Resumo: A partir das transformações no conjunto de fundamentos éticos da responsabilidade do Estado, consolidou-se na doutrina o entendimento de que o Poder Público deve reparar os danos causados a particulares, ainda que a atuação administrativa haja sido lícita e legítima. Contudo, a matéria encontra tratamentos díspares na jurisprudência brasileira, sendo possível encontrar inúmeros julgados que denegam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração. Considera-se que, embora a atual expansão das fronteiras da responsabilidade estatal figure como instrumento efetivo de amparo às vítimas de danos injustos, a plausibilidade dos pedidos indenizatórios deve ser aferida com cautela, a fim de evitar o fomento de uma cultura de excessiva litigiosidade e vitimização social. Como resultado do trabalho, amparado na pesquisa bibliográfica, verifica-se a presença de todos os requisitos constitucionais necessários para a responsabilização objetiva do Estado por atos lícitos, com fundamento na teoria do risco administrativo, no princípio da solidariedade e na repartição social dos encargos.
Palavras-chave: Responsabilidade do Estado. Atos lícitos. Responsabilidade civil.
Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade do Estado e contemporaneidade. 1.1. Os contornos jurídicos da responsabilidade do estado. 1.2. Da culpa ao risco: fundamentos axiológicos da responsabilidade do Estado. 2. Responsabilização objetiva do Estado por atos lícitos. 2.1. O princípio da legalidade e os atos lícitos: correlações entre legalidade e licitude no âmbito da administração pública. 2.2. A legalidade como parâmetro de controle dos atos administrativos. 2.3. Sacrifício de direito e responsabilidade do estado: a superação da doutrina de Alessi. 2.4. Do modelo liberal à solidariété sociale: a responsabilização do Poder Público por atos lícitos no sistema solidarista. 2.5. A presença dos requisitos suficientes para a responsabilização do estado por atos lícitos. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O modelo contemporâneo de Estado apresenta como uma de suas principais notas distintivas a limitação jurídica de sua atuação, quer pelo direcionamento das suas atividades para a persecução de determinados fins, quer pelo reconhecimento de direitos e garantias dos cidadãos frente ao Poder Público.
No paradigma do Estado Liberal de Direito, enfatizava-se a liberdade de todos, ou seja, todos seriam livres, proprietários e iguais, num sistema alicerçado no império das leis, na separação de poderes e no enunciado dos direitos individuais. Contudo, a conquista do ideal de liberdade em face do Estado reduziu-se ao campo meramente formal. Foi apenas com o surgimento do paradigma do Estado Social que se objetivou a materialização desses direitos anteriormente formais.
A Constituição Brasileira de 1988 consagrou o dirigismo intervencionista do Estado, atribuindo-lhe funções concretizadoras dos princípios constitucionais, tendo em vista a diretriz geral do bem-estar. O direito passou a ser visto como um sistema de regras e princípios que consubstanciam valores fundamentais, em conformidade com a pré-compreensão hermenêutica do Poder Constituinte, sendo também previstos programas e fins realizáveis até o limite do possível, tudo de modo a satisfazer um mínimo material de igualdade.
Em razão da adoção, no ordenamento constitucional brasileiro, do modelo de Estado Democrático de Direito, supera-se uma fase marcadamente declaratória de direitos, afeita aos clamores liberais, e, para além da ênfase garantista do Estado Social, vivencia-se uma época de índole concretizadora, voltada, sobretudo, ao problema da efetividade dos direitos. Nesse contexto, o aparelho estatal experimenta um momento de ampliação extraordinária da sua seara de atuação, máxime pela necessidade de abranger tarefas vinculadas aos novos fins econômicos e sociais que lhes são atribuídos, assumindo presença cada vez maior nos assuntos da coletividade.
Sendo assim, potencializa-se a possibilidade de que o Estado, por conduta comissiva ou omissiva, contrária ao ordenamento jurídico ou nele fundamentada, cause prejuízos patrimoniais a indivíduos determinados, dotados de crescente consciência cidadã de seus direitos e da possibilidade de defendê-los, o que enseja um expressivo aumento dos litígios em matéria de responsabilidade do Poder Público. Cumpre indagar, portanto, sobre a feição dessa responsabilidade extracontratual do Estado por danos causados aos particulares, em decorrência do exercício das atividades públicas constitucionalmente atribuídas ao poder estatal.
O estudo da responsabilidade civil sempre foi permeado por incertezas e polêmicas, ante a uma variedade avassaladora de posições e interpretações inconciliáveis, de modo que, embora de inquestionável importância e utilidade, o instituto carece de estudos sistematizadores. Não é à-toa que a célebre inscrição sobre a porta do Inferno de Dante seria, para Henri De Page[1], a advertência inevitável aos que escolhem analisar os meandros da responsabilidade civil: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.
Ante as inúmeras possibilidades de abordagem da matéria, realizou-se um recorte temático para enfocar uma questão específica e relativamente recente. Com efeito, a partir das transformações no conjunto de fundamentos éticos da responsabilidade do Estado, consolidou-se na doutrina o entendimento de que o Poder Público deve reparar os danos causados a particulares, ainda que a atuação administrativa haja sido lícita e legítima.
Contudo, a quaestio iuris encontra tratamentos díspares na jurisprudência brasileira, em afronta à segurança jurídica. Nossos juízes ainda não assimilaram a tese de modo plena, sendo possível encontrar inúmeros julgados que denegam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração, em que pese seja reconhecida a existência de um prejuízo causado ao litigante. Configura-se, desse modo, o pernicioso cenário em que a resolução judicial do conflito apresenta expressivo caráter lotérico, diante da indefinição dos tribunais brasileiros quanto à plausibilidade da indenização por ato lícito da Administração Pública.
A importância da temática atinente à responsabilidade do Estado evidencia-se não apenas do ponto de vista individual, considerando que o reconhecimento de danos indenizáveis resguarda situações subjetivas dos cidadãos lesados, mas também do ponto de vista coletivo, já que o regime das indenizações acarreta forte impacto sobre as práticas do Poder Público e sobre as finanças públicas. Ademais, as demandas indenizatórias propostas em face do Estado, consideradas em conjunto, gozam de ampla repercussão social, eis que costumam discutir valores vultosos, podendo constituir um nicho bastante proveitoso para advogados preparados e uma fonte considerável de perda de recursos financeiros por parte do Poder Público.
A estrutura deste trabalho é singela: o capítulo inicial introduz conceitos e ideias mais genéricos a respeito da responsabilidade do Estado, sobre os quais se constrói a argumentação do capítulo seguinte, dedicado ao problema específico da responsabilidade do Estado por atos lícitos.
No primeiro capítulo, enfrenta-se a questão atinente ao conceito da responsabilidade civil, incluindo a responsabilidade estatal, para então apontar as dificuldades referentes à falta de consenso sobre pontos cruciais da matéria. Em seguida, aborda-se a fundamentação axiológica do instituto, o que demanda um exame da sua evolução histórica. Evidencia-se, igualmente, o movimento de objetivização da responsabilidade civil, mostrando-se a atual prevalência da teoria do risco administrativo e da repartição solidária dos encargos sociais.
O segundo capítulo examina a plausibilidade da indenização estatal por atos lícitos. Inicialmente, explica-se como deve ser entendido o conceito de licitude na seara administrativa, a partir da evolução história do conteúdo e dos limites do princípio da legalidade, atualmente compreendido como vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo. Ademais, expõe-se que o princípio da legalidade apresenta profunda relevância prática, pois tem funcionado como um dos mais importantes parâmetros de controle da atividade administrativa. Em seguida, demonstra-se que a doutrina italiana de impossibilidade de responsabilização do Poder Público por atuação lícita encontra-se superada, em decorrência da própria transformação no que se refere aos fundamentos da responsabilidade do Estado, embora a experiência pretoriana ainda não acompanhe os jurisconsultos no ritmo desejado, eis que numerosos julgados continuam a denegar pleitos indenizatórios com base na licitude do ato administrativo ensejador do dano. Por fim, examina-se se estão presentes os requisitos constitucionais e doutrinários suficientes para que o Poder Público possa ser responsabilizado por atuação lícita.
A metodologia empregada para a elaboração do trabalho consistiu na pesquisa bibliográfica de doutrina nacional e estrangeira, bem como no exame de decisões judiciais de tribunais brasileiros.
1 RESPONSABILIDADE DO ESTADO E CONTEMPORANEIDADE
Este capítulo objetiva apresentar aspectos gerais do assunto responsabilidade civil, sempre traçando um paralelo entre a responsabilidade civil em geral e a responsabilidade do Estado. As noções aqui expostas possuem caráter propedêutico, alicerçando o entendimento da argumentação desenvolvida ao longo do capítulo seguinte. De início, discorre-se sobre a demarcação do conceito de responsabilidade civil, alertando-se para a equivocidade de alguns termos associados ao instituto. Em seguida, são analisados os fundamentos axiológicos da responsabilidade estatal, examinando-se o movimento direcionado à objetivização do dever de indenizar.
1.1 Os contornos jurídicos da responsabilidade do Estado
O entendimento do tema deste estudo exige que se delimite o conceito do termo responsabilidade. Em seu sentido etimológico, o vocábulo exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação.[2] Em sentido jurídico, designa o dever de reparar o prejuízo decorrente da violação da esfera de direitos de outrem, ou seja, a obrigação imposta ao causador de um dano injusto de ressarcir terceiros prejudicados.
De Plácido e Silva[3] ressalta que toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade, fazendo surgir a dificuldade de se estabelecer um conceito para o instituto, que pode ser abordado por diferentes concepções jurídicas. Nas palavras do estudioso, a responsabilidade “revela o dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas”.
Desse modo, a responsabilidade pode ser considerada abstratamente como um instituto não exclusivamente jurídico, mostrando-se cabível apontar a existência, por exemplo, de uma responsabilidade moral. Nesse diapasão, Cretella Júnior[4] observa: “A responsabilidade jurídica nada mais é do que a própria figura da responsabilidade, in genere, transportada para o campo do direito, situação originada por ação ou omissão de sujeito de direito público ou privado que, contrariando norma objetiva, obriga o infrator a responder com sua pessoa ou bens”.
Afinal, o principal objetivo da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito[5], ao menos no plano do dever-ser, desconsideradas as distorções que os modelos ideais experimentam quando interagem com a falibilidade humana. Assim, ao tempo em que são tuteladas as condutas humanas conforme o direito, também reprimidas as atividades que o contrariam. Para tanto, o ordenamento jurídico estabelece deveres, consistentes em fazer (facere) ou não fazer (non facere), derivados do dever geral de não prejudicar ninguém, expresso pelo Direito Romano na máxima neminem laedere.[6]
Caio Mário da Silva Pereira[7] expõe que a responsabilidade civil emerge tanto de um sentimento social, pelo qual a ordem jurídica não admite a ofensa ao direito alheio, quanto de um sentimento humano, daí surgindo a ideia de garantia de reparação para a vítima. É esta a conceituação oferecida pelo doutrinador: “A responsabilidade civil consiste na efetivação da responsabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano”.[8]
Nota-se, na transcrição acima, a essencialidade da identificação do sujeito causador do dano para a configuração da responsabilidade civil. Não basta ao direito positivo reconhecer a existência do dano: para além disso, impõe-se a atribuição do evento danoso a um sujeito, constituindo-se a responsabilidade jurídica. A partir daí, como consequência, a ordem jurídica deve impor sanções ao autor do prejuízo e concretizá-las, de modo a resguardar os interesses da vítima.
Sobre a necessidade de se estabelecer o sujeito passivo no mecanismo da responsabilidade, ensina Aguiar Dias[9], alicerçado em G. Marton: ”[…] representa-se exteriormente toda responsabilidade precisamente pelo esquema sugerido pela etimologia, a dizer, na feição de interrogatório. O órgão emissor ou zelador na norma indaga e o violador responde, tal como figura Marton: 'por que faltaste a teu dever, praticando (ou omitindo) tal ato?', ao que responde o interrogado de forma satisfatória, caso em que é desobrigado, ou de maneira irrelevante, e, então, é condenado […] a responsabilidade, excepcionalmente, surge também em casos em que o agente não responde, ou por impossibilidade de discernir, ou porque não é mesmo admitido a responder, justificando-se”.
A depender da natureza da norma que prevê a sanção ao infrator de um dever, a responsabilidade pode ser penal ou civil. Constitui-se a primeira quando há a tipificação, como crime ou contravenção, do ato danoso praticado, com vistas a restaurar a harmonia social rompida pela ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado. Já a segunda tem origem no dever geral de não lesar ninguém, tendo por escopo a salvaguarda de direitos dos cidadãos.
Interessa a este estudo apenas a denominada “responsabilidade civil do Estado”. Advirta-se, contudo, que é redundante o uso do adjetivo civil para qualificar a responsabilidade estatal, considerando que a responsabilização penal do Estado implicaria, contraditoriamente, a cominação de sanção penal à própria sociedade que o compõe e em defesa da qual existe o Direito Penal.[10]
Relevante, igualmente, verificar se a responsabilidade origina-se de um liame contratual, tendo havido o descumprimento de uma das obrigações pactuadas, ou se constitui consequência da infração a um preceito geral de não prejudicar outrem. Delineia-se, na primeira hipótese, a responsabilidade contratual, e, na segunda, a responsabilidade extracontratual ou aquiliana.
Para que a responsabilidade civil se estabeleça, faz-se necessária a presença de alguns pressupostos, que variam de acordo com a teoria adotada. No entanto, há determinados elementos que são comuns às diversas maneiras de compreender o instituto: a existência de uma ação comissiva ou omissiva, a ocorrência de um dano e o nexo de causalidade entre ação e dano. Ademais, exige-se o elemento culpa nos casos de responsabilização subjetiva, o que é dispensado quando a responsabilidade for objetiva.
Aguiar Dias[11] observa, amparado na doutrina francesa, que houve, desde o início do século XX, uma crescente absorção das regras jurídicas pelo princípio da responsabilidade, fazendo reinar a incerteza diante da impossibilidade do legislador de lidar com tão espantoso desenvolvimento. A solução possível para que as transformações do instituto se operem com a velocidade desejável, em caminhada pari passu com a evolução dos anseios sociais, acaba sendo a elaboração de normas legais suficientemente maleáveis para a atuação do Judiciário. O direito da responsabilidade civil é – e não pode deixar de ser – marcadamente jurisprudencial.
O farto emprego da doutrina civilista da responsabilidade neste trabalho, tanto neste tópico quanto em outras ocasiões, tem em conta que o regime jurídico da responsabilidade do Estado revela-se fortemente influenciado pelos institutos do direito civil, embora não sejam negadas as devidas peculiaridades. Nessa toada, patenteia Charles Debbasch[12]: “O direito civil da responsabilidade foi e continua a ser uma fonte de inspiração para o juiz administrativo. Ela apresenta uma série de soluções-modelo para os problemas surgidos, como as regras relativas à indenização ou à imputação dos danos” [tradução nossa].[13]
Passando ao exame da doutrina administrativista, urge evidenciar que o presente estudo cuida da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, entendida como “[…] a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.[14]
No Brasil, compreendia-se que o Estado apenas poderia ser responsabilizado subjetivamente, até a positivação da teoria da responsabilidade objetiva do Poder Público na Constituição de 1946, o que se originou do processo de redemocratização do País, com a valorização dos direitos e liberdades individuais. Assim, estabeleceu-se que o Estado seria responsabilizado independentemente da demonstração de culpa na atuação de seus agentes, concepção mantida na Constituição de 1988, conforme previsão do art. 37, §6°: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”.
Desse modo, para configurar a responsabilidade estatal é preciso existir um dano advindo de um fato administrativo. Exige-se, igualmente, o nexo causal, elemento objetivo que indica a relação de causa e efeito entre a ação e o dano, de modo a estabelecer que o fato imputado ao Estado efetivamente causou o dano.
Em que pese a jurisprudência e a doutrina francesas tenham logrado traçar parâmetros fundamentais para a aplicação da responsabilidade civil extracontratual, incluindo a responsabilidade estatal, as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos de cada país e o surgimento de novos problemas demandam a investigação contínua acerca das potencialidades e dos limites do instituto em cada realidade jurídico-social. Assim, forçoso reconhecer que muitos pontos ainda não puderam ser devidamente elucidados e, a par disso, novos questionamentos exsurgem, num ambiente de acirradas polêmicas doutrinárias e jurisprudenciais.
A expansão das fronteiras da responsabilidade civil não tem sido acompanhada de um trabalho doutrinário que confira sistematização suficiente à matéria. Enquanto isso, a jurisprudência, ante a premente necessidade de resolver lides, vem levando a cabo a tarefa de aplicar os preceitos de responsabilidade civil de modo pontual, ensejando o surgimento de severas inconsistências e incongruências. Para Schreiber[15], “o diálogo entre a doutrina e a jurisprudência em matéria de responsabilidade civil lembra uma babel de idiomas desconexos, em que não se chega a qualquer resposta por total desacordo sobre as perguntas.”
A ampliação demasiada do conceito de dano ressarcível mostra-se capaz de comprometer a própria razão de ser da responsabilidade civil, fazendo recrudescer perigosamente a litigiosidade e a vitimização no meio social. Diante do topos de que nem todo dano pode ou deve ser reparado, a questão central do direito da responsabilidade civil passou a ser o espinhoso estabelecimento de critérios que justifiquem a imputação a outrem de um prejuízo sofrido.
Nesse contexto, Yussef Cahali[16] aponta, como fator complicador na seara da responsabilidade do Poder Público, a nossa atual estrutura estatal, decomposta em pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, numa realidade híbrida. Em seguida, o autor descreve uma série de questões ainda não satisfatoriamente resolvidas, como a resistência jurisprudencial ao reconhecimento de novos danos acolhidos pela doutrina e a indefinição quanto à possibilidade de que o agente público responsável pelo dano integre a ação indenizatória, para fins de discussão, de logo, a respeito do direito de regresso da Administração Pública.
1.2 Da culpa ao risco: fundamentos axiológicos da responsabilidade do Estado
A responsabilidade deve ser compreendida como um fenômeno dinâmico, que acompanha as transformações da sociedade, o que não se incompatibiliza com o seu escopo de atuar em prol da segurança e da estabilidade das relações sociais.
A teoria clássica da responsabilidade civil tinha por fundamento o elemento culpa, cuja definição sempre se mostrou tormentosa, assim como a ambiguidade do termo faute provocou intensos debates na doutrina francesa.[17]
Após discorrer sobre a divisão em culpa lato sensu (dolo) e culpa stricto sensu (imprudência, negligência e imperícia), Carlos Roberto Gonçalves[18] posiciona-se: “Em qualquer de suas modalidades, entretanto, a culpa implica a violação de um dever de diligência, ou, em outras palavras, a violação de um dever de previsão de certos fatos ilícitos e de adoção das medidas capazes de evitá-los. O critério para aferição da diligência exigível do agente, e, portanto, para caracterização da culpa, é o da comparação de seu comportamento com o homo medius, do homem ideal, que diligentemente prevê o mal e precavidamente evita o perigo”.
Caio Mário[19], tratando da responsabilidade civil em geral, sublinha a tendência histórica no sentido de se estabelecer a responsabilidade objetiva, mudando-se o enfoque do problema: do autor do dano para a vítima, da responsabilidade para a reparação, da culpa para o risco. Invocando Eugène Gaudamet, Ripert e Saleilles, o doutrinador enfatiza o movimento pela resolução dos conflitos atinentes à responsabilidade civil simplesmente com a causalidade, pois a teoria da responsabilidade subjetiva encontra a dificuldade prática de impor à vítima a prova do elemento culpa. Em coro, Carlos Roberto Gonçalves[20] volta a atenção para o retorno ao objetivismo da responsabilidade civil, a partir do entendimento de que o fundamento culpa é insuficiente para regular todos os casos em matéria de responsabilidade.
Sobre o fenômeno, Guilherme Couto de Castro[21] esclarece que, modernamente, a elaboração do conceito de culpa civil como pressuposto do dever de indenizar liga-se ao liberalismo do século XVIII, destacando-se como marco inicial dessa corrente o Código Civil Napoleônico. Contudo, a tendência passou a inverter-se com o avanço da Revolução Industrial e a multiplicação de casos em que a exigência da comprovação de culpa mostrava-se injusta: “Basta apresentar a equação nos seguintes termos: de um lado, o responsável pela conduta sem falha, mas que provocou o dano; de outro, lado, o lesado, a vítima, que, normalmente, também não terá agido com culpa. Se nenhum dos dois é culpado, é socialmente mais justo atribuir o ônus indenizatório àquele que cria o risco (teoria do risco criado) e, outras vezes mais ainda, provoca o risco e daí obtém um proveito (teoria do risco proveito)”.[22]
Assim, abrandou-se, pouco a pouco, o rigor de se exigir a prova da culpa do agente, facilitando-se a prova a partir das circunstâncias do fato, multiplicando-se os casos de presunção absoluta de culpa e admitindo-se um maior número de casos de responsabilidade contratual (como, por exemplo, nos transportes em geral, bastando à vítima provar que houve inadimplemento contratual por não ter chegado incólume ao seu destino). Por fim, adotou-se a teoria do risco, que permitia francamente a responsabilidade com base apenas na relação de causalidade entre conduta e dano.[23]
No âmbito da teoria da responsabilidade da Administração Pública, a evolução do pensamento também se realizou segundo essa orientação: da responsabilidade culposa para a responsabilidade objetiva. Entretanto, é preciso frisar que o processo histórico, tanto na responsabilidade civil como gênero, quanto na responsabilidade estatal, não ocorreu de forma linear, de modo que o surgimento de uma nova fase não implicou, necessariamente, a total superação do paradigma anterior.
Desse modo, ainda convivem, contemporaneamente, os modelos de responsabilidade civil objetiva e subjetiva. À guisa de ilustração, tem-se que a responsabilidade estatal por omissão continua tendo por pressuposto o elemento culpa, para a doutrina amplamente majoritária.
Numa primeira fase da doutrina da responsabilidade estatal, na época do Estado absolutista, prevalecia a máxima the king can do no wrong. Logo, a irresponsabilidade aparecia como axioma, considerando-se a responsabilização pecuniária do Estado um entrave perigoso à execução de seus serviços.
Numa segunda fase, de cunho civilístico, marcada pelo individualismo liberal, procurou-se solucionar o problema pela aplicação das teorias do Direito Civil. Distinguiam-se, neste momento, os atos do Estado praticados no exercício do seu poder de império e do seu poder de gestão, revelando-se possível a responsabilização apenas quando da realização destes, eis que administrando e administrado figurariam no mesmo plano. Contudo, a dificuldade de se distinguir entre um ato e outro acabou por abrir espaço para a teoria da culpa civil, segundo a qual o Estado seria responsável por atos ilícitos quando se demonstrasse sua culpa in eligendo ou in vigilando. Uma vez mais, a solução mostrou-se insatisfatória, diante das dificuldades práticas de identificar o causador do dano.
Numa terceira fase, ocorre a publicização do dever de indenizar, pretendendo-se a desvinculação da doutrina civilista da culpa. Surge, então, a teoria da culpa administrativa, ou faute du service, responsabilizando-se o Estado pelo funcionamento defeituoso do serviço, independentemente de culpa do agente público. Desabrocha, igualmente, a teoria do risco administrativo, tipicamente objetiva, satisfazendo-se com a existência do dano ressarcível e do nexo de causalidade. O risco administrativo não implica, entretanto, a responsabilização absoluta do Estado, como pretende a teoria do risco integral, abandonada na prática, por não permitir a alegação de excludentes de responsabilidade.
Tal como é hoje compreendida, a responsabilidade objetiva estatal apresenta-se como consectário do reconhecimento do risco administrativo, quer dizer, da prática potencial, por parte do Estado, de condutas danosas aos particulares, em virtude do exercício das funções estatais, facultando-se ao Poder Público a faculdade de alegar excludentes de responsabilidade, como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior e ato-fato de terceiro.
Entende-se atualmente que o Estado, enquanto pessoa jurídica, sujeito de direitos e deveres, tanto quanto as pessoas naturais, revela-se capaz de ocasionar danos aos particulares. O reconhecimento de que o Estado se submete ao Direito, podendo ser sancionado pelas lesões geradas, associa-se à noção de Estado de Direito, a partir da qual ganha força a valorização do cidadão, como observa Norberto Bobbio[24]: “É com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado Despótico, os indivíduos singulares só têm deveres, não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos”.
Frise-se que o esforço em prol da efetiva aplicação da cláusula constitucional de responsabilização estatal insere-se numa tendência de proteção dos cidadãos em face do poder estatal. Sobre o assunto, Tomás Ramón Fernández[25] patenteia: “A luta pelo controle do poder e por sua sujeição ao direito é uma luta permanente e, permanentemente também, inacabada, porque, de certa forma, é em si mesma uma luta impossível. A essência do poder tem raízes, precisamente, em sua capacidade de impor-se sem limitações. Por isso, justamente, inquieta-se sempre que parece dominado e adota novas formas que o fazem, outra vez, inapreensível [tradução nossa]”.[26]
Por ser mais poderoso, o Estado deve arcar com o risco decorrente de sua atuação sobre a esfera jurídica dos particulares: a uma maior quantidade de poder há de corresponder um maior risco. Assim, reconhecido o risco administrativo e aceita a ideia de que a conduta é imputável ao Estado, enquanto pessoa jurídica de Direito Público interno, surge a responsabilização objetiva do Poder Público, independentemente da demonstração de culpa, consoante vaticina Amaro Cavalcanti[27]: “[…] assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos de sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade”.
A responsabilização do Estado por danos ocasionados aos cidadãos acaba por implicar a responsabilização da sociedade como um todo, sendo reconhecida a necessidade de que todos suportem os encargos oriundos da atividade estatal. A responsabilidade objetiva do Estado funda-se, pois, em última análise, no princípio da isonomia, proporcionando a distribuição equânime dos encargos públicos, os quais advêm da atuação estatal e têm como razão de ser a busca pelo bem comum.
O acatamento da teoria da responsabilidade objetiva do Estado fundamenta-se especialmente no princípio da solidariedade, insculpido na Constituição Brasileira no art. 3°, inciso I, dispositivo segundo o qual é objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Para adequar-se à complexidade da vida social e atender às exigências de justiça distributiva, o sistema da culpa, marcadamente individualista, evoluiu para o sistema solidarista da reparação do dano. Sobre a solidariedade social, Bodin de Moraes[28] esclarece: “Se a solidariedade fática decorre da necessidade imprescindível da coexistência humana, a solidariedade como valor deriva da consciência racional dos interesses em comum, interesses esses que implicam, para cada membro, a obrigação moral de ‘não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito’ […] É o conceito dialético de ‘reconhecimento’ do outro”.
Marcio Diniz[29] sublinha que a solidariedade implica a compreensão de que as ações humanas são transcendentes, repercutindo sobre os membros da coletividade, constatação da qual decorre a necessidade de apoio e cuidado dos sujeitos uns para com os outros. O doutrinador aduz, ainda, que a solidariedade social corresponde a uma ideia ligada ao direito público da modernidade política: “Ganha relevo, então, compreendê-la não só como conceito ético, ou virtude essencial à vida em comunidade, mas também como princípio jurídico: de exortações morais de ações solidárias gratuitas e voluntárias (philia, humanitas, ágape, benevolentia, etc.), avança-se para exigências tuteladas e garantidas pelo Direito”.[30]
Aliás, é interessante notar que a ideia de solidariedade inspira todo o texto constitucional, surgindo também em outras passagens. À guisa de exemplificação, o art. 40, caput, da Carta Magna, prevê a existência de regime de previdência de caráter contributivo e solidário aos servidores públicos, e, por seu turno, o art. 225 trata da solidariedade de forma implícita, ao dispor que incumbe à coletividade o ônus de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Ressalte-se que a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrada pela Revolução Francesa, prevê o princípio de que uns cidadãos não devem sofrer mais do que outros os encargos impostos pelo interesse comum em razão da atividade estatal, devendo a responsabilidade pelos danos sofridos por certos particulares recair sobre toda a coletividade, mediante a devida indenização.[31]
Responsabilizar o Estado pelos danos causados aos cidadãos atende também ao princípio da moralidade, pois “a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de dar a cada um o que lhe pertence”.[32]
O princípio da moralidade diz respeito ao que os cidadãos esperam da Administração Pública. A norma apresenta tanto uma dimensão negativa, impondo limites ao exercício da discricionariedade e permitindo a correção dos atos praticados em desvio de finalidade, quanto uma dimensão positiva, relacionada ao dever de bem gerir a coisa pública, desdobrando-se em deveres que se fundamentam também em outros princípios informadores do Direito Administrativo, como: agir impessoalmente, garantir a ampla publicidade dos atos, pautar-se com razoabilidade, motivar os atos e decisões, agir com eficiência.
2 RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO ESTADO POR ATOS LÍCITOS
O presente capítulo almeja examinar a possibilidade de que o Estado seja responsabilizado por atividade lícita. Inicialmente, explica-se como deve ser entendido o conceito de licitude na seara administrativa, a partir da evolução história do conteúdo e dos limites do princípio da legalidade, atualmente compreendido como vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo. Ademais, expõe-se que o princípio da legalidade apresenta profunda relevância prática, pois tem funcionado como um dos mais importantes parâmetros de controle da atividade administrativa. Em seguida, demonstra-se que a doutrina italiana de impossibilidade de responsabilização do Poder Público por atuação lícita encontra-se superada, em decorrência da própria transformação no que se refere aos fundamentos da responsabilidade do Estado, embora a experiência pretoriana ainda não acompanhe os jurisconsultos no ritmo desejado, eis que numerosos julgados continuam a denegar pleitos indenizatórios com base na licitude do ato administrativo ensejador do dano. Por fim, examina-se se estão presentes os requisitos constitucionais e doutrinários suficientes para que o Poder Público possa ser responsabilizado por atuação lícita.
2.1 O princípio da legalidade e os atos lícitos: correlações entre legalidade e licitude no âmbito da Administração Pública
O princípio da legalidade nasceu na fase liberal do Estado de Direito, constituindo uma vitória da ideologia dos direitos individuais dos cidadãos em face do poder opressivo absolutista, contra o qual não se admitia a oposição de qualquer medida judicial. Como consequência desse processo de valorização da legalidade, o legislador adquiriu o monopólio da produção jurídica, de modo a fazer o direito equivaler à lei. Configurou-se, assim, um panorama de primazia do Poder Legislativo, entendido como único a manifestar legitimamente a vontade geral do povo, sobre o Executivo e o Judiciário, adstritos à tarefa de executar as normas emanadas do Parlamento.
Apesar da importância conferida às normas legais, continuou-se a admitir uma esfera de atuação discricionária da Administração Pública, livre de vinculação legal e de apreciação pelo Judiciário. Diante da dificuldade de compatibilizar o princípio da legalidade e o exercício do poder discricionário da Administração, passou-se a entender que a Administração Pública poderia fazer tudo aquilo que a lei não proibisse.[33]
O dogma do fetichismo legal amparava-se na convicção de que a lei seria a expressão do direito e da justiça, apresentando clareza, coerência e completude na sua previsão de todas as situações da vida. O Estado de Direito surgido na Revolução Francesa baseava-se em dois dos seus três pilares: liberdade, na medida em que a limitação do poder estatal garantia direitos individuais, e igualdade, eis que a elaboração de normas de modo geral e abstrato permitia a previsibilidade quanto às consequências jurídicas de cada conduta prevista. Entretanto, o dinamismo dos fatos sociais, verificado ao longo dos séculos XIX e XX, expôs a incapacidade do legislador de antever todos os possíveis conflitos nas relações humanas, fazendo ruir a crença irrefletida de que a justiça é extraída sempre da literalidade da lei.
A reação ao Estado liberal deu lugar ao surgimento do paradigma do Estado Social, em que se objetivou a materialização dos direitos anteriormente formais. Para tanto, como observa Di Pietro[34], o aparelho estatal passou a atuar nas mais variadas esferas da vida privada, inclusive no âmbito das atividades antes exercidas exclusivamente por particulares.
Com essa ampliação na seara de atuação estatal, surgiu a necessidade de rapidez e dinamismo, características incompatíveis com o demorado e burocrático processo legislativo. Ocorreu, assim, o fortalecimento do Poder Executivo, que deixou de ser mero executor das normas emanadas do Legislativo. Igualmente eleito pelo povo, o Executivo passou a ter ampla função normativa, editando decretos-leis, leis delegadas, regulamentos, decretos e portarias. A respeito do fenômeno, Di Pietro vaticina: “[…] o acréscimo de funções a cargo do Estado – que se transformou em Estado prestador de serviços, em Estado empresário, em Estado investidor – trouxe como consequência o fortalecimento do Poder Executivo e, inevitavelmente, sérios golpes ao princípio da separação de poderes. Já não se vê mais o Legislativo como único Poder de onde emanam atos de natureza normativa. O grande volume de atribuições assumidas pelo Estado concentrou-se, em sua maioria, em mãos do Poder Executivo que, para atuar, não podia ficar dependendo de lei, a cada vez, já que sua promulgação depende de complexo e demorado procedimento legislativo”.
Nesse contexto, o princípio da legalidade sofreu uma transformação conceitual, passando a significar a obediência à lei em sentido lato, quer dizer, tanto a lei em sentido formal quanto os atos normativos emanados do Executivo. Ademais, para o novo entendimento doutrinário, que a Administração Pública somente podia fazer aquilo que a lei permitia, em contraste com a situação dos particulares em geral, que podiam fazer tudo aquilo que não lhes fosse vedado por lei. Em suma, tem-se que, no Estado liberal, o princípio da legalidade era enxergado como vinculação negativa à lei, podendo a Administração Pública fazer tudo que não fosse legalmente proibido, enquanto, no Estado social, a legalidade foi compreendida como vinculação positiva à lei em sentido amplo.
No paradigma do Estado democrático de direito, o princípio da legalidade assume marcada relevância. Na Constituição Brasileira de 1988, o mencionado princípio consubstancia-se como o segundo direito fundamental arrolado pelo constituinte no artigo 5°: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. No âmbito da Administração Pública, a legalidade revela-se diretriz básica, insculpida no caput do artigo 37. Ademais, o texto constitucional traz diversas garantias contra ilegalidades, como o mandado de segurança, o habeas–corpus e o habeas–data.
Hodiernamente, caminha-se para a construção de um princípio da legalidade não como vinculação positiva ou negativa à lei, mas como vinculação da Administração Pública ao Direito, com destaque para os princípios constitucionais que regem a matéria. A partir daí, cada vez mais administrativistas aderem à mudança de nomenclatura para frisar a transformação conceitual: de princípio da legalidade para princípio da juridicidade, consoante afirma Patrícia Baptista[35]. Não sendo possível prever em leis todas as escolhas do administrador, os parâmetros de controle passam a ser as regras e princípios do ordenamento jurídico, especialmente os de status constitucional, eis que as ações da Administração Pública submetem-se ao Direito em todas as suas expressões.
Da forma como hoje é compreendido o princípio da legalidade (ou princípio da juridicidade), perde sentido a possível distinção entre atos da Administração Pública legais e lícitos. Para que um ato possa ser considerado legal, deve compatibilizar-se com todo o ordenamento jurídico, o que lhe confere também a característica da licitude.
2.2 A legalidade como parâmetro de controle dos atos administrativos
Cada vez mais cidadãos recorrem ao Judiciário para resguardar direitos seus diante de irregularidades na condução da coisa pública. Em resposta aos pleitos, os juízes têm exercido uma cognição crescentemente mais profunda sobre os impasses, especialmente após a aceitação da ideia de o princípio da legalidade deve ser entendido agora de modo amplo, de submissão dos atos administrativos ao Direito como um todo. Nesse sentido, Germana de Moraes ensina: “[…] o controle judicial da atuação administrativa não mais se esgota no âmbito da legalidade, abrangendo também o exame da constitucionalidade, isto é, além de verificar a conformidade do ato administrativo com a lei, o juiz há de decidir também sobre a compatibilidade do ato impugnado com a principiologia constitucional […] A constitucionalização dos princípios gerais alargou o espectro de sindicabilidade judicial dos atos administrativos. Aplicam-se, por isso, aos atos do procedimento do concurso público tanto os princípios constitucionais gerais e os princípios constitucionais da Administração Pública, quanto princípios e regras específicos disciplinadores deste assunto”.[36]
Destarte, encontra-se ultrapassada a alegação de que a apreciação judicial de atos administrativos encontra óbice no princípio da separação dos poderes, consoante a lição de Paulo Bonavides[37]: “A teoria da divisão dos poderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e afirmação da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e sua personalidade”.
Sendo assim, o controle jurisdicional pode recair mesmo sobre atos discricionários prolatados pela Administração na condução do processo seletivo, sem que isso signifique que o Estado-juiz irá substituir-se ao administrador na apreciação do mérito do ato administrativo, pois a intervenção judicial é apenas restauradora da juridicidade que deve fundamentar a atuação da Administração Pública, tendo como parâmetro os princípios e as regras expressos no ordenamento jurídico.
Miguel Seabra Fagundes[38] explica como se dá o controle jurisdicional em comento: “A Administração não é mais órgão ativo do Estado. A demanda vem situá-la, diante do indivíduo, como parte, em condição de igualdade com ele. O Judiciário resolve o conflito pela operação interpretativa e pratica também os atos consequentemente necessários a ultimar o processo executório. Há, portanto, duas fases, na operação executiva, realizada pelo Judiciário. Uma tipicamente jurisdicional, em que se constata e decide a contenda entre a Administração e o indivíduo, outra formalmente jurisdicional, mas materialmente administrativa, que é a da execução da sentença pela força”.
Nesse contexto, mostra-se crucial o papel do Judiciário, enquanto guardião da ordem constitucional e conformador da ação administrativa ao horizonte hermenêutico do Poder Constituinte, o que enseja, inclusive, a interferência judicial em políticas públicas, tendo em vista a proteção de direitos fundamentais.[39]
Para sua concretização, o ordenamento constitucional exige um Judiciário consciente de seu destacado mister na efetivação das normas constitucionais. Os objetivos, parâmetros e direitos fundamentais insculpidos no texto constitucional gozam de plena força normativa, vinculando todos os poderes constituídos, sendo certo que o Estado constitucional e seus órgãos funcionalmente divididos buscam seu fundamento de legitimidade na Constituição. Inafastável, portanto, a justiciabilidade dos atos da Administração Pública, especialmente em razão do princípio da ubiqüidade da jurisdição. Tal controle, como se disse, não afronta a independência dos Poderes, eis que a distribuição de funções se justifica na medida em que satisfazem os ditames constitucionais, não podendo servir de escudo para a consolidação de práticas ilegais ou ilícitas.
Ante a riqueza de situações ocorrentes no afazer administrativo, é impossível prever todas as hipóteses de irregularidades que podem ensejar o controle judicial de atos administrativos. À guisa de ilustração, no âmbito do controle judicial da legalidade de provas, a jurisprudência admite pacificamente a intervenção do Estado-juiz quando as questões padecerem de erro material ou não estiverem abrangidas pelo conteúdo programático do edital.[40] Para além dessa compreensão, Germana Moraes[41] observa a tendência do STF de superar o mero controle de legalidade e aferir a constitucionalidade do procedimento de correção de provas, inclusive subjetivas, especialmente à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A depender da fase do concurso em que se insere a prova eivada de vício e do momento em que se encontra o procedimento concursal, a consequência da intervenção jurisdicional pode ser a admissão do candidato a uma fase posterior do concurso, a alteração da lista de classificação ou até a própria nomeação do prejudicado.
Outro exemplo diz respeito ao controle, por parte do Ministério Público, da probidade administrativa, entendida como dever funcional tanto do ponto de vista interno, inserido na relação jurídica que liga o agente público à Administração Pública, quanto do ponto de vista externo, eis que os agentes administrativos devem observar o preceito nas relações jurídicas com terceiros. Destacam-se como fortes focos de improbidade no Brasil: a aplicação irregular de verba pública, o desvio de verba pública, a falta de prestação de contas, superfaturamento de obras públicas e a frustração de concurso de ingresso de servidores e de procedimentos licitatórios.
2.3 Sacrifício de direito e responsabilidade do Estado: a superação da doutrina de Alessi
Impende consignar que a questão da responsabilidade do Poder Público não se confunde com a obrigação do Estado de indenizar os particulares na hipótese de sacrifício de direitos privados em prol da realização do interesse público, de conformidade com o poder conferido pela ordem jurídica para tanto, como acontece nos casos de desapropriação.
Bandeira de Mello[42] expõe que, para o italiano Alessi, somente poderia haver responsabilidade estatal, a reclamar ressarcimento, quando violado o direito alheio: nos casos de mero sacrifício de direito, devidamente autorizado pela ordem jurídica, sobre o Estado não recairia propriamente responsabilidade civil, mas mero dever de indenização do dano, não podendo existir responsabilidade estatal por atos lícitos.
Em seguida, o autor defende uma posição ligeiramente diferente: não há que se falar em responsabilidade quando o ordenamento jurídico confere ao Poder Público o poder específico de sacrificar um direito particular, mas, se o patrimônio do cidadão resta debilitado em decorrência de uma atividade lícita que não tinha como finalidade primeira atuar sobre a esfera de direitos do particular, configura-se a responsabilidade do Estado por esses efeitos laterais de sua ação lícita.[43]
Assim, nos casos desapropriação, embora exista o dever de indenizar, não há responsabilidade, pois a ordem jurídica confere ao Estado o poder específico de sacrificar um direito do particular, face a uma necessidade ou utilidade pública, ou um interesse social. Diferentemente, quando o Poder Público realiza o nivelamento de uma rua, com evidente prejuízo para os proprietários que ficam abaixo do nível escolhido, surge um dever de indenizar atrelado à responsabilidade do Estado, pois o dano causado é apenas reflexo, mediato, indireto, não especificamente permitido por uma norma jurídica.[44] Em arremate: no primeiro exemplo, o dano é oriundo da atividade estatal, sendo-lhe natural e intrínseco, ao passo que, no segundo exemplo, o prejuízo é meramente decorrente da atuação de agentes públicos, surgindo por via oblíqua.
Para este estudo, será aceito esse discrímen entre sacrifício de direito e responsabilidade do Estado, assim como a tese de que há responsabilização estatal por atos lícitos, como defendido anteriormente. A responsabilidade estatal compreendia, tradicionalmente, apenas a reparação de danos causados por atos ilícitos, porém, mais recentemente, como observa Yussef Cahali[45], entende-se que o conceito desfruta de maior amplitude, compreendendo a indenização de danos injustos advindos de atividade legítima do Poder Público.
Todavia, neste estudo serão empregados indistintamente os termos restituição, ressarcimento, reparação e indenização, de modo a tangenciar discussões terminológicas de pouca relevância prática, a despeito da classificação mais rígida proposta por alguns autores, como Maria Helena D’Arbo Alves de Freitas[46]: “A restituição consiste na devolução de um bem pelo ofensor ao ofendido. É a consequência mais simples do ato lesivo, não chegando a configurar autêntico ressarcimento, exceto em hipóteses muito raras. O ressarcimento é o pagamento do dano ocasionado em toda a sua extensão, incluindo o prejuízo emergente e o lucro cessante. O termo “reparação” é utilizado nos casos em que o dano não tem caráter patrimonial. A indenização, em sentido próprio, surge em Direito Público nos casos em que os atos, embora sendo lícitos, acarretam prejuízo”.
Ilustrando essa controvérsia, e apenas a título de amostragem, mencione-se que Bandeira de Mello[47] não acolhe a distinção terminológica entre indenização e ressarcimento. Para Caio Mário[48], a reparação pressupõe a existência de um dano em geral e constitui um minus em relação à responsabilidade civil: a reparação dá azo à existência de responsabilidade apenas quando o direito positivo identifica o sujeito a quem é atribuível. Carlos Roberto Gonçalves[49], por sua vez, entende que a indenização é gênero do qual o ressarcimento e a reparação são espécies, tendo em vista que a Constituição Brasileira assegura a indenização por dano material ou moral.
2.4 Do modelo liberal à solidariété sociale: a responsabilização do Poder Público por atos lícitos no sistema solidarista
Embora a doutrina admita a responsabilização do Estado por atos lícitos, os tribunais brasileiros frequentemente negam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração Pública. Para esses precedentes, somente seria cabível a responsabilidade do Estado caso o ato administrativo impugnado estivesse revestido de ilicitude, de modo a legitimar o pedido de reparação de danos.[50]
O reconhecimento da responsabilidade do Estado até mesmo por atos lícitos associa-se à própria evolução conceitual do instituto da responsabilidade civil, que, conquanto tenha origens mais remotas, figura tradicionalmente como marca do modelo econômico aplicado ao Estado liberal, havendo se agigantado por meio do empréstimo do conceito de reparação patrimonial fundado no liberalismo econômico. Contudo, sob o influxo da evolução do pensamento jurídico, merecem crítica as correntes doutrinárias e jurisprudenciais que continuam a aplicar a responsabilidade civil de modo alheio ao processo de constitucionalização dos diversos ramos jurídicos.
No Brasil, o Código Civil de 1916 era o estatuto dominante nas relações privadas, a “Constituição do direito privado”, o instrumento legal mais elevado quanto à disciplina das relações de cunho patrimonial. Nascido sob a influência do liberalismo econômico, resultante de concepções individualistas e sob a influência dos Códigos Napoleônico e Alemão, o Código de Beviláqua caracterizava-se predominantemente pela índole patrimonialista. Sua inspiração era o cidadão dotado de riqueza material: a plenitude do homem consistia em ser proprietário de bens móveis e imóveis.
Entretanto, a sociedade experimentou profundas transformações cientificas e tecnológicas, aliadas ao surgimento de uma nova visão jurídica sobre a realidade, especialmente à luz dos desdobramentos do constitucionalismo. O século XX assistiu ao fortalecimento do modelo de Estado Constitucional de Direito, quer dizer, um Estado cujo ordenamento jurídico tem a Constituição como sua fonte primeira.
O novo constitucionalismo surgido pode ser caracterizado esquematicamente pelas seguintes notas: a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisladores; c) mais princípios do que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e) mais concretização do que interpretação.[51]
Após a promulgação da Constituição de 1988, os constitucionalistas brasileiros dedicaram especial preocupação ao fortalecimento das seguintes ideias: a) a supremacia da Constituição, que deixou de ser vista como mero estatuto de distribuição de competências, tendo sua força normativa reconhecida;[52] b) a possibilidade de controle de constitucionalidade dos atos normativos (jurisdição constitucional); c) a necessidade de aplicação da técnica de ponderação de valores quando houvesse tensão entre princípios constitucionais no caso concreto.
Assim, a feição liberal, individualista e exclusivamente patrimonial da responsabilidade civil vem se alterando pela influência dos parâmetros da dignidade da pessoa humana, da justiça distributiva e da solidariedade. O enfoque muda dos danos causados para os danos sofridos, e, no intuito de proteção à vítima, vem ocorrendo a flexibilização dos filtros tradicionais da reparação, como o elemento culpa e o nexo causal.
Assim, para adequar-se à complexidade da vida social, o sistema da culpa, marcadamente individualista, evoluiu para o sistema solidarista da reparação do dano. Dessa forma, a responsabilização objetiva do Estado homenageia o princípio da solidariedade, repartindo-se os encargos sociais e promovendo-se a justiça social, como observa Louis Trotabas[53]: “O desenvolvimento da responsabilidade do Poder Público, produto de um longo trabalho da doutrina e da jurisprudência, justifica-se por considerações de justiça e solidariedade social; não é justo deixar a cargo de uma pessoa o dano causado pelo funcionamento do serviço público, que, por definição, traz proveito a toda a coletividade. É a ideia de um direito social, o desejo de defender o indivíduo isolado, ou seja, o fraco, que determinaram esta evolução, e seus resultados, até o presente, têm sido tidos como generosos e conformes ao advento de uma justiça social melhor” [tradução nossa].[54]
Nesse contexto, passou-se a admitir a responsabilização do Estado também por atos lícitos, com fundamento no princípio da isonomia ou da repartição equânime dos ônus oriundos da atividade do Poder Público.[55]
Assim, Bandeira de Mello[56] assevera que o fundamento da responsabilidade objetiva do Estado se biparte: na hipótese de comportamento ilícito, o dever de reparação revela-se a contrapartida do princípio da legalidade, ao passo que, no caso de atuação lícita, a razão jurídica para a responsabilização corresponde à ideia de distribuição equânime dos encargos, a partir do princípio da igualdade. Para o autor, portanto, não há como afastar a incidência da responsabilidade objetiva do Estado mesmo por atos lícitos, pois nessa situação o administrado não pode se evadir da atuação estatal, não se afigurando justo que suporte o prejuízo experimentado.
No mesmo diapasão, Aguiar Dias[57] defende que essa realidade de objetivização do dever de indenizar acaba ensejando uma modificação até mesmo quanto ao que se deve entender por responsabilidade civil. A eliminação da exigência de culpa atingiria o instituto em seu cerne, de modo que a manutenção da nomenclatura se daria apenas pela conveniência da tradição. Imputar um prejuízo a alguém sobre cuja conduta não recai qualquer juízo de reprovação moral, eis que agiu licitamente, seria incompatível com a noção mais estrita de responsabilidade civil: “Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa. A obrigação civil decorrente de responsabilidade civil, se, sacrificados à tirania das palavras, quisermos guardar a significação rigorosa do termo, só pode ser entendida como consequência da conjugação destes elementos: imputabilidade mais capacidade. É disso que se aproveitam os partidários mais ardorosos da doutrina da culpa, esquecidos de que, na verdade, já não é mais de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja conveniência em conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema transbordou desses limites. Trata-se, como efeito, de reparação do dano”.
Convém mencionar importante precedente em que o STF condenou a União a indenizar os prejuízos decorrentes de sua intervenção no domínio econômico, pela qual o poder estatal determinou a fixação de preços, no setor sucro-alcooleiro, em patamar inferior aos valores propostos pela autarquia federal com atribuição para tanto. A Corte considerou que, embora a intervenção estatal tenha sido lícita e legítima, é de se levar em conta os danos injustos experimentados por terceiros: “O dever de indenizar, por parte do Estado, no caso, decorre do dano causado e independe do fato de ter havido ou não desobediência à lei específica. A intervenção estatal na economia encontra limites no princípio constitucional da liberdade de iniciativa, e o dever de indenizar (responsabilidade objetiva do Estado) é decorrente da existência do dano atribuível à atuação do Estado […] Não se trata, no caso, de submeter o interesse público ao interesse particular da Recorrente. A ausência de regras claras quanto à política econômica estatal, ou, no caso, a desobediência aos próprios termos da política econômica estatal desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor”. [58]
2.5 A presença dos requisitos suficientes para a responsabilização do Estado por atos lícitos
Como se investigou anteriormente, a responsabilidade objetiva do Estado apresenta-se como o dever de indenizar o terceiro prejudicado, independentemente de qualquer atuação culposa ou dolosa do agente responsável, bastando, para a sua configuração, a ocorrência do dano e o nexo de causalidade entre fato e dano, por força da cláusula constitucional de responsabilização estatal. Neste momento, cumpre perquirir se estão presentes os elementos necessários e suficientes para a responsabilização do Estado por atos lícitos.
Inicialmente, consigne-se que o maior foco de atenção deste estudo recai sobre o dano indenizável, considerando que a aferição do nexo de causalidade independe da licitude do comportamento administrativo.
Arnaldo Rizzardo[59] afirma que, no Brasil, adota-se a teoria da interrupção do nexo causal, também denominada teoria do dano direto e imediato. Para o autor, embora extraída do art. 403[60] do Código Civil, que diz respeito à responsabilidade contratual, a mencionada teoria aplica-se também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva. Carlos Roberto Gonçalves[61], por seu turno, esclarece que a doutrina dos danos direitos e imediatos é um amálgama das teorias anteriores (equivalência das condições e causalidade adequada), funcionado como meio-termo razoável, que ameniza as consequências extremas que a aplicação das outras propostas doutrinárias poderia acarretar. Assim, a indenização apenas incluiria os prejuízos efetivos e os lucros cessantes oriundos direta e imediatamente do evento danoso. Contudo, o problema não pode ser tratado em termos absolutos. Em verdade, doutrina e jurisprudência não sustentam de modo rígido uma teoria para a causalidade, recorrendo a uma ou outra a depender do caso concreto, como aponta Schreiber[62]. A preocupação em assegurar às vítimas a reparação pelos danos sofridos acarreta uma gradual diminuição do rigor na apreciação do nexo causal.
Assim, como o elemento culpa já sucumbiu quase completamente na seara da responsabilidade do Estado e o nexo causal não logrou substituir a culpa como barreira de contenção do dever de indenizar, o resultado não poderia ser outro: a impressionante expansão das fronteiras da responsabilidade estatal.
Embora esse movimento jurisprudencial atenda ao imperativo social da reparação, em homenagem à dignidade das pessoas prejudicadas, é preciso observar que a discricionariedade excessiva nas decisões judiciais produz um cenário de insegurança e incoerência, podendo estimular pedidos de indenização frívolos e fomentar uma cultura de vitimização social. Mais uma vez, alerta-se para a necessidade de uma revisão sistêmica da dogmática da responsabilidade civil. Até que isso aconteça, o Judiciário deve examinar cautelosamente as lides, para distinguir quais danos merecem ressarcimento.
A maior resistência quanto ao cabimento da responsabilidade estatal nos casos de atos administrativos danos lícitos atrela-se à caracterização do dano: para certa parcela da jurisprudência, o dano indenizável somente seria originado de ações ilícitas do Poder Público. Sendo assim, urge tecer maiores comentário acerca do dano reparável.
Bandeira de Mello[63] expõe que nem todo dano é indenizável: para adquirir esse status, faz-se necessário que o bem ofendido esteja juridicamente protegido e que a lesão seja certa, quer dizer, não apenas eventual ou possível, embora possa ser presente ou futura. Tais requisitos mostram-se suficientes nos casos de responsabilização por atos ilícitos. Exige-se, ainda, nas hipóteses de responsabilidade estatal por atos lícitos, que o dano seja especial, atingindo especificamente um indivíduo ou grupo de indivíduos, e anormal, extrapolando agravos de menor monta, mas sobre esses dois caracteres não pairam dúvidas nos casos de nomeação tardia.[64]
Deve-se investigar, primeiramente, se o interesse prejudicado encontra-se protegido por uma norma jurídica, fazendo ser violada a esfera de direitos do cidadão. De fato, para que se distingam quais são os danos indenizáveis, revela-se fundamental o papel da norma jurídica, pois o ordenamento jurídico seleciona os bens e valores dignos de tutela.[65]
Em outras palavras, para que haja ofensa à esfera jurídica de um indivíduo, faz-se necessário que esse alguém possua um direito assim reconhecido pela ordem jurídica. Justifica-se a importância da caracterização do dano, na medida em que o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil.
Contudo, em certos casos, talvez não se vislumbre, de forma clara e distinta, a quebra dos deveres consubstanciados em normas jurídicas expressas. Nesse contexto, insere-se o problema: como garantir a reparação aos denominados novos direitos, ainda não claramente delineados no direito positivo?
Para Antônio Carlos Wolkmer[66], os novos direitos são decorrência das necessidades humanas, as quais são inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, sofrendo constantes processos de redefinição e recriação. Portanto, motivações e interesses impulsionariam a conquista de novos direitos, bem como de novos sujeitos sociais, antes excluídos do processo de participação no jogo democrático.
Na mesma esteira, Bobbio[67] discorre sobre uma tendência de multiplicação de direitos, em decorrência especialmente dos seguintes fatores: o aumento da quantidade de bens considerados merecedores de tutela e a consideração do homem não mais como ente genérico e abstrato, mas na concretude das formas que ele pode assumir na sociedade, tais como: criança, velho, doente. Não se trata, contudo, da rotulação do indivíduo enquanto elemento de um grupo, mas do reconhecimento de sua individualidade como sujeito de direitos, com legitimidade para representar sua coletividade.
Pasold[68], por seu turno, vaticina que os novos direitos demandam instrumentos de efetivação, entendidos como o “complexo que abrange os atos e as ações, bem como a dinâmica processual/procedimental que têm por objetivo último o reconhecimento e a materialização de um Novo Direito”. Afirma o autor, ainda, que os novos direitos requerem uma concepção avançada de processo judicial para instrumentalizar a sua concretude, com a incidência das normas constitucionais, de modo a extrapolar a sistemática do processo civil convencional.
Sendo assim, retorna-se à questão: como justificar a indenizabilidade de um dano quando não há amparo legal a caracterizar a existência de um direito violado? A resposta pode começar com a seguinte reflexão: “Impõe-se, por certo, a derrocada do modelo estatal hierárquico-centralizador, uma reformulação das instituições públicas, mas sobretudo, uma releitura dos direitos, suas fontes, requisitos e exercícios […] É preciso compreender o fenômeno jurídico não apenas como uma relação de poder hierárquico que divide competências e garantias em serviço do Estado, mas sim, como um verdadeiro instrumento de promoção de satisfações e desejos coletivos, a serviço de toda a coletividade”.[69]
É de se entender que toda ofensa do Estado à pessoa (sua dignidade, suas necessidades, seu patrimônio) constitui violação ao ordenamento constitucional, configurando-se a responsabilidade estatal mesmo sem que haja regra específica no direito posto. Considerando que a Constituição Brasileira protege a vida, a liberdade e a propriedade, em sentido lato, tendo como unidade axiológica a dignidade da pessoa humana,[70] o dano causado a um cidadão pela atividade estatal será, necessariamente, inconstitucional, não se podendo conceber que o particular deva suportar o prejuízo, a não ser que se negue o horizonte hermenêutico do Constituinte.
Convém frisar que a avaliação quanto à proteção jurídica do interesse violado pela atuação do Poder Público nada tem a ver com a licitude ou ilicitude daquela atuação. Vê-se, portanto, que há relação de independência entre os requisitos para caracterizar o dano indenizável e a licitude do ato administrativo que causa prejuízo a terceiros.
Além de garantir a indenização ao cidadão prejudicado por atos do Poder Público, ainda que lícitos, é preciso atentar para o correto quantum indenizatório, que deve corresponder ao total do prejuízo experimentado, pelo princípio da restitutio in integrum. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira[71] enfatiza que “em qualquer hipótese, o montante da indenização não pode ser inferior ao prejuízo, em atenção ao princípio segundo o qual a reparação do dano há de ser integral”.
Por outro lado, não assiste razão ao argumento de que a indenização, nos casos de comportamento lícito da Administração Pública, representaria excessivo ônus aos cofres públicos, gerando enriquecimento sem causa para o beneficiário. Isso porque o montante do ressarcimento inspira-se no critério de evitar o dano (de damno vitando), não porém para proporcionar à vítima um lucro (de lucro capiendo), de modo que há de cobrir a totalidade do prejuízo, porém se limita a ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento das concepções acerca da responsabilidade do Estado, produto de um longo trabalho doutrinário e jurisprudencial, justifica-se por razões de solidariedade e justiça social, em consonância com uma tendência mundial de objetivização da responsabilidade civil. Com efeito, não se mostra justo permitir que um cidadão suporte sozinho o dano causado pela atividade estatal, que, por definição, traz proveito a toda a coletividade.
A chamada crise da responsabilidade civil resulta da incompatibilidade de se empregar uma estrutura antiquada para novas funções. No mundo atual, em que as atividades econômicas tendem a despersonificar o indivíduo, aniquilando-o em favor da lógica do mercado, urge proteger os preceitos constitucionais tuteladores da pessoa humana. Firma-se a imperiosa necessidade de que se reconheça o ser humano como possuidor de uma dignidade própria e que se atue concretamente para promover a sua personalidade, sancionando as condutas que ofendam sua esfera de direitos.
A tendência de proteção à pessoa humana, pelo alargamento da responsabilidade civil, deve-se, sobretudo, à iniciativa da jurisprudência. Como observa Bodin de Moraes[72], o regime do instituto liga-se precipuamente a escolhas político-filosóficas, mais do que a evidências lógico-racionais. Diz-se que um sujeito causou um dano após ter havido a decisão de responsabilizá-lo, de modo que o dano não é, em si, como categoria ontológica, ressarcível ou irresarcível, justo ou injusto. A seleção quanto à indenizabilidade do dano apresenta caráter menos jurídico e mais ético, político e filosófico.
É essencial sublinhar, nesse contexto, que a proteção às vítimas realiza o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando que a atuação estatal, tanto quanto o progresso e o desenvolvimento industrial no âmbito privado, pode vir a causar danos materiais e pessoais que necessitam de reparação. Salvaguardar o direito à indenização do prejudicado, quando presentes os requisitos constitucionais para tanto, reafirma o valor da sua dignidade e traz a figura da pessoa humana de volta para o seu lugar: o centro do ordenamento jurídico.
O foco de análise deve ser a injustiça em si do dano suportado pelo particular, não o caráter ilícito ou não da atuação do agente administrativo estatal. Desta forma, configura-se o dever de indenizar do Estado quando o prejuízo injusto tenha como causa a atividade, ainda que regular, da Administração, com fundamento no princípio da solidariedade e na divisão social de encargos.
Paralelamente a essa realidade de ampliação das fronteiras da responsabilidade civil, tem-se que os novos paradigmas do controle judicial da atuação administrativa, à luz do princípio da juridicidade, permitem um combate mais amplo às injustiças cometidas aos cidadãos. Nesse contexto, espera-se que reste superada a indefinição dos tribunais brasileiros quanto à possibilidade de indenização por ato lícito da Administração Pública, reconhecendo-se a plausibilidade jurídica de tais pleitos indenizatórios. Afinal, caracterizado o dano indenizável e presentes todos os requisitos constitucionais, não se deve negar a responsabilização do Poder Público.
Como reflexão derradeira, mencione-se que, para além de responsabilizar o Poder Público mesmo nos casos de atuação lícita, urge refletir em busca de ações para prevenir ou amenizar o problema. Há uma crescente tendência doutrinária de voltar as atenções para mecanismos que evitem a ocorrência de danos, de modo que, tanto quanto a lesão em si, a potencial ofensa a um interesse tutelado deve figurar como objeto de preocupação. A ocorrência de danos injustos aos particulares em razão das práticas públicas pode ser evitada ou amenizada com uma maior efetivação do conceito de Administração dialógica, que permita a participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisões e que obrigue o administrador a motivar consistentemente seus atos. Ademais,convém que sejam regulamentados certos campos em que a liberdade de atuação do administrador mostra-se excessiva, dando margem ao arbítrio. Finalmente, carece de uma maior valorização o trabalho das consultorias jurídicas dos órgãos administrativos, que podem contribuir sobremaneira para que a atuação do Poder Público se paute pela observância das regras e dos princípios jurídicos, assim como pelo respeito à coisa pública e à pessoa humana.
Notas:
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará UFC; Pós-graduado em Direito Administrativo; Analista Processual do Conselho Nacional do Ministério Público CNMP
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