Responsabilidade civil no transporte de pessoas: diálogo entre o CDC e o CC

Contrato de transporte. Noções gerais

O acidente ocorrido com o vôo 1907 da GOL, em Mato Grosso, coloca na ordem do dia a discussão a respeito do transporte de pessoas.

O contrato de transporte é um dos mais importantes da atualidade. A necessidade de deslocamento rápido, de mercadorias e de pessoas, justifica a busca por uma tecnologia cada vez mais apurada para que se possa satisfazer a este desejo. O contrato de transporte, enquanto tipo contratual, veio regulado pela primeira vez no Código Civil novo, CC 730 e segs., que lhe deram um específico desenho normativo. Trata-se de um tipo contratual com disciplina normativa nova e avançada, que estendeu bastante o que se entenderia por uma responsabilidade ordinária do transportador.

Por meio do contrato de transporte, exsurge para o transportador uma específica obrigação de resultado, qual seja, a de deslocar pessoas ou coisas de um lugar a outro. Para o beneficiário do transporte, passageiro, remetente ou destinatário, conforme a modalidade de que se trate, surge a obrigação de retribuir pagando o bilhete ou o frete. Assim, o contrato de transporte é bilateral, sinalagmático, oneroso, comutativo e consensual, aperfeiçoando-se pelo simples consentimento das partes, independentemente de efetiva entrega de bens ou ingresso em veículo.

Note-se que a obrigação do transportador é daquelas que se qualificam como de resultado. Ou seja, não basta ao devedor de transporte que efetue o ato com diligência, com qualidade de serviço. É preciso que chegue a entregar a mercadoria ou a deslocar a pessoa até o local contratado para isso. Deste modo, o ônus da prova de provar que o resultado foi levado a bom termo, ou que este se tornou impossível pelo caso fortuito ou força maior, é do devedor, que detém mais meios de efetuá-la. Ao credor basta provar o contrato e seu inadimplemento. Feita a prova da mora, implica-se ser ela ex re ipsa, pelo simples descumprimento do contrato.

A obrigação de resultado difere da obrigação de meio e da obrigação de garantia. Na primeira é necessário que o devedor demonstre cabalmente ter atingido uma conseqüência, que é a essência da obrigação previamente ajustada. Na segunda, basta que prove que agiu com todo o cuidado, de acordo com o estado atual da técnica da época em que se deu o desempenho da prestação e, por fim, a obrigação de garantia vincula o devedor a assegurar uma outra obrigação, como no caso da fiança, ou assegurar contra um resultado danoso, como é o caso do seguro.

Como afirma Comparato: “na obrigação de resultado, a problemática se simplifica, pois só se considera adimplida a prestação com a efetiva produção do resultado. A ausência deste constitui por si só o devedor em mora, cabendo-lhe o ônus da prova de caso fortuito ou força maior para se exonerar de responsabilidade. Mas em tal hipótese, não terá direito à contraprestação”.[1]

Entretanto, por vezes, existem obrigações de meio ou de diligência associadas a obrigações de resultado, a modo de deveres anexos ou instrumentais. É o caso da obrigação de utilizar um meio de transporte adequado e que atente para a saúde do consumidor. Assim, nem sempre será fácil determinar, na prática, quem tem o ônus de provar o descumprimento do contrato. A regra que se poderia generalizar seria no sentido de que, em obrigações de resultado, cabe ao devedor provar sua não culpa, enquanto que naquelas ditas de meio, cabe o credor provar a culpa do devedor.

Tratando da proximidade entre ambas, afirma André Tunc: “Enfim, a obrigação de diligência se encontra muito freqüentemente como obrigação acessória de uma obrigação de resultado, criada pelo contrato, como principal. Isto ocorre, por exemplo, cada vez que um co-contratante (transportador, empresário de jogos, de esportes etc.) é obrigado a uma certa diligência, tendo em vista evitar acidentes que pudessem ocorrer a seu co-contratante, sem que, contudo, a jurisprudência lhe imponha uma `obrigação de segurança´”.[2]

O transporte, nos dias que correm, vem associado a necessidades sociais prementes de organização de escoamento de mercadorias e de movimentação de pessoas, o que se traduz, em grande parte, em setor da ciência denominado de logística, o qual permite a racionalização – e com ela a maior eficiência – da atividade de transporte. A logística tem sido desenvolvida principalmente para organizar a atividade no transporte de coisas, mas também é comum algum tipo de racionalização no transporte de pessoas, para a gestão de vôos, horários de chegada e de saída, e outros conexos.

Tratando do assunto, afirma Trepat Cases: “Para quem compra produtos ou matérias primas, para posterior revenda ou para agregação industrial, o excesso ou a falta dos mesmos em seus estoques trará nefastas conseqüências de conteúdo econômico. Essa racionalização é aplicada no método just in time, no qual o armazenamento e o provisionamento são ajustados de modo a tornar disponíveis os produtos ou matérias-primas na quantidade e no momento necessários, evitando gerar excedentes ou faltas no estoque. Por derradeiro, há de se falar no aumento progressivo do comércio cibernético – e-commerce e business-to-business -, em que prevalecerá competitivo o fornecedor de bens ou de serviços que conseguir abreviar ao máximo o hiato entre a aquisição e a entrega ao consumidor. Essa agilização no binômio compra/entrega é atividade de gerenciamento logístico”.[3]

Embora o foco deste trabalho seja o contrato de transporte de pessoas orientado a consumo, não se pode esquecer que o contrato de transporte se insere no contexto do mundo empresarial. Existe um mercado de transporte, mercado este ao redor do qual os diferentes agentes procuram satisfazer suas necessidades de maximização de utilidades, atingindo interesses que lhes sejam próprios.

A empresa contemporânea pode ser entendida, corretamente, como um feixe de contratos, isto é, como uma complexa organização de relações jurídicas obrigacionais que estipula o âmbito de sua atuação e os agentes com quem travará relações de intercâmbio mercantil. O mercado pode ser visto, assim, como o local ideal de relação jurídica de escambo, ou seja, de troca de bens entre agentes que demandam por estes e agentes que os têm a ofertar. Do ponto de vista jurídico, é possível descrever esta realidade como um conjunto de relações jurídicas reiteradas, de conteúdo qualitativamente padronizado e ordinariamente organizadas por setor. Assim, é possível falar de um mercado do transporte, de um mercado imobiliário, de um mercado de seguros.

É ao redor dos mercados que se pode encontrar, como agente que retira o bem do circuito econômico, a figura do consumidor, identificada normativamente como o destinatário final de produtos ou serviços. O consumidor representa, nos sistemas jurídicos contemporâneos, um novo status jurídico, a tal ponto que se pode identificar, com o surgimento e identificação de sua figura uma alteração na teoria do sujeito de direitos. Não sem razão a tutela do consumidor tem alçada constitucional.

O CF 5º XXXII, ao determinar que o Estado deverá promover, na forma da lei, a defesa do consumidor, reconhece este sujeito de direitos como dotado de um específico status jurídico, a reclamar um conjunto de normas específicas a reger as situações jurídicas em que se encontre. Assim, na lei do consumidor, o CDC, o consumidor no seu conceito amplíssimo é todo aquele que pode retirar do mercado bens ou serviços, ou seja, é aquele sujeito, ainda que indeterminado que interveio em relações de consumo (CDC 2º par. un.).

O contrato de transporte, nada obstante ser analisado neste trabalho como contrato de consumo é também contrato empresarial no sentido de que se organiza e se vivencia no ambiente da atividade economicamente organizada e, deste modo, é permeado do espírito mercantil. É por isso que a responsabilidade do transportador recebe um colorido próprio que permite identificar, no exercício desta específica atividade empresarial, suas particularidades.

O transporte, de modo geral, desencadeia, quando formado como contrato, uma obrigação de resultado. Deste modo, é obrigação específica do transportador deslocar de um lugar a outro, lugares estes dispostos no contrato de transporte. Neste sentido, não basta a diligência de procurar empregar do melhor modo possível a técnica de transporte para buscar determinado objetivo. É necessário que se consiga o obter, isto é, que se desloque até o local combinado. Deste modo, sua responsabilidade é bastante estrita e de forte vinculação jurídica.

Como ocorre nas obrigações de resultado em geral, é o transportador que deve provar sua não culpa para eximir-se da responsabilidade, bastando ao credor de transporte demonstrar que não se verificou o resultado previsto. Deste modo, existe uma específica presunção de imputação de responsabilidade e do conseqüente dever de reparar à figura do transportador.

As normas que regem o contrato de transporte são, além da disciplina do CC 730 e segs., aquelas de caráter regulamentar, bem como as previstas nos atos de concessão, permissão e autorização (CC 731). Deste modo, por exemplo, o motorista de táxi deve respeitar as normas municipais referentes a sua atividade, previstas na legislação específica. Assim, deve obter a licença para transportar passageiros. Além disso, a disciplina da responsabilidade do transportador é regida pelas leis especiais e de tratados e convenções internacionais (CC 732), como é o caso da Convenção de Varsóvia sobre o transporte aéreo internacional.

É interessante que, nada obstante estes dispositivos, que autorizam que se fale em um diálogo de fontes normativas entre o CC e outros textos, o CC continua como lei geral em matéria de transporte. O CC reserva para si o caráter de norma geral e cogente para os contratos de transporte. Mesmo os tratados só serão aplicados “desde que não contrariarem as disposições deste Código”. Assim, o CC apresenta-se como uma espécie de lei reitora e organizadora das relações privadas neste setor do mercado.

Sendo assim, não vige para o mercado de transporte, em termos normativos, o tradicional princípio de que a lei especial derroga a geral, por sua especificidade. Não é assim. A lei geral prevalece, com uma função ordenadora, cobrindo de ineficácia, a norma especial no que a contrariar. Isto porque o sistema do CC, para a matéria de transporte, organizou a lei de modo principiológico, ou seja, de modo a que sua qualidade prevalece sobre a qualidade das demais normas. As normas de leis gerais são quantitativamente básicas e, portanto, podem ser derrogadas por preceitos especiais. Têm o caráter de piso normativo mínimo.[4] Já as normas de leis principiológicas não podem ser derrogadas porque são qualitativamente superiores, tornando-se um mínimo de ordem pública que não pode ser afastado nem pela lei, nem por atos de autonomia privada (v. CC 2035 par. un.).

Outra importante consideração a ser feita diz respeito ao transporte cumulativo. Muitas vezes é impossível que o deslocamento seja feito por apenas um transportador. Outras vezes, isto se dá por razões de logística da atividade. Assim, podem existir trechos de percurso de responsabilidade de transportadores distintos. O CC 733 é que disciplina o contrato de transporte sucessivo, de modo contraditório.

Contraditório porque estabelece uma responsabilidade pelo respectivo percurso, no CC 733 caput, ou seja, uma responsabilidade setorial e não abrangente do deslocamento total e, no CC 733 § 2º dispõe a respeito de uma responsabilidade solidária pelo percurso todo. A interpretação de que se trata, no transporte cumulativo, de responsabilidade solidária decorre de que, no dispositivo mencionado, trata-se de que a responsabilidade de eventual substituto será solidária com os demais, havendo uma “extensão” da responsabilidade (“a responsabilidade solidária estender-se-á ao substituto”). Esta extensão pressupõe uma solidariedade prévia entre todos os integrantes da cumulação estabelecida. De modo que o caput deve ser interpretado de modo a compreender que há obrigação de cumprir com o percurso, mas que eventuais danos em geral, são de responsabilidade de todos, em regime de solidariedade. Deste modo, verifica-se mais uma vez a dissociação dos níveis obrigação e responsabilidade no vínculo jurídico obrigacional.

Nesta modalidade de transporte existe também uma limitação da quantificação do dano resultante de atraso ou interrupção da viagem, que será feita em razão da totalidade do percurso. Daí também se pode concluir que a intenção do legislador tenha sido a de instituir um regime de solidariedade.

Em direito do consumidor, a responsabilidade é solidária por diálogo de fontes entre o referido dispositivo legal (CC 733) e o CDC 12 caput.

O dispositivo legal do CC 733 caput padece da referida ambigüidade porque confunde o transporte sucessivo com o transporte cumulativo. No transporte sucessivo há tantas relações jurídicas entre credor e devedor quantos forem os trechos do itinerário. No transporte cumulativo, a relação jurídica entre credor é uma só, havendo inclusive a expedição do bilhete ou conhecimento de transporte por um dos transportadores. Eventual apuração de efetivo responsável para efeitos indenizatórios deve se dar, em momento posterior, entre os transportadores, de modo a evitar um enriquecimento injustificado do verdadeiro causador do dano. Perante o credor, entretanto, a responsabilidade é da cadeia de transportadores, podendo demandar a qualquer um deles, tendo em vista a responsabilidade solidária.

Neste caso, do transporte cumulativo, há entre credor e devedor uma única relação jurídica, havendo pluralidade obrigacional apenas entre os devedores (transportadores).

Neste sentido, já advertia Pontes de Miranda: “Nos tempos modernos, com a maior quantidade de empresas, o transporte cumulativo de pessoas exerce função social da mais alta importância. Não é acertada a concepção do transporte cumulativo de pessoas ou de coisas como pluralidade de contratos, porque tal figura satisfaz o requisito da sucessividade de transportadores, porém não o da cumulatividade. No transporte cumulativo, há unicidade de contrato e pluralidade de transportadores. Não importa se o outorgante em nome próprio do contrato de transporte é uma só pessoa, ou se já muitos outorgantes em nome próprio (todos ou alguns dos transportadores). O que é essencial é que se devam ao freguês as sucessivas prestações de transporte. As relações jurídicas entre o outorgante em nome próprio ou os outorgantes em nome próprio e os demais transportadores é estranha à relação jurídica entre a pessoa transportanda ou o possuidor do bem ou dos bens transportandos e quem se vincula a prestar os sucessivos transportes, porque vinculados são todos”.[5]

Auxilia a compreender a importante e avançada norma jurídica outro dispositivo legal, o CC 756, referente ao transporte de coisas, este sim, sem qualquer dúvida interpretativa: “No caso de transporte cumulativo, todos os transportadores respondem solidariamente pelo dano causado perante o remetente, ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou proporcionalmente, naquele ou naqueles em cujo percurso houver ocorrido o dano”.

Neste caso, fica clara a responsabilidade do transportador perante o credor de transporte, que é global e afeta a todos os integrantes das sucessivas etapas de transporte, bem como a possibilidade de que apurem entre si, em momento posterior, a responsabilidade de cada qual.

Contrato de transporte de pessoas

No contrato de transporte de pessoas a obrigação do transportador se concretiza em obrigação de levar pessoas de um lugar a outro. Encerra, como já apontamos, obrigação de resultado, consistente no efetivo deslocamento. Essa obrigação abrange não apenas a pessoa, como também sua bagagem.

A responsabilidade pelo cumprimento da obrigação abrange danos que sejam acometidos quer contra a pessoa quer quanto a seus bens (bagagem). O CC 734 caput determina ser nula qualquer cláusula que exclua esta responsabilidade. Em semelhança com o CDC 51 I, o CC disciplina uma nulidade de cláusula de exoneração de responsabilidade. O escopo da norma é impedir que, antecipadamente à ocorrência do dano, de antemão o transportador tenha a seu favor uma disposição contratual que impeça a imputação da responsabilidade a si.

A nulidade é de pelo direito e independente de ação judicial, podendo ser decretada em qualquer instância e grau de jurisdição. A cláusula de não indenizar é inoperante, conforme entendimento que já era firmado pela jurisprudência, no STF 161, que afirma “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Esta nulidade não decorre apenas de o contrato de transporte ser celebrado mediante adesão, mas do princípio da boa-fé objetiva, que se presume a favor do passageiro. De acordo com ele, deve-se interpretar o contrato de acordo com a lealdade entre as partes contratantes (CC 113) e, portanto, de modo a possibilitar que se compreenda a sua atuação de acordo com os ditames de probidade. Espera-se que aquele que ingressa no veículo de transporte tenha o tratamento condizente com sua saúde e integridade, devendo ser transportado incólume ao local de destino. De parte do transportador se espera que responda pelos danos que causar ou que forem propiciados a eventuais vítimas no decorrer do transporte, pois é ele quem assume o risco da atividade, tendo ela sob seu comando. Daí a relevância da interpretação conforme com a boa-fé.

Entretanto, existe a possibilidade de que se limite o valor da indenização devida por danos causados à bagagem, estando o transportador autorizado a exigir a declaração de seu valor (CC 734 par. un.). Esta norma atribui um poder ao transportador, o qual poderá ser muito útil na pré-fixação das perdas e danos e, portanto, à organização de sua atividade, evitando prejuízos excessivos. Merece, portanto, elogios esta norma, na medida em que permite aos agentes econômicos uma auto-regulação, a qual pode inclusive facilitar o cálculo do montante devido a título de perdas e danos. Também tem a vantagem de auxiliar no cálculo dos custos de “transação” da atividade econômica de transporte, evitando situações de insolvência por parte das empresas em vista de uma extensão de seus deveres para além dos limites de sua suportabilidade.

De outro lado, há uma norma que tenderá a aumentar significativamente os custos de “transação” nos contratos de transporte e nas relações jurídicas indenizativas que surjam no seu interior. Trata-se do CC 735, que prevê que a culpa de terceiro não elide a responsabilidade do transportador por danos causados aos passageiros. Este dispositivo, revolucionário em matéria de responsabilidade civil, acaba por estabelecer nas relações jurídicas de transporte um mecanismo de dever de reparar o dano análogo ao da teoria chamada do risco integral.

Normalmente, nas hipóteses de responsabilidade objetiva, o dever de reparar o dano não se configura nos casos em que não se forme nexo causal entre o resultado lesivo e a ação ou omissão que supostamente o desencadeou. Ou seja, nas situações em que não se configure nexo de causalidade, não há que se falar em dano indenizável. Pode haver prejuízo econômico ou moral, sem responsabilidade em sentido jurídico próprio.

São conhecidas excludentes de responsabilidade civil, ainda assim da responsabilidade objetiva, a culpa exclusiva de terceiro, a culpa exclusiva da vítima e o caso fortuito ou força maior. Isto porque estas modalidades de acontecimentos mostram que o resultado danoso teve outra causa que impede a imputação de responsabilidade no suposto causador do dano, que de causador terá apenas o nome.

Ao se configurar uma responsabilidade até mesmo pelo fato de terceiro, o CC adota um sistema de responsabilização mais que objetiva, que se assemelha à responsabilidade pelo risco integral, que o sistema admite apenas excepcionalmente, como é o caso do risco por acidentes com energia atômica. Assim, ainda que fatos sejam imputáveis a terceiros estranhos à atividade propriamente de transportar, estes poderão ser fatores justificadores do dever de indenizar do transportador.

Há autores que restringem esta noção, afirmando que apenas os comportamentos de terceiros conexos à atividade é que permitem a consideração de que não se exclui a responsabilidade, sendo entretanto, excludentes os comportamentos de terceiros estranhos ao transporte. A distinção, apesar de sutil e inteligente, não encontra data venia, amparo na norma. A norma não distingue entre fatos alheios ao contrato de transporte e fatos conexos a este. Inclui a responsabilidade por fato de terceiro como integrante da responsabilidade civil do transportador de modo geral e abrangente, textualmente afirmando que a responsabilidade não é por ele elidida (CC 735).

Deve-se sublinhar, entretanto, que uma coisa é fato de terceiro e outra caso fortuito ou força maior, que são, estas sim, excludentes da responsabilidade do transportador. Daí a importância de, nos casos concretos, verificar-se se determinado fato, que se suspeita seja excludente de responsabilidade, é fato de terceiro, o que não exclui a responsabilidade ou força maior, que exclui a responsabilidade. Existem situações de fronteira, como por exemplo, a situação do assalto a mão armada. Aparentemente trata-se de um fortuito, mas conforme o caso concreto e a situação específica que tenha se desenhado, poderá se enquadrar em fato de terceiro e, portanto, ensejar obrigação de o transportador indenizar. Tudo dependerá de circunstâncias.

Sem que tenha aplicado o CC, o TJRJ entendeu que o assalto no interior de ônibus, no caso do transporte interestadual, não era caso fortuito a autorizar a elisão da responsabilidade civil, mas era acontecimento previsível, tanto por já terem ocorrido casos semelhantes, quanto pela infração ao dever de diligência. No entender do Tribunal, deveria a empresa submeter os passageiros a revista ou fazê-los passar pelo detector de metal, quer pela autorização legal, quer pelo hábito da própria empresa o fazer em outras circunstâncias.[6]

Em trecho de acórdão ali mencionado, o qual passou a integrar o voto, menciona-se que: “Negligenciado medida de segurança que estava ao seu alcance adotar, não pode a ré-apelante, para se eximir de responsabilidade pela má prestação do serviço de transporte, invocar o art. 14, § 3º, II do CDC, atribuindo a culpa exclusiva do evento danoso a terceiro, ao argumento da ocorrência de fortuito externo, com as suas características de imprevisibilidade e inevitabilidade. Imprevisível o fato não era, já que assaltos a ônibus são corriqueiros, e inevitável também não o era, porquanto nas circunstâncias em que ocorreu, não era insuperável, bastando para evitá-lo que a ré-apelante tivesse tomado as cautelas necessárias, com a utilização de detector de armas, como costumava fazê-lo”.

E no voto condutor do acórdão, pode-se ler: “Também a invocação do art. 144 da CF, feita pela ré na sua contestação, não lhe socorre, pois o mencionado dispositivo constitucional, ao tempo em que afirma ser a segurança pública dever do Estado, também atribui a todos a responsabilidade pela mesma, sendo que estava ao seu alcance evitar o evento danoso. Bastaria, com efeito, que submetesse os passageiros, prestes a embarcar no terminal rodoviário, a um detector de armas, como, aliás, costumava fazê-lo, fato evidenciado pelas fotografias de f.”.

Este dever de cuidado com a parte contrária deriva da cláusula geral de boa-fé objetiva, não fosse o expresso amparo legal e nos usos e costumes que norteiam o processo obrigacional.

Outro caso relevante, neste sentido, são os casos de bala perdida. Esta sim, ordinariamente, será considerada caso fortuito, mas conforme as circunstâncias, pode-se considerá-la como fato de terceiro, como é o caso de itinerários de viagem próximos a regiões sabidamente perigosas ou de alta criminalidade. Nos casos em que a bala perdida for considerada fato de terceiro, existe o dever de o transportador indenizar o prejudicado com o acidente.

Responsabilidade civil do transportador

Como se pode perceber, o sistema de direito privado instituiu uma responsabilidade mais que objetiva ao transportador, no caso específico do transporte de pessoas. A impossibilidade de exoneração da responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro mostra isto. Neste caso, o transportador assume o dever de impedir resultado danoso, ainda que causado por estranhos. O nexo de imputação normativa sobrepaira o nexo de causalidade natural.

Entretanto, em determinados casos específicos, existe a possibilidade de que se minore a responsabilidade, por exemplo, tendo em conta que o ato imputável ao transportador concorreu com outros atos. Assim, por exemplo, decidiu o STJ em interessante caso.[7] O entendimento majoritário deste tribunal e no sentido de que assaltos são fatos fortuitos e, portanto, não imputáveis à empresa transportadora. Entretanto, nesta ocasião em especial, decidiu-se ser ela corresponsável. Tratava-se de hipótese em que a vítima acabou por falecer em decorrência de que o motorista abriu a porta do veículo com este ainda em andamento, o que propiciou fosse a vítima atropelada pelo próprio veículo. Neste caso específico, houve condenação a cincoenta por cento do valor devido.

Afirmou o STJ que dois motivos concorreram com o resultado danoso. “O primeiro, sem dúvida, pela precipitação do de cujus, é claro que por força das circunstâncias, em se lançar do ônibus em movimento, no que restou atingido pelas rodas traseiras do veículo, vindo a falecer.” E, além disso, que: “Em tais circunstâncias, tenho que há responsabilidade ao menos concorrente da empresa ré, que agiu com significativa parcela de culpa, pelo que é de se lhe ser imputado, pela metade, o ônus do ressarcimento”.

O sistema de objetivação de responsabilidade no CC

Esta tendência de objetivação de responsabilidade observa-se dentro do contexto maior do CC, que prevê uma série de hipóteses de responsabilidade objetiva, para além das mais tradicionais. Na verdade, o CC 927 par. un. cria uma cláusula geral de imputação de responsabilidade objetiva, quando concorrem os seus pressupostos.

A responsabilidade da cadeia de fornecimento no CDC. A responsabilidade objetiva no CDC

A responsabilidade civil do transportador, no âmbito do CDC também é objetiva. Este pode ser visto como um fornecedor de serviços. Quando opera em cadeia também responde junto com os demais integrantes do ciclo de distribuição do serviço.

Deste modo, o contrato de transporte, quando coligado a outras relações jurídicas, da ensejo a uma responsabilidade pelo transporte por parte de seus sujeitos. Esta assertiva vale especialmente para o transporte instrumental. Por transporte instrumental entendemos aquele que é meio para uma outra prestação, que é fim. É instrumental, por exemplo, o contrato de transporte inserido em uma relação jurídica de “pacote de turismo”. O objetivo da relação jurídica obrigacional não é o transporte em si, ele nada mais é que um meio para o turismo, que se pode qualificar, ainda assim, como uma complexa rede de contratos que envolvem prestações como a de hospedagem e prestação de serviços.

O transporte, hoje, deve ser visto como um bem de consumo, o qual guarda forte relação existencial com a pessoa, demandando assim um respeito a sua incolumidade e também, uma forma de concretizar a obrigação de segurança constitucionalmente prevista (CF 5º caput).

Assim, vícios no transporte são vícios nos termos do CDC 18, assim como acidentes no transporte são acidentes de consumo, fazendo com que os “stand buyers” possam ser credores perante o transportador sem que com ele tenham celebrado contrato de transporte.

Transporte e redes contratuais

Para concluir, é importante lembrar que o transporte insere-se, muitas vezes, em relações econômicas de maior complexidade, que não podem se esgotar nas vestes deste tipo contratual. Muitas vezes, o contrato de transporte encontra-se coligado a outras prestações de outros tipos de contrato, as quais permitem, com freqüência, a identificação de redes contratuais. As redes contratuais são fenômenos marcantes da economia contemporâneo, em que se verifica a interligação de espécies contratuais distintas a vestir a mesma operação de troca. Assim, juridicamente temos relações contratuais passíveis de separação lógica, mas que formam um todo unitário destinado a abrigar uma mesmo operação econômica subjacente.

O transporte de pessoas, muitas vezes é interligado a contratos como o de trabalho, prestação de serviços (coligação simples), ou ainda a redes de contratos, como é o caso do chamado “pacote turístico”. Nestes casos, deve-se interpretar o contrato integrando o todo que lhe dá sentido e permite, portanto, identificar eventuais imputações de responsabilidade ligeiramente diversas das normativamente identificadas. Assim, por exemplo, pode-se imputar a responsabilidade pelo dano, tipicamente do transportador, a outros sujeitos de direito dele diversos, mas com os quais a rede de coligação integra.

Notas
[1] Fábio Konder Comparato, “Obrigações de meios, de resultado e de garantia” In Ensaios e pareceres de direito empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 539
[2] André Tunc, “A distinção entre obrigações de resultado e obrigações de diligência” In RT 778/762.
[3] José Maria Trepat Cases, Código Civil Comentado, v. VIII, São Paulo, Atlas, 2003, p. 139.
[4] Neste sentido, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil Comentado, 4ª ed., São Paulo, RT, 2006, coment. 2 ao CC 730 (pp. 545-546).
[5] Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. XLV, Rio de Janeiro, Borsoi, 1964, p. 27.
[6] RT 831/389-391. Ementa: “Transporte coletivo de passageiros. Responsabilidade civil. Indenização. Danos morais e materiais. Assalto no interior de transporte interestadual. Caso fortuito. Inocorrência. Previsibilidade do fato, diante dos vários casos semelhantes ocorridos anteriormente. Caracterização de negligência da transportadora, que deixou de submeter os passageiros ao detector de armas. Verba devida” (TJRJ, Ap. 2003.001.35802, 17ª Cam., rel. Des. Fabrício Paulo Bandeira Filho, j. 12.02.2004, DORJ 02.09.2004).
[7] RT 827/197-200. Ementa: “A orientação recentemente firmada pela 2ª Seção do STJ, uniformizadora da matéria, é no sentido de que o assalto à mão armada dentro de coletivo constitui força maior a afastar a responsabilidade da empresa transportadora pelo evento danoso daí decorrente para o passageiro. Caso, todavia, em que, para fugir ao assalto, passageiros pediram ao motorista que abrisse a porta do coletivo, que o fez com o ônibus em movimento, gerando o atropelamento de um deles ao saltar, incorrendo a empresa, em tal situação, em culpa concorrente, já que a fatalidade se deu, em parte, em virtude de imprudência do seu preposto” (STJ, Resp. 294610-RJ, 4ª T., rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j. 26.08.2003, DJU 15.12.2003).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luciano de Camargo Penteado

 

Mestre e Doutor em Direito pela USP, Professor dos Cursos de Especialização da PUC (COGEAE), da FGV (Advogado Cível) e da EPD, Advogado em São Paulo.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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