Resumo: este trabalho é uma resenha do clássico livro A Polícia das Famílias do autor francês Jacques Donzelot. Nele é possível perceber historicamente como as organizações familiares foram se transformando ao longo do tempo, de acordo com os interesses de um Estado que ora pretendia se aliar às famílias, ora ditava normas e direitos visando diminuir as mazelas sociais. A partir do século XVIII Jacques Donzelot relata uma gama de códigos estatais direcionados às famílias e aos jovens delinqüentes.
Palavras Chave: Direito, Família, Estado, delinqüência, século XVIII
Summary: This paper is a review of the classic book The Police Families of French author Donzelot. There you can see history as family organizations were becoming over time, according to the interests of a state that now wants to ally with families, sometimes dictated standards and rights in order to reduce social ills. From the eighteenth century Donzelot reports a range of state codes targeted to families and young offenders.
Keywords: Law, Family, State, crime, century XVIII
Sumário: INTRODUÇÃO. I. e II. Apresentação / A conservação das crianças. III .O governo das famílias. IV. O complexo tutelar. V. A regulação das imagens. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O livro A Polícia das Famílias, do autor francês Jacques Donzelot, nasceu em um contexto histórico de grandes transformações ocorridas nas análises científicas das ciências humanas. Foi na década de 60, 70 e 80 que a historiografia francesa consolida um movimento teórico que ficou conhecido como História Nova. Essa História Nova vem propor novos métodos, novos objetos e novas linguagens para o estudo científico social e humano. Entre as inovações propostas pela História Nova está a abertura para o estudo do cotidiano dos “homens comuns” e de temas até então reservados à antropologia, tais como a alimentação, o corpo, o mito, a morte etc.
Nesse período a historiografia ganhou obras que passaram a trabalhar com uma multiplicidade de documentos (fotos, diários, músicas etc.) e a usar uma linguagem mais narrativa do que propriamente formal e distante do leitor. Composta essencialmente por historiadores franceses, seus princípios estão enraizados no trabalho de autores como Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, responsáveis pela desconstrução da história positivista no século XIX.
Dentro, portanto, do contexto da História Nova, o autor aqui estudado Jacques Donzelot é considerado inovador na elaboração da obra A Polícia das Famílias, tanto no sentido técnico da pesquisa, quanto no teórico da análise, vejamos. A obra A Polícia das Famílias, apesar de abordar temáticas heterogêneas, possui um fio condutor: como se deu a intervenção do Estado na tentativa de construção da ordem social na França do século XVII até o século XX?
Primeiramente o livro demonstra o encadeamento de medidas educacionais, propostas pelo Estado, por meio das famílias, voltadas à negação das influências da criadagem dentro das classes ricas, e, dentro das classes pobres, voltadas à coerção de liberdades, de abandono de menores, de uniões livres e de vagabundagem. A disseminação dessas ideologias sociais a partir da educação institucional e familiar também inaugurou novos papéis sociais para as mulheres desse período, por exemplo, para as mulheres burguesas, o importante nesse momento era introduzir, em sua família, noções de higiene e de assistência, já para as mulheres pobres a missão era velar por uma retração da liberdade de seus filhos e marido.
A efetivação desse modelo de intervenção estatal moral dentro das famílias também irá se refletir na construção das casas populares, onde se planejou a separação dos sexos e reduziu-se espaços de socialização.
Resumidamente, essas intervenções estatais estavam baseadas na ótica de dominação e imposição conclamada pelo nascer do capitalismo liberal; Donzelot dessa forma busca dar sentidos e razões para o modo como se deu a construção histórica, social e econômica da instituição familiar do século XVII ao início do século XIX, em meio à realidade francesa.
O capítulo III, O Governo Através da Família, trata de como o poder do Estado se apoiou nas famílias, de como o chefe de família garantiu a ordem social pagando impostos, decidindo a profissão dos filhos e estabelecendo limites para seus parentes; de como o advento da poupança, induzida pelos filantropos, servirá como ponto de apoio para família, fazendo refluir para ela os indivíduos desregrados, sem necessitar muito do apoio financeiro do Estado, através de suas instituições filantrópicas e de caridade. Também esse capítulo trata dos novos paradigmas do século XIX, do nascimento da filantropia em substituição à caridade, ou seja, ao invés de assistência aos idosos, repressão destruidora, doação de bens materiais e caridade humilhante, assistência às crianças, conselhos eficazes, normas preservadoras e poupança, tudo isso como alternativas cotidianas. Desde a década de 1840 inúmeras leis que editam normas protetoras da infância e que dão maior poder de controle aos filantropos são instituídas.
Dentre muitos argumentos a respeito do nascimento dessa filantropia, e do que fazer com os indigentes nesse período, Donzelot salienta a nova visão que se passa a ter da pobreza, essa, no XIX, passara a ser vista como meio de integração, através do assistencialismo solidário das elites, e não mais como meio de insurreição social.
Já o capítulo IV menciona a estrutura dos tribunais para menores (1912) como ambientes muito bem projetados para negociar com o menor rebelde, para não trazer-lhe muita excitação, daí porque os tribunais para menores serem pequenos e sem público. A justiça institucional, de forma crescente, vai tomando corpo na sociedade e até subtraindo o poder paterno e materno, o que ficou conhecido como patriarcalismo do Estado. No entanto, nos anos que se seguem, os tribunais de menores, ao invés de punirem imediatamente, irão cada vez mais examinando a vida dos menores e os colocando num dispositivo de instrução penal interminável e de julgamento perpétuo. E, aliado ao judiciário, a medicina exercerá a função de analisar psicologicamente os menores, respondendo ao judiciário se o menor apresenta distúrbios ou não, se esses distúrbios tornam necessárias medidas de proteção ou não, isso quer dizer que, a faculdade de decidir sobre a responsabilidade dos menores é retirada do juiz e confiada ao médico.
Para o médico, inicialmente, a delinqüência social era sintoma de anomalia mental, de insuficiência originária. Portanto, o roubo, a vagabundagem, o suicídio, o vício são tidos como potências latentes de loucura. E, com o crescimento das instituições escolares e militares, a psiquiatria médica reforçará e justificará ainda mais essa idéia da indisciplina e da inadaptação como males subversivos e débeis.
A introdução da psicanálise no campo da justiça de menores observou e condenou crianças e jovens a partir de análises congênitas, porém o pós 2ª guerra mundial desencadeou uma série de debates no campo pedagógico obrigando o nascer de uma outra postura por parte dos psicanalistas. Pensava-se agora em perturbação de caráter, carências familiares, impossibilidades econômicas, e não mais em problemas cerebrais genéticos. Rebusca-se aí as atividades normalizadoras, o velho discurso da família enquanto grupo de vigilância mútua, deve-se vigiar a forma que se utilizam o tempo, por onde andam, impor escola e trabalho aos filhos e parentes em geral.
No capítulo V a questão da sexualidade é o foco principal, o Estado, novamente, se apodera do discurso social e começa a estimular idéias relacionadas à fertilidade feminina, devido à eminente guerra, e, necessidade de forças humanas. Latente contradição, pois, anos anteriores disseminava-se o malthusianismo, ou seja, a irresponsabilidade social que a fertilização feminina das classes pobres produzia. Provando a manipulação teórica do Estado, o capítulo V finaliza colocando a criação dos centros médicos psico-pedagógicos como principais representantes e difusores do discurso do ideal de família feliz.
I e II. Apresentação / A conservação das crianças
Neste capítulo, Donzelot traz à tona uma implicação suscitada em torno da saúde social no século XVIII, qual seja: “por que razão os camponeses, que levam uma vida mais penosa com uma alimentação menos rica que a dos burgueses e nobres, são, entretanto, mais saudáveis?” Ao fazer essa pergunta, a teoria maquinística do corpo, sob a qual repousava a medicina oitocentista, tinha a preocupação de reavaliar a organização do corpo e culpar todo o sistema de criadagem pelos excessos de prazer e perversões do corpo de jovens e crianças. Para os intelectuais da medicina, o hábito das famílias ricas de confiar à serviçais as tarefas educacionais das crianças gerava todo um aparato social maléfico, pois estava imerso em condições perdulárias e prazerosas como por exemplo: o uso de cintas que apertavam as cinturas, o peito e o ventre, criando uma modelagem estética forçada, e a reclusão que tornavam as meninas inaptas para as tarefas da maternidade, reproduzindo a necessidade de serviçais.
Nesse contexto, promover novas condições de educação tornou-se bandeira essencial para os pensadores da época, apresentando pouquíssimos níveis de oposição à tal tarefa. Pensou-se que, em se tratando de famílias pobres, um certo nível de educação e informação serviria tanto para tornar menor a influência da criadagem nas famílias ricas, como para diminuir o abandono de crianças nas suas famílias, tão oneroso para o Estado. Assim, fez-se a difusão da medicina doméstica, isto é, a difusão de conhecimentos técnicos, através de livros e tratados médicos que visavam, para os ricos criar uma vigilância sobre os serviçais e seus filhos, e, para os pobres, diminuir o custo social de sua reprodução desenfreada. No entanto, a heterogeneidade e pressa do discurso médico, que hibridava entre conselhos educativos e doutrina médica, deram lugar a muitos erros teóricos e de aplicação, o que implicou na necessidade de instauração do médico de família, possível mais freqüentemente em famílias ricas, como forma de sustar os charlatões e médicos desqualificados.
Diminuindo a importância da tarefa das comadres e nutrizes (amas de leite), antes responsáveis pelos partos e por doenças infantis, a medicina da metade do século XVIII, aos poucos, também destruiu o império das velhas práticas de amamentação de bebês por mulheres de aluguel, bem como foi condenando os modelos de vestuário de crianças, antes preparado por comadres. Para isso a medicina aliou-se às mães de plantão, capazes de conter cotidianamente os ensinamentos da criadagem, e vigiar suas crianças com mais atenção Tais mudanças foram responsáveis por conseqüências avassaladoras na autoridade paterna.
Os novos questionamentos e a difusão de mudanças comportamentais incitadas pela medicina indica que as famílias, antes do XVII, não depositavam atenção elevada nas crianças, as crianças eram vistas como simples “adultos em miniatura”, muitas nasciam e eram levadas para as amas de leite; não haviam preocupações dos pais para com seus filhos no sentido de educá-los e formá-los saudavelmente, inexistiam vínculos afetivos demasiados, o que infere que as crianças eram relegadas à própria sorte, entretanto, é no século XVII, como vimos, que o Estado começa a se interessar pela criança como um futuro ser produtor de riquezas e gerador da paz social.
Aliando-se à mãe, o médico da família concede à mulher burguesa maior importância social, ao tempo em que transforma a moradia familiar em um espaço todo programado e protegido, onde o objetivo era facilitar as brincadeiras para crianças, o crescimento de sua força física e protegê-las dos contatos externos. De certa forma, esse movimento de proteção à infância irá refletir-se na educação pública da França, vide grandes mudanças iniciadas como por exemplo, a melhoria da salubridade dos internatos, a supressão das punições corporais, o desenvolvimento da educação física, a vigilância dos arredores dos liceus, contra bares, prostitutas, exibicionistas e jornais que circundavam a região, etc.
Os princípios da educação, após a intervenção da medicina no cotidiano das famílias é diferenciado a partir das categorias e classes sociais. Aos pobres a educação pública foi marcada não pela difusão de livros e conhecimentos em geral, ou pela aliança médico família, tal como se designava para os ricos, mas pela proibição ideológica do abandono de crianças, de uniões livres, de fugas e de vagabundagens, pelo afastamento da criadagem etc. A família nuclear passa a ser modelo referencial da paz civil, e a ideologia da educação deveria primar por ensinamentos que a relevassem cada vez mais. Não é por menos o crescimento da polícia no período do século XVIII, prometendo felicidade e tranqüilidade para todas as famílias corretas, contra os não-familiarizados e os rebeldes.
A aliança estratégica família e Estado organizou uma rede de coerção e banimento social dos menores abandonados, celibatários, rebeldes, e dos que estavam fora do regime familiar referencial. Enquanto as famílias rejeitavam livremente seus próprios rebeldes, o Estado os coagia e concentrava em instituições de caridade, com o fim de constituir laboratórios de observação das condutas sociais.
A preocupação em manter respeito à vida e à honra familiar provocou a criação da roda, dispositivo que permitia às mães abandonarem seus filhos em instituições de caridade, sem serem vistas, e, sem que a criança fosse deixada à míngua da morte. Porém, em menos de cem anos a roda é abolida com o fim de amenizar o perigo de um excessivo número de abandonados. Nesse momento, vem à tona todo um sistema jurídico que restaura os procedimentos de busca de paternidade, de imposto sobre o celibato, além de multiplicar a formação de comissões de inquérito para averiguar causas de abandono familiar. A roda, por mais que tivesse diminuído a mortalidade infantil, foi alvo de muitos deslizes legais por parte das mães que abandonavam seus filhos e depois iam resgatá-los como nutrizes assalariadas do Estado assistencial que, como não conheciam as mães, pagavam salários para quem quisesse amamentar as crianças.
Restaurar o casamento passa a estar na ordem do dia para o Estado e suas instituições beneficentes do século XVIII. Não é por menos que muitos auxílios sociais só são transmitidos na condição de se estar casado; há, igualmente, uma redução progressiva das condições jurídicas e burocráticas do casamento.
As Sociedades Patronais tinham o papel de restabelecer a união entre casais aventureiros com filhos, no entanto, nos conflitos desses casais, o homem era o mais reticente e soberbo diante dos conselhos dessas Sociedades; isso porque as novas mulheres operárias não possuíam riquezas ou dotes que pudessem recompensar o homem por sua manutenção e a de seus filhos o resto da vida. Então, para substituir o dote que as mulheres não podiam fornecer, essas Sociedades buscaram disseminar uma revalorização do trabalho doméstico, uma requalificação da dona de casa, ressaltando a idéia da mãe dedicada, como salvação do homem; era necessário apenas amoldá-la para que a mesma conseguisse abafar o espírito de independência do homem operário.
No final do capítulo II Donzelot demonstra que a polícia das famílias se articula também no padrão de habitação da mais nova classe operária. Expansivamente o Estado vai concedendo habitações de menor porte e tamanho às famílias pobres, “para que nenhum estranho possa morar”, ou seja, para que se finde o costume de ter muitos forasteiros, amigos e pensionistas nas casas (antigo costume ligado às aprendizes da produção familiar manufatureira). A separação de sexos, no interior das habitações é outro fator indispensável ao estímulo da moralidade e da decência cotidiana. Por fim, pretendeu-se que a residência familiar se transformasse numa peça complementar à escola com controle das crianças, dos homens, das visitas e, então caso os homens e crianças preferirem a convivência nas ruas, a culpa seria da mãe e da esposa, que não aprendeu a controlar sua família.
O quadro argumentativo exposto pelo autor da obra A polícia das famílias demonstra que a família moderna se constituiu, a priori, num elo entre famílias ricas e pobres, com o objetivo de construir uma ordem social estável. Esse elo tem incomum apenas os objetivos a serem alcançados, pois, para as famílias ricas, o primado da educação formulou-se no recalcamento dos serviçais, no reforço do poder feminino, através da aliança com o médico, e na proteção das crianças, enquanto que para as famílias populares, o primado educacional amoldou-se a partir da redução de cada um de seus membros aos outros, numa relação de vigilância circular contra as tentações do cabaré e da rua.
O contexto histórico de objetivos e propostas para o nascimento da educação pública no Brasil, não difere tanto do caso francês, aliás, a educação brasileira foi formulada segundo os moldes europeus, que visavam instruir como meio de “civilizar”, possibilitando a submissão dos indivíduos às leis e à almejada ordem:
“A influência do modelo educacional centro-europeu era visível, através da importação dos métodos de ensino lá utilizados, como o método mútuo, o envio de professores à França para que aprendessem tais métodos, assim como a introdução de um manual didático-pedagógico francês, o Curso normal para professores de primeiras letras (De Gérando, 1839), considerado o primeiro do gênero a ser introduzido no Brasil, utilizado como suporte para a formação dos normalistas”. (GOUVÊA, 2006)
As primeiras fases da educação brasileira, dos séculos XVII e XVIII, afirmou-se com a idéia de educabilidade da infância, já os séculos XVIII e XIX iriam voltar-se para a relação educação e civilização. O século das luzes na Europa e no Brasil voltava-se para a educabilidade dos “selvagens”, das crianças pobres que tinham má formação doméstica. Entendia-se que a educação escolar teria a dupla função de proteger a infância das ameaças do mundo e transformá-la, formando-a nos moldes de um adulto civilizado; a discussão em torno do ensino dirigido aos alunos pobres referia-se predominantemente à formação do caráter e de hábitos, ao passo que pouco se destacavam os aspectos referentes aos conteúdos de ensino. E, mesmo quando eram discutidas formas de se proceder à transmissão do conhecimento, como nas polêmicas que envolviam os métodos de ensino, a preocupação com a disciplina, a ordem e a obediência sobressaíam em comparação com as discussões acerca dos conteúdos.(GOUVÊA, 2006)
Igualmente, a medicina social Brasileira é toda estruturada, no século XIX, com bases científicas européias. Segundo a autora Silvia Alexim Nunes a desagregação do sistema escravagista e o crescimento populacional geraram uma massa social ociosa e subversiva tornando necessário, para o Estado, novas formas de enquadramento social. Inauguram-se aí procedimentos de contenção e disciplina através do discurso medicinal e sanitarista. Cuidados com as crianças, assessoramento à família e à casais, criação de saneamento de esgoto, cemitérios, escolas, quartéis, fábricas etc, toda uma postura social preventivista encoberta de interesses estatais – privados. No discurso dos papéis sociais, a condição feminina no século XIX recebeu atenção especial, resgatando a mulher da submissão completa ao marido para a aliança em busca de educar o filho. O projeto médico também exaltava a proteção da infância através da diminuição dos índices de mortalidade infantil, do aleitamento infantil e do fim do aborto.
III. O governo das famílias
Segundo o autor, a família era, no Antigo Regime, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de governo. Éra sujeito porque a família devia obrigação ao patriarca, ao passo que este também se situa em relações de dependência. Daí caracterizar a família também como objeto. A família está inscrita em redes de solidariedade, como as corporações de comunidades aldeãs ou blocos de dependência do tipo feudal ou religioso. Essa rede de dependência formava um elo de liames sociais que organizava os indivíduos em torno da posse de uma situação, materializada pela profissão, privilégio e status, outorgada e reconhecida pelos mais amplos setores sociais. Dessa forma, a família era atingida pelo sistema das obrigações, das honras, dos favores e desfavores.
Essa inscrição direta da família no campo político do Antigo Regime faz com que, em relação aos aparelhos centrais, o chefe da família ou a mãe, respondam por seus membros. Eles devem garantir fidelidade á ordem pública, devem também fornecer uma contribuição em imposto, em trabalho e em homens para as milícias.
Como contra partida a respeito dessa responsabilidade em relação ao Estado, o chefe de família possuía um poder de decidir sobre a carreira dos filhos e emprego dos parentes, poderia também puni-los apoiado na autoridade pública. O Estado se apoiou diretamente na família jogando com seu medo de descrédito público e com suas ambições privadas. Os chefes de família e mães mantinham sua gente em obediência às regras do aparelho estatal e em troca poderiam fazer uso da família da maneira que lhes conviesse.
O aumento intermitente das ondas de indigentes e o confronto entre uma minoria burguesa civilizada e um povo bárbaro que ameaçava destruir as cidades, colocavam em risco uma definição liberal de Estado. Visto isso, como garantir o desenvolvimento de práticas de conservação e de formação da população dissociando-as de qualquer atribuição diretamente política e participativa? A resposta foi: por meio da atividade filantrópica.
A atividade filantrópica se organizou em núcleos que se caracterizaram pela busca de uma distância calculada entre as funções do Estado liberal e a difusão de técnicas de bem-estar e de gestão da população. Em primeiro lugar há o pólo assistencial que utiliza o aparelho estatal como meio formal de divulgar conselhos e preceitos de comportamento, entre eles, o ensino das virtudes da poupança. Em segundo lugar, há o pólo médico-higienista. É foi com o espírito de preservação da sociedade liberal através da adaptação positiva dos indivíduos a seu regime, que os higienistas incitaram o Estado a intervir, através da norma, na esfera do direito privado. Essa estratégia filantrópica substituiu formas do antigo estilo do poder de soberania: conselho eficaz em vez de caridade simplesmente e norma preservadora no lugar de repressão destruidora.
Com base nas observações do autor, podemos afirmar que existiam três formas de assistência aos pobres: os Hospitais Gerais e as reclusões para os “vagabundos”, a esmola individual para os mendigos e as companhias de caridade organizadas em torno das paróquias para a pobreza envergonhada, sendo esta última caracterizada pelo auxílio àqueles que tinham uma profissão e cujo problema era esconder sua miséria a fim de não perder crédito. Os três tipos de assistência posteriormente foram considerados ineficazes, pois contribuiram para falsear a percepção da pobreza. Esses meios de assistência incitavam aquele que vivia na mendicância a dela fazer profissão.
Discursos de economistas e filantropos foram se distribuindo em torno da questão da assistência. De um lado os socialistas da Inglaterra e utopistas franceses, que propõem a abolição da propriedade e da família em proveito de uma gestão estatal das necessidades. Por outro lado a Economia Política Cristã, partindo do princípio de que a caridade estabelece relações e laços de afeição entre as classes. Por fim temos o grupo da Economia Social, e é esse último que irá introduzir suas proposições na questão da assistência, fazendo da incitação à poupança, o novo dispositivo da assistência e apoiando-se na família contra as antigas formas de solidariedade e dependência. Para eles, era preciso se dar mais conselhos do que bens. As sociedades distribuem bens materiais para serem utilizados como vetores de uma influência moral legítima. De modo geral,a filantropia se distinguiu da caridade na escolha de seus objetivos, em vez de bens, conselhos. Há a instauração de uma “tecnologia das necessidades”, segundo a qual, ou a família controla suas necessidades ou será controlada por elas.
Através do estímulo à poupança financeira, as famílias obtiveram maior autonomia em relação às redes de solidariedade, enquanto que, as normas higienistas em relação à criação de crianças e ao trabalho, surtiram efeitos porque, entre outros motivos, forneceram às mulheres a possibilidade de uma autonomia maior contra a autoridade patriarcal no interior da família.
Outro ponto levantado pelo autor nesse período do século XIX é a questão operária, onde existem abusos: o trabalho demasiado precoce e duro das mulheres e crianças e as condições de higiene pública e privada que ameaçavam a saúde da população. Abusos que podem ser corrigidos por meio de normas que protejam a infância, a saúde e a educação. A lei de 1841, sobre o trabalho de menores é aplicada nas manufaturas não sendo respeitada nos pequenos ateliês. Só através da escola a norma pôde ser difundida, sendo missão do professor, fazer penetrar na família através da criança, a “civilização do lar”. Desde a década de 1840 até o final do século XIX, multiplicavam-se normas protetoras da infância. Essas medidas visavam além de corrigir a situação de abandono em que se poderiam encontrar as crianças das classes trabalhadoras, reduzir a capacidade sócio-política dessas camadas.
No final do século XIX emerge um terceiro pólo filantrópico: tem como alvo aquilo que ameaça a infância e aquilo que a torna ameaçadora. Multiplicaram-se os patronatos para crianças e adolescentes sob o Segundo Império com a lei de 1851, a qual encorajava a iniciativa privada a assumir o encargo de menores delinqüentes em estabelecimentos destinados a moralizá-los e a ensinar-lhes hábitos sadios de trabalho. Tomadas em seu conjunto, essas sociedades, quer funcionassem colocando os menores em estabelecimentos de sua criação ou em famílias de sua escolha, quer interviessem diretamente nas famílias, cedo ou tarde se deparariam com um ponto de resistência: o poder paterno.
As leis de 1889, 1898 e 1912 irão organizar progressivamente a transferência de soberania da família e do poder paterno que compromete tanto a moralidade e saúde de seus filhos à justiça e ao Estado. Daí a lei de 1889, que atribui ao juiz o poder de confiar a guarda de uma criança, quer à Assistência Pública, quer à uma pessoa ou à uma sociedade caridosa e isso, em todos os casos de delitos cometidos por crianças ou contra crianças.
IV O complexo tutelar
Em O Complexo Familiar, capítulo VI do livro, traçam-se as mudanças ocorridas no final do século XIX e início do século XX, palco do surgimento de uma série de profissões ligadas ao Trabalho social: os assistentes sociais, os orientadores, educadores especializados. Essas profissões encontraram-se, neste período, em plena expansão, seus efetivos aumentaram com extrema rapidez, fora notório sua atuação em várias instituições como apêndices dos aparelhos pré-existentes: judiciário, assistencial, educativo. Pulverizados numa onipresença de lugares de inserção, guardavam sua unidade, não obstante, em função de seu domínio de intervenção, que assume os contornos das classes “menos favorecidas”.
Nas camadas pobres o alvo do trabalho social teve uma forma dúplice: a infância em perigo, aquela que se supunha não ter se beneficiado de todos os cuidados de criação e da educação almejadas, e a infância perigosa, a do já delinqüente. Enfim, o alvo da novidade do trabalho social consistiu justamente numa atenção mais concentrada com relação aos problemas da infância, ademais, num questionamento conseqüente das antigas atitudes de repressão ou de caridade, na promoção de uma solicitude sem fronteiras, visando mais a compreensão do que a sanção judiciária. O saber criminológico dessa forma se debruçou detectando no passado dos menores delinqüentes e na organização de suas famílias, os signos que possuem em comum.
Graças a essa forma de análise puderam estabelecer o perfil padrão do futuro delinqüente: o pré-delinqüente, essa criança em perigo de se tornar perigosa. Sobre este objeto, sujeito de atenção, se instaurará uma infra-estrutura de prevenção, iniciando-se uma ação educativa que possa, oportunamente, retê-lo aquém do delito. Estuda-se desta forma o clima familiar, o contexto social que faz com que determinada criança se transforme numa criança “de risco”. Com palavras de Donzelot “Partindo de uma vontade de reduzir o recurso ao judiciário, ao penal, o trabalho social se apoiará num saber psiquiátrico, sociológico, psicanalítico, para antecipar o drama, a ação policial, substituindo o braço secular da lei pela mão estendida do educador.” .Desta forma e de etapa em etapa a inovação, freada freqüentemente pela lentidão das mentalidades repressivas mas, felizmente guiados pelo bom senso do saber, proporcionará idealmente uma supressão de qualquer sanção estigmatizante em proveito da consideração atenta do caso de cada indivíduo. “O saber desta forma anularia o poder repressivo, abrindo caminho para uma educação libertadora”. O educativo seria, por assim dizer, o processo da substituição do judiciário, ou melhor, o educativo seria a extensão do judiciário, aperfeiçoamento de seus procedimentos, ramificação infinita de seus poderes.
Esta forma de abordagem, porém faz emergir questionamentos diversos, por exemplo “Como continuar a pretender que a prevenção nada mais tenha a ver com um exercício de um poder repressivo, quando ela é mandatada judicialmente para penetrar no santuário familiar, podendo mobilizar, se necessário a força policial ? Mas também como denunciar a inflação de procedimentos de controle e de prevenção sem, com isso, legitimar um outro arbítrio, as vezes infinitamente mais perigoso, o da família que, no interior dos seus muros, pode maltratar seus filhos e prejudicar gravemente seu futuro ? “ O trabalho social desta forma poderia ser encarado como um corte brusco na brutalidade das sanções judiciárias centrais por meio de intervenções locais, através da brandura de técnicas educativas ; Ou seria o desenvolvimento incontrolável do aparelho do Estado que sob capa da prevenção, estenderia seu domínio sobre os cidadãos no seu foro dos mais íntimos que é a esfera familiar?”
O cenário
1. Desvio no conteúdo da coisa julgada :
O tribunal de menores passou a se desvirtuar de um lugar de deliberações e de julgamentos públicos. No seu aspecto legislativo a redução da teatralidade do aparelho judiciário teria por objetivo unicamente diminuir a distância entre os juizes e os menores, e permitir um acordo com os pais na tomada de decisões. A princípio tratava de cercear a excitação provocada nas crianças pelo caráter público dos julgamentos. A ausência de público desta forma provocava excelentes resultados pois tirou dos menores a possibilidade de vaidades, por exemplo, ao ver seu nome nos jornais ( defendem os próprios fundadores dos primeiros tribunais para as crianças, Beijamin Lindsay, que foi o primeiro juiz de menores em Chicago, em 1899, e seus equivalentes franceses, Alllanel e Henri Rollet ). Em fim “contra a emoção popular que poderia ser provocada pela condenação dos menores; contra a atitude dos pais, que vinham decididos a evitar que se recaísse sobre eles o opróbrio de uma condenação ou, então, para retirar a criança das garras do aparelho, às custas de patéticos relatos de miséria e sofrimento; em suma, era preciso matar Govroche, a criança vergonha da família, a criança orgulho do povo : forçando a família a comparecer com ela e eliminando o povo.”
As “pessoas de bem” por outro lado, “pessoas de qualidade”, “colaboradores institucionais do juiz”- em busca de uma ocasião interessante eram muito bem vindas nesse cenário posto que as mesmas eram participantes no processo de “encarregar-se de crianças” quando ainda não ser o caso da criança ainda não ter sido marcada pelo vício e ser enviada para uma “Casa de Correção” uma dessas figuras respeitáveis levantava-se e propunha amavelmente ao juiz encarregar-se das crianças. “A instauração do moderno tribunal de menores conservou cuidadosamente um lugar para essas preciosas personagens”.
2.Desvio na forma do julgamento:
O tribunal de menores faz pensar em uma reunião de síntese psiquiátrica ou uma apresentação de doentes. Não há o confronto entrecruzado como num tribunal clássico (juiz, réu, promotor, advogado- sem contar com os colaterais : testemunhas, peritos ou a parte civil) de modo que nesse caso o acusado tem, pelo menos, o domínio visual do campo de forças onde o seu processo é debatido. Num tribunal de menores a emergência de novos atores dispostos diferentemente aniquila o privilégio e modifica, por conseguinte a natureza da representação. (o juiz, no seu estrado, figura desencarna pelo porte da toga, escrutando suas expressões, sua postura, sua vestimenta ; o acusado em frente a ele, que o encara continuamente ; atrás dele sua mãe e raramente seu pai ; depois mais ainda atrás, o educador ; a seu direita e esquerda o advogado e promotor ) . “O principal efeito dessa transformação é o de anular a representação de uma justiça eqüitativa, habitualmente sugerida pela oposição formal entre o advogado e o promotor.” Nesse cenário de horror temos um promotor que só reclama a aplicação da lei, um advogado inexorável que é nomeado ex-officio que inutilmente se pronuncia pela absolvição- alguma semelhança com nosso país, e por fim um juiz altamente desproporcional frente ao réu, os educadores praticamente não podem dialogar ou se interpelar, já que só têm direito de se dirigir ao juiz e, além disso, não falam a mesma língua, o que é diferente do caso do promotor e do advogado. “A família em princípio, está presente para explicar e/ ou defender o comportamento de sua progenitora, mas ela é contrariada, nessa função, pela acusação implícita ou explicita que é feita contra ela : pelo menos em parte, é por sua causa que a criança está nessa situação.”
O tribunal de menores só aplica penas seletivamente, ele administra as crianças sobre as quais pesa a ameaça de aplicação de punição. Opera uma discreta diluição da pena, cerca o corpo delituoso em vez de estigmatizá-lo ostensivamente, a prisão fechada constitui uma exceção. Prefere desta forma medida educativa, “assistência educativa em meio aberto”, “liberdade vigiada”, “período de experiência”, colocação em centros de liberdade parcial” ou “ liberdade condicionada”. Num certo sentido, ela dá oportunidade ao menor culpado condenando-o apenas a medidas de controle. Num outro aspecto ela amplia a órbita do judiciário para todas as medidas de correção.
O espírito das leis (de 1945 e de 1958) sobre a infância delinqüente e pré-delinquente determina que se leve em consideração, mais do que a materialidade dos fatos reprovados, seu valor sintomático, aquilo que eles revelam sobre o temperamento do menor, mais do que para estabelecer os fatos. É o momento em que se têm início as medidas de observação da criança – em seu meio, quando é deixada em liberdade ( observação em meio aberto, O.M.O), em internato ou em prisão. É o momento em que ele é examinado por psicólogos ou psiquiatras, em que se ordena um inquérito sobre sua família pela polícia ou por assistentes sociais. A verdadeira instrução penal passa a ser, portanto uma avaliação do menor e do seu meio por uma corte de especialistas da patologia social. Avaliação que se transforma em ação após julgamento. A lição que se apreende sobre o funcionamento da justiça de menores é que se é uma justiça fictícia na medida em que não possui uma atividade judiciária própria, mas desempenha o papel de um permutador entre duas jurisdições que dispõe de uma lógica autônoma . Por sua proximidade com a justiça penal, o tribunal de menores outorga sua legitimidade às praticas vigilância, estende sobre esta a sombra protetora da lei, sua faculdade virtual de coerção. Por seus vínculos com as práticas correcionais ele pode desincumbi-la dos elementos refratários, graças a um dispositivo desprovido do caráter democrático das formas judiciárias clássicas: natureza publica e contraditórias dos debates, a possibilidade efetiva de apelação .
O código
Diante da multiplicidade dos documentos e de relatórios de assistência educativa e de consultas médico-psicológicas, temos visto em alguns dossiês de crianças delinqüentes ou em perigo moral, que esses documentos são, freqüentemente recopiados, com o mesmo discurso.Isso ocorre devido a concentração de observações efetuadas sobre o menor, numa única instância, onde o resultado do inquérito social, o saber classificatório, os exames psiquiátricos e os testes psicológicos, são unificados por um saber interpretativo de inspiração psicanalítica.
O inquérito social assemelha-se aos autos de inquérito policial do que a essa sutil reconstrução da história e dos problemas de uma família que uma assistente social moderna pode elaborar. Os assistentes sociais são os agentes sistemáticos de sua missão de instrução e os psiquiatras avaliam ocasionalmente os indivíduos suspeitos de pertencer mais à alçada da medicina do que da justiça. A matéria-prima e ainda principal dos dossiês de crianças perigosas ou em perigo é fornecida pelo inquérito social, cuja generalização aparece ao mesmo tempo em que a justiça de menores.O inquérito social é, assim, o principal instrumento técnico destinado a ordenar a nova logística do trabalho social: a possibilidade de retirar ou restituir as crianças.
Essa nova disposição da assistência, mais a infra-estrutura disciplinadora da sociedade e as leis de proteção à infância permitem a generalização de uma técnica de inquérito, afastando tudo o que restringia a sua eficácia, dando força ao investigador para separar seu trabalho totalmente da antiga lógica da reputação, em proveito da investigação metódica e policial.Sem o quê, “o inquérito não será mais dirigido pelo investigador e sim pelo o investigado”, como aparece no texto de 1920, que expõe com clareza três novas regras do inquérito social. A primeira regra diz respeito a aproximação circular da família, a segunda regra enfoca que o interrogatório deve ser separado e contraditório e terceira regra diz respeito a verificação prática do modo de vida familiar.
Desde a sua constituição, em 1922, a justiça de menores prevê que o inquérito social será completado, se for o caso, por um exame médico, foi então pela primeira vez que o recurso a psiquiatria é visto, pela primeira vez, na justiça de menores, sob a forma de um complemento de instrução. Nesse livro Donzelot, escreve a respeito do nascimento da psiquiatria infantil, partindo primeiramente da análise do vagabundo, para a partir daí estudar a criança, o objetivo ultimo dessa abordagem psiquiátrica.Pois o vagabundo só é interessante na medida em que ostenta ao máximo todos os defeitos patológicos das fraquezas da infância quando não são corrigidas ou enquadradas a tempo.
Jacques Donzelot cita o livro de Gerorges Heuyer, fundador da psiquiatria infantil na França, que estabeleceu uma dupla operação.1. A designação de uma instituição-padrão: a escola. Qual seria a ligação, qual o denominador comum entre as crianças do serviço dos anormais e dos internados por roubo e vagabundagem.Resposta: o comportamento escolar.2. A atribuição da origem dos distúrbios à família. A família mais do que o doente, mais do que a criança-problema torna-se, portanto, o verdadeiro lugar da doença, e o médico psiquiatra é o único a poder discriminar, nessa patologia, o que compete à disciplina ou ao tratamento orgânico.
O esforço decisivo dessa psiquiatria infantil consiste, portanto, num deslocamento da categoria jurídica do discernimento para a de educabilidade.
Durante o período entre guerras, a colaboração entre o médico e o juiz de menores permaneceu bastante limitada, o que não se compreende, numa primeira abordagem, por que só de imediato após-guerra é que a psicanálise se introduziu verdadeiramente no campo da justiça de menores, já que seu nascimento é contemporâneo ao do tribunal de menores. O rápido quadro de evolução da justiça de menores no período entre guerras foi indispensável para compreender as linhas de reorganização da educação vigiada.
Nos centros de observação, nas consultas de orientação educacional que florescem após a guerra na base desse conceito unificador de desadaptação, observa-se uma transformação correlativa das duas primeiras modalidades de saber sobre crianças, o inquérito social e a investigação médico-psicológica.Assim de rival do juiz que era, o psiquiatra se transforma com a psicanálise, no seu aliado indispensável no relê necessário para controlar, por meio de um código homogêneo, o oscilar infinito das praticas de prevenção.Ele fornece à ação educacional, uma técnica de intervenção que limita a imprevisibilidade da ação benévola e os acasos do “desejo educativo”, limita a autonomia dos patronatos, ultrapassa também as abruptas barreiras entre as instancias assistencial, médica e penal.Isso foi a realização final da migração que transpôs o psiquiatra do papel menor e raro de recurso último em casos difíceis para o papel de inspirador declarado das mais ínfimas decisões judiciárias.O juiz de menores vê seu papel simbólico aumentar ao mesmo tempo em que os mecanismos de decisão efetiva lhe escapam, ele se torna o simulacro ostensivo de uma jurisdição que atualmente se baseia nos especialistas do invisível pelo menos tanto quanto nele próprio.
As práticas
Verifica-se nas práticas do complexo tutelar seu trabalho efetivo cotidiano e suas manobras ordinárias. Observamos os meios utilizados pelo estado com o objetivo de proteger as crianças do seu meio familiar ou delas mesmas. Observa-se nas famílias inestruturadas, onde as atitudes dos pais, as suas imoralidades ou seus comportamentos inadequados possam prejudicar a formação de seus filhos, entendendo-se que esta situação não é própria para criança, entra em cena o complexo tutelar. Este ultimo, visa proteção da criança contra o meio inadequado para sua formação social. Primeiramente, os atos tutelares passam a existir quando se toma conhecimento da falta da estruturação familiar e da presunção de que se torna inviável a formação social de crianças neste meio. À formação de um inquérito com o objetivo de constatar tal situação; observando-se a veracidade desta, ocorre o encargo com o objetivo de zelar pelo bem estar da criança. Cabe agora a conversão da família ou a sua destruição, onde os filhos são tirados dos cuidados dos pais e passam a ser cuidados pelo estado, tudo depende da regeneração do meio familiar. Nas famílias que se constituem normalmente, mas que rejeitam ou super protegem seus filhos, ver-se que os pais ao perceberem neles um comportamento onde através de seu modo de vida não podem controla-los os encaminham para o complexo tutelar, que direcionam estas crianças para o seu restabelecimento ao meio social, através de entidades recuperatórias.
Por ultimo, nas famílias carentes, onde se torna inviável à criação dos filhos por conta das circunstancias ali formadas, a apelação para a assistência social à infância torna-se inevitável, bem como a sua intervenção. Portanto, chega-se a conclusão de que o complexo tutelar é indispensável a família no que diz respeito a proteção e ao policiamento desta no intuito de se ter o ambiente adequado para criação de crianças.
V A regulação das imagens
Esse Capítulo salienta a vida pessoal dos homens e mulheres colocando em pauta o modo como a sexualidade fora tratado. O Padre geria essa questão no que tange à moralidade familiar. Já a medicina, a partir do século XVIII, quando começa a se interessar pela sexualidade, é de forma relacionada mais precisamente à questão da higienização (evitar doenças) do que sobre as questões sociais.
No inicio do século XX, já estavam estremecidos os dois modos de gestão sobre a sexualidade. O primeiro, a questão da sexualidade gerida pelos padres, que detinham o poder das famílias, e a segunda a gerida pelos médicos que avançavam apenas na questão da higiene pública.
De 1840 a 1880 o Malthusianismo fundamentou o comportamento da burguesia filantrópica. Acreditou-se que a excessiva proliferação das classes pobres era a principal causa da miséria, a imprudência das classes dos trabalhadores pesava sobre as finanças públicas.
A burguesia, com necessidade de homens para guerrear, voltou-se à incitar a procriação. É quando acontece a substituição da antiga moralização malthusiana, para um discurso que milita contra a infecundidade. Em 1902, chegou a ser criada uma “Aliança Nacional” contra a despopulação, à essa altura, aqueles que não queriam ser as eventuais vitimas dessa política se adaptavam ao antigo discurso Malthusiano. Alguns militantes anarquistas percorriam a França para difundir suas idéias sobre a despopulação e então aproveitavam para distribuir por toda a parte, contraceptivos. Com isso, as regiões de grandes complexos paternalistas, sofriam verdadeiras catástrofes.
No centro dos debates entre o neo-malthusianos e os populacionistas, surge a questão do Direito. À esse tempo os populacionistas declaram guerra contra uma evolução que reduziria sua importância. Acreditava-se que restaurando a autoridade do homem sobre a mulher, elas só teriam atividades reprodutivas e domésticas. Enfim, pensava-se na idéia de que uma família com mais filhos, a princípio poderia até ser um sacrifício, porém no futuro, quando estes viessem a trabalhar, certamente seriam sinônimos de enriquecimento. Aqueles que tinham privilégios sociais a defender, também estavam interessados no poder jurídico.
O neo-malthusianismo, assim, assume 2 posições diferentes, face ao momento familialista existente. Na primeira, há uma guerra contra a celebração das uniões precisas e contra a distribuição de contraceptivos. A segunda posição era formada por uma corrente de célebres médicos, que se preocupavam, sobretudo, em incorporar a higiene, e, portanto, o controle da natalidade.
Nas publicações que ocorriam durante os anos 50, o discurso era de que as famílias tinham sido destruídas pela necessidade econômica de ordem social, então era necessário substituir a figura do pai, a fim de garantir a subsistência da mãe. Com isso, o pai era substituído pela mãe como chefe de família, já que ela era o centro fixo, a matriz e o coração, agora seria também cabeça. Em suma, surgia um grande movimento feminista no estado.
Voltando à questão do Direito, a jurisdição seria totalmente administrativa, dividida entre a Justiça Contábil, que gere as finanças públicas, e a Justiça Civil e Disciplinar que se ocupa das infrações à ordem pública e a Justiça Médica que decide sobre as permissões e proibições de transmitir a vida. O Estado é quem declara se o homem ou a mulher estão aptos a criarem o futuro cidadão, podendo a qualquer momento substituí-los. Ou seja, toda a sociedade estava sujeita ao regime de tutela.
A solução da questão familiar passou do campo da medicina para o campo da psicanálise. Nessa fase o objetivo maior é o desenvolvimento da família através da
“família feliz”. Surge nesse momento, a Escola de Pais, que encandeia lógica e praticamente os grupos, as organizações e as instituições relativas ao sexo e a família. Essa escola se apóia na etiologia familiar das diligências e dos distúrbios de caráter para intervir desde a simples relação educativa até o problema geral da vida familiar e da harmonia conjugal. A escola de pais passa a analisar o problema dos pais, a partir da figura de seus filhos. Acredita-se que os filhos refletem os problemas dos pais, então há uma política a fim de evitar esses filhos “degenerados”. Chega-se à estatística de que das crianças delinqüentes, noventa por cento de seus pais não as desejaram.
Em 1967, a Lei Neuwrith, permite um ensino especial sobre a sexualidade na escola; bastava que cada escola solicitasse este ensino que era provido pelos grupos formados ao longo da Escola de Pais. Seus ensinos estendiam-se entre o desenvolvimento psico-sexual harmônico das crianças, preparação para a vida adulta nos aspectos conjugais, parentais, prevenções de distúrbios morais, dentre outras preocupações. Diante desse contexto, a psicanálise serviu de suporte para todos caminhos de direção da vida relacional. A psicanálise pode ao mesmo tempo convir o familialismo e resolver os problemas de normalização social.
Dentre as modificações da família pela escola, foi criada a Associação de Pais e Alunos. Elas utilizam o discurso médico como meio de controle sobre a escola. Tinham o poder de pressionar o aparelho público secundário, os pais faziam questão de que seus filhos mantivessem a boa sociedade e tivessem uma postura digna. A escola então passa a aumentar o poder da família na educação de seus filhos. É ai que a psicanálise intervém.
A desadaptação escolar engrandece a psicanálise no campo social. Ela introduz na família um cuidado com as normas sociais. Os centros médicos psico-pedagógicos são os melhores lugares para apreciar a penetração da psicanálise do campo familiar. Em busca dos problemas essa técnica os indica não em apenas um indivíduo, e sim, no comportamento errôneo das relações estabelecidas no interior da família. A psicanálise pôde ser ao mesmo tempo parte ativa no termo da família feliz, no início do planejamento familiar, e servir como referência ao movimento posterior de critica da família.
CONCLUSÃO
O livro de Jacques Donzelot nos propiciou novas concepções a respeito do comportamento humano, tanto do lado de quem nos governa, através do que o Estado é capaz de engendrar, quanto do lado de nós que somos governados medindo pouco as conseqüências desse governo. A polícia das famílias despertou-nos para o modo alienado de absolvição de valores em que a sociedade se sujeita. Os discursos médicos, filosóficos, professorais, filantrópicos, psicanalíticos, clérigos, enfim, são incisivos sobre nós, e estão acoplados à um esquema de interesses voltados ao modo de produção capitalista, de tal forma, que, sem saber, nos tornamos deveras marionetes do sistema social. Trata-se nesta obra, da constituição histórica do núcleo familiar ao longo dos séculos, das tentativas práticas e teóricas de maquiamento da realidade que o Estado organizou sobre as famílias. Ora prometendo felicidade possível para as famílias pobres e miseráveis, ora prometendo paz social para as famílias mais abastadas; vale ressaltar que essas promessas só poderiam ser cumpridas caso essas famílias obedecessem aos ditames Estatais.
A família, com o aperfeiçoamento do Estado Moderno, foi vista como o principal foco de organização social, que atenderia e perpetuaria a lógica do novo sistema capitalista liberal de produção.
Historiadora, mestranda em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica de Salvador, e é membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Juventude, Identidade, Cidadania e Cultura /CNPQ
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