Resumo: O objetivo deste Artigo é discorrer acerca das conseqüências advindas da violação de Normas Imperativas de Direito Internacional Geral pelos Estados. Será tomado como base neste trabalho o Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos de 2001, elaborado pela Comissão de Direito Internacional da ONU. A partir da análise deste projeto, serão discutidos os Regime de Responsabilidade Ordinário e Agravado, e as conseqüências e efeitos advindos da violação das Normas de jus cogens, tanto para o Estado violador, como para a Comunidade Internacional dos Estados em seu conjunto.*
Palavras-chave: Responsabilidade Internacional. Normas Imperativas. Jus Cogens. Violação. Projeto de Artigos de 2001.
Abstract: The purpose of this article is to discuss the consequences arising from the violation by States of peremptory norms of international law. This work is based on the UN International Law Commission’s Draft Articles on International Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts of 2001. From this analysis, we will have the ordinary scheme liability and aggravated, and the consequences and effects resulting from violation of norms of jus cogens, both for the State violating the rule, as for the international community of States as a whole
Keywords: International Responsibility. Peremptory Norms. Jus Cogens. Violation. 2001 Draft Articles on International Responsibility of States.
Sumário: 1. Introdução. 2. As normas imperativas de direito internacional geral. 2.1. A convenção de viena sobre o direito dos tratados. 3. Responsabilidade internacional dos estados. 3.1 evolução histórica. 3.2. Noções sobre a responsabilidade internacional. 3.3. Consequências legais dos atos internacionalmente ilícitos. 3.4. Violações de normas imperativas de direito internacional geral. 4. Responsabilidade internacional pela violação grave de uma norma de jus cogens. Conclusão. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A Comunidade de Estados Internacionais, representada pela Organização das Nações Unidas, reconheceu a existência de normas imperativas de direito internacional geral, com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ocorrida em 1969. Tais normas de direito cogente – Jus Cogens – são imperativas e tem efeito erga omnes, só podendo ser alteradas por norma ulterior da mesma natureza. No entanto, essas normas são constantemente violadas pelos Estados, razão pela qual deve-se adentrar ao campo da Responsabilidade Internacional.
A matéria em tela vem sendo discutida pela Comissão de Direito Internacional da ONU há mais de 50 anos, sendo que apenas em 2001, com o Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícito, chegou-se a um consenso sobre a responsabilização internacional. Ante o exposto, e tomando como vértice o Projeto da CDI, como garantir o cumprimento das normas imperativas pelos Estados, sem interferir na soberania estatal e nos demais princípios do Direito Internacional?
Levando-se em conta a importância da manutenção da paz e da justiça internacional, e considerando-se que para tal é imprescindível o cumprimento das obrigações advindas das normas de jus cogens, a forma de garantir este cumprimento deve partir de uma tutela específica dessas obrigações, amparada por um Regime de Responsabilidade Agravado. O objetivo de um Regime como esse seria assegurar um maior respeito às normas imperativas, dentre as quais estão os direitos fundamentais do homem, a igualdade jurídica entre os Estados, o princípio da não intervenção, a proibição do uso da força nas relações internacionais e a obrigação da solução pacífica das controvérsias.
O tema em questão foi escolhido em virtude da enorme importância acerca dos temas de Direito Internacional, os quais atingem diretamente a coletividade, mas nem sempre são amplamente discutidos ou divulgados. A realização deste trabalho não só ampliará os conhecimentos acerca do Jus Cogens, como também permitirá a formação de novos conceitos acerca da relevância do efetivo cumprimento destas normas.
Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar o Projeto de Artigos da ONU sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados, especialmente o Regime Agravado de Responsabilidade, e concluir se os efeitos e conseqüências previstos neste são suficientes para reparar e inibir as violações das normas imperativas. Para tal, cumpre-se necessário tecer breve discussão acerca do instituto do jus cogens, identificando sua importância, o que será feito adiante.
2 AS NORMAS IMPERATIVAS DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL
Não existe uma Instituição superior no Direito Internacional, e devido à soberania dos Estados, para que determinada obrigação seja exigível de um Estado, é imprescindível que este tenha participado do seu processo de desenvolvimento, ou tenha aceitado-a como norma. Dessa forma, com exceção aos princípios fundamentais do sistema jurídico internacional, que são inerentes à própria existência do Estado, nenhuma norma legal é universal.
No entanto, com a intensificação das relações inter estatais, o sistema jurídico internacional tem se tornado cada vez menos anárquico, isso porque na balança entre a coexistência e a cooperação, o peso relativo a este último tem sido cada vez maior. Em outras palavras, o ponto chave é que a sociedade internacional é percebida como uma coletividade de países individuais, e em conseqüência disto, é necessária uma aproximação multilateral com o Direito Internacional. Desta aproximação surge a noção de comunidade internacional de Estados como um todo (ao invés de uma coletividade de Estados individuais) que, mesmo que imprecisamente, evoca a idéia de uma espécie de solidariedade e unidade profunda da sociedade internacional, que transcende oposições particulares entre os países.[1]
Dessa forma, a crescente noção de comunidade internacional na doutrina contemporânea explica o surgimento de conceitos como os de norma imperativa e obrigações erga omnes no Direito internacional contemporâneo, servindo como base à aceitação da existência de regras internacionais de “ordem pública”, o Jus Cogens.
O surgimento do Jus Cogens deve-se, portanto, ao desenvolvimento histórico e social da sociedade internacional, bem como do próprio Direito Internacional. O crescente aumento das relações interestatais criou uma situação na qual a coexistência ordenada tornou-se impossível sem uma espécie de ordem pública internacional, e sem determinadas regras específicas e rigorosas.
A importância do Jus Cogens deve-se principalmente ao fato que seu conteúdo tem uma conotação ética muito forte, na medida em que tende a determinar um conjunto de valores que se encontram acima do próprio poder, e todas as suas normas são proibitivas. Verdross entendia que a Lei e a moralidade são interdependentes por necessidade, e que um princípio geral de direito pertence à categoria de normas fundamentais e imperativas, as quais proíbem os Estados de celebrarem Tratados que são contrários aos bonos mores.[2]
Há, no entanto, opiniões divergentes na doutrina quanto à utilidade do Jus Cogens, e até mesmo quanto à sua existência. Prosper Weil, citado por Salcedo, sublinha que o sistema normativo internacional é, e sempre foi nada mais do que um instrumento para a realização de um objetivo triplo: assegurar a cada Estado o respeito a sua soberania dentro de sua fronteira, e regular relações interestatais de coexistência e cooperação. Nesse sentido, escreve que:
“la difficulté, confinant à l’impossibilité, d’identifier les règles de jus cogens; le risque qu’elle comporte pour la stabilité des traités; son incompatibilité essentielle, viscérale presque, avec la structure du système international.”[3]
Para o autor, a normatividade internacional possui fraquezas conceituais, advindas do fenômeno da graduação normativa, resultado da distinção que se deve fazer não mais entre o que é e o que não é norma, mas sim da diferenciação entre normas ordinárias e normas imperativas (jus cogens). Soma-se à graduação o fenômeno da diluição normativa, decorrente da indeterminação dos titulares de direitos e obrigações, conseqüência do surgimento de obrigações erga omnes e da generalização da obrigatoriedade da norma, que se impõem independente da vontade do Estado. Tais fatores geram a “relativização da normatividade do direito internacional”, tornando-o incapaz de cumprir suas funções: constituir-se num conjunto de normas jurídicas, e regulamentar as relações internacionais.[4]
Schwarzenberger, por sua vez, nega a existência de normas imperativas. Para ele o jus cogens, diferente do jus dispositivum, pressupõe a existência de um efetivo ordenamento de jure, que tenha à sua disposição uma estrutura legislativa e judicial capaz de formular regras de política pública, e, que em último recurso, possa evocar a força física para implementá-las. Pontua que a sociedade internacional não possui tais órgãos. Deve se contentar em contar com a possibilidade da maioria dos sujeitos de direito internacional agirem em “espírito de razoabilidade”; assim, se e enquanto agirem dessa maneira, seu autocontrole cria uma ordem de facto de notável estabilidade.[5]
Verdross produziu uma série de artigos enfatizando que o Direito Internacional, como todos os outros sistemas legais, também inclui certas normas que, como parte integral da ordre public da comunidade internacional, não podem ser repelidas ou alteradas por acordos entre um pequeno grupo de Estados. Ainda comparou a existência de tais normas ao ius necessarium, as normas imperativas imutáveis defendidas pelos jus naturalistas antes do nascimento do positivismo legal.
Como dito anteriormente, associava a Lei à moralidade, e defendeu que a proibição da conclusão de tratados contrários ao jus cogens, comum às ordens jurídicas de todos os Estados civilizados, é conseqüência do fato de que todas as ordens jurídicas regulam a coexistência moral e racional dos membros da comunidade; razão pela qual nenhum ordenamento jurídico pode admitir tratados que estão obviamente em contradição à ética dessa comunidades. A seu ver, a ética mínima que devia ser universalmente reconhecida pelas comunidades incluía funções como a manutenção da ordem e da lei entre os Estados, defesa contra ataques externos, cuidados com o bem estar físico e espiritual dos cidadãos no seu país de origem e proteção dos cidadãos no estrangeiro.
Verdross listou, nos artigos publicados em meados da década de 30, exemplos de Tratados contrários à moralidade, e que conseqüentemente deveriam ser anulados, basicamente (tradução livre):
A. Tratados que obriguem um Estado a reduzir sua polícia ou sua organização de Tribunais de tal forma que este não tenha mais a capacidade de proteger totalmente, ou de forma adequada a vida, a liberdade, a honra ou propriedade dos indivíduos em seu território.
B. Tratados obrigando um Estado a reduzir seu exército de tal forma a torná-lo indefeso contra ataques externos.
C. Tratados que obriguem um Estado a fechar seus hospitais ou escolas, extraditar ou tornar as mulheres inférteis, matar seus filhos, fechar as indústrias, deixar suas terras improdutivas ou, de qualquer outra forma, expor sua população ao sofrimento.
D. Tratados proibindo o Estado de proteger seus cidadãos no estrangeiro. [6]
Após a Convenção de Viena, no entanto, quando tratou novamente do assunto já sob o prisma do novo jus cogens introduzido pela Carta, os exemplos foram bem similares aos utilizados primeiramente, mas influenciados pela ênfase nas obrigações imperativas dos Estados trazida pelo direito internacional moderno, como se vê adiante (tradução livre):
A. Tratados pelos quais dois Estados se obrigam a interferir nos direitos de terceiros Estados; por exemplo, estipulando assistência em uma guerra ilícita.
B. Tratados obrigando um Estado a restringir sua liberdade de ação a um grau que o torne incapaz ou inapto a honrar suas obrigações advindas do Direito internacional, por exemplo, limitando os poderes de sua força policial e tornando assim a manutenção da ordem pública impossível.[7]
2.1 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
Em 1969, a Comissão de Direito Internacional da ONU abriu à assinatura dos países a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Tal documento regulamentou e normatizou a produção dos Tratados, criando procedimentos acerca da conclusão de acordos internacionais. A Comissão concluiu que a codificação da Lei dos tratados deveria ter por base o fato que atualmente existem certas regras, as quais não competem aos Estados limitar por acordo ou Tratado, e que só podem ser alteradas por outra norma da mesma natureza. Por tal motivo, incluiu no texto da Convenção cinco dispositivos que tratavam do Jus Cogens, os artigos 44, 53, 64, 66 e 71, sendo assim a pioneira no tratamento do tema.
O artigo 53 tornou-se um referencial no que tange às normas imperativas, trazendo em seu bojo a definição destas normas, prevendo:
“Artigo 53. Tratado em conflito com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens). É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.”
O termo “norma imperativa” caracteriza normas cujo intento é a proteção dos interesses fundamentais, comunitários e gerais de toda a comunidade, ou valores e interesses vitais da comunidade internacional dos Estados (tradução livre).[8] Assim, jus cogens traz uma idéia de universalidade, inclusive porque deve ser “aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo”. Quanto ao critério quantitativo levantado por essa expressão, surge a discussão acerca da unanimidade na aceitação de tais normas. Nesse sentido, Tatyana Friedrich faz a seguinte observação:
“Parece válido afirmar, numa visão conciliadora, que a manifestação da maioria é suficiente para satisfazer a idéia original dos legisladores, embora seja de se ponderar que tal maioria deve tocar a generalidade, ou seja, abranger a universalidade. Isso significa que jus cogens deve exprimir a conjugação dos valores de todas as diferentes visões da humanidade, ainda que esta não esteja representada em sua plenitude.”[9]
Uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida, por sua vez, é uma norma que não admite nenhum tipo de limitação, seja total ou parcial. Outra característica desta é a formalidade, já que só pode ser alterada por outra norma com as mesmas características.
Como se vê o dispositivo conceitua a norma de jus cogens, mas não as exemplifica. Fica claro que a formulação do artigo não foi livre de dificuldades, já que não fornece nenhuma regra simples para identificar uma regra geral de Direito Internacional com natureza de jus cogens. O fato é que a maioria dessas regras não tem natureza de jus cogens, razão pela qual os Estados podem contrair Tratados que as contrariem. Seria totalmente arbitrário dizer que um Tratado é nulo pelo simples fato de conflitar com regras gerais. Da mesma forma não seria correto conferir ao disposto em um Tratado a natureza de jus cogens meramente porque as partes estipularam que nenhuma derrogação seria permitida. Tal disposição deve sim ser inserida nos Tratados, de forma que a quebra do acordado enseje responsabilidade à parte, mas não por si só torne o tratado nulo.
Portanto, não é o aspecto formal da norma geral de direito internacional que dá a ela a natureza de jus cogens, mas sim a natureza particular do objeto que ela trata.[10]
Devido ao processo de desenvolvimento em que se encontra o Direito Internacional, a CDI achou correto apenas estabelecer que um Tratado seria nulo caso conflitasse com uma norma de jus cogens, deixando que o conteúdo dessas normas fosse elaborado na prática e na jurisprudência dos Tribunais internacionais. Dessa forma, optou por não incluir na Convenção exemplos de normas de jus cogens por duas razões. Primeiro porque a menção de alguns tratados anulados por conflitarem com normas de jus cogens podem, mesmo que cuidadosamente mencionados, levar a equívocos quanto à posição sobre outros casos não mencionados no artigo. Segundo, se a Comissão está tentando elaborar, mesmo que de forma seletiva, uma lista de regras que devem ser consideradas como tendo natureza de jus cogens, deve se envolver em um estudo prolongado dessa questão, o que está fora do âmbito dos artigos aqui discutidos. [11]
No draft aos artigos da convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, foram citados pelos membros da comissão exemplos de tratados que confrontam com normas de jus cogens: Tratado contemplando o uso da força ilegal, contrário ao princípio da Convenção; tratado contemplando a performance de qualquer outro ato que seja considerado criminoso pelo Direito Internacional; tratado que contemple ou seja conivente com o cometimento de atos, tais como tráfico de escravos, pirataria ou genocídio, na supressão do qual todos os Estados são chamados a cooperar. Atos que constituem crime para o direito internacional, tratados violando direitos humanos, a equidade dos Estados ou o princípio da autodeterminação também foram mencionados.
Para se compreender a real importância do jus cogens, portanto, deve-se levar em conta o conteúdo dessas normas. Um dos princípios mais importantes para a comunidade internacional, o da proibição do uso da força tem natureza de norma imperativa principalmente porque a manutenção da paz constitui o principal objetivo da organização mundial. Já o respeito aos Direitos humanos, por sua vez, baseiam-se na inerente dignidade da pessoa humana, sendo devido a todos, independente de raça, sexo, língua ou religião.
Os artigos da Convenção de 1969 limitam-se a um conceito consensual, que não chega ao cerne da questão, até porque uma definição substantiva do jus cogens teria sido muito interligada à filosofia do direito natural para ser universalmente aceitável. De qualquer forma, o conceito de jus cogens permanecerá incompleto enquanto não for baseada em valores filosóficos, como os do jus naturalismo, razão pela qual, tomando como base os ensinamentos de Verdross, deve ser formada uma ligação entre as normas de jus cogens codificadas e possíveis fundamentos filosóficos.[12]
3 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS
3.1 Evolução Histórica
A Responsabilidade Internacional tem como principal objetivo garantir o respeito à igualdade soberana dos Estados, quando há violação a um direito subjetivo de outro Estado ou da comunidade internacional. Tal tema acaba de ser codificado pela CDI com o Projeto de Artigos da ONU sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos, que teve início em 1955, sob o comando do Professor García Amador, mas só foi concluído em 2001.
Até atingir sua almejada codificação, a responsabilidade internacional passou por um lento e gradual processo de evolução, que teve início no final do século XIX, quando surgiu a expressão como é conhecida hoje. No entanto, antes disso já existiam discussões acerca da violação dos direitos dos Estados.
Ao final da Idade Média, durante o feudalismo, os Senhores de terras já faziam justiça quando tinham seus domínios, ou seus súditos tinham seus direitos violados. Nesses casos era utilizado o instituto da represália, direito que exigia uma forma de ressarcimento pela violação praticada pelo alienígena, sem que com esta atitude fosse declarada qualquer guerra.
Emerich Vatel, último dos grandes jus naturalistas representou um marco decisivo na Responsabilidade Internacional ao argüir em 1758 que “ao oferecer represália contra uma nação em prol de uma terceira, os Estados estariam desempenhando o papel de juízes entre tais nações, o que nenhum soberano tinha direito de fazer”[13]. No decorrer do século XIX, a concepção bilateral foi adotada pela maioria dos autores. Estes se contentaram em dizer que os Estados devem reparar os danos causados por sua violação ao direito de outro Estado; e como não havia responsabilidade criminal, a responsabilidade só podia ser invocada pelo próprio Estado cujo direito fora infringido.
Anzilotti, no final deste Século teorizou que a violação de uma regra de direito internacional enseja a reparação como conteúdo primário da responsabilidade dos estados, o que é bem diferente do direito a represálias. Além disso, apenas a violação de um direito verdadeiramente subjetivo de outro Estado ensejaria a responsabilidade, e não a mera violação de um interesse, seja este geral ou específico. Não obstante, apenas atos praticados por Estados poderiam responsabilizá-los no âmbito do direito internacional, e não atos praticados por particulares. A autor trouxe importantes contribuições ao Direito internacional moderno, entre elas a aceitação coletiva ou individual dos interesses da comunidade internacional por meio da intervenção e suas exposições sobre a lei da responsabilidade internacional faziam inúmeras referências à comunidade internacional.
No período entre guerras, mais precisamente em 1920, o autor alemão Karl Strupp escreveu que era teoricamente possível conceber a violação de qualquer tratado como uma violação ao pacta sunt servanda, o que por sua vez implicaria numa violação à comunidade internacional, e estimou que tal concepção do direito internacional poderia ser desejável do ponto de vista da justiça universal, da solidariedade internacional e da moral.[14] No entanto, sustentou que o direito internacional ainda não havia se dado conta dessas idéias. Sua principal contribuição ao direito internacional foi reconhecer interesses comunitários como legais, mesmo não aceitando que qualquer matéria desejável pela comunidade se tornasse lei.
Nos anos após a primeira guerra, os autores tentaram tirar conclusões daquela experiência, e definir particularmente as sérias violações ao direito internacional que pudessem ensejar sanções especiais e responsabilidade erga omnes. No entanto, todas essas iniciativas tiveram em comum o fato de terem sido baseadas em tratados ou orientadas por estes, como por exemplo o Tratado de Versalhes. Além disso, foram tomadas iniciativas para se desenvolver o conceito de “crime de estado”, e para se estabelecer a responsabilidade internacional criminal dos indivíduos.
Foram inúmeras as novas teorias que enfatizavam o caráter objetivo ou comunitário do direito internacional, e que reduziram o foco central sobre a soberania. Praticamente a maioria dos juristas à época não reinterpretaram as normas da responsabilidade internacional à luz das novas iniciativas, pois acreditavam que tal mudança de paradigmas requereria uma nova positivação do direito internacional, sendo uma mera nova re-interpretação insuficiente. Na década de 1920, portanto, os movimentos para codificação do direito internacional atingiram seu ápice. Daí a primeira tentativa de codificação da responsabilidade internacional na Conferência de Haia, em 1930, a qual praticamente apenas tratou das ofensas aos estrangeiros, e não atingiu a problemática concernente aos diferentes graus de violação ao direito internacional, e a responsabilidade sobre os estados imediatamente ofendidos.
Apenas no início da década de 30, quando a esperança de que a codificação e construção do direito internacional tivesse êxito diminuiu, que a opinião dominante foi questionada por alguns autores, que se perguntaram se o direito positivo internacional já permitia uma distinção qualitativa entre os diferentes tipos de violação ao direito internacional, e uma expansão do conceito de estado ofendido, para além daquele de Estado imediatamente ofendido.
Após a 2ª Guerra, com as violações aos direitos humanos realizadas pelos nazistas, de dimensões sem precedentes, ficou clara a necessidade de se proceder a um avanço na área da responsabilidade, particularmente no que diz respeito a mecanismos mais efetivos à repressão de violações graves ao direito internacional. Assim, nesse período, o desenvolvimento das normas de responsabilidade internacional do modelo clássico unidimensional e bilateral para um modelo progressivo multilateral e multidimensional, no qual diferentes tipos de violação levariam a diferentes regimes de responsabilidade, teve maior impulso.[15]
Em 1950 veio a primeira tentativa da CDI de codificar a responsabilidade internacional, sob a liderança do Professor Cubano F. García Amador, relator da Comissão. Um dos principais pontos abordados pelo relator foi a fato de que a responsabilidade internacional não podia mais ser vista apenas como uma possibilidade de reparação civil; até porque as violações mais graves não poderiam ficar impunes, devendo ser tratadas como crimes, ensejando não apenas o dever de reparação, mas também a responsabilidade criminal pelo ato. No entanto, apesar de seus esforços, a Comissão não aceitou a aproximação proposta por Amador entre a responsabilidade internacional civil e criminal, incluindo no draft apenas a reparação stricto sensu.[16] As primeiras tentativas de codificação trataram apenas da responsabilidade interancional dos estados por danos causados em seu território a estrangeiros ou a seus bens.
Entre 1956 e 1999 passaram pelo Projeto de Codificação diversos relatores, entre eles o Professor Roberto Ago, sob liderança do qual a Comissão começou a considerar como base fundamental da responsabilidade internacional por um Estado de seus deveres com respeito aos demais Estados e com respeito à Comunidade Internacional em seu conjunto, sendo adotada aí a responsabilidade objetiva. Lideraram ainda a Comissão os Professores Willem Riphagem e o italano Arangio-Ruiz, até que em 1999 foi nomeado como Relator Especial o Prifessor J. Crawford, responsável pela elaboração do Projeto de Artigos de 2001, tema central deste trabalho.
3.2 Noções sobre a Responsabilidade internacional
A Responsabilidade Internacional dos Estados é o instituto jurídico em virtude do qual “o Estado a que é imputado um ato ilícito segundo o direito internacional deve uma reparação ao Estado contra o qual este ato foi cometido”.[17] Dessa forma, caso um Estado pratique ato ou fato ilícito contra uma Norma jurídica ou Obrigação internacional, afetando assim um outro Estado ou súditos deste, ou ainda a comunidade internacional como um todo, incorrerá na Responsabilidade internacional.
A reparação é, portanto, obrigação subsidiária originada da violação de uma norma primária (ou ainda de uma obrigação internacional). Nesse sentido:
“A restauração é o objeto e objetivo da responsabilidade internacional do Estado, que engloba o restabelecimento da ordem jurídica anterior ao fato ou ato contrários a uma norma tida e aceita como de Direito Internacional, com o fim de garantir a integridade do Direito ferido e a reparação dos prejuízos sofridos (ou não), salvaguardando, assim, o interesse da vítima.”
De acordo com Celso D. A. Mello, a responsabilidade internacional apresenta 3 elementos: (1) ato ilícito, (2) imputabilidade e (3) prejuízo ou dano. Para ensejar essa responsabilidade, o ato deve ser ilícito perante o direito internacional. A norma ou obrigação violada, portanto, deve pertencer a esta esfera, independente do tratamento no direito interno. Assim, uma norma que é lícita no direito interno de um determinado Estado pode ser ilícita internacionalmente, e seu descumprimento invocar a responsabilidade internacional, não podendo o Estado argüir a legalidade do ato no direito interno para escapar da responsabilização. O ato ilícito pode ser positivo ou negativo. “Ressalta-se que as obrigações ou normas não resultam apenas de tratados ou convenções; podem decorrer também do costume ou dos princípios gerais do direito”[18].
A imputabilidade é o nexo causal, ligando o ato ilícito ao responsável pela violação. A responsabilidade poderá ser indireta, hipótese na qual o Estado será responsável pelos atos praticados por seus funcionários, por exemplo. Nesses casos, os atos serão imputáveis ao Estado porque vinculados à sua soberania, ou porque ocorreram em seu nome. A imputabilidade, portanto, não se confunde com a autoria. No entanto, “como a imputabilidade exige certo nexo jurídico entre o agente do dano e o Estado, é preciso que aquele tenha praticado o ato na qualidade de órgão do Estado ou com os meios de que dispõe em virtude de tal qualidade”.[19] Destaca-se que mais de um Estado pode ser responsável pelo ato ilícito, hipótese na qual todos os responsáveis serão imputáveis, já que todo Estado é responsável por sua própria conduta.
O principal objetivo da responsabilidade internacional, como já dito acima é a reparação do dano. Portanto, este se configura como elemento essencial à responsabilização. O dano pode ser moral ou patrimonial, e pode ter sido causado a um Estado, a um particular ou à Comunidade internacional (nos casos de violações ao jus cogens). O dano é, portanto, fato gerador da responsabilidade. Atualmente, dado o caráter multilateral e multidimensional da responsabilidade, todos os Estados têm o direito de ver o Direito Internacional respeitado, e em razão da violação deste, qualquer Estado atingindo, mesmo que não tenha havido nenhum prejuízo, pode apresentar uma reclamação. Isso porque, conforme frisado nos comentários ao Projeto de Artigos, todos os Estados, em virtude da sua adesão à Comunidade Internacional, tem interesse na proteção de certos direitos básicos e essenciais, e no cumprimento de determinadas obrigações.[20]
A CDI prefere falar em atribuição, ao invés de imputabilidade, como se vê no artigo 2º do Projeto de Artigos da CDI:
“Artigo 2. Elementos do ato internacionalmente ilícito de um Estado
Um Estado pratica um ato internacionalmente ilícito quando sua conduta consistindo em ação ou omissão:
a. É atribuível ao Estado no âmbito do Direito Internacional; e
b. Constitui a violação de uma obrigação internacional do Estado.”
De acordo com o dispositivo, dois elementos são identificados, a atribuição do ato ao Estado, e que o ato ilícito constitua a violação de uma obrigação internacional em vigor nesse período. A atribuição (imputabilidade) pode ser objetiva ou subjetiva, a depender das circunstâncias, incluído ai o conteúdo da obrigação primária em questão (norma ou obrigação violada). Quanto à obrigação violada, esta pode ou não ser originada de Tratado.
O artigo em questão não comporta exceções. Um Estado só pratica ato ilícito quando este é atribuível a ele, e constitui violação de norma internacional. A questão é se essas duas condições são também suficientes. Isso porque se costuma dizer que a responsabilidade não está atrelada à conduta de um Estado que viole suas obrigações, a menos que haja outro elemento em particular, o dano causado a outro Estado; mas a necessidade deste elemento dependerá do conteúdo da obrigação primária, e não existe regra geral a esse respeito.[21] A CDI cita como exemplo a violação de uma obrigação advinda de Tratado para promulgar uma Lei uniforme; nesse caso, há a violação de uma obrigação, e não há a necessidade de nenhum Estado apontar um dano específico advindo desta. Quanto ao elemento culpa, entende a Comissão que só importa o ato praticado pelo Estado, independente de qualquer intenção em causar prejuízo ou dano.
A violação de uma obrigação internacional consiste na desconformidade entre o comportamento exigido do Estado por esta obrigação e a conduta efetivamente adotada por ele. A violação existe mesmo que a conduta do Estado seja apenas parcialmente contrária à obrigação que incumbe a ele. A redação do artigo 12 do Projeto traz em seu bojo a frase “está em desconformidade com o”, sendo assim flexível o suficiente para abranger as diversas maneiras que uma obrigação pode ser expressa, bem como as diversas formas que a violação pode tomar. Senão vejamos:
“Artigo 12. Existência da violação de uma obrigação internacional
Há a violação de uma obrigação internacional por um Estado quando um ato deste Estado está em desconformidade com o que lhe é exigido por esta obrigação, independentemente de sua origem ou caráter.”
Não há espaço no Direito Internacional para distinção entre a violação de uma norma positivada (proveniente de Tratado) e a violação de uma outra norma; assim como não há distinção entre responsabilidade civil e criminal, como no direito interno. Além disso, a violação por um Estado de uma obrigação internacional constitui um ato internacionalmente ilícito, independentemente da matéria ou do conteúdo da obrigação violada, e independentemente da narração que possa ser dada para conduta desconforme.
O artigo 16 trata da situação em que um Estado fornece ajuda ou assistência para outro, com o objetivo de facilitar o cometimento de um ato internacionalmente ilícito por este último. O Estado primariamente responsável, nesses casos, é o Estado atuante, enquanto o Estado assistente tem apenas papel de apoio. Tal papel de auxílio não pode ser confundido com a responsabilidade do Estado atuante. O Estado assistente somente será responsável na medida em que seu próprio comportamento tenha causado ou contribuído para o ato ilícito.
O capítulo V do Projeto de Artigos trata das circunstâncias que excluem a responsabilidade. Estão previstas nos artigo 20, 21, 22, 23, 24 e 25, sendo respectivamente: consentimento, legítima defesa, contramedidas, força maior, perigo e estado de necessidade. Aplicam-se em qualquer tipo de violação; no entanto não anulam ou rescindem a obrigação, mas oferecem uma justificação ou desculpa para a não execução, enquanto perdurar a circunstância em questão. No entanto, de acordo com o artigo 26 do Projeto, nenhuma das circunstâncias previstas no capítulo V se aplica à exclusão da ilicitude de qualquer ato de um Estado em desconformidade com uma obrigação decorrente de uma norma imperativa de direito internacional geral. Isto porque havendo um conflito entre uma obrigação primária decorrente de uma norma de jus cogens, é evidente que tal norma deve prevalecer. Portanto, as circunstâncias acima discutidas não justificam ou fundamentam a violação por um Estado de uma norma desse caráter.
3.3 Conseqüências legais dos atos internacionalmente ilícitos
Quando há a violação de uma obrigação internacional por um Estado, surgem questões como a reparação do dano ou prejuízo à vítima e o futuro da relação jurídica afetada pelo fato. Mas além dessas, surgem dois pontos imediatos, o efeito da conduta do Estado responsável em relação à obrigação que foi violada, e a cessação da violação, se esta for contínua.
O artigo 29 do Projeto de artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados estabelece o princípio geral segundo o qual as conseqüências legais de um ato internacionalmente ilícito não afetam o dever contínuo do Estado de executar a obrigação que tenha violado. Como resultado do ato, um novo conjunto de relações jurídicas é estabelecido entre o Estado responsável pela violação e o Estado a quem é devida a obrigação internacional. Mas isso não significa que a relação jurídica pré-existente, estabelecida pela obrigação principal, desaparece. Mesmo que o Estado responsável cumpra as suas obrigações, cessando a conduta ilícita procedendo à reparação integral pelo prejuízo causado, não é por isso aliviado do dever de executar a obrigação violada. Isso porque o cumprimento da obrigação internacional subsiste, não obstante a violação, e está subjacente à noção de continuidade do ato ilícito e à obrigação de cessação.[22]
A cessação da conduta que viola uma obrigação internacional é o primeiro requisito para a eliminação das conseqüências dessa conduta. É na maioria das vezes o foco principal do
controvérsia gerada pela violação de uma norma, sendo freqüentemente exigida não apenas pelos Estados, mas também pelos órgãos da Organização das Nações Unidas, tais como a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança, em face de graves violações ao direito internacional. A função da cessação é por um fim à violação, salvaguardando assim a eficácia e a validade da norma primária, objeto do ato ilícito. Portanto, a obrigação de cessar a violação visa proteger tanto os interesses do Estado vítima, quanto o interesse da comunidade internacional em seu conjunto na preservação da norma legal.
Há uma segunda preocupação da CDI em relação aos efeitos do ato ilícito, qual seja a restauração da confiança, abalada pela violação da obrigação, entre o Estado autor e o Estado vítima, e a continuação da relação anteriormente existente. Com esse intuito, incluiu no Projeto de artigos a obrigação do Estado responsável em oferecer promessas de segurança apropriadas e garantias de não repetição do fato ilícito. Esta norma é mais flexível do que a de cessação da conduta, até porque não é vitalmente necessária em todos os casos; sendo geralmente solicitadas as garantias quando o Estado lesado tiver razões para crer que a mera restauração da situação pré-existente não irá protegê-lo de forma satisfatória. As promessas de segurança são normalmente verbais, enquanto as garantias de não repetição são um pouco mais rígidas. O Estado lesado normalmente exige tanto salvaguardas contra a repetição do ato ilícito, sem qualquer especificação da forma, quanto garantias de uma maior proteção às pessoas e propriedades, quando o ato faltoso afeta os indivíduos nacionais
A obrigação de reparação total é a segunda obrigação geral do Estado como conseqüência do cometimento de um ilícito internacional, ou seja, é o segundo requisito para a eliminação das conseqüências dessa conduta. Tal reparação está prevista no artigo 31 como corolário imediato da responsabilidade internacional, ou seja, como uma obrigação do Estado responsável, e não como direito do Estado vítima, surgindo automaticamente em comissão do ato internacionalmente ilícito; não estando, portanto, subordinada a uma demanda ou protesto por parte de algum Estado, mesmo se o tipo de reparação depender da resposta do Estado vítima.[23]
A obrigação do Estado responsável em promover a reparação integral relaciona-se ao prejuízo causado pelo ato ilícito. A expressão prejuízo inclui danos materiais e morais, mas exclui preocupações meramente abstratas e interesses gerais do Estado, não afetados individualmente pela violação. Dano material se refere a danos à propriedade ou outros interesses do Estado, e aos seus cidadãos que possam ser avaliados em termos financeiros. Dano moral inclui causas como a dor individual e o sofrimento, a perda de entes queridos ou ofensa pessoal associada à uma intromissão no lar ou na vida privada de alguém.
A reparação o direito internacional pode assumir as formas de restituição, compensação ou satisfação, individualmente ou combinadas, a depender da obrigação primária que foi violada. A restituição é a primeira das formas de reparação, e envolve o restabelecimento, tanto quanto possível ao status quo, ou seja, à situação existente antes do cometimento do ato ilícito, levando-se em conta a extensão do dano. Pode assumir a forma de restauração material, devolução de territórios, pessoas ou bens, a inversão de algum ato jurídico ou a combinação desses.
Das diversas formas de reparação, a compensação é talvez a mais comumente requisitada na prática internacional. A Corte Internacional de Justiça, no Caso do projeto Gabcíkovo-Nagymaros, julgado em setembro de 1997, declarou que:
“É uma regra bem estabelecida do direito internacional que um Estado lesado tenha direito a uma indemnização do Estado que cometeu o ato internacionalmente ilícito pelos danos causados por ele. É igualmente bem estabelecido que um juiz ou tribunal internacional competente, no que diga respeito a um pedido do Estado vítima, tenha o poder de atribuir uma indenização pelos prejuízos sofridos.”[24] (Tradução livre)
A Restituição, apesar sua primazia por uma questão principiológica, é freqüentemente inadequada ou indisponível. Ela pode ser parcial ou totalmente excluída, ou porque o Estado lesado prefere compensação, ou por outras razões. No entanto, mesmo quando a restituição é feita, pode ser insuficiente para garantir a reparação integral; nesses casos a compensação serve para preencher eventuais lacunas, de modo a assegurar ao Estado plena reparação pelos danos sofridos. A compensação corresponde ao dano financeiramente avaliável sofrido pelo Estado lesado ou seus nacionais, e geralmente consiste em um pagamento monetário; não estando preocupada em punir o Estado responsável, e nem em utilizá-lo como exemplo. Quanto aos princípios de avaliação a serem, aplicados na quantificação, estes irão variar, a depender do teor da obrigação primária, de uma avaliação dos respectivos comportamentos das partes e, principalmente, da preocupação de se chegar a um resultado justo e aceitável.
A terceira forma de reparação é a satisfação. Não é uma forma padrão, no sentido que na maioria dos casos a restituição e a compensação são suficientes para promover a reparação integral do dano, tendo assim caráter excepcional. Pode consistir em um reconhecimento da violação, uma expressão de arrependimento, um pedido formal de desculpas ou outra modalidade adequada. Uma das modalidades mais comuns de satisfação, prevista nos casos de dano moral ou não material é uma declaração da ilicitude do ato por uma Corte ou Tribunal competentes. Outra forma comum de satisfação é o pedido de perdão, que pode ser verbal ou escrito por um Oficial apropriado, ou até mesmo pelo Chefe de Estado.
3.4 Violações de normas imperativas de direito internacional geral
Como já visto no primeiro capítulo, o conceito de norma imperativa foi reconhecido pela Convenção de Viena, em seu artigo 53, como uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como aquela da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza. Portanto, tais normas versam sobre matérias extremamente importantes e imprescindíveis à manutenção da paz e da harmonia internacional. Algumas delas, inclusive, protegem a própria existência do direito internacional, como o pacta sunt servanda e o princípio da não intervenção; e por tal motivo, devem receber proteção especial, já que a preservação dessas normas é de interesse legal de todos os Estados, sendo assim obrigações erga omnes.
Dada a natureza dessas normas, a CDI entendeu melhor tratar sobre a violação delas em um capitulo especial, o Capítulo III da parte II, intitulado “violações graves de obrigações decorrentes de normas imperativas de direito internacional geral”, que prevê um “Regime de responsabilidade agravado” para esse tipo de situação. O mesmo estabelece conseqüências para tipos específicos de violações do direito, identificados por dois critérios: primeiro, elas envolvem violações de obrigações decorrentes de normas imperativas de direito internacional geral; e segundo, as violações tratadas aí são por si só graves, levando-se em consideração sua dimensão ou caráter.
O artigo 40 estabelece dois critérios para distinguir a violação grave das obrigações advindas das normas imperativas de direito internacional geral dos outros tipos de violações. O primeiro diz respeito ao caráter da obrigação violada, que deve derivar de uma norma de jus cogens, ao passo que o segundo qualifica a intensidade da violação, que deve ter sido de natureza grave. In verbis:
“Artigo 40. Aplicação deste capítulo
1. Este capítulo se aplica à responsabilidade internacional ensejada pela violação grave por um Estado de uma obrigação decorrente de uma norma imperativa de direito internacional geral.
2. A violação de tal obrigação é grave quando se trata de uma falha grave ou sistemática por parte do Estado responsável pelo cumprimento da obrigação.”
As obrigações a que se referem tal artigo, como visto anteriormente, decorrem de regras de conduta que proíbem comportamentos que passaram a ser vistos como intoleráveis por causa da ameaça que representam para a preservação dos Estados e de seus membros, bem como dos valores humanos mais básicos. Listam-se aí a proibição da agressão, da tortura e de qualquer outra forma de punição cruel, desumana ou degradante, e o princípio da autodeterminação. Quanto ao critério de que a violação deve ser grave, isso quer dizer que uma certa ordem de grandeza de infração é necessária, no intuito de não banalizar a violação; mas isso não significa que qualquer violação dessas obrigações seja séria ou que sejam, de alguma forma, desculpáveis.
Para ser considerada uma falha sistemática, por sua vez, a violação deve ocorrer de forma organizada e intencional. Em contrapartida, a falha grave diz respeito à intensidade da violação ou de seus efeitos, o que presume um ataque direto aos valores e direitos protegidos pela norma. Podem determinar a gravidade de violação fatores como a intenção de violar a norma, a extensão e o número de violações a direitos individuais, e a gravidade das suas conseqüências para as vítimas. Também deve-se ter em mente que algumas das normas imperativas em questão, entre elas e especialmente as proibições de agressão e genocídio, pela sua natureza, exigem uma violação intencional em grande escala.[25]
O artigo 41 estabelece as conseqüências legais das violações a normas imperativas de direito internacional geral. Lê-se:
“Artigo 41. Conseqüências específicas da violação grave de uma obrigação decorrente do presente capítulo
1. Os Estados devem cooperar para pôr fim, de forma lícita, a qualquer violação grave, nos termos do Artigo 40.
2. Nenhum Estado deve reconhecer como lícita uma situação criada por uma violação grave, nos termos do artigo 40, nem prestar qualquer auxílio ou assistência na manutenção dessa situação.
3. Este artigo não prejudica as demais conseqüências previstas na presente Parte, e nem outras conseqüências que a violação a que se refere este capítulo possa implicar no direito internacional.”
De acordo com o parágrafo primeiro, os demais Estados tem o dever positivo de cooperar para por um fim à violação. No entanto, o dispositivo não prescreve de que forma se daria essa cooperação; apenas prevê que esta deve se dar de forma lícita, nos ditames do direito internacional. Tal imposição aplica-se a todos os Estados, e não apenas àqueles individualmente afetados pelo ato ilícito. De acordo com a CDI, a intenção aí é que haja é um esforço conjunto e coordenado de todos os Estados com o objetivo de neutralizar os efeitos dessas violações.[26] Fica claro que o dispositivo impõe um dever de cooperação, podendo-se até mesmo identificar o caráter progressivo dessa norma, ao refletir um desenvolvimento progressivo do direito internacional. Tal cooperação, segundo a Comissão, já é realizada no âmbito das organizações internacionais em resposta às graves violações ao direito internacional, e constitui-se muitas vezes como a única maneira de proporcionar um remédio eficaz à situação; dessa forma, o intuito desse dispositivo é reforçar o atual mecanismo de cooperação, com base no fato de que todos os Estados devem ser chamados a dar uma resposta adequada às graves violações referidas no artigo 40.[27]
O parágrafo segundo, por sua vez, prevê um dever de abstenção, que compreende duas obrigações: a de não reconhecer como lícita a situação criada por uma violação, e a de não prestar ajuda ou assistência para a manutenção desta. A primeira destas duas obrigações se refere a um dever coletivo de não-reconhecimento pela comunidade internacional em seu conjunto, da legalidade das situações resultantes diretamente da violação grave. a situação criada pela violação grave como lícitos. Esta obrigação aplica-se a todos os Estados, incluindo o responsável pela violação. Segundo a CDI, essa interpretação impede que o Estado responsável, como já ocorreu em alguns casos, tente consolidar a situação que criou por meio de seu próprio reconhecimento à situação ilícita. As segunda obrigação proíbe os Estados de prestarem auxílio ou assistência na manutenção da situação criada pela violação da norma. Diferentemente da conduta tipificada na violação de uma obrigação comum, discutida no ponto anterior, essa proibição de auxílio diz respeito ao pós-fato, e visa impedir a manutenção da situação, criando uma barreira formada pelos demais Estados, para coibir o ato ilícito.
O parágrafo terceiro aumenta a abrangência das conseqüências da violação, ao determinar que tais normas não impedem que outras conseqüências não previstas nesses artigos, ou ainda mais graves que as previstas, devido ao caráter das normas, possam ser acarretadas ao Estado responsável. Dessa forma, os efeitos gerados pelo ato ilícito que viola uma obrigação comum também surge na violação de normas imperativas, sendo portanto exigíveis nesses casos a cessação da conduta, a prestação de garantias de não repetição quando necessárias ou requisitadas, e ainda a obrigação de reparar o dano do modo mais integral possível. Por outro prisma, ao permitir a incidência de novas conseqüências mais graves, a Comissão abre portas para um possível futuro desenvolvimento de um regime mais elaborado de conseqüências para essas condutas.
Quanto à implementação da responsabilidade, a Comissão estabelece que é, em primeiro lugar, um direito do Estado vítima. Um Estado não invoca a responsabilidade apenas como crítica à violação, como forma de exigir o cumprimento da obrigação, ou simplesmente para utilizar seu direito de protesto. Não há em regra nenhuma exigência de que um Estado que deseje protestar contra uma violação de direito internacional praticada por outro, ou lembrá-lo da obrigação, deve demonstrar um interesse específico para fazê-lo.
4 Efeitos e Conseqüências da violação grave de uma norma de jus cogens
Nesse capítulo será reaberta a discussão acerca das conseqüências legais da violação de uma norma de jus cogens. Isso porque após a leitura do Projeto de Artigos e dos Comentários a este rol produzidos pela CDI, fica clara a omissão do documento no que tange às conseqüências práticas e aos reais efeitos legais da violação grave de uma norma imperativa, ou porque a omissão é reflexo do direito consuetudinário, ou porque a CDI foi extremamente cautelosa em não fornecer especificações desse tipo no Projeto de artigos.
Conforme foi dito em linhas gerais no Capítulo anterior, um Estado responsável por uma violação grave tem a obrigação de promover a continuidade da execução da obrigação, e de cessação da violação, além de oferecer seguros e garantias de não repetição quando assim for estabelecido. Não obstante, deve oferecer a reparação do prejuízo. Há pouca discordância de que as três primeiras obrigações são aplicáveis tanto na conduta ilícita de natureza grave, quanto na de natureza ordinária. No entanto, em se tratando da reparação, a situação apresenta um maior grau de complexidade. Atos ilícitos graves, conforme os termos do artigo 40, dão origem a conseqüências jurídicas que vão além da reparação, com o propósito de ressarcimento; não sendo limitados a “neutralizar todas as conseqüências do ato ilícito e re-estabelecer a situação que, dentro da mais lógica probabilidade, teria existido se aquele ato não tivesse sido cometido”[28]
Dessa forma, cumpre-se necessária a identificação de novas obrigações advindas como conseqüências da violação grave de normas cogentes. Uma dessas seria a utilização dos danos punitivos ou exemplares, que nada mais são do que uma indenização não apenas reparatória, mas que sirva como punição exemplar daquela violação. O conceito de danos punitivos ou exemplares, ou seja, não compensatórios, constituem o mais espetacular dos diferentes programas específicos de obrigações decorrentes de um regime de agravamento responsabilidade; e é amplamente reconhecido, por apoiantes e críticos igualmente, que o seu reconhecimento significaria um passo significativo para um regime eficaz de responsabilidade agravada.[29]
O tema já foi abordado no draft aos artigos de 1996, que previa essa obrigação nos casos de violações graves, de forma que o dano refletisse a gravidade da violação.[30] O artigo 45 estabelecia que em casos de grave violação dos direitos do Estado lesado, a satisfação poderia tomar a forma de danos refletindo a gravidade da infração. No entanto, essa intenção não foi repetida no projeto de artigos de 2001. Lê-se nos comentários de introdução ao Capítulo 3 do Projeto, que a atribuição de danos punitivos não é reconhecida no direito internacional, mesmo em relação aos casos de violação grave das obrigações decorrentes de normas imperativas.[31] E é nesse sentido que as Cortes e Tribunais vem decidindo. Os danos punitivos vêm sendo denegados, sempre que requisitados, pela jurisprudência internacional. Podem ser dados como exemplos os casos de Janes Claim, The I’m alone e Rainbow Warrior. Nem mesmo nos casos em que ocorre violação aos direito humanos é concedida essa obrigação; apenas a reparação pelos danos morais ou materiais.
No entanto, mesmo tendo o direito internacional reconhecido implicitamente o conceito da indenização não-compensatória, na opinião do Comissário Orrego Vicuña, podem ocorrer casos em que um tribunal possa conceder danos claramente desproporcionais em relação ao prejuízo realmente sofrido (p. ex., o Caso Letelier e Mofit).[32] É claro que tais concessões seriam difíceis de justificar nos casos que envolvam apenas danos materiais. No entanto, a situação é diferente nos casos envolvendo pedidos baseados em danos imateriais. Na determinação da quantia a ser concedida, necessária para a reparação dos danos imateriais, os tribunais arbitrais podem desfrutar de um amplo poder de discricionariedade na apreciação. A jurisprudência internacional sugere que, ao menos em alguns casos, esse critério tem sido utilizado, e a quantia das indenizações concedidas tem refletido a gravidade da violação.
O que pode ser dito, de um modo especulativo é que em determinados casos, geralmente nos que envolvem indenizações por danos imateriais ou morais, os tribunais tem concedido discretamente danos punitivos, como se fossem compensações por dano imaterial. Entretanto, mesmo havendo a ocorrência de tal prática, não existem indicações de que ocorram habitualmente, ou que seja uma conseqüência específica das violações graves. Na verdade, a possibilidade de se conceder generosamente um montante de compensação baseado na gravidade do dano, e não apenas na reparação, existe praticamente em todos os casos envolvendo danos morais. Pode-se concluir, no entanto, especulativamente, o que não reflete fielmente a realidade, que os juízes estariam mais propensos a concedê-lo quando a violação é de natureza flagrante e afeta os direitos fundamentais dos indivíduos em causa.
O fenômeno das concessões discretas de danos punitivos implícitos, no entanto, não está restrito às violações graves. De qualquer maneira, os danos não compensatórios, não constituem uma conseqüência específica no âmbito do regime agravado de responsabilidade, e a reparação mantém seu caráter de ressarcimento no que tange às violações graves de normas imperativas.
Outra questão relevante diz respeito à violação grave causada por atos de individuais. Não há nenhum dispositivo do Projeto de artigos que enfoque esse tema, se um
Estado responsável por violações extremamente graves do direito internacional tem a obrigação de tomar medidas legais, a nível nacional, contra os perpetradores desses atos individuais. O risco aí é o de quebrar o liame que separa as esferas da responsabilidade internacional e da responsabilidade individual no âmbito do direito internacional. Em conseqüência, poderia ensejar o dever dos Estados de processar (ou alternativamente extraditar) infratores, ou, pelo menos, o de não aprovar leis de anistia que façam apologia à violação.
O fato é que a maioria dos Tratados que tratam sobre crimes internacionais, entre eles a Convenção sobre o Genocídio, a Convenção sobre o Apartheid, e a Convenção sobre a Tortura, trazem a obrigação específica ao Estado infrator de investigar a violação e tentar extraditar os autores. Além disso, há a idéia de que a punição dos infratores pode constituir um aspecto necessário da garantia efetiva dos direitos humanos. Mesmo que nenhuma Convenção sobre direitos humanos faça previsão expressa à obrigação do Estado em punir os infratores, tal dever tem sido visto como inerente à obrigação de garantir o respeito aos direitos humanos e de prestar soluções eficazes para as violações destes. Por tgal motivo foram criados órgãos fiscalizadores e garantidores desse direitos, tais como a Comissão de Direitos Humanos, o Comitê de Direitos Humanos da ONU e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com esta última (no caso Velaquez Rodriguez, julgado em julho de 1988), os Estados tem a obrigação de:
“Organizar o aparato governamental e em geral, todas as estruturas através das quais o poder é exercido, de forma que elas sejam capazes de assegurar juridicamente a exercício livre e pleno dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir qualquer violação aos direitos reconhecidos pela Convenção, e, além disso, se possível tentar restaurar o direito violado e prestar indenização pelos danos resultantes da violação.”[33] (Tradução livre)
Em contrapartida, ainda existem dúvidas sobre se o direito internacional consuetudinário reconhece ou não o dever de levar à justiça indivíduos responsáveis por atos de tortura, crimes contra a humanidade, ou outras violações graves contra os direitos humanos. Por outro lado, o próprio Comitê de Direitos Humanos sugeriu que o dever de processar os responsáveis pela tortura fosse exigido, independente do disposto nos Tratados. No entanto, a prática atual ainda é instável, principalmente no que diz respeito às Leis nacionais de anistia. A ONU intermediou e aprovou leis de anistia em alguns países, inclusive no Haiti, que perdoavam os mais graves abusos aos direitos humanos. Já em Serra Leoa, por outro lado, enquanto o Acordo de Paz concedia anistia geral, o Representante Especial da ONU registrou que tal provimento não se aplicaria ao genocídio, aos crimes contra a humanidade, e nem aos crimes de Guerra.
Dessa forma, ao menos por enquanto, o dever do Estado de processar indivíduos que comentam ilícitos internacionais deve ser visto como uma conseqüência de determinadas e específicas proibições em particular.
Como visto, a violação grave das obrigações de normas imperativas comporta efeitos em comum com a violação de obrigações ordinárias. Aí podemos identificar a imaturidade do Projeto de Artigos da CDI, ao prever como conseqüências específicas do (suposto) regime agravado de responsabilidade apenas a cooperação internacional para por um fim ao ato ilícito, e a obrigação de não reconhecimento da situação gerada pelo ato como lícita pelos demais Estados. A primeira obrigação desencadeada diz respeito apenas aos demais Estados, e não diretamente ao Estado responsável pela violação, enquanto a segunda atinge o Estado responsável apenas na proibição de que este reconheça a situação causada pela infração da norma como lícita, a fim de consolidar um situação ilegal por meio deste reconhecimento. No entanto, merece destaque o fato que a obrigação de não reconhecimento pelo Estado infrator pode ser vista como uma conseqüência implícita da violação inicial.
A única conclusão aceitável aqui, portanto, é que o artigo 41 do projeto de artigos é omisso na previsão de conseqüências inovadoras para o Estado autor do ato ilícito, estabelecendo obrigações apenas para os demais Estados. Assim, as conseqüências para o infrator serão, no regime de responsabilidade agravada, as mesmas do regime ordinário de responsabilização; apenas a incidência e a extensão da reparação, é claro, serão afetadas pela gravidade da violação, ou pela gravidade dos danos causados.
Se a Comissão pecou ao elaborar um regime de responsabilidade agravado tão pouco rígido, pontuou ao dar um grande passo em relação à progressividade do direito internacional, ao impor o dever de cooperação internacional no combate aos atos ilícitos. Essa imposição reflete uma nova priorização dos deveres de solidariedade na comunidade internacional. O abandono do bilateralismo no âmbito da responsabilidade pela violação de normas imperativas, e a fomentação de uma resposta multilateral às infrações.
Esse conceito de cooperação internacional foi introduzido pela Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional Relativos à Relações Amistosas e à Cooperação entre Estados em conformidade com a Carta das Nações Unidas, que prevê em seu artigo quarto o dever de cooperação, requerendo a cooperação dos Estados para a manutenção da paz e da segurança internacionais; devendo esse mesmo dever se estender para a promoção e respeito aos direitos humanos e às liberdade fundamentais, e para a eliminação de toda forma de racismo, discriminação e intolerância religiosa. O Projeto, provavelmente, quis dar a esse dever linhas de uma obrigação positiva quando uma norma imperativa é violada; até porque se a obrigação de cooperar foi prevista como regra geral para a proteção da paz e a promoção dos direitos humanos, o mesmo deve ocorrer quando essas condutas supremas forem gravemente violadas. De acordo com Isabela Piacentini:
“Trata-se de uma obrigação imposta a todos os Estados: diretamente afetados pelo ilícito ou não, todos têm um dever de agir para pôr fim à violação. É o dever de solidariedade que deve unir os membros da comunidade internacional, especialmente diante da gravidade da ofensa à ordem pública internacional.”[34]
O dispositivo, no entanto, não oferece nenhuma especificação sobre como deve ocorrer essa cooperação, e nem os comentários aos artigos. É omisso quanto a quem deve dar inicio ao dever de cooperação, como este deve correr, e se todos os Estados realmente devem participar, ou basta uma participação unilateral. Omite-se também quanto aos mecanismos da cooperação. A CDI apenas diz que a “a cooperação pode ser organizada no âmbito de uma organização internacional competente, em especial as Nações Unidas”[35], mas reconhece a possibilidade de uma cooperação não institucionalizada.
A questão principal aí é que a Comissão não fornece nenhum norteamento sobre o instituto da cooperação, e a partir do momento que faz alusão à cooperação não-institucionalizada, abre uma enorme margem de discricionariedade aos Estados que, no ímpeto de por um termo a uma violação podem decidir livremente sobre como fazê-lo, se devem utilizar ou não algum tipo de bloqueio, seja ele econômico ou cultural, ou promover um isolamento comercial, restando ao seu livre arbítrio o tempo que deve durar essa ação, ou a sua intensidade. As conseqüências dessa liberdade podem ser realmente drásticas, a partir do momento que os Estados tem ampla liberdade para cooperar entre si com o objetivo de por um fim à violação, da forma que lhes convier, desde que essa forma seja lícita.
E quando a violação for, por exemplo, de uma obrigação decorrente do princípio da não agressão? A obrigação de cooperar sobrepõe-se ao dever de neutralidade? Esse aspecto foi ignorado pela CDI. No direito internacional geral, na hipótese quase comum em que o Conselho de Segurança da ONU não tem êxito em determinar o Estado responsável pela agressão, e em conseqüência disso não toma medidas coercitivas, todos os Estados estarão livres para avaliar a situação da forma que quiser, podendo exercer seu direito à autodefesa coletiva ou permanecer neutro.[36]
Pode-se inferir, portanto, que a instituição da cooperação internacional pela Comissão de Direito Internacional, representou um avanço no que tange ao tratamento da responsabilidade como multilateral e multidimensional, e na imposição da obrigação de cooperar aos demais Estados, fazendo com que estes não permaneçam inertes às violações graves de normas imperativas, tornando a comunidade internacional muito mais coesa e sólida na busca pela paz e harmonia universal,, e pela promoção de valores supremos como os direitos humanos e as normas de jus cogens. No entanto, mesmo trazendo efeitos positivos, derivou em alguns problemas práticos, a partir do momento em que não estabeleceu regras para a cooperação dos Estados, e nem mecanismos para a mesma, e ainda fez previsão a uma cooperação não institucionalizada, deixando ao livre critério dos Estados a forma com que a cooperação deve incidir sobre o Estado violador e as ações que podem ser tomadas no sentido de por um fim ao ato ilícito.
A segunda conseqüência prevista são as obrigações de não reconhecimento da situação gerada pelo ato ilícito como lícita pelos demais Estados, e de não prestar ajuda ou assistência na manutenção dessa situação, podendo-se dizer que a segunda é conseqüência lógica da primeira. O artigo não apenas proíbe o reconhecimento da situação como lícita, mas também qualquer ato que implique nesse reconhecimento, tais como assinatura de Tratados ou firmação de acordos comerciais. Essa prática já está sedimentada na pratica, e na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, tendo em vista que vem sendo aplicada já há algum tempo. Exemplo do não-reconhecimento de atos que violem normas imperativas foi o Caso da invasão do Kwait pelo Iraque:
“Após a declaração do Iraque de “fusão completa e eterna” com o Kuwait, o Conselho de Segurança da ONU, na Resolução 662, de 9 de Agosto de 1990, decidiu que a anexação “não tinha validade jurídica, e era considerada nula e sem efeito “, e convocou todos os Estados, organizações internacionais e agências especializadas para não reconhecerem a anexação e se absterem de qualquer ação ou negociação que pudesse ser interpretada como um reconhecimento dessa, direta ou indiretamente. De fato, nenhum Estado reconheceu a legalidade da anexação pretendida, e os efeitos desta foram posteriormente revertidos.”[37] (Tradução livre).
No entanto, existem dúvidas quanto à extensão da obrigação e sua especificidade, já que os casos nos quais essa obrigação é exigível são aqueles de estabelecimento ou manutenção de um regime pelo uso ilegal da força, em que também ocorre a violação do princípio da autodeterminação dos povos, ou seja, uma obrigação exigível erga omnes. Em detrimento desse acontecimento, surge outra questão delicada, a respeito dos naturais do Território invadido ou violado, já que o não reconhecimento e a não prestação de ajuda ou assistência afetará diretamente a população, inocente em relação ao ato ilícito. No caso da Namibia, onde ocorreu situação semelhante, o Parecer da Corte foi no seguinte sentido:
“O não reconhecimento do governo da África do Sul no Território não deve resultar em privar o povo da Namíbia de quaisquer vantagens derivadas da cooperação internacional. Em particular, enquanto os atos oficiais realizadas pelo Governo da África do Sul em nome de ou em relação à Namíbia, após o término do mandato, são ilegais e inválidos, essa nulidade não pode estender-se a outros atos como, por exemplo, o registro de nascimentos, óbitos e casamentos, sendo os efeitos (invalidade) aí ignorado somente em detrimento dos habitantes do Território”.[38] (Tradução livre).
Frisa-se mais uma vez que não foram impostas novas obrigações aos Estados que comete graves violações às normas imperativas, além daquelas já previstas no regime ordinário de responsabilização, concernentes às violações comuns. A conseqüência proposta pela Comissão foi muito mais no sentido de por um fim ao ato ilícito, apoiando-se para este fim na cooperação internacional dos Estados e na obrigação de não reconhecimento da situação gerada por tal ato, do que propriamente indicar uma conseqüência direta específica ao Estado violador.
5 CONCLUSÃO
Nesse trabalho foi visto que as normas imperativas de direito internacional geral, apesar de amplamente discutidas pela doutrina sob a égide de sua aplicabilidade e exigibilidade, acabaram firmando-se após a convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, como normas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como aquelas da qual nenhuma derrogação é permitida e que só podem ser modificadas por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza. Foi discutida a importância dessas normas, e os motivos pelos quais a proteção destas é tão importante e alvo de tantas divergências no direito internacional, tendo em vista a natureza de sua matéria e o conteúdo sobre o qual dispõem. Podem ser tidos como exemplos das normas de jus cogens o princípio da não intervenção, da autodeterminação, da equidade dos Estados, direitos humanos, proibição de crimes internacionais.
Foi abordado também o desenvolvimento do instituto da Responsabilidade internacional, desde a Idade Média até a conclusão do processo de codificação, em 2001, com a recomendação pela ONU do Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Atos Internacionalmente Ilícitos. Incluindo aí as inovações trazidas pelo Projeto, como a caracterização da responsabilidade segundo os artigos, os elementos constitutivos da responsabilização, os efeitos legais e as conseqüências jurídicas da violação de obrigações comuns, bem como os efeitos da violação de obrigações decorrentes das normas imperativas de direito internacional geral.
A idéia, portanto, demonstrada nos artigos, ao menos no que tange as violações de normas imperativas de direito internacional geral, foi a de que o direito internacional deve se apoiar no conceito de comunitarismo, para combater as violações graves de obrigações decorrentes de jus cogens. O fato é que em se tratando de normas tão imprescindíveis à manutenção da paz internacional, o mínimo que se podia esperar era um regime de responsabilização realmente “agravado”, que impusesse punições sérias e condizentes com o grau de gravidade das violações.
Quanto às demais conseqüências, percebeu-se que estão muito mais relacionadas às ações dos demais Estados do que voltadas à punição do Estado infrator, como poderia se esperar de um Regime de responsabilização agravado, tutelando as normas imperativas de Direito internacional geral. No entanto, deve-se reconhecer que o direito aqui discutido é um direito internacional, que envolve Estados livres e soberanos, onde inexiste uma instituição superior que ofereça controle e monitore seus atos. Esse segundo raciocínio leva a crer que futuramente, se o Direito internacional seguir o rito do direito doméstico, no sentido de que surjam instituições superiores aos Estados, talvez aí sim venha a existir um sistema de responsabilização adequado, que não apenas faça cessar a violação ou ofereça reparação ao Estado vítima, mas que ofereça também sanções ao violador por suas condutas ilícitas, de forma que os demais Estados reflitam antes de praticarem condutas ilícitas que violem direitos alheios, para que finalmente essa prática possa ser extinta do Sistema jurídico internacional.
Bacharela em Direito da Faculdade Jorge Amado
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