Seletividade criminalizante e a administração indireta da miséria

Resumo: O presente trabalho tem a aspiração de construir uma noção lógica da seletividade criminalizante no âmbito do Direito Penal, a fim de apontar possíveis causas e abrir espaço de discussão com o foco de raciocinar soluções para o problema. Para isto, será observado o que se pensa abertamente sobre o tema da criminalidade em conjunto com o que é vinculado pelos empresários morais. No seguimento será considerada vulnerabilidade social e os processos de seletividade criminalizante para, por fim, bastar ao conceito de Lei e Ordem e sua importância para o tema. O presente emprego não visa, obviamente, esgotar o assunto diante da complexidade do tema. Mas antes trazer à discussão uma temática que é tão pertinente na vida hodierna nacional.

Palavras-chave: seletividade criminalizante; vulnerabilidade; movimento lei e ordem.

Abstract: This study aims to build a logical notion of criminalizing selectivity under the Criminal Law in order to identify possible causes, open forum for discussion and find solutions to the problem. For this, it will be seen what is thought on crime, along with what is disseminated by moral entrepreneurs. Then, social vulnerability will be discussed, along with the processes of selectivity criminalizing to finally conceptualize Law and Order and its importance to the topic. This work is not intended to end the discussion, given the complexity of the issue. Wants, however, bring up a relevant topic to the nation's everyday.

Keywords: criminalizing selectivity; vulnerability; law and order motion.

Sumário: Introdução. Teorias públicas e empresários morais diante do caos. A vulnerabilidade economico-social. Seleção primária e secundária de criminalização. Consequências da seletividade. Influência do movimento lei e ordem. Conclusão. Referências

INTRODUÇÃO

Em linhas gerais, o Estado Democrático de Direito, tendo como seu princípio os direitos fundamentais e como elementos o governo, o povo e um território, necessita de legitimidade. A legitimidade é o poder concedido pelo povo ao Estado que garante a capacidade de decisão, de coerção perante o próprio povo por parte do poder político. É este caráter da legitimidade que justifica o ius puniendi e, consequentemente, o Direito Penal quando o Estado assume para si a prerrogativa da busca da justiça, retirando de cena a vingança privada ou o ius talionis. Fica notória, assim, a função do Estado Democrático de Direito no âmbito da atualidade, ratificado pela Carta Magna nacional, obrigando-o ao cumprimento das prerrogativas emanadas das conquistas sociais, fundamentais e humanas ao longo da História na forma de uma administração de “governo do povo, pelo povo e para o povo” [1]. Dentre as obrigações se encontra o dever de proteção ao homem, onde se compreende o advento do ius puniendi.

O Direito Penal, apesar de ter como base o monopólio do poder de punir não pode se orientar, em um Estado Democrático, unicamente motivado pela violência legítima do Estado. Ele deve ser ao mesmo tempo a segurança do cidadão contra seus iguais e também do cidadão em face o Estado. A este último tópico interessa o breve aprofundamento a que se propõe este trabalho.

Assim sendo, o Direito Penal possui certa dualidade, cabendo nele a personificação do poder de punir e também um limitador do poder concedido ao Estado por meio de seus princípios e regras[2].

TEORIAS PÚBLICAS E EMPRESÁRIOS MORAIS DIANTE DO CAOS

O Direito Penal é uma ramificação do Direito Público, que se baseia na repreensão de práticas delituosas por meio de normas emanadas do legislativo. Consequentemente, visa preservar a sociedade, protegendo os bens jurídicos mais importantes. A qualificação e quantificação de suas ações são pautadas por regras de aplicação e princípios norteadores dos procedimentos, que recebem o nome de processo. O processo é o que garante legitimidade ao ato de punir, sempre em conformidade com os princípios arraigados pela Constituição Federal. É por meio deste complexo sistema que o sujeito infrator da norma penal é coagido[3].

Dessa forma, demonstra o Professor Cezar R. Bitencourt (2012) a complexidade no conceito atual de bem jurídico, por não ser unicamente quesito de aplicação cega, mas antes um instituto hábil a dar legitimidade ao Ius Puniendi:

“Atualmente, o conceito de bem jurídico desempenha uma função essencial de crítica do Direito Penal: por um lado, funciona como fio condutor para a fundamentação e limitação da criação e formulação dos tipos penais; por outro lado, auxilia na aplicação dos tipos penais descritos na Parte Especial, orientando a sua interpretação e o limite do âmbito da punibilidade. Ocorre que, diante do atual momento de expansão do Direito Penal, resulta, como mínimo, uma tarefa complexa deduzir o conceito e conteúdo de bem jurídico, como objeto de proteção do Direito Penal. Com efeito, atravessamos um período de transição entre a tradicional concepção pessoal de bem jurídico e posturas que prescindem do dogma do bem jurídico para a legitimação do exercício do ius puniendi estatal. BITENCOURT” (2012, p.72).

Avança Bitencourt (2012), no sentido da interpretação por meio da filosofia da linguagem de Schümann, que o direito penal não está apto apenas a agir em direção vertical descendente Estado-indivíduo, mas também de forma ascendente indivíduo-Estado, propenso, dessa forma, a proporcionar proteção ao invés de unicamente ser objeto de violência legítima do Estado.

Como dito anteriormente, a coação deve respeitar normas e princípios. Ao levar a cabo sua legitimidade[4], o Direito Penal deve levar em consideração sempre o que preconizam esses princípios e regras.

Porém, existe uma fenda praticamente intransponível entre o que é preceituado e a realidade hodierna. Onde o Direito Penal não consegue, assim como o Estado, cumprir o que se obriga. E os problemas apontados para essa falha são os mais diversos: desde os escassos recursos destinados a segurança pública até um suposto aumento vertiginoso da delinquência – originada não só na desigualdade social, mas também da hipertrofia legislativa. Fala-se, então, em crise congênita do direito[5], da qual o Direito Penal faz parte. E as soluções apontadas pelas agências estatais e opinião pública para resolução desta crise são diversas e capciosas. Habitam em torno de absurdos como: penas mais severas, dentre elas trabalhos forçados, isolamento e banimento; redução da maioridade penal; ampliação do rol de crimes penalmente tutelados, etc. Tais teorias, além de deficientes por ineficácia, são contraproducentes, pois se há maior criminalização e penas mais longas, consequentemente haverá maior número de criminalizados, que ficarão mais tempo sob custódia do Estado, em um ciclo vicioso destinado ao colapso.

Uma resposta mais sensata já oferecida ao direito é a noção do iluminista Cesare Beccaria (2002)[6], na qual a efetivação de uma prevenção geral positiva está mais ligada à efetivação da pena do que quão rígida ela é.

 Como afirma, e talvez solucione Beccaria (2002), constata-se que as soluções anteriormente mencionadas não são aptas a sanar a crise da segurança pública. No entanto, é evidente que estas soluções, mesmo falhas já na origem, são difundidas em larga escala – quase que de maneira industrial –, e acabam sendo assimiladas como única forma de trato dos problemas que derivam da segurança pública deficiente. O processo de sistematização do senso comum se dá através dos empresários morais[7], como a grande mídia, discursos políticos, autoridades, movimentos sociais, etc.

Diante disto, o resultado final dessa sistematização é um pensar coletivo altamente vicioso, que ganha fôlego na baixa instrução sobre o tema e traz à tona no seio social outras formas, exatamente mais controvertidas de racionalização do problema, implicando em concepções de reprodução de violência, como o adágio; “bandido bom é bandido morto” ou em supressão de direitos fundamentais em prol do “bem comum”, da “paz pública”, do “sentimento de justiça”. Estes aspectos além de genéricos são modos rudes e esdrúxulos de concepção que acabam por serem interiorizadas não só no âmbito subjetivo dos cidadãos, mas no sistema penal como um todo de maneira formal e material. No policial que tortura ou agride em uma revista, seja no juiz que se veste de justiceiro e condena na dúvida, no âmbito legislativo penal com a possibilidade de redução da maioridade penal, criado pelo processo de criminalização primária e, inclusive no próprio Código Penal. É o caso do crime de rixa, presente no referido código, artigo 137 que em sua forma qualificada com resultado lesão corporal grave ou/e morte, quando não se sabe quem foi o autor todos respondem pela forma qualificadora do crime em tela[8]. Onde o in dubio pro reo, principio basilar de legitimação do ius puniendi, transforma-se em “in dubio pro hell”[9], descortinando a verdadeira face do Direito Penal, de controle social na forma de perseguição do Inimigo. Neste sentido, Bitencourt (2012, p. 68).

A VULNERABILIDADE ECONOMICO-SOCIAL

Pensar em soluções imediatas para o problema posto não é pensar sobre o problema. Essa simples, mas substancial dedução auxilia a colocar em pauta o problema em si, que reside em um platô hierárquica e axiologicamente superior. Está na ineficácia dos Direitos Fundamentais, já mencionado. Esse descaso estatal produz efeitos devastadores, que se potencializam com uma cultura galgada no consumo proveniente de uma sociedade capitalista. destarte, Ranieri Neto:

“Por isso a importância de ressaltar a convicção de que o crime, como fenômeno social, principalmente no contexto brasileiro, está ligado, umbilicalmente, à desigualdade social que define nossa sociedade. Em um mundo marcado pela distancia abissal entre pobres e ricos, em que três das pessoas físicas mais ricas do mundo concentram uma riqueza equivalente ao PIB dos 48 países mais pobres, o Brasil é um exemplo dessa má-distribuição de renda”. NETO (2007. p. 12).

Como abona Ranieri Neto, em se tratando de um fenômeno, pensar em soluções para problemas sociais (em específico a criminalidade de forma isolada, como o especialista que analisa cartesianamente a parte afetada e prescreve o remédio milagroso e o tratamento a ser seguido) é um erro grosseiro, pois estaria vendo o problema sob um viés, verdadeiro, porém resultante e casuístico. Faltando atentar para uma sociedade polarizada, onde a classe pertencente tem aptidão para tornar pessoas em Humanas ou tornar pessoas em objetos, simples mão de obra, e mais vulneráveis ao descaso estatal.

Uma vertente dessa vulnerabilidade está expressa na criminalização da classe economicamente inferior. Quando o médico Cesare Lombroso e Enrico Ferri tentaram traçar o perfil do “criminoso nato”, analisando a população carcerária e seus crimes em uma pesquisa que objetivava fornecer dados fenotípico-biológicos exatos para um precoce reconhecimento do criminoso natural, não lograram êxito. Coletaram, porém, dados importantes que, ao invés de traçar o perfil do criminoso nato, traçaram o perfil dos indivíduos criminalizados.

Contudo, há de se fazer nova referência a Lombroso, em uma vertente que ganha terreno em um Estado capitalista como o Brasil. É o denominado “neolombrosianismo[10]”, que prega, de forma sistematizada e quase canônica, a demonização do crime, tratando esse como uma doença social que reside em sujeitos desprovidos de moral.

Os negros, feios[11], pobres, homossexuais e etc., formam a maior parcela da população carcerária, e isso não tem ligação com características criminosas, mas sim com a parcela propensa a criminalização[12].

A ligação substancial dessa classe com o efeito criminalizante do Estado é observada em uma aplicação extensiva de Rousseau, o Homem é um criminoso nato, onde não há de se negar que o simples fato de viver em sociedade proporciona a potencialidade de ser um criminoso. Dentro do rol dos crimes existem diversas formas de praticá-los e, em alguns casos, até mesmo a inércia configura um tipo penal[13], além do instituto da culpa – stricto sensu –. Há, porém, diferenças substanciais em que pese à possibilidade de condutas, onde existem os crimes chamados de rudes ou grosseiros, de fácil detecção, em contra partida aos crimes sofisticados, que necessitam de certa qualidade do agente – seja de conhecimento ou/e de material hábil –, e por serem mais complexos, sua detecção é dificultada[14].

No entanto, somente este apontamento não forma o pleno conceito de cifra oculta [15]. Há por ser preconcebido, que determinados crimes são cometidos em grande escala por determinada classe e, sendo esses crimes os grosseiros e criminalizados, consequentemente, a criminalização da cifra oculta é assaz renegada ao descaso por se tratar de sujeitos com maior acesso aos meios de defesa, maior autodeterminação e evidência social.

Diante disto, o sistema penal, formado por princípios, normas, penas e agências, proporciona uma ferramenta hábil na tentativa de controle social, com o principal objetivo alicerçado na manutenção da ordem social, sendo o sistema punitivo o monopolizador da violência legal. Porém quando, o sistema age de maneira seletiva, a violência, o poder outrora legal, toma caráter ilegal, sendo exagerada a aplicação dele nos que habitam situações de vulnerabilidade. Precisamente inverso e praticamente ineficaz contra quem não lhe é vulnerável. A respeito disto, considera o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni:

“Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam um reduzido numero que submetem à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um conjunto de agências que formam o chamado sistema penal… Criminalização primaria é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas… criminalização secundaria é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agencias policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo… no caso de privação de liberdade de ir e vir da pessoa, será executada por uma agencia penitenciária (prisonização)”. ZAFFARONI (2006, p.43).

SELEÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA DE CRIMINALIZAÇÃO

A seleção criminalizante atua de dois modos a se saber: na seleção primaria de criminalização, diz respeito às agências políticas que elegem os bens jurídicos mais importantes a serem tutelados pelo direito penal. Para tanto, não se trata de um processo natural, antes, trata-se de um processo de seleção de bens que merecem a tutela e ações consideradas danosas a partir de valores deontológicos que cerceiam a sociedade no momento de criação de tais institutos.

Estes institutos, criados pelas agências do poder criminalizante primário, vinculam o poder de criminalização secundário, que são imbuídas de aplicar e exercer em concreto o preconizado pelo primário. Sendo assim as agências do poder criminalizante secundárias agem como controle social, ao passo que o processo de criminalização primário, apesar de ser o início da criminalização seletiva, ainda mantem certa abstração, visto que as agências do primário não sabem ao certo quem será individualizado pelo secundário. Desse modo, sua atuação, apesar de dar azo à seletividade, sempre está limitada ao poder de ação das agências secundarias de criminalização.

O Estado, nesse momento, se mostra duplamente contraditório. Além da omissão dos direitos fundamentais, ele revela uma postura de infrator de direitos fundamentais diante da atuação superior de suas agencias contra as classes mais vulneráveis.

“A seleção criminalizante secundaria não apenas se orienta pelo poder de outras agencias como também se exerce condicionada a suas limitações operativas, inclusive quantitativamente: em alguma medida, toda burocracia acaba por esquecer seus objetivos, substituindo-os pela reiteração ritual, finalizando geralmente por fazer o mais simples. A regra geral da criminalização secundaria se traduz na seleção: a) por fatores burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, suja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou a comunicação massiva). No plano jurídico é óbvio que esta seleção lesiona o principio da igualdade, desconsiderando não apenas perante a lei, mas também na lei. O principio constitucional da isonomia (art.5º CF) é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela”. ZAFFARONI (2006, p.46).

As agências secundárias de criminalização e a opinião pública respondem a está afirmação no sentido que a constantemente sobrecarga pela grande demanda provinda, em partes das agências primarias, e sua constante edição de tipos penais e, em parte ao aumento da criminalidade, além de condições precárias, encontram sérias dificuldades em obterem eficácia. Desse modo tendo duas escolhas, uma permanecer inerte ao passo de sua limitação, o que é inviável, posto que esta escolha lhe furtaria a legitimidade o que levaria a extinção. Portanto, na verdade a única possibilidade encontrada é se tornar seletiva. E esta seleção encontra arcabouço nos estereótipos difundidos pelos empresários morais[16]ao longo da história[17][18].

“A seleção criminalizante secundaria conforme ao estereotipo condiciona todo o funcionamento das agencias do sistema penal, de tal modo que o mesmo se torna inoperante para qualquer outra clientela, motivo pelo qual: a) é impotente para os delitos do poder econômico (os chamados crimes “do colarinho branco”); b) também o é, de modo mais dramático, diante de conflitos muito graves e não-convencionais, como uso de meios letais massivos contra a população indiscriminada, usualmente chamado terrorismo; c) torna-se desconcertado nos casos excepcionais em que há seleção de alguém que não se encaixa nesse quadro (as agências politicas e de comunicação pressionam, os advogados formulam questionamentos aos quais não sabe responder, destinam-se-lhes alojamentos diferenciados nas prisões etc.). Em casos extremos, os próprios clientes não-convencionais contribuem para a manutenção das agencias, particularmente das cadeias, com o que o sistema atinge sua maior contradição”. (Zaffaroni, pp. 46-47).

CONSEQUÊNCIAS DA SELETIVIDADE

Destarte, a omissão do Estado, junto ao sentimento de perseguição que se forma nas classes mais vulneráveis, torna o sentimento “intrínseco e bruto” de contrato social relativizado, cabendo ao sujeito a potencialidade de se adequar definitivamente à criminalização já imposta por descrença nas instituições estatais. Nesse contexto, o Estado tenta reaver para si a credibilidade e a legitimidade, usando de maneiras deturpadas para enfrentar um problema que, em suma, ele mesmo proporcionou[19].

O Estado encontra no problema da criminalidade um bode expiatório ideal para justificar sua legitimidade, tirando de foco, ainda que de forma indireta, os problemas sociais por não tornar efetivo o mínimo existencial para grande parcela da população. Sendo causa/efeito de sua omissão na raiz do que preconiza o Estado Democrático de Direito, levando o centro do problema para a “crescente criminalidade”, como se esta viesse exclusivamente,de um problema de moral subjetiva. Esse processo se transforma em um ciclo vicioso, onde o Estado faltoso encontra nas consequências de tal falta o motivo de sua necessária intervenção nas formas degeneradas já mencionadas, que não produzem outros resultados além do instantâneo e falso sentimento de segurança[20], e o aumento da criminalização. Portanto, tem-se a imagem amplamente divulgada em pesquisas quantitativas de um aumento vertiginoso da criminalidade, quando o que ocorre é o aumento da criminalização – consequência da inflação do sistema penal, que é fruto da resposta estatal para o descrédito que este sofre quando faltoso.

Este processo criminalizante como bode expiatório estatal acaba por encontrar na parcela mais afetada por sua omissão os antagonistas perfeitos.[21] A parcela social que sofre duplamente com a conduta estatal possui, segundo o viés sociopolítico adotado, duas condutas, sendo elas a do “pobre bom” e a do “pobre mau”. Atribui-se ao pobre bom, valores morais que, mesmo com as dificuldades latentes, se mantém no caminho virtuoso, sendo um “cidadão de bem”. Ao pobre mau cabe um valor torpe, não possuindo suficiente moral, e por isso, usando do livre-arbítrio, encaminha-se pelo caminho dos delitos, da então doença social[22].

Este discurso polarizante se alimenta da propaganda capitalista do sonho americano de possibilidade de ascensão dentro do neoliberalismo, no qual o sujeito, mesmo nascendo na extrema pobreza, poderá, com seu trabalho e mérito, vir a se tornar um sujeito bem sucedido e com grande poder aquisitivo. Onde a classe em que se pertence não tem nada haver com suas atitudes, principalmente quando delituosas. Discurso tal também é usado para justificar a pena, onde essa visa retirar o delinquente do convívio social para que esse seja reeducado, ressocializado e possa voltar ao convívio social e seguir sua vida normalmente.

Porém, ambas as teorias não passam de propagandas falaciosas, que fazem uso das exceções e as transformam em modelos de possibilidade, afirmando ser possível vir a ser melhor, dependendo única e exclusivamente do sujeito e de sua vontade. Tornando uma história de sucesso, de um homem que nasceu pobre e galgou seu lugar ascendido na sociedade ou do preso que depois de cumprir sua pena retorna para a sociedade, constitui família e consegue um bom emprego, como exemplos para justificar todo o sistema e os estereótipos[23]. Esse discurso possibilita ao Estado a isenção da responsabilidade natural que o obriga a proporcionar meios efetivos para o pleno desenvolvimento do Homem.

INFLUÊNCIA DO MOVIMENTO LEI E ORDEM

Este movimento, como aponta Ranieri Neto (2007), ganha força por meio de sua intensa disseminação, como já mencionado anteriormente, como slogans do tipo “tolerância zero”. O movimento, Law and Order[24], além de consequentemente servir como ferramenta de controle social, tem como objetivo primordial a máxima intervenção do poder penal em todas as esferas da sociedade. Essa afirmação é evidente quando se analisa o advento da Lei 8.072/90, então intitulada lei dos crimes hediondos, que promove penas maiores e encurtamentos de garantias precípuas. O Supremo Tribunal Federal, ao negar a obrigatoriedade do art., 2º, II da Lei 8.072/90, demonstrou a resistência existente contra esse movimento. No entanto, atitudes como esta são pontuais e escassas. Esse movimento traz nome ao que está sendo referido até então e, como afirmado, seu objeto principal não é propriamente um “apartheid social”, mesmo que seja apto a isso. Contudo, esta hipertrofia a que se dá o instituto da pena, tornando o estereótipo criminoso pertencente às classes mais vulneráveis, acaba por aumentar a vulnerabilidade do indivíduo pertencente à base social capitalista, fazendo destas classes a regra quando se refere à criminalização e das classes economicamente superiores a exceção.

CONCLUSÃO

A matéria traz a problemática circunstancial da seletividade criminalizante e suas distintas ramificações bem como suas consequências e origens nos problemas sócias, em especial foco na desigualdade econômica que se mostra como fator preponderante a ser levado em conta no momento de problematizar o tema. Onde o aumento da criminalidade e até mesmo a seleção são sintomas de um debate que enseja discussões mais aprofundas no sentido social do direito penal. Uma hipótese considerada ao problema e abre espaço para a continuidade desta pesquisa, reside na necessária intensificação de politicas publicas que visem redução das desigualdades em conjunto com fomentação da discussão em nível acadêmico, mas com abertura para a sociedade por meio de ferramentas mais observáveis e que permitam a credibilidade necessária às informações vinculadas, como forma de subterfúgio do senso comum.

 

Referências
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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. ed. Eletrônica: Ridendo Castigat Moraes, 2002
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CAPEZ, Fernando. PRADO, Stela. Código penal comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007
KHALED Jr, Salah H. ROSA, Alexandre Morais da. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de janeiro: Editora Lumen Juris, 2014.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria dos Estados Unidos [a onda punitiva]. Traduzido por Sergio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ZAFFARONI, E. Raúl; Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – teoria geral do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
FILHO, Roberto Freitas, Crise do direito e jurispositivismo: a exaustão de um paradigma. 2ª ed. 2013. Versão para internet, p. 24-25. Disponível: http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/4067/1/Crise%20do%20Direito.pdf, acesso em 25/05/2015.
Notas:
[1] Baseado no famoso discurso de Gettysburg feito por Abraham Lincoln, qua dava inicio para uma nova democracia norte-americana e ocidental, em 19 de novembro de 1863, na cerimonia de inauguração do Cemitério Militar de Gettysburg, local onde ocorrerá a batalha com o mesmo nome.
[2] “A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, portanto, necessariamente com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este é o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático de direito e o que possibilitaria entender a prevenção geral positiva limitadora da pena como finalidade legitimável desta”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.80).
[3] “O bem jurídico não pode identificar-se simplesmente com a ratio legis, mas deve possuir um sentido social próprio, anterior à norma penal e em si mesmo preciso, caso contrário, não seria capaz de servir a sua função sistemática, de parâmetro e limite do preceito penal, e de contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de valorações”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 71).
[4] “Assim, o conceito de prevenção geral positiva será legítimo “desde que compreenda que deve integrar todos estes limites harmonizando suas eventuais contradições recíprocas: se se compreender que uma razoável afirmação do Direito Penal em um Estado social e democrático de Direito exige respeito às referidas limitações”. A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático. A pena, sob este sistema estatal, teria reconhecida, como finalidade, a prevenção geral e especial, devendo respeitar aqueles limites, além dos quais há a negação de um Estado de Direito social e democrático”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.80).
“Em uma linha similar, mas sem recorrer expressamente ao método analítico da filosofia da linguagem, Roxin defende que: “em um Estado democrático de Direito, que é o modelo de Estado que tenho como base, as normas penais somente podem perseguir a finalidade de assegurar aos cidadãos uma coexistência livre e pacífica garantindo ao mesmo tempo o respeito de todos os direitos humanos. Assim, e na medida em que isso não possa ser alcançado de forma mais grata, o Estado deve garantir penalmente não só as condições individuais necessárias para tal coexistência (como a proteção da vida e da integridade física, da liberdade de atuação, da propriedade etc.), mas também das instituições estatais que sejam imprescindíveis a tal fim (uma Administração da justiça que funcione, sistemas fiscais e monetários intactos, uma Administração sem corrupção etc.). Chamo ‘bens jurídicos’ a todos os objetos que são legitimamente protegidos pelas normas sob essas condições”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.75).
[5] “Na década de 80 e no princípio da de 90, foi vista uma mudança profunda na configuração política mundial, afetada por algumas importantes transformações nas posições geo-políticas globais, nas comunicações, na quebra das barreiras ao comércio internacional, bem como o aparecimento de novas questões jurídicas, como a crescente consciência do direito ao meio ambiente saudável, por exemplo, e as questões éticas surgidas com o desenvolvimento da biotecnologia. Do ponto de vista político, diante desta nova e complexa realidade, o Estado redimensiona e reconfigura seu papel. O Direito, instrumento de regulação privilegiado do Estado, tende também a se reconfigurar. Se o Estado está em crise, o Direito também está. A crise é em nível econômico e também crise dos modelos de regulação social tradicionais, incluindo o Direito. A crise atual do Estado indica que os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de regulação, postos há um século, já não funcionam. O Estado tem se transformado no transcorrer do tempo, e o Direito, como o principal meio ou instrumento de regulação estatal, também tem mudado. Conforme visto anteriormente, pode-se distinguir, na história moderna, dois tipos de Direito que podemos associar aos dois tipos de Estado descritos, Direito do Estado Liberal e o Direito do Estado Social. A interdependência crescente dos países, do ponto de vista econômico e financeiro, assim como a complexidade dos problemas novos e a rapidez das mudanças, levaram o Direito à impossibilidade da seqüência desse modo de produção e de aplicação das regras jurídicas, bem como a um estado de crise que se reflete na dificuldade que tem o Estado para aplicar seus programas legislativos, e no reconhecimento da existência de um pluralismo jurídico. O embate entre a função planificadora do Estado e sua conseqüente necessidade de um Direito instrumentalizador de políticas públicas e a tradição jurídica de garantia e segurança demonstra o paradoxo ao qual está sujeito o Estado contemporâneo. Nos dizeres de José Eduardo FARIA, o fenômeno gera a chamada “inflação jurídica”, com a qual o Direito contemporâneo tem de conviver: “Condicionado assim por dois princípios conflitantes, o da legalidade (típico do Estado liberal-clássico) e o da eficiência das políticas públicas nos campos social e econômico (típico do Estado-Providência), o Estado contemporâneo, por meio de seu Poder Executivo, passa a agir de modo paradoxal gerando, em nome da estabilização monetária, do equilíbrio das finanças públicas, da retomada do crescimento e da abertura comercial e financeira, uma corrosiva inflação jurídica. Este tipo de inflação se traduz pelo crescimento desenfreado do número de normas, códigos e leis, de tal modo que a excessiva acumulacão desses textos legais torna praticamente impossível seu acatamento por seus supostos destinatários e sua aplicação efetiva pelo Judiciário, ocasionando, por conseqüência, a “desvalorização” progressiva do direito positivo e o impedindo de exercer satisfatoriamente suas funções controladoras e reguladoras. No limite, esse processo leva à própria anulação do sistema jurídico, pois, quando os direitos se multiplicam, multiplicam-se na mesma proporção as obrigações; e estas ao multiplicarem os créditos, multiplicam igualmente os devedores, num círculo vicioso cuja continuidade culminaria na absurda situação de existirem apenas devedores, todos sem direito algum. Este é o potencial corrosivo da inflação jurídica – o risco da própria morte do direito.” Há, assim, uma crise do Direito que, indissociada da crise do Estado, se apresenta num de seus aspectos como uma progressiva deterioração da organicidade do sistema jurídico, com o colapso do constitucionalismo e a crescente superação do equilíbrio entre os poderes, bem como o fenômeno da globalização econômica, a partir da década de 80. As estruturas jurídicas e políticas legadas pelo Estado liberal, no século XIX, e pelo Estado Social, no século XX, demonstram estar passando por um momento de crise e transformação, e assim também o Direito”. (FILHO, Roberto Freitas, Crise do direito e jurispositivismo: a exaustão de um paradigma. 2ª ed. 2013. Versão para internet, p. 24-25. Disponível: http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/4067/1/Crise%20do%20Direito.pdf, acesso em 25/05/2015).
[6] "… como melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável…" (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. ed. Eletrônica: Ridendo Castigat Moraes, 2002, p. 177).
[7] “O conceito de empresário moral foi enunciado sobre observações relativas a outras sociedades, mas na nossa pode ser tanto um comunicador social, após uma audiência, um político em busca de admiradores ou um grupo religioso à procura de notoriedade, quando um chefe de policia à acata de poder ou uma organização que reivindica os direitos da minorias etc. Em qualquer um dos casos, a empresa moral acaba desembocando um fenômeno comunicativo: não importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. A reivindicação contra a impunidade dos homicidas, dos estupradores, dos ladrões e dos meninos de rua, dos usuários de drogas etc., não se resolve nunca com a respectiva punição de fato, mas sim com urgentes medidas punitivas que atenuem as reclamações na comunicação ou permitem que o tempo lhes dê a centralidade comunicativa”. (ZAFFARONI, E. Raúl; Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – teoria geral do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 45).
[8] “Neste caso se uma pessoa morreu, mas não se apurou a autoria do homicídio, ocorre a punição pela simples participação na briga geral, levando os contendores a responder por rixa qualificada”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 702). No mesmo sentido: “Prevê o parágrafo único hipóteses de rixa qualificada, quais sejam: (a) se ocorre morte; (b) se ocorre lesão corporal de natureza grave (pena – detenção de 6 meses a 2 anos). Os resultados devem necessariamente ser reproduzidos por uma causa inerente à rixa e serão imputados a todos aqueles que participaram do entrevo, incluindo-se, aqui, o próprio participante que sofre a lesão grave. A pena também será majorada de forem atingidos terceiros estranhos à rixa.” (CAPEZ, Fernando. PRADO, Stela. Código penal comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 297).
[9] “Não são poucos os autores que consideram que os poderes que permitem que o juiz interfira nas gestão da prova devem ser complementares; no entanto, não conseguimos vislumbrar caso em que essa atividade não seja potencialmente danosa para o acusado, motivo pelo qual a consideramos em flagrante descompasso com a exigência de democraticidade, o que nos parece inaceitável; afinal tal atividade desconsidera completamente o in dubio pro reo, uma vez que na dúvida o juiz parte em busca de provas, que obviamente só podem ter a finalidade de obter a condenação a qualquer custo. Em uam estrutura regrada de contenção do poder punitivo, a dúvida deve gerar absolvição, o que expressa o próprio sentido do princípio in dubio pro reo. As o processo penal do inimigo de Campos é fundado em torno de outra lógica, que configura um verdadeiro in dubio pro hell: diante da dúvida, a verdade ser perseguida até que se chegue ao resultado desejado, que não é outro que a condenação. Não há caso em que essa persistência não signifique a busca da condenação a qualquer custo, já que a dúvida deveria impor a absolvição”. (KHALED Jr, Salah H. ROSA, Alexandre Morais da. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de janeiro: Editora Lumen Juris, 2014. p. 19).
[10] “É o “neolombrosianismo”, onde o crime é uma patologia a ser extirpada. A ideologia das elites é reforçada e inculcada através de um processo e de uma opinião publica que “acaba sendo o que os jornais, a televisão e o rádio divulgam em seus editoriais, reportagens, entrevistas ou depoimentos sobre fatos ou situações que, mais do que refletir a realidade objetiva, acaba refletindo a ideologia, a crença ou as formas de percepção do real daqueles que divulgam ou expõem suas ideias na mídia”. (NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.33).
[11] Tomando como base de critério o padrão de beleza ocidental e em especifico o brasileiro, veiculado pelas agências de propaganda na grande mídia.
[12] “Servir-se da prisão como um aspirador social para limpar as escórias/detritos produzidos pelas transformações econômicas em curso e remover os rejeitos da sociedade de mercado do espaço público – delinquentes ocasionais, desempregados e indigentes, pessoas sem teto e imigrantes sem documentos, toxicômanos, deficientes e doentes mentais deixados de lado por conta da displicência da rede de proteção de saúde e social, bem como jovens de origem popular, condenados a uma vida feita de empregos marginais e de pequenos ilícitos pela normalização do trabalho do trabalho assalariado precário”. (WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria dos Estados Unidos [a onda punitiva]. Traduzido por Sergio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.455).
[13] É o caso do art. 135 do Código Penal brasileiro que tipifica a omissão de socorro.
[14] “Como afirmou Mezger, “existem numerosos delitos nos quais não é possível demonstrar a lesão de um direito subjetivo e, no entanto, se lesiona ou se põe em perigo um bem jurídico”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.745).
[15] Cifra negra diz respeito aos crimes que não chegam ao conhecimento das agências estatais e ficam imunes ao direito penal, geralmente por não serem as modalidades de crime perseguidas pelos aparatos jurídicos. Nesse sentido, Ranieri Neto: “Sendo indiscutível que o direito penal somente é aplicado aleatoriamente, sendo muito difícil precisar a extensão da chamada “cifra oculta”, faz-se necessário indagar qual seria a forma de criminalidade normal em relação a nossa sociedade capitalista neoliberal, cada vez mais calcada na busca do lucro e incentivo ao consumo”. (NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.14).
[16] … O conceito de empresário moral foi enunciado sobre observações relativas a outras sociedades, mas na nossa pode ser tanto um comunicador social, após uma audiência, um político em busca de admiradores ou um grupo religioso à procura de notoriedade, quando um chefe de policia à acata de poder ou uma organização que reivindica os direitos da minorias etc. Em qualquer um dos casos, a empresa moral acaba desembocando um fenômeno comunicativo: não importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. A reivindicação contra a impunidade dos homicidas, dos estupradores, dos ladrões e dos meninos de rua, dos usuários de drogas etc., não se resolve nunca com a respectiva punição de fato, mas sim com urgentes medidas punitivas que atenuem as reclamações na comunicação ou permitem que o tempo lhes dê a centralidade comunicativa. (ZAFFARONI, E. Raúl; Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – teoria geral do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 45).
[17] “A seleção não só opera sobre os criminalizados, mas também sobre os vitimizados. Isto corresponde ao fato de que as agências de criminalização secundária, tendo em vista sua escassa capacidade perante a imensidão do programa que discursivamente lhes é recomendado, devem optar pela inatividade ou pela seleção. Como a inatividade acarretaria seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e procedem à seleção. Este poder corresponde fundamentalmente às agências policiais. De qualquer modo, as agências policiais não selecionam segundo seu critério exclusivo, mas sua atividade neste sentido é também condicionada pelo poder de outras agências: as de comunicação social, as agências políticas etc… A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que participam das duas etapas de criminalização; sem um empresário moral as agências politicas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agencias secundárias selecionam pessoas que antes não selecionavam […]”. (ZAFFARONI, E. Raúl; Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – teoria geral do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 45).
[18] Nesse sentido também escreve, Baratta: “Os mecanismos da criminalização secundaria acentuam ainda mais o caráter seletivo do direito penal. No que se refere à seleção dos indivíduos, o paradigma mais eficaz para a sistematização dos dados da observação é o que assume como variável independente a posição ocupada pelos indivíduos na escala social”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal – introdução à sociologia do direito penal. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos; 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 165).
[19] “Vale dizer, a solução dos problemas oriundos da criminalidade é secundária, o principal é reforçar o controle social punitivo, através da veiculação da ideia de que o Estado não se descurou do seu dever de “cuidar” do cidadão, que o pacto social é uma realidade; diante da situação de penúria dos serviços de saúde e educação, do desemprego em larga escala, o Estado procura mostrar-se protetor para com a população fabricado leis penais em larga escala. A criminalidade (que é sem duvida um mal grave) passa a ser o foco das atenções (basta assistir a qualquer telejornal) e, principalmente, e principalmente, a criminalidade torna-se a razão de ser da desordem social e não a consequência (maior ou menor) desta”. (NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.31).
[20] “Porque o Direito Penal encerra em si o uso estatal da violência, sua compreensão somente pode ser efetuada através da união de seus elementos técnicos com o seu significado político. Com efeito, a face politica do Direito Penal tão fortemente que ele é apontado como o mais sensível termômetro da feição politica do próprio Estado, isto é, se a violência da pena for aplicada de forma ilimitada, sem resguardar a Dignidade da Pessoa Humana, estaremos diante um Estado arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro de parâmetros de proporcionalidade (legalidade, culpabilidade etc.), de modo que se respeite a dita Dignidade da Pessoa Humana, estar-se-á ante a um Estado Democrático… Deste modo, não se pode desvincular o Direito Penal de um duplo viés: a aplicação e a interpretação constitucional”. (BRANDÃO, Claudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.19).
[21] “Os atos mais grosseiros cometidos por pessoas sem acesso positivo à comunicação social acabam sendo divulgados por esta como os únicos delitos e tais pessoas como os únicos delinquentes. A estes últimos é proporcionado um acesso negativo à comunicação social que contribui para criar um estereotipo no imaginário coletivo. Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas negativas existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classes sócias, éticos, etários, de gênero e estéticos. O estereotipo acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização secundaria; daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária, associada a desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico considerou causas de delitos quando, na realidade, eram causas de criminalização embora possam vir a tornarem-se causa do delito quando a pessoa acabe assumindo o papel vinculado ao estereotipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio secundário)”. (ZAFFARONI, E. Raúl; Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – teoria geral do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p.46).
[22] “Durkheim critica a então incontroversa representação do crime como fenômeno patológico: “se existe um fato cujo caráter patológico parece incontestável, é o crime. Todos os criminólogos estão de acordo sobre este ponto.” Por outro lado, observa Durkheim, encontramos o fenômeno criminal em todo tipo de sociedade: “não existe nenhuma na qual não exista uma criminalidade”. Ainda que suas características qualitativas variem, o delito “aparece estritamente ligados às condições de toda vida coletiva”. Por tal razão, considerar o crime como uma doença social “significaria admitir que a doença não é algo acidental, mas, ao contrario, deriva, em certos casos, da constituição fundamental do ser vivente”. Mas isso reconduziria a confundir a fisiologia da vida social com a sua patologia. O delito faz parte, enquanto elemento funcional, da fisiologia e não da patologia da vida social. Somente as suas formas anormais, por exemplo, no caso de crescimento excessivo, podem ser consideradas como patologias. Portanto, nos limites qualitativos e quantitativos da sua função psicossocial, o delito é não só “um fenômeno inevitável, embora repugnante, devido a irredutível maldade humana”, mas também “uma parte integrante de toda a sociedade sã”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal – introdução à sociologia do direito penal. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos; 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p.60).
[23] “Do ângulo da doutrina podemos chamar à colação a máxima de J.J. Calmon de Passos, que pontifica: “O direito não é uma coisa que gera justiça, o direito é uma coisa que gera ordem”. Portanto, para os adeptos da ideologia da Lei e Ordem, o direito penal é, primordialmente, um instrumento de manutenção da ordem vigente, cuja função precípua é a repressão dos comportamentos que possam afetar o status quo”. (NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.21).
[24] “Para o Law and Order a opção pelo crime é estritamente pessoal, trata-se de um desvio individual, o que justifica as concepções retributivo-aflitivas em lugar de medidas preventivas. A ideia de que a miséria e a pobreza nada têm a ver com a criminalidade faz-se recorrente no movimento de Lei e Ordem. Isso de deve, a nosso sentir, àquela concepção que mistura o direito com a moral e leva os estereótipos do criminoso como a encarnação do mal, como aquele que se desviou do bom caminho. Nesse passo os direitos fundamentais não se aplicariam aos criminosos ou suspeitos… Essa ótica, adotada e defendida com unhas e dentes pelo movimento de Lei e Ordem, nada mais que é do que a ressureição das ideias de Lombroso, com algumas adaptações. Assim é que surgem as categorias do “pobre bom” e do “pobre mau”; o primeiro é aquele que conhece o seu lugar e não sucumbe a tentação do mau caminho (do crime), já o segundo é o que não resistiu ao chamado do crime, é aquele cujo o caráter afinal não era forte”. (NETO, Ranieri Mazzilli. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.25).

Informações Sobre os Autores

Herson Alex Santos

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG

Carolina Santana Lopes

Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG


Equipe Âmbito Jurídico

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