental e valor supremo de alicerce da ordem jurídica (MORAES, 2003, p. 82).
Existem vários princípios que decorrem diretamente deste preceito fundamental, como a igualdade, a tutela da integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade (MORAES, 2003, p. 127).
A personalidade da pessoa humana é um valor unitário e considerado sem limitações. Assim, não se poderá negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência, pois aquele interesse é assegurado pela Constituição Federal devendo receber tutela em via jurisdicional (MORAES, 2003, p. 127).
Com a finalidade de concretizar esse direito de dignidade e proteger a pessoa humana houve o aumento das demandas de dano moral, pois, a lesão a qualquer aspecto da dignidade da pessoa humana é capaz de resultar no dever de indenizar (MORAES, 2003, p. 324). Para Moraes (2003, p. 132) “A reparação do dano moral transforma-se, então, na contrapartida do princípio da dignidade humana: é o reverso da medalha”.
Para Reis (2010, p. 92) o “crescimento exponencial das ações indenizatórias que chegam aos tribunais comprova, de forma insofismável, que os danos morais se tornaram um componente importante na defesa da dignidade do cidadão”.
A mudança ocorrida, entre a não aceitação do dano moral, para a sua evidente e exacerbada aplicação ocorreu em razão da alteração da noção de responsabilidade, assim como da ideia de justiça que a sociedade possui. Moraes (2003, p. 147-148) comenta sobre referida mudança: “Se era difícil dimensionar o dano, em questão de poucos anos tornou-se impossível ignora-lo. Se era imoral receber alguma remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima, lesada em sua esfera extrapatrimonial”. Esta mudança altera a posição da vítima na responsabilidade civil, como protagonista da reparação, e não é mais obrigada a suportar os danos sofridos.
O dano moral é uma injusta violação a uma situação jurídica subjetiva extrapatrimonial, situação esta amparada pela Constituição Federal por meio da clausula geral do princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, a Constituição Federal protege o indivíduo de qualquer ofensa, mesmo que não se tenha conteúdo econômico, desde que este dano esteja ligado a personalidade da pessoa humana, configurando o princípio da dignidade (MORAES, 2003, p. 132).
Necessário ressaltar que qualquer direito que esteja ligado a um valor de existência da pessoa, mesmo que não esteja discriminado no ordenamento, merece tutela jurisdicional, pois, ele está abrangido pelo direito à dignidade da pessoa humana que é clausula geral no ordenamento jurídico, servido como fundamentação para o pedido (MORAES, 2003, p. 127).
A dignidade da pessoa humana busca proteger a pessoa em suas múltiplas características, e assim, são abrangidos por tal direito todos os decorrentes da personalidade (MORAES, 2003, p. 128).
Com isso, verifica-se a desnecessidade que se proceda a taxatividade dos diretos da personalidade, pois todos estão abrangidos pelo direito à dignidade da pessoa humana, ampliando os direitos humanos, e excluindo a chamada “teoria do azar” que se verificava nas situações em que a vítima não tinha acesso ao processo indenizatório por ausência de previsão legal de seu direito lesado (MORAES, 2003, p. 128).
Para Reis (2010, p. 86), anteriormente, haviam pessoas prejudicadas à sua dignidade, porém, como não havia meio de exercitarem seu direito diante da ausência de instituto legal que o legitimasse, não haviam tantas ações como hoje. Atualmente as cortes conferem defesa total aos direitos fundamentais lesionados.
Portanto verifica-se que a grande busca pela reparação do dano moral tem por base a consequência de que, ao se contrapor qualquer interesse ao direito de dignidade da vítima ferida, esta não poderá ficar sem ressarcimento (MORAES, p. 2003, p, 324).
2.3 A corrosão dos filtros da responsabilidade civil
Como demonstrado no primeiro capitulo a responsabilidade civil possuía três pilares: culpa, nexo e dano. Sendo barreira que limitavam as demandas que mereceriam ressarcimento (SCHREIBER, 2015, p. 15). No entanto, atualmente é possível verificar certa corrosão dessas barreiras.
A demonstração da culpa perdeu aplicação em uma grande gama de relações, hoje fundamentadas pela responsabilidade objetiva e presunção de culpa. Esta dissipação de um dos filtros tradicionais da responsabilidade civil, ocasionou um aumento do fluxo de ações de indenização julgadas favoráveis, e nas palavras de Schreiber (2015, 50-51) “Corrói-se o primeiro dos filtros tradicionais da responsabilidade civil”.
Moraes (2003, p. 14) afirma que com a finalidade de proteger a pessoa humana, buscando a ampliação da reparação resultou no processo de “desculpabilização” ao se retirar a necessidade de cometimento do ato ilícito, ou seja, a desnecessidade de mostrar a culpa do agente para a ocorrer a reparação.
Também ocorre uma perda do rigor de apreciação do nexo, uma vez que a doutrina e jurisprudência relativizam a necessidade de comprovação desse instituto afim de assegurar a vítima a indenização. Tais decisões discricionárias tem como consequência a produção de decisões incoerentes que levam a insegurança jurídica. O que, por final, estimula a entrada de ações “fundados mais na desgraça da vítima, que em uma possibilidade jurídica” (SCHREIBER, p. 178).
A corrosão dos filtros de responsabilidade civil, como a flexibilização da culpa e do nexo de causalidade, geram como consequência o aumento da aceitabilidade de pedidos de indenização que são acolhidos pelo Poder Judiciário (SCHREIBER, 83).
Esta erosão dos filtros da responsabilidade civil realizado pela prática jurisprudencial vem fundada numa índole mais social e coletiva com um dever solidário de reparação. E assim, a corrosão dos filtros geram a extraordinária expansão do dano ressarcível, chamado por Schreber (2015, p. 225) de ‘terror dos juristas’.
Conforme verifica-se da construção jurisprudencial atual, tal efeito já está ocorrendo, em diversos casos ocorre a condenação de um agente sem que exista todos os pressupostos. Resumidamente, os tribunais acabam por indenizar uma vítima, que entendem merecer uma indenização, imputando a alguém o dever de indenizar sem que haja todos os pressupostos, em certos casos deturpando a teoria objetiva para que se encaixe ao caso concreto e assim gere o dever de indenizar (ALTHEIM, 2008, p. 115).
Doutrinadores, já chegam a afirmar que existem novos pressupostos para a responsabilidade civil, sendo elementos básicos comumente citados: a) antijuridicidade; b) dano injusto; c) nexo de imputação; d) nexo de causalidade;
A antijuridicidade não se trata sempre do cometimento de ato ilícito, mas sim, um ato contrário ao comando legal, abrangendo, os princípios, leis, costumes. “Toda situação que contrarie um interesse tutelado pelo ordenamento jurídico em seu contexto valorativo é contrária ao direito” (ALTHEIM, 2008, p. 117-118).
Nos novos pressupostos, é principal a análise do dano sofrido, devendo este dano ser considerado injusto. Para a caracterização desse dano injusto necessária é a comprovação de certeza e atualidade, bem como de que este seja decorrente de um ato antijurídico e atinja bem considerado “sério e útil” socialmente e tutelado pelo ordenamento (ALTHEIM, 2008, p. 123).
Moraes (2003, p. 179-178) conceitua o dano como sendo injusto quando, ainda que ocorrido por uma conduta lícita, afete a pessoa humana, merecedora de tutela jurídica e, ao observar o fato concreto verifique-se não ser razoável que a vítima permaneça irressarcida.
Assim, somente com a análise dos fatos concretos e a observância de quais direitos estão expostos pode-se verificar se o dano causado é injusto, não havendo possiblidade da existência de um rol taxativo de atos que causem dano (ALTHEIM, 2008, p. 124).
Verifica-se que com os novos pressupostos houve a modificação da necessidade de comprovação do “ato injusto” para o “dano injusto”, e desse modo a busca pela reparação do dano sofrido obteve um papel muito mais importante que uma aplicação de sanção ao causados do dano, na nova responsabilidade civil (MORAES, 2003, p. 13).
O nexo de imputabilidade é o fato de atribuir a quem será direcionada a condenação de indenizar. O nexo é aberto e dinâmico, assim pode ser atribuído de forma objetiva, nos casos previstos em lei como desiquilíbrio das partes (Art. 12 CDC), ou critérios de equidade, econômicos e na prática de atividades de risco. Ou, de maneira subjetiva, nos casos da culpa ou dolo. Assim, verifica-se o poder da jurisprudência e doutrina de conduzir quem deverá arcar com os prejuízos do dano (ALTHEIM, 2008, p. 127-130).
A necessidade de comprovação do nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente chamado a indenizar foi flexibilizado pela jurisprudência, sendo que em alguns casos ocorre a indenização da vítima sem a existência do nexo. Nos casos de excludentes de responsabilidade, por vezes, esta é afastada para gerar o dever de indenizar. Tem-se como exemplo dessa situação, citada por Altheim, (2008, p. 142-143) a responsabilização de pessoa que estava dentro do banco no momento de um assalto, mesmo que esta pessoa não seja cliente do banco, necessária a reparação de seu dano.
Assim, o nexo, aqui apontado como novo pressuposto da responsabilidade civil, se difere da teoria comum, pois a “relação de causa e efeito necessária para que surja o dever de indenizar não mais se dá entre a conduta e o dano, mas sim, entre o nexo de imputação e o dano” (ALTHEIM, 2008, p. 170).
Para a verificação desse nexo, o julgador deve verificar se o ato cometido se enquadra em alguma situação no ordenamento jurídico onde se determina o dever de indenizar (ALTHEIM, 2008, p. 145).
Exemplo citado por Altheim (2008, p. 145) é a imputação de responsabilidade para com o Estado quando este é chamado a indenizar a família de preso morto dentro da penitenciária, sendo que a morte tenha sido ocasionada por outro detido.
Essa nova teoria busca a reparação do dano injusto, sem observar se existe uma conduta contrária ao direito, desse modo, torna-se mais abrangente (ALTHEIM, 2008, p. 145).
Com os novos pressupostos, cada caso concreto possui suas peculiaridades que influenciarão o julgador no momento da decisão da atribuição da responsabilidade civil. Altheim (2008, p. 145) afirma que “(…) os pressupostos contemporâneos partem de uma mudança de perspectiva no direito dos danos, que passa a se preocupar com a plena reparação do dano injusto, e não mais, com a sanção à conduta contrária ao direito.”.
A erosão dos filtros tradicionais da responsabilidade civil com a desnecessidade de prova da culpa ou de demonstração do nexo causal nas ações de responsabilização podem gerar esta inundação do Judiciário segundo Schreiber (2013, p. 11): “se, por qualquer catástrofe, esses filtros se rompessem, o Poder Judiciário seria inundado com um volume incalculável de pedidos de reparação”.
Tal problemática possui termo correspondente, a ideia do “the floodgates argument” que significa a abertura das portas do Judiciário implicando na inundação deste. O princípio do floodgate argument foi utilizado pela primeira vez por Benjamin Nathan Cardozo, magistrado norte-americano, no caso ultramares Corp v. Touche, em 1932, onde discutiu a responsabilidade civil de contadores para com informações de terceiros nas auditorias.
Nas palavras do Desembargador Eugênio Facchini Neto, no acordão do processo de nº 70068037969/RS, o termo floodgate argument busca uma “imagem maior”, ao invés de olhar ao resultado do caso individual olha-se para as consequências que a decisão de um juiz pode gerar: um precedente no qual muitos processos serão afetados (TJRS, 2016).
Verifica-se que a erosão dos filtros da responsabilidade civil, ‘abriu os portões’ para a entrada, como também procedência de diversas ações, que antes eram barradas. Sendo essa uma das razões do aumento vertiginosos das ações de buscando reparação por dano moral que podem levar ao entupimento das vias jurisdicionais.
CONCLUSÃO
Por meio do estudo pode-se verificar que a indenização por dano moral, antes afastada pela jurisprudência, hoje vem ganhando foco, sendo um dos principais pedidos nos processos judiciais
Verificou-se uma construção legislativa que introduziu a reparação do dano moral lentamente na legislação, porém, atualmente, possui diversas previsões legais em leis esparsas, como também disposição expressa na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, incisos V e X). Contudo, mesmo com diversas disposições legais alguns temas ainda são controvertidos como as funções da reparação do dano moral, principalmente no que se refere à sua função punitiva, e os parâmetros utilizados para sua valoração.
Ao analisar as questões que hoje contribuem para o aumento das ações buscando uma reparação por dano moral foi possível verificar diversos fatores, sendo apontados pela pesquisa os que se entendeu mais relevantes. Dentre eles: maior judicialização da vida cotidiana, maior importância para com à pessoa humana e a quebra dos pressupostos processuais da responsabilidade civil.
Observou-se que a criação de meios de acesso à justiça, assim como uma tendência de judicialização da vida, ante à conscientização e amparo amplo e irrestrito dos direitos da personalidade, geram crescente ingresso de ações judiciais muitas vezes visando uma indenização por dano moral.
Ainda, constatou-se que os pressupostos processuais da responsabilidade civil, culpa, nexo e dano, antes barreiras que impediam à reparação, estão sendo flexibilizados por meio da legislação e jurisprudência, gerando aumento da aceitabilidade de pedidos de indenização acolhidos pelo Judiciário.
Conclui-se, portanto, que o pedido de reparação por dano moral antes afastado pela jurisprudência, atualmente tem crescente utilização, explicada por diversos fatores que em conjunto geraram o aumento vertiginoso de seu requerimento nos processos judiciais.
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[1] Pesquisa CNJ Justiça em Números 2020. Acesso em 10/03/2021. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf
[i] Pós graduada em Processo civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo. Membro da OAB/PR, advogada do escritório CBR Advogados. E-mail: isabellarivabem@hotmail.com.
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