Resumo: Este ensaio pretende analisar algumas sentenças que passaram a circular em emails e blogs na internet, tendo grande popularidade, uma vez que se apresentavam como sentenças estranhas ou curiosas. A estranheza de algumas sentenças se dá pela presença de um elemento da criação, que é mais forte do que a racionalidade. Discute-se principalmente a relação da racionalidade e da ciência do direito.
Palavras-chave: sentença, papel do magistrado, direito como instituição imaginária da sociedade
Sumário: Introdução, 1. Os padrões do positivismo jurídico, 2. A racionalidade no Direito, 3. Análise das sentenças, 4. Direito e instituição imaginária da sociedade, 5. Direito e criação, Considerações Finais, Bibliografia, Anexos-sentenças
Introdução
Os estudos de Direito tem se preocupado muito com a questão da decisão no judiciário, em especial nos tribunais, uma vez que há um clamor de alguns segmentos da sociedade em estabelecer padrões de decidibilidade aumentando o que chamam de ‘segurança jurídica’. Volta-se para a já antiga, discussão se o papel do juiz ao julgar deve ser de criação ou apenas de aplicação da lei. Retoma-se a discussão sobre a relação direito e política, uma vez que muitos doutrinadores argumentam que há uma separação a ser respeitada. Esses estudos entendem essa postura se equivale ao que o juiz fazer “política”, entendendo aqui política, como uma atuação partidária ou de extrapolação da competência de julgar.
Este artigo tem como objetivo discutir a relação direito e política, enfrentando a questão da criação e aplicação da lei, porém sob o prisma de uma Filosofia do Direito que entende o Direito como instituição imaginária da sociedade. O artigo pretende analisar algumas sentenças tidas pelo judiciário como “estranhas”, ressaltando o seu caráter de Direito. Foram selecionadas 9 sentenças que pela estranheza na forma ou no conteúdo tiveram grande repercussão entre o público especializado e leigo.
Estas sentenças foram notícias em jornais e televisão, causaram discussões públicas e circularam nos meios eletrônicos, na forma de emails ou tendo seu conteúdo reproduzido em sites e blogs. Elas fazem parte de uma nova cultura popular ligada ao direito, que somente foi possível por uma divulgação ampla das ações do judiciário e pela divulgação fácil e barata dos meios eletrônicos de comunicação. Está se criando um outro tipo de relação entre o povo e o judiciário, uma vez que a população brasileira está divulgando parte do trabalho do judiciário. A seleção feita pelo público de algumas sentenças e não de outras tantas mil, indica a busca por um outro tipo de direito e também, de judiciário.
Utiliza-se o termo sentença em seu sentido amplo que extrapola o jurídico, abarcando as decisões de pessoas com poderes do judiciário (juízes de primeira e segunda instância, juízes leigos). A posição da teoria do Direito deste artigo confronta-se com a posição hegemônica da teoria do direito tradicional, fundada no positivismo jurídico e em uma explicação mecanicista, estruturalista, funcional ou sistêmica. Em especial discute-se: o primado da lei e o papel quase inerte do juiz, a questão da segurança jurídica, do juiz como um aplicador da lei (neutralidade e imparcialidade do juiz) e da racionalidade no Direito. A questão tratada por esse artigo não é a interpretação dada pelos magistrados às leis, mas é entender o que é esse Direito produzido pelos magistrados e que dificilmente são abarcados como Direito.
Este trabalho visa entender o Direto como uma instituição imaginária da sociedade, segundo a teoria de Cornelius Castoriadis. Portanto, não define o direito como sendo somente o Direito positivado, nem adota uma das posições filosóficas e teóricas hegemônicas. É a partir dessa abordagem que se pretende explicar como as sentenças “estranhas” fazem parte de uma concepção de Direito, que não são anomalias do sistema jurídico, nem mesmo disfunções, nem atos individuais que devam ser desconsiderados e nem frutos somente dos sentimentos/emoções dos magistrados. Trata-se de sentenças que tem sua função, porém tem uma grande carga simbólica nelas que não pode ser desconsiderada. Essas sentenças fazem parte de um direito judicial, que tem uma dimensão espacial e histórica, e que sua carga política não pode ser desconsiderada. É também um direito em que os magistrados exercem uma criatividade inovadora e radical.
As sentenças escolhidas são ditas como “estranhas” por saírem do padrão das sentenças, em especial quanto à posição do juiz. Por isso, essas sentenças foram amplamente divulgadas, inclusive fora dos âmbitos dos conhecedores do Direito. A estranheza das sentenças não está na sua falta de adequação à legislação existente, mas a uma tomada de posição quase pessoal do juiz, que chega a tirar sua toga e se mostrar como um homem comum. A sociedade discute as questões jurídicas dessas sentenças, muitas vezes auxiliadas por uma linguagem mais próxima do homem comum, e faz o papel de juiz do caso, apoiando ou criticando a decisão dada pelo magistrado.
Esses casos de grande repercussão não são propriamente “casos difíceis”, em que o juiz não tinha um roteiro preparado pela tradição de como decidir. Eram casos relativamente simples, decididos nas primeiras instâncias do judiciário brasileiro. Geralmente, são casos em que há ampla legislação sobre o tema, logo a questão do juiz criar uma legislação através de uma postura política, também parece não ser o caso. Os “operadores do direito” e tribunais vão entender que essas sentenças são absurdas, que devem ser desconsideradas como Direito e que partem de um juiz isolado, que em um momento resolveu atuar diferente do previsto. Há muitos casos que as partes buscam anulação da sentença, por entender que faltaram os requisitos para uma sentença e logo que a justiça não foi dita.
A questão sobre essas sentenças está longe de ser um assunto simples, porém dificilmente é discutido com seriedade pelos teóricos do Direito. Afastá-las de seu estado de juris-dito (o falado pelo juiz, que é uma das definições de Direito) é muito fácil e parece não abarcar as complexidades da questão. Por outro lado, não se pode desconsiderar a ampla discussão que essas sentenças geram na sociedade, criando um espaço público de debate importante.
Alguns estudiosos poderiam afirmar que o que une essas sentenças tidas como “estranhas” (por falta de nome melhor), é a presença da emoção. A discussão da relação do juiz com a emoção é um dos assuntos caros aos estudiosos do direito que estavam acostumados com a presunção jurídica de que o magistrado deveria ser um terceiro e não se envolver no processo, inclusive emocionalmente. Nesse sentido, as sentenças não se afastariam da racionalidade, mas não deixam de conter as emoções de quem as constrói. Os estudos anteriores não negavam a existência das emoções pelos magistrados, mas entendiam que elas deveriam ser guardadas para o uso particular dos juízes em sua vida privada. Partia de um entendimento de racionalidade em que o sujeito do conhecimento estava apagado e afastado do seu objeto, nos moldes de uma razão iluminista. Os estudos sobre emoção entendem que a sentença não pode ser neutra de emoções, pois ela é fruto de um sujeito que conhece o objeto e imprime nele sua visão. Porém, nesse último caso a emoção aparece como algo particular de um sujeito.
O que se objetiva nesse estudo é apontar que as sentenças apresentadas não são somente fruto individual de uma expressão emocional de alguns juízes. Elas são uma parte do Direito que admite algo de não racional, mas que não nega o racional. Exatamente por isso elas se aproximam do homem comum e também por isso são afastadas por alguns juristas e por grande parte dos “operadores do direito”. Não é uma questão de emoção somente, mas de uma lógica que não pode ser reduzida à lógica comumente utilizada no Direito. Essa lógica permite que o novo seja criado, mesmo quando não se precisava de um instrumento jurídico novo. É uma lógica que admite a criação, não somente quando essa é necessária pela função, mas quando é necessária como mudança política.
Primeiramente, esse artigo irá tratar de alguns padrões que o positivismo jurídico instaurou no que tange as sentenças judiciais e algumas de suas conseqüências. Em um segundo momento pretende-se discutir a questão da racionalidade no Direito, para em seguida discutir a criação no Direito, em especial dos juízes. Por último, pretende-se apresentar como essas sentenças fazem parte de um Direito entendido como instituição imaginária social, que permite além da lógica racional, uma lógica não racional, que propicia a criação.
1. Os padrões do positivismo jurídico
Um dos primeiros problemas de se tratar do positivismo jurídico é em saber do que se quer dizer com positivismo jurídico, isso porque essa expressão não é unívoca. Bobbio apresenta pelo menos três significados para positivismo jurídico: “a) certo modo de abordar o estudo do direito, b) uma certa teoria do direito, c) uma certa ideologia do direito”[1]. O positivismo jurídico ao qual se faz referência para esse artigo é o positivismo como teoria do direito, que tem como características gerais: 1) encarar o direito como fato e não como valor, 2) definir o direito em função do elemento coação, 3) entender que a lei é a fonte suprema do direito, 4) considera a norma como um comando, 5) norma não é tomada isoladamente, mas em um conjunto de normas, ressaltando a coerência e completude do sistema, 6) utilização predominante de uma teoria da interpretação mecanicista, 7) teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal”[2]. Há de se ressaltar que esta não é a única definição de positivismo jurídico, mas ela pode ajudar para delimitar alguns problemas referentes ao modo de julgar dos juízes e de elaborar as sentenças.
O positivismo jurídico não pode ser encarado sem uma perspectiva histórica de seu desenvolvimento. Os séculos XIX e XX foram pautados por uma grande criação legislativa e pela exigência dessas leis centralizadas no âmbito do Estado. As cidades cresciam cada vez mais e era necessário um instrumento poderoso de coação às condutas não desejadas, frente à diminuição do papel da religião como coatora. Há um grande aumento da burocracia estatal para atender as demandas do judiciário e uma sistematização das teorias de Direito, que passaram a querer seguir os padrões das ciências naturais. A busca da justiça é substituída por uma busca da técnica e da neutralidade das decisões. O direito estatal e as regras hegemônicas da teoria do Direito passam a ser apresentadas como técnicas, visando uma naturalização e conseqüente diminuição da crítica a essa posição. O papel dos juízes passa a ser da “máquina de dar sentenças”, como aponta Weber, em que dificilmente pode-se ir além da aplicação de silogismos lógicos para fazer a subsunção da lei ao caso prático. É evidente que o programa do positivismo jurídico foi aplicado em diversos países, em especial os de tradição do Roman Law, porém como todo programa teve suas adaptações aos locais e sua cultura e as suas estratégias de resistência.
Um dos pontos principais do positivismo jurídico, que tem relação direta com a questão das sentenças ‘estranhas’ aqui discutidas, é a necessidade de observação estrita à lei. Ao magistrado tem a obrigação de decidir quando recebe uma ação no judiciário. Há casos em que a obrigação de decidir parece extremamente penosa, pois há casos em que é difícil se posicionar sobre um assunto, especialmente quando não há consenso social. O magistrado tem de decidir não apenas como uma pessoa que apresenta suas posições sobre um caso, mas como um funcionário do Estado.
Há uma margem de autonomia do juiz, porém esta não é irrestrita, pela necessidade do juiz julgar com base nas leis estatais. Como nem todas as ações humanas estão reguladas pela legislação estatal, não é raro o magistrado se ver no meio de casos em que não há fundamentação legal. Nesse momento o magistrado se posiciona dando sua decisão, mas criando uma norma individual, que é a sentença. Muitos doutrinadores entendem que essa atitude do juiz é política e exacerba seu papel, uma vez que o juiz não deve se confundir com o legislador. Porém, a própria obrigação de decidir que é colocada por uma legislação, obriga o juiz em determinados casos a se posicionar como legislador, uma vez que não pode dizer às partes que não decide enquanto o legislador não se posicionar a respeito.
Na decisão encontra-se outro ponto muito discutido pela doutrina, que é a subsunção. O magistrado ao se deparar com um caso concreto, deve adequar o caso a uma previsão legislativa, fazendo com que o específico se encaixe em uma lei abstrata. Nem sempre a subsunção é fácil de ser feita, pois é difícil a adequação perfeita. Isso sem contar na possibilidade de várias leis se adequarem a um caso concreto, apontando assim, para diversas subsunções possíveis de acordo com a legislação. A subsunção mais adequada ao caso, não é propriamente um caso de hermenêutica jurídica, em que se discute a interpretação da norma, mas sim da escolha da norma para o caso concreto. É sobre esse tema que se debruçam grande parte das discussões sobre as sentenças dos juízes.
As sentenças “estranhas” escolhidas para análise dificilmente tem problemas quanto à subsunção, pois o que se discute não é o conteúdo, mas sim a forma. O magistrado é obrigado a decidir de uma determinada forma, pois sua sentença deve respeitar alguns requisitos, dentre eles o de fundamentar a decisão nos dispositivos de lei pertinentes ao caso. Algumas sentenças não respeitam a forma mais comum, que é a da escrita em prosa, outras sentenças apresentam opinião pessoal do juiz, quando se exige uma posição imparcial na questão. Outras sentenças ironizam a questão levada ao judiciário ou mesmo o jurisdicionado, outras não tem fundamentação legal ou essa é incipiente, outras ainda, desconsideram deliberadamente à legislação por acharem que esta é injusta, etc..
Essas sentenças também não trazem para a discussão a questão da interpretação jurídica. Isso porque muitas dessas sentenças sequer levam em conta que há uma legislação positivada a ser seguida e interpretada. Outras sentenças tidas como “estranhas” consideram que há um direito posto estatal, porém não o aplicam ou mesmo aplicam o direito com variações, não respeitando o cânone tradicional interpretativo. Não se deve esquecer que os cânones interpretativos fazem com que os sentidos possíveis nas leis sejam restringidos, uma vez que há uma definição legal ou jurisprudencial sobre o conceito ou mesmo sobre como se proceder ao julgar um caso específico. Nas sentenças analisadas o que ocorre é que muitas vezes não se ofende a própria letra da lei, mas os magistrados não se utilizam das interpretações tradicionais. Assim, não se trata de uma questão de interpretação, mas sim de criação de Direito.
Os juízes que criam essas sentenças estão conscientes de seu papel como juiz, e principalmente da necessidade de respeitar a tradição, porém não o fazem. Esses juízes se posicionam como pessoas diante de problemas e impressionam por sua humanidade ao se incomodarem com os assuntos das demandas. Esses juízes estão se posicionando contra a postura insípida e desumana de muitos funcionários públicos que somente cumprem ordens. A população leiga se espanta ao ver um juiz tão humano (para o bem ou para o mal) e as sentenças viram verdadeiras lendas urbanas. Por outro lado, causam certo desconforto àqueles que querem do judiciário uma postura tradicional e mais previsível.
Portanto, a questão presente nessas sentenças não é a do juiz fazer política, mas a consideração dessas sentenças como algo que não é propriamente direito. Algumas sentenças são consideradas nulas, como se nunca tivessem sido pronunciadas. Mas por quê? Se fosse observada a premissa positivista de extrema observância à lei, como a sentença é uma lei individual, essa deveria ser observada, pois quem a disse tinha competência para dizê-la. Porém, não é isso que acontece.
Ao afrontarem o direito positivado, à dogmática jurídica ou mesmo a tradição jurisprudencial, essas sentenças são ditas como não-Direito. Isso ocorre não propriamente porque a sentença não seja um Direito, mas não se encaixa na definição de Direito que se espera, ou seja, a hegemônica. Como o positivismo jurídico entende que somente o direito estatal é o direito existente, ao fugir ou se afastar desse direito, essas sentenças não tem lugar no mundo jurídico, pois não são entendidas como “um outro direito”. Essas sentenças são postas para fora do Direito e muitas vezes o magistrado não teve a intenção de se chocar com o Direito posto. Quando chegam a ser consideradas como Direito, essas sentenças são tidas por alguns juristas, como sentenças que adotam uma posição “atrasada” à do juspositivismo, em que há uma fusão de regras morais e regras jurídicas. Teóricos sistêmicos entendem que a posição desses juízes nas sentenças “estranhas” faz parte de uma anomalia do sistema.
Concordando ou não com essas sentenças é preciso entender porque elas existem, e principalmente porque são tão discutidas pela população. Essas sentenças não são meros erros dos juízes ou mesmo fruto de magistrados ensandecidos, uma vez que há uma repetição dessas posturas por juízes do Brasil todo e em diferentes áreas do Direito.
2. A racionalidade no Direito
A necessidade de sentenças racionais passou a ser mais requisitada a quando a teoria do positivismo jurídico torna-se hegemônica. Essa valorização da racionalidade também pode ser sentida nos estudos de teoria do Direito. Filósofos e teóricos do Direito de posições muito diferentes defendem um Direito com uma forte dimensão racional, como por exemplo: Kelsen, Hart, Ross, Rawls, Dworkin, Luhmann, Alexy e Habermas. Há um grande consenso: que as decisões do judiciário devem ser decisões baseadas em uma lógica racional, que os conflitos são resolvidos por discussões em que a racionalidade deve imperar, e que é possível um cálculo racional no Direito que levaria a uma previsibilidade. Contrariamente ao mundo do judiciário, o mundo da criação das legislações é tido como pouco racional, em que as emoções não são contidas, é o mundo das paixões em que a política se expressa. Quando o judiciário começa criar, mesmo que muito timidamente, é acusado de legislar e de ser pouco racional, político, movido pelas paixões.
O foco em um Direito racional encontra suas raízes em Kant, Hegel,Weber e muitos outros. Weber irá tratar da racionalidade do direito se forma na contemporaneidade, diferenciando as questões de Direito das questões morais e também das religiosas. Para Weber ocorreu um processo de busca à racionalização no Direito:
“Quanto mais o aparato de dominação dos príncipes e hierarcas era de caráter racional, administrado por funcionários, tanto mais tendia sua influência (…) a dar à justiça um caráter racional quanto ao conteúdo e à forma (…), a eliminar meios processuais irracionais e a sistematizar o direito material, e isto significava sempre também: a racionalizá-lo de alguma forma”[3].
O Direito nesse sentido é racional, pois está liberto das questões morais, apontando a não intersecção desses dois campos. A posição de Weber foi adotada por uma parcela significativa dos doutrinadores de Direito, que entendem que uma sentença racional é aquela que não está pautada nas regras morais, mas sim no direito estatal. Nesse sentido, uma sentença fora dos padrões e que poderia até não ser considerada Direito seria aquela que não faz uma diferença marcada entre Direito e Moral. Essa diferenciação é própria do positivismo jurídico que é muito recente na tradição jurídica, apesar de sua grande força.
A relação moral e direito sempre foi muito forte, sendo muitas vezes difícil estipular quais eram as regras morais e quais as regras de Direito. Essa diferenciação somente é possível quando há um estabelecimento de regras positivadas do Estado, sendo que estas foram entendidas como o Direito e sua utilização passa a ser obrigatória nos tribunais. Porém, a moral não é deixada de lado por muitos teóricos do Direito ou mesmo filósofos, que entendem que as regras do Direito têm uma base moral. Esta é a posição adotada, por exemplo, por Habermas, que não deixa de defender um direito com bases racionais.
Kelsen ao exaltar a necessidade de uma metodologia especial para se alcançar um objeto próprio do Direito, reforça a existência de uma racionalidade. Para Kelsen, as normas se estruturam de uma maneira racional e podem ser racionalmente estudadas pelo método da pureza. Há um escalonamento nas normas, uma ordem em um mundo restrito. Essa ordem pode ser alcançada quando Kelsen vincula a definição de Direito com a de norma. Kelsen procura em um método racional para estudo do Direito se livrar da confusão metodológica dos jusnaturalistas, que entendiam que fazia parte do Direito as discussões que englobavam moral, ética e justiça. Kelsen nesse ponto lembra muito a postura de Weber ao entender que o racional é o positivado, porém quanto a sua postura frente à ciência lembra os ensinamentos de Descartes.
A exaltação da racionalidade está presente não apenas na teoria pura do Direito kelseniana, mas em quase todas as teorias do direito da atualidade. Destaca-se aqui a posição tomada pela teoria dos jogos aplicada ao Direito, que irá defender um Direito aplicado de uma maneira estratégica racional. O foco dessas teorias dos jogos, uma vez que há uma variedade imensa delas, não está propriamente na estrutura das normas, mas na sua aplicação pelos profissionais do Direito. Essas teorias têm em comum acreditar que no âmbito do Direito, assim como na vida, as decisões são tomadas exclusivamente através da razão pelas pessoas que delas participam. Se entendido desse modo, o Direito pode ser previsto, pois todos tomam decisões racionais. A frustração de alguns juristas que estudam a ‘teoria dos jogos para o Direito’, se apresenta nas muitas dificuldades na aplicação, pois as pessoas nem sempre tomam as decisões racionais esperadas, dificultando a previsibilidade, tão desejada.
A posição racionalista da teoria do positivismo jurídico começa ser contestada fortemente após a segunda guerra mundial, em que se coloca em questão a obediência à lei do Estado nazista, que causou extermínio de milhões e milhões de pessoas. Hanna Arendt ao discutir o famoso caso do julgamento de Eichman, aponta para a existência de uma obediência à leis injustas, porém não entende que a postura daqueles que se submeteram às leis pode ser desculpada uma vez que essas leis feriam à moral e não deveriam ter sido acatadas.
Um dos casos em que se aceita mais facilmente o afastamento de uma postura racionalista do Direito, deixando de lado a aplicação da letra da lei, é quando há uma imensa injustiça se a lei for aplicada. Em alguns casos aceita-se até a decisão contra a lei, quando esta é tida como injusta. Porém, a lei para ser considerada extremamente injusta e possibilitar uma decisão contra lei, precisa ter alguma base em regras morais estipulando contrariamente à lei. É comum nesses casos, que a fundamentação das sentenças não seja dada com base nas regras morais, mas em princípios jurídicos, explícitos ou implícitos, que proporcionam uma possibilidade ampla de interpretação. Essa prática somente é aceita socialmente, quando ela é aplicada como exceção pelo juiz, uma vez que a regra predominante ainda é a observância extrema à legalidade. Mesmo em casos desse tipo há críticos que entendem que é melhor uma sentença injusta do que se afrontar a legalidade, pois uma vez essa ameaçada, fica comprometido o estado de Direito e a democracia. A acusação dos críticos é de que o juiz não aplicou a lei, mas sim fez política.
A diferenciação entre o poder judiciário e legislativo levou a alguns doutrinadores a estabelecerem funções específicas de cada um, e conseqüentemente, funções que lhes eram estranhas ou mesmo acidentais. Ao legislativo estabeleceu-se que sua função principal era a de estabelecer leis e ao judiciário a de julgar com base nas leis criadas pelo legislativo. A dificuldade surge quando a função principal passa a ser entendida como a única função e com isso ao judiciário somente é permitido julgar. Outras funções poderiam ser entendidas como funções do judiciário, inclusive a de legislar. Porém, o estabelecimento de uma função principal acabou excluindo as outras.
Luhmann ao tratar do legislativo e do judiciário estabelece uma diferenciação de funções, entendendo que o aumento de complexidade do sistema jurídico acentuou essa especialização de funções. Para Luhmann a questão da diferenciação dos sistemas vai além da separação dos poderes, encontrando-se na racionalidade. O sistema legislativo tem para Luhmann uma racionalidade diferente do sistema do judiciário, apresentando critérios de racionalidade indeterminados, enquanto que o judiciário está ligado à programas condicionados[4]. Luhmann afirma que os juízes nem sempre atuam dentro de programas condicionados, porém quando não o fazem, acabam gerando insegurança jurídica e maior pressão política sobre o judiciário, uma vez que se quebra o mito da neutralidade política do judiciário[5].
Alexy foca a racionalidade não nos sistemas, como Luhmann, mas no discurso jurídico[6]. O autor defende que são adotados critérios para a racionalidade do discurso jurídico, desenvolvendo um estudo no âmbito da filosofia da linguagem, que está ligado à um padrão de estudo de Direito tido como objetivo e científico. No discurso jurídico a racionalidade se mostra como correção das suas afirmações, uma vez que não é possível quanto as normas se demonstrar sua verdade ou falsidade. Ao considerar o Direito como um discurso, Alexy propõe uma teoria do Direito que se pretende universal, uma vez que se dá nos moldes de análise lógica que desconsidera as peculiaridades e a história das sociedades que tem esse direito.
Dworkin, em seu livro uma “Questão de Princípio”, entende que as decisões dos juízes são políticas em algum sentido (política não partidária) e destaca a decisão política dos juízes em instâncias superiores. O autor está preocupado com os “casos difíceis”, ou seja, aqueles em que não há uma regra direcionando a posição a ser tomada pelo tribunal, na legislação ou na jurisprudência. Dworkin entende que o Direito tem um fundamento político, logo não há como separar completamente política e direito. Não se pode desprezar a escolha do autor de tratar a questão da política e seu envolvimento com o Direito nas instâncias superiores, para discussões constitucionais, e sua desconsideração para as instâncias inferiores, em que supostamente não haveria discussão do Direito, mas simples aplicação da lei. Em outro livro, “Levando os Direitos à sério”, o autor ia defender que para essas decisões em que a política se manifesta é preciso um juiz especial, o juiz Hércules, dotado de sabedoria e capacidade de entendimento sobre-humano. Dworkin não faz uma oposição razão/Direito e emoção/política, possibilitando uma análise mais complexa do ato de julgar.
Os autores que propõe um direito baseado na racionalidade são inúmeros e em maior número os trabalhos que tratam esse tema. Este trabalho não pretende esgotar o tema, mas apenas expor algumas considerações sobre a questão da racionalidade e sua ligação com o Direito e apresentar como esses padrões interferem na compreensão de algumas sentenças. Somente pela utilização da racionalidade, que tem como grandes instrumentos a explicação sistêmica ou funcional da realidade, não se consegue explicar como essas sentenças aparecem e porque aparecem. Os estudos de Direito contemporaneamente opõem à tradicional atenção à racionalidade, a necessidade de estudar as emoções ou mesmo os sentimentos.
a) Razão e emoção
A exaltação do racionalismo fez com que surgissem estudos valorizando o papel da emoção, em especial no papel dos juízes (interpretação e subsunção). Nesses estudos, a emoção é colocada como um outro elemento que deve ser levado em consideração pelo juiz ao decidir. Assim, a razão deve atuar conjuntamente com a emoção, porém é difícil um estudo que defenda a prevalência da emoção. Nesses estudos, entende-se emoção, a capacidade do juiz de se identificar com o problema a ele apresentado e sua capacidade de tomar outros rumos frente a um caso em que acha injusto o resultado de uma decisão meramente técnica baseada unicamente na letra fria da lei. A emoção do juiz, mesmo nesse caso deve ser contida, recatada, explicitando-se na letra da sentença. Não são todos os casos que a emoção pode aparecer, pois são as decisões com tidas como “racionais” que devem ser predominantes.
A emoção é expressa como uma característica do juiz como homem e como indivíduo. A humanidade é exaltada e a paixão pode ser valorizada como um dos instrumentos de se lutar contra situações de injustiça. Porém, a emoção é tolerada como uma exceção à racionalidade quando ela é uma expressão individual do magistrado. Quando a emoção é utilizada para justificar um movimento de juízes de Direito que lutam contra injustiças, como o “movimento do direito alternativo” não há a mesma receptividade frente aos juristas, estudiosos do direito ou mesmo outros magistrados.
Entender como as decisões são elaboradas pelos magistrados sempre foi tarefa intrigante para os teóricos do Direito. Jerome Frank irá defender, em seu livro “Law and the Modern Mind”, que a decisão é dada baseada na emoção.
“O Direito adquire realidade, não devido à exclusiva interpretação de velhas regras abstratas, mas também pela ação de seres humanos concretos, cuja mente funciona como a dos demais seres humanos. Para ele, um aspecto fundamental na sentença, embora não o único, é a personalidade do juiz, sobre a qual influem a educação geral, a educação jurídica, os valores, os vínculos familiares e pessoais, a posição econômica e social, aexperiência política e jurídica, a opinião política, os traços intelectuais e temperamentais. De acordo com essa visão, seria possível controlar as indevidas influências desses fatores – se forem inconscientes – através da boa disposição que os juízes tiverem para se auto analisarem”[7].
Nos estudos recentes a emoção é ligada a características individuais dos juízes. Estes estudos se utilizam de abordagem tipológica ou mesmo de uma psicologia. Há diversos estudos que pretendem uma abordagem da tipologia webberiana, em que se juízes são classificados de acordo com suas características individuais que passariam em suas sentenças. Essa tipologia geralmente é feita com base nas características individuais de cada juiz, produzindo classes como: juiz-delegado, juiz-executor, juiz-guardião, juiz-político[8]. Outras vezes a classificação está em tipos psicológicos dos juízes, como destaca Altavilla: analítico, sintético, perplexo, generalizador, instintivo, obstinado, misoneísta, desconfiado, escrupuloso, intelectual, emotivo, lógico. David Zimerman apresenta também tipos de juízes, porém baseado em uma abordagem psicanalítica. Zimerman destaca dez tipos de personalidades: personalidade depressiva; paranóide; maníaca; fóbica; obsessivo-compulsiva; esquizóide; psicopática; personalidade falsa (ou como se); e de tipo narcisista[9]. Esses tipos não são estanques e há uma possibilidade de combinação entre eles.
Lídia Prado é autora de um dos livros mais conhecidos no Brasil que trata da questão da emoção e do juiz. A autora apresenta uma discussão sobre a racionalidade no julgar, destacando que o aspecto da emoção não pode ser esquecido. Segundo a autora a consideração da emoção no julgar é uma nova abertura dos estudos de Direito. Nas palavras da autora:
“Esse fenômeno pode ser entendido no contexto de um novo paradigma que, dentro de um padrão democrático de alteridade, mostra um desvio tipológico do self cultural, para dirimir a dissociação positivista e racionalista do passado”[10].
A autora estuda a emoção dos juízes segundo um os estudos junguianos através de arquétipos, porém destaca que as sentenças que pode-se ver a emoção, fazem parte de uma mudança social.
“Já salientei que sentenças genuinamente embasadas nesses valores dadas por magistrados criativos, como prolatores das históricas decisões constantes do Anexo, só podem existir numa sociedade em mudança. O contrário acontece em culturas estacionárias (em que se preservam as características do corpo social) e nas quais os fatores individuais e dotados de originalidade não são assimilados pela psique coletiva. Daí a importância de rápidas transformações da nossa época que, apesar das dificuldades inerentes a mudanças, dão margem ao aparecimento desse novo modelo de magistrado, que surge como constelação de outros aspectos do arquétipo do juiz e que acompanha essas transformações”[11].
A emoção figura então como algo individual, não social e nem histórico. Quando as características pessoais do juiz passam a ser consideradas tão importantes na questão da decisão, fica difícil explicar como nem todas as sentenças de um juiz teriam a mesma posição. A abordagem é interessante, mas não deixa de ser reducionista, ao tentar prever com base na história e características de um magistrado, como esse poderia atuar. Se essa abordagem for aceita, é necessário também aceitar que dado um fator na vida pessoal do magistrado, ou uma característica de sua personalidade, poderia-se prever como esse magistrado atua.
Outros estudiosos do tema utilizam-se da emoção para se opor á racionalidade do Direito, de uma maneira diferente. Sylvio Rocha defende que o magistrado julga com a emoção e a racionalidade é utilizada para medir, quantificar o que foi julgado. A emoção é tida como uma capacidade tão importante quanto à razão, porém pouco desenvolvida e por isso, ocorre a falta de previsibilidade jurídica[12].
O que está presente nesses estudos é uma separação da emoção/sentimento da razão. Esses são tidos como coisas diferentes e que podem atuar conjuntamente ou separadamente. A proposta tomada por esse trabalho é a de que o homem não é um ser que é definido por sua racionalidade, mas pela capacidade de criar, na esteira da obra de Cornelius Castoriadis. Por esse entender, a sentença, como obra humana, não apresenta apenas aspectos racionais, nem é tomada somente pela emoção. A sentença é fruto da criação de um homem de uma sociedade espacialmente e historicamente determinada, que reflete as instituições imaginárias dessa sociedade.
b) Racionalismo e o “humanismo”
Outro fator que não pode ser desconsiderado, quando se trata de um Direito que pretende o racionalismo, é o contexto que essas pretensões são aplicadas. As considerações do positivismo jurídico, instaladas em um país de longa tradição em um Direito voltado para o jusnaturalismo, tem sua aplicação particular. O racionalismo no Direito teve também de negociar com a posição do jusnaturalismo brasileiro, que de certa forma também combatia em alguns casos uma postura do direito como fruto de uma racionalidade tecnicista. Surge entre muitos autores brasileiros que defendiam o jusnaturalismo, uma defesa a uma postura “humanista”, frente ao Direito.
Cultura jurídica brasileira tem uma tradição em uma formação de seus profissionais pautada na busca de uma erudição. Mesmo com a necessidade de especialização e da tecnicidade do Direito, não desaparece o culto a um dito “humanismo”, que se buscava conhecer de todos os saberes um pouco. O “humanismo” pode ser entendido como uma escola, porém utiliza-se o conceito como uma espécie de valor, que se contrapõe à posições burocráticas e racionalizantes no âmbito do Direito.
No humanismo jurídico há mais na erudição do que do saber. A erudição tem como objetivo diferenciar profissionais do direito ligados a um alto e baixo escalão social. A aplicação da técnica e da letra fria da lei, sempre foi no Brasil, relacionada às posições mais baixas da burocracia estatal. A possibilidade de ir além da lei ou mesmo contra ela, somente era e ainda é possível de ser realizada por uma elite que ligada ao Direito, que pode ser permitir à criação. A magistratura antes ligada às elites da sociedade brasileira passou a ser exercida não só pelas elites, mas por todo àquele que conseguisse passar em um concurso público.
O trabalho do magistrado antes ligado a um papel de consultor e apaziguador social é transformado, devido à grande demanda de ações. As sentenças passam a ser produzidas em série em um ritmo quase industrial, ficando o juiz restrito ao seu papel de “máquina de fazer sentença”, como aponta Weber.
“(…) No Estado burocrático com suas leis racionais, o juiz é algo como um autômato de parágrafos, no qual se enfia em cima a documentação mais os custos e as taxas para que solte em baixo a sentença mais motivação razoavelmente convincente, isto é, cujo funcionamento, de maneira geral é calculável”[13].
O magistrado se torna o último operário da máquina do Direito e percebe a alienação de seu trabalho. O trabalho maçante de uma máquina de fazer sentença, especialmente dos juízes de primeira instância, faz com que os magistrados tentem retomar o status de antes através de uma revalorização do “humanismo” e em uma tentativa de se afastar a extrema racionalização.
3. Análise das sentenças
O primeiro caso destacado é a sentença em que um juiz de primeira instância do âmbito penal, diante de uma situação em que duas pessoas roubam duas melancias, resolve não aplicar a pena destinada ao furto. Trata-se de um caso em que a justificativa para aplicar a pena de detenção, que é a tipificada para o roubo, seria possível na própria legislação. Valendo-se de um mecanismo que a própria doutrina assegura o juiz poderia justificar que o caso é de furto de coisa de pequeno valor, e que por isso não justificaria o acionamento do Estado e sua cara máquina administrativa. O magistrado poderia se valer de outra justificativa aceita pela tradição baseando a não aplicação da pena de detenção no caso, uma vez que se tratava de furto famélico. Essas e outras justificativas poderiam ser utilizadas pelo magistrado, porém todas elas implicariam na afirmação que ocorreu o furto, que o Estado tipificou o furto como conduta não querida e que devido o pouco valor da coisa furtada, não se aplicaria a pena. O magistrado sentenciando de uma maneira usual, afirmaria a existência do crime, mas não aplicaria a pena.
O que o magistrado desta sentença faz é não apresentar uma justificativa, deixando ao leitor a escolha da fundamentação. Com isso, o juiz isenta-se de justificar sua sentença, e ao fazer isso, torna a sentença nula, uma vez que a fundamentação é parte fundamental da sentença. Para a doutrina tradicional uma sentença sem fundamentação é como se não existisse, como se nunca tivesse sido dada. O juiz conhece essa regra de que a sentença sem fundamentação é nula, mas mesmo assim, não aponta uma justificativa legal.
Outro ponto que faz com que essa sentença se torne estranha é que algumas das ditas fundamentações elencadas pelo magistrado não são fundamentações legais. As primeiras fundamentações do porque não deter os homens que furtaram melancias, é dada nos ensinamentos de líderes religiosos como: Jesus Cristo, Buda e Ghandi. É interessante o fato de que a benevolência com os outros seres humanos não seja justificada em apenas um líder religioso, ou mesmo em uma religião. O que o magistrado aponta é para os ensinamentos dos líderes, abarcando com isso gama de religiões, seitas e dissidências religiosas. Ao apontar para líderes de diferentes religiões o magistrado não assume o ponto de vista de uma delas e dá a entender que o sentimento de caritas é universal. Não é também menos relevante que o fundamento não seja o de uma ética ou de uma moral. Em um outro momento na história brasileira a fundamentação em valores éticos ou em uma ética seria perfeitamente justificável, porém na dificuldade de se estabelecer o que são e quais são essas regras ética, prefere-se outra argumentação.
O magistrado aponta algumas fundamentações legais, porém em momento algum as desenvolve. Aponta que poderia fundamentar utilizando-se do: Direito natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico e na injustiça da prisão. Esses pontos destacados pelo magistrado demonstram o conhecimento de diversas fundamentações que o juiz poderia elaborar, ou seja, seu conhecimento jurídico. Porém, nenhum deles é desenvolvido, e isso é feito deliberadamente, ficando clara a posição na seguinte frase: “Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir”. O desprezo à técnica é deliberado, a argumentação poderia ser feita, mas não é. O magistrado conhece as regras de como se fazer uma sentença, conhece o Direito e sabe argumentar, mas não o faz.
A questão fundamental aqui é porque o magistrado despreza a técnica? Parece que a resposta para essa questão está na indignação do magistrado diante do fato de ter de julgar um caso, que considera que não deveria ter chegado ao judiciário. Parece também estar na recusa de decidir sobre coisas miúdas, sem muita importância social, fazendo com que seu status de conciliador e apaziguador social também tenha se restringido ao miúdo, ao sem importância. Contrariar ao direito positivado em uma sentença não usual como essa é uma forma de dizer, pois a sentença é um dito, que há que o direito aplicado ao caso trará injustiça e também de dizer que o magistrado também se sente injustiçado ao ser obrigado a decidir sobre tal questão, pois entende que seu ofício supera o de decidir sobre o que acha um irrelevante jurídico. É quase impossível saber as reais razões para tomar tal decisão, mesmo pelo próprio juiz, e isso pode requerer estudos que fogem desse artigo, como uma abordagem psicanalítica. A questão que o artigo se coloca é porque essa posição tomada pelos juízes é um recorrente na sociedade atual. Não se trata de uma posição individual de um juiz, mas de diversos juízes, permitindo, portanto, um estudo sociológico do Direito.
As próximas duas sentenças selecionadas têm em comum o fato de serem redigidas em versos e não em prosa, como usualmente os magistrados costumam fazer. As sentenças são formalmente perfeitas, ou seja, contém tudo o que a legislação e a jurisprudência entendem que uma sentença deveria ter. Os requisitos formais de uma sentença são de acordo com o artigo 458 do Código de processo civil: relatório, fundamentação e dispositivo. Quanto à fundamentação existe expressa regulamentação na Constituição Federal em seu artigo 93 inciso IX para que o magistrado explicite as razões de decidir. Há ainda o requisito de a sentença ser escrita em português formal (vernáculo), porém não há nenhuma recomendação de ser necessariamente escrita em prosa. É nesse vácuo legislativo que alguns magistrados elaboram sentenças em verso.
As sentenças em verso são mais difíceis na sua elaboração, pois além dos requisitos formais da sentença, devem-se observar os recursos estilísticos próprios da poesia. A pergunta para esse caso é: porque fazer a sentença em verso? Uma vez que sua elaboração é ainda mais trabalhosa e afronta a tradição da sentença em prosa, deve haver outros motivos para empreitada, que vai muito além da funcionalidade.
A primeira sentença em verso tem como caso o julgamento de um homem que furta uma galinha. Trata-se de crime de furto, porém à semelhança do caso das melancias acima descrito, também é um crime em que o valor da coisa furtada não é vultoso. O caso tem sua graça, uma vez que a expressão “ladrão de galinhas” é utilizada quando a pessoa que comete o crime, não é propriamente um profissional do crime, que furta ou rouba coisas de pequeno valor. Essa é uma das sentenças que teve maior repercussão entre o público leigo e especializado em Direito, tendo sido inclusive traduzida para o espanhol.
O juiz-poeta em sua sentença destaca o fato da pouca expressão econômica do furto, da preocupação do Estado de prender um “ladrão de galinhas” quando não se tem uma atitude semelhante com políticos corruptos. A relação do criminoso ingênuo com os políticos corruptos é feita nessa sentença, mas também pode ser encontrada na sentença do caso das melancias. O magistrado pretende que o “ladrão de galinhas” não cometa mais esse crime, e sugere que se quiser se tornar um criminoso mude-se para Brasília. Com isso, pode-se entender que o magistrado não confere ao “ladrão de galinhas” o título de criminoso, posição que é tida também por grande parte da sociedade brasileira. O próprio “ladrão de galinhas” não se sente criminoso, pois quando preso pelo delegado, espanta-se que roubar galinhas seja crime em um país que tolera a corrupção dos políticos. A questão é complexa e está longe de ser aqui respondida, porém é importante pelo menos esboçar o problema, já que o argumento está presente na fala do réu e do magistrado.
A utilização do argumento dos políticos corruptos é porque estes não cumprem a lei, mas nem por isso costumam receber e cumprir sentenças por seus crimes. A questão surge aplicação da lei é fundamental nesse caso, pois o que se argumenta é que a lei não é aplicada de forma igual para todos. Na dificuldade de obrigar os corruptos de cumprir a leis, muitos querem que se abra também uma exceção na aplicação das leis para aqueles que não são ricos ou que tem poucos privilégios. A lei abstrata considera todos como iguais quando cometem um crime, porém na aplicação da letra da lei, há uma diferenciação que leva em conta diversas características daquele que cometeu o crime, dentre elas: status social, profissão, posses e círculo social.
Uma das lutas da Revolução Francesa foi busca pela igualdade jurídica das pessoas e por uma aplicação da lei que não considerasse o status social. O positivismo jurídico incorpora a igualdade na aplicação da lei, ao desconsiderar características sociais daquele que praticou o crime. O jusnaturalismo nem sempre seguia essa regra, preferindo levar em conta as relações do criminoso com a sociedade e em muitos casos, não aplicar a lei ou mesmo aplicá-la com brandura.
A diferenciação da aplicação da lei é expressa pelo próprio magistrado na sentença, no trecho que repetindo um ditado popular, diz: “Pois todos sabem que a lei
É prá pobre, preto e puta…”. A lei terá uma aplicação mais fiel a letra da lei para as pessoas de menos status social e que tenham pouco dinheiro. Os três “p” a que o ditado se refere, refletem exatamente àquelas pessoas que o Estado não faz concessões para a aplicação da lei. A indignação do magistrado diante da diferenciação da aplicação da lei é clara durante sua sentença, porém o magistrado aplica a lei, mesmo considerando-a injusta. A aplicação da lei pelo juiz somente não tem um resultado tão injusto, pois o caso permite que o condenado possa ir para casa em liberdade condicional.
Volta-se a discussão a respeito do motivo da sentença em poesia. A forma em poesia não seria a mais funcional, porém não se pode deixar de lembrar que é uma forma lúdica e prazerosa para quem gosta da arte. O lúdico muitas vezes é esquecido em um mundo do trabalho que as explicações sobre a produção incorrem na funcionalidade. A sentença em poesia pode ser um caminho mais longo, não tão claro para os leitores, porém é altamente lúdico. A funcionalidade não consegue explicar porque tomar o caminho da poesia, se o da prosa seria mais rápido, claro e sem discussões. O lúdico é um fator importante para que as pessoas sigam trabalhando, especialmente em trabalhos repetitivos e monótonos. O magistrado reduzido a categoria de “entregador de sentenças”, em um trabalho rotinizado, burocratizado e sem possibilidades de muitas criações, vê na forma da sentença uma maneira de expressar seu oficio não como uma máquina, mas como uma pessoa.
A uma sentença escrita em poesia também permite a manifestação das emoções de uma forma diferente da prosa, em que há maior utilização de uma construção argumentativa. Grande parte das poesias apresenta uma expressão das emoções, porém isso não é exigência para uma poesia. A utilização do recurso da poesia pelo juiz-poeta permite que esse tenha uma maior proximidade com o caso analisado, expressando seus sentimentos ao sentenciar. As emoções não se restringem à compaixão, mas podem ser até raiva, muitas vezes, a ironia.
A poesia também pode ser expressão do jocoso e esse parece ser o caso da terceira sentença escolhida. Esta sentença também é dada na forma de poesia, porém os versos tornam a questão discutida jocosa. A sentença trata de um suposto caso de dano moral decorrente de calúnia e os versos elaborados de uma maneira simples, dão a impressão que a questão discutida é menos importante. A ironia do magistrado ao se utilizar dos versos é quase evidente, mas não explicita. Esse efeito dificilmente poderia ser conseguido em um texto em prosa.
Não se deve pensar que a escrita de peças processuais em poesia não é uma coisa corriqueira, pois é possível encontrar peças de advogados, magistrados e promotores em abundância, escritas em forma de poesia. Poder-se-ia falar de uma ‘Justiça em versinhos’. A sentença-poesia que tratava de danos morais foi elaborada por um magistrado que se inspirou nas peças processuais do pai, um advogado que gostava de versar. A forma escolhida aqui pelo magistrado também tem o tom de homenagem, porém isso somente pode ser entendido pela declaração do próprio magistrado, que esclareceu alguns dos motivos de ter escolhido a poesia para sentenciar.
A quarta sentença escolhida trata-se de uma apelação criminal em que é discutido um caso de atentado violento ao pudor. Esta decisão judicial tem como fato interessante ser uma decisão de segundo grau, portanto uma decisão que não é monocrática, não apresenta a posição de um só magistrado. A fundamentação é dada principalmente com base em argumentos morais.
O caso trata de um homem que se diz vítima de atentado violento ao pudor, impetrado por outro homem que o convidou a participar de um sexo grupal, oferecendo-lhe drogas e a possibilidade de desfrutar de prazeres sexuais de sua mulher. O homem que propõe a ação se diz vítima do crime, pois pensava em desfrutar da companhia da mulher, tão somente. A questão se torna complexa, pois nesse caso não houve resistência da vítima supostamente devido a ingestão de drogas. Porém, há uma discussão sobre o consentimento do ato e não tendo provas suficientes, não se condena o acusado. O consentimento é uma das questões principais, pois para a vítima o consentimento não foi dado, porém o magistrado entendeu que o consentimento foi dado pelo autor da ação ao consentir em participar do sexo grupal. Nas palavras do magistrado: “Esse tipo de conchavo concupiscente, em razão de sua previsibilidade e consentimento prévio, afasta as figuras do dolo e da coação”.
O autor da ação é tido pelo magistrado como imoral, não podendo por isso alegar que foi vítima de um crime. A imoralidade do autor, imputada pelo magistrado, é dada pelo seu consentimento à participação do dito “bacanal”. Porém, não há nada na legislação que impede que o imoral seja vitima de crime. Esta decisão aponta para o fato de que a divisão bem traçada pelo positivismo jurídico entre Direito e Moral, não é tão fácil de ser estabelecida. Há casos de julgamentos com base no direito e contrários à moral, e outros que tem base na moral e contrariam o direito posto. Estes últimos são tidos pelas regras do positivismo jurídico como um não-Direito. Porém, o julgamento foi feito com base em regras sociais amplamente aceitas por uma parte da sociedade brasileira.
A posição tomada pelo magistrado a respeito do caso a ele reportado foi a de manter a decisão de primeira instância. O que torna a “decisão estranha” é ter seu fundamento fora da esfera do Direito. A utilização de padrões morais é complicada na atualidade, pois não se pode falar de uma moral, mas sim de morais existentes e muitas vezes conflitantes. O grande problema é formado quando se utiliza uma dessas morais, para afastar uma situação protegida juridicamente. A postura conservadora do magistrado torna-se evidente na sentença e sua indignação com a conduta da suposta vítima fica evidente em suas considerações: “A prática de sexo grupal é ato que agride a moral e os costumes minimamente civilizados” ou ainda “Diante de um ato induvidosamente imoral, mas que não configura o crime noticiado na denúncia, não pode dizer-se vítima de atentado violento ao pudor aquele que ao final da orgia viu-se alvo passivo do ato sexual”. Há uma grande diferença entre defender posturas conservadoras, que é permitido a todos, e impô-las em uma decisão, afastando o direito positivado. Assumir o status daquele que pode medir na balança os Direitos, não deixa de ser um dos papéis que os magistrados reinvidicam, frente a um judiciário rotinizado.
A quinta sentença escolhida tem semelhança com a quarta uma vez que também afasta um direito, com base em considerações pessoais do magistrado. Trata-se de uma discussão sobre direito de imagem e dano moral, decorrente da publicação de uma foto de uma atriz brasileira famosa, feita para uma revista masculina, que foi publicada em um jornal de grande circulação sem autorização da atriz. Em primeira instância a ação foi considerada procedente inclusive para os danos morais. Em segunda instância a discussão ocorreu exatamente por causa dos danos morais, e destaca-se como “estranha” a decisão de um dos magistrados. A fundamentação para a inexistência do dano moral não é dada por um argumento jurídico. O magistrado argumenta que a autora da ação é uma mulher bonita e somente seria necessário o dano moral se esta fosse feia e a publicação tivesse causado a esta humilhação. Diz o magistrado:
“Só mulher feia pode se sentir humilhada, constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou em revistas. As bonitas, não. Fosse a autora u’a mulher feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação da sua fotografia desnuda – ou quase – em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação, constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar – aí sim – seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o mal sofrido. Tratando-se, porém, de uma das mulheres mais lindas do Brasil, nada justifica pedido dessa natureza, exatamente pela inexistência, aqui, de dano moral a ser indenizado”.
A relação que o magistrado faz entre a beleza da autora e a possibilidade de se sentir humilhada e constrangida, não pode ser juridicamente sustentada. O voto do magistrado foi vencido, porém sua decisão não deixou de ter repercussão. A decisão visa afastar a subsunção do caso concreto à previsão legal de indenização por dano moral. Porém, nesta decisão há como a analisada acima a forte presença da posição pessoal do juiz no caso concreto. A autora da ação se diz humilhada e o magistrado diz que a humilhação não pode acontecer com uma mulher bonita.
O positivismo jurídico ao focar as decisões dos magistrados na lei permitiu com que as posições pessoais dos magistrados nas sentenças fossem consideravelmente diminuídas. As decisões eram tidas como racionais quando podiam ser deduzidas através de um silogismo lógico simples, entre o caso descrito e a previsão legislativa. Em muitos casos a possibilidade de participação com considerações pessoais do magistrado possibilitava regular injustiças geradas pela aplicação da lei pura, porém em outros casos isso era o que gerava muitas injustiças, possibilitando sentenças favoráveis à amigos e desfavoráveis a desafetos, ou mesmo privilegiando causas que fossem do agrado das convicções do magistrado. Com a revisão e discussão de muitos dos paradigmas do positivismo jurídico, coloca-se em questão o engessamento do magistrado pela lei, porém dificilmente se discute a possibilidade de injustiças, quando o fiel da balança não é a legislação.
A sexta sentença escolhida é uma sentença em que a ampla repercussão do caso não se deu por causa da decisão, mas sim pelos argumentos utilizados pelo juiz e principalmente pela extrapolação do papel do magistrado. Neste caso o magistrado não somente foi conselheiro, julgando com base em regras morais, mas também mostrou-se conhecedor de futebol. A sentença ficou conhecida pelo nome de seu autor o jogador de futebol de um time paulista chamado Rycharlisson. Tamanha a repercussão o caso teve que diante da manifestação de vários setores da sociedade, o magistrado que julgou o caso foi inicialmente afastado temporariamente de seu cargo. Porém, apesar da gravidade das palavras na sentença, somente foi apenado pelo órgão especial do Tribunal de Justiça com a pena de censura, por “impropriedade absoluta de linguagem em sentença”. O comportamento do juiz não foi apenado como homofóbico, pois ainda se encontra em andamento o projeto de lei para transformação dessa conduta em crime.
O caso Rycharlisson gira em torno da declaração de um dirigente de futebol sobre a homossexualidade de um jogador. Sobre esse tema a decisão do magistrado tocou rapidamente, simplesmente apontando que a queixa-crime não tinha razões para prosseguir uma vez que não o magistrado não viu nenhum ataque. O magistrado passa em seguida a apresentar suas opiniões sobre homossexuais como jogadores de futebol, e diz: “Se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados…” e completa em seguida: “futebol é jogo viril, varonil, não homossexual”.
A postura homofóbica é bem conhecida nos campos de futebol, porém essa vem sendo repelida pela sociedade em geral, que passou a coibir a discriminação direta e clara ao homossexual. Ainda não é possível falar-se em uma aceitação ou mesmo em um reconhecimento como iguais, porém defender uma conduta homofóbica está cada vez mais difícil, pois não há respaldo social completo, graças a muitas lutas por não discriminação. O magistrado sabe que sua postura pode ser interpretada como homofóbica, por isso respalda-se no argumento que não está sendo discriminatório. O magistrado, porém, tem ciência da discriminação que sofrem os homossexuais, pois chega a comparar a situação com a discriminação dos negros e fala da não necessidade de uma política de cotas para homossexuais.
O magistrado defende a discriminação, no seguinte trecho: “Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si”. Afirma ainda que a homossexualidade deve ser contida pela sociedade, nas suas palavras: “situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida..”. O magistrado termina a sentença destacando que é assim que pensa, e por assim pensar: diz. A questão é que a sentença não é formulada para ser a expressão das convicções do juiz como pessoa, mas sim uma decisão sobre um Direito.
O que torna essa sentença “estranha” não é somente o comportamento homofóbico do magistrado, mas a tentativa do juiz de se mostrar um conhecedor do futebol. O magistrado demonstra um conhecimento histórico do futebol, dando nomes de jogadores que fizeram parte da seleção brasileira de 1970, nomeia grandes jogadores como Pelé e outros de diferentes times brasileiros do passado. O magistrado também se mostra conhecedor dos times, ao denominá-los fazendo referência aos bichos símbolos dos times: macaca e peixe (Ponte Preta e Santos Futebol Clube). O magistrado tem a intenção de ser tido como um “boleiro”, palavra que utiliza inclusive em sua sentença. A própria linguagem utilizada é a de “boleiro”, o que contrasta com o que se espera de um juiz que sabe utilizar bem do vernáculo e das palavras técnicas do Direito. O estranhamento com a linguagem utilizada ainda se dá pela utilização de quadras de versos populares, que encerram a sentença.
Esta sentença tem como particular a necessidade do juiz em se mostrar entendido no assunto sobre o qual irá decidir. Este ponto pode passar despercebido, devido a outras questões da sentença, mas não pode ser deixado de lado, uma vez que aponta um aspecto importante: o juiz como um especialista. As sentenças estão cada dia mais técnicas, os assuntos mais complexos e para isso em muitas sentenças é necessário a presença de técnicos sobre assuntos específicos. A presença de peritos em diversas áreas, deliberando sobre os assuntos muito técnicos, faz com que o papel do juiz como julgador fique diminuído, uma vez que o julgamento propriamente dito, muitas vezes, já foi realizado pelo técnico. Sem poder opinar sobre o assunto específico discutido em uma sentença, o juiz acaba por acompanhar a prévia decisão do perito que analisou o caso.
No judiciário atualmente há uma imensa gama de profissionais que assessoram os juízes em suas sentenças, e que têm um papel decisório fundamental, muitas vezes sem se dar conta. Diante da complexidade dos casos discutidos nas sentenças, o magistrado se sente impotente ao não poder apreciar da decisão e desconfiado ao ter de se apoiar em um parecer que irá praticamente fundamentar sua decisão. Perante a esse panorama não é irrelevante o fato do magistrado, por conhecer tecnicamente a questão, resolva apresentar suas considerações. Ao mostrar que conhece de um assunto específico e técnico, o magistrado dispensa a presença de um perito especializado e chama para si novamente todo o poder em decidir.
Muitas vezes ao se deparar com sentenças denominadas aqui de “estranhas” os estudantes de direito e alguns juristas atribuem a não adequação dessas sentenças ao padrão tradicional, à falta de preparo técnico do magistrado. Porém, como pode ser visto pelas sentenças acima, esse não parece ser o caso de nenhuma delas. A discrepância do padrão tradicional geralmente é deliberada e incidental, uma vez que nem todas as sentenças desses magistrados podem ser ditas como “estranhas”. Todos os magistrados citados parecem ter amplo conhecimento do Direito e sabem as formalidades de uma sentença. Assim, as sentenças analisadas não são fruto de despreparo, mas sim de demonstrações da criação dos magistrados em um mundo jurídico rotinizado.
A sétima sentença escolhida é a única que não foi proferida por um juiz concursado, porém se assemelha em muitos aspectos as outras sentenças aqui analisadas. É um projeto de sentença de um juiz leigo, que foi homologado pelo juiz togado, e tem como particularidade a utilização da ironia, fundamentos extra-legais e o aconselhamento ao autor da ação. O papel de conselheiro é muito comum em diversas sentenças, porém o que chama a atenção nesse caso é a questão discutida. O autor da ação vendo-se traído por sua mulher requer uma indenização por danos morais do amante. O autor da ação depois do fato passou a sofrer chacota por ser “corno assumido”.
Primeiramente o juiz leigo baseia seu projeto de sentença nas legislações existentes, para depois construir seus argumentos com base em considerações antropológicas e em textos literários como Madame Bovary de Flaubert e Dom Casmurro de Machado de Assis. O texto do juiz leigo foge de uma análise dita “racional” do caso, para um texto rico em detalhes, demonstrando o conhecimento do juiz sobre a luta dos direitos da mulher e do feminismo. A postura do juiz é também inovadora, que demonstra uma mudança na sociedade frente aos relacionamentos extraconjugais. O crime de adultério deixou de existir, trazendo outros rumos para se tratar a questão no Direito. O juiz leigo vai além de não conceder o direito de indenização por danos morais, imputando ao próprio autor a culpa por sua situação de “corno”. O autor da ação que se entende vítima do amante da mulher, é tido pelo juiz como culpado, por ter levado a mulher aos braços do amante. Nas palavras do juiz:
“Daí um dia o marido relapso descobre o que outro teve a sua mulher e quer matá-lo – ou seja, aquele que tirou sua dignidade de marido, de posseiro e o transformou num solene corno! quer ´lavar a honra´ num duelo de socos e agressões, isso nos séculos passados, porém hoje acabam buscando o Poder Judiciário para resolver suas falhas e frustrações pessoais. Mas se esquece que ele jogou sua mulher nos braços de outro que soube ouvi-la, acarinhá-la e fez renascer o viço, a alegria, a juventude e, que, principalmente, não a coagiu, não a violentou, não exigiu o ´debitum conjugale´ e, sim, a levou pela mão por caminhos floridos talvez nunca percorridos”.
A ironia do juiz está presente, em especial, na expressão “solene corno”, mas também em diversos momentos ao longo da sentença. Uma sentença padrão dificilmente apresenta a ironia como um elemento forte, se atendo somente a análise de fatos e com opiniões técnicas ou pouco pessoais dos magistrados. É comum o autor de uma ação, ou mesmo as testemunhas ou o réu, participarem do processo judiciário com alguma solenidade, respeitando as regras apresentadas e a figura do magistrado como um terceiro que irá dizer o direito. O magistrado por outro lado, geralmente entende que a questão levada ao judiciário, mesmo que absurda ou pouco relevante do seu ponto de vista, deve ser encarada com seriedade, uma vez que pessoas entenderam que sua decisão era importante e necessária ao caso. A posição do magistrado de ironizar a postura ou o caso levado por alguma das partes é tida como desrespeitosa. Porém, em outros casos a postura do magistrado que utiliza da ironia em suas sentenças é vista como uma demonstração da humanidade do juiz. Ao lidar com uma questão jocosa utilizando-se de ironia, o magistrado faz o que grande parte da sociedade também faria naquele mesmo caso.
A oitava sentença destacada pode ser tida como estranha pelo sarcasmo e também pela efetiva participação do magistrado no aconselhamento ao réu na ação. Trata-se de um caso de danos morais na justiça do trabalho, devido a constrangimentos gerados pelo empregador, ao mostrar seu pênis em público. A situação bizarra e o comportamento desmedido do empregado fazem com que o magistrado utilize de seu espaço de fala, que é a sentença, para inferiorizar o empregador.
O magistrado fica visivelmente indignado com o fato e condena o empregador a uma indenização. Isso sem antes apontar que o empregador seria homossexual devido à sua conduta. O objetivo do magistrado não parece ser discriminatório, uma vez que indica que não visa essa postura, mas vexatório ao empregador. A conduta tida pelo empregador como sinônimo de sua força, poder e masculinidade é desclassificada pelo magistrado como uma conduta doentia e homossexual. Atribuir a pecha de ser homossexual à um homem que inferioriza seus empregados é fazer com que ele também se sinta inferiorizado. Isso somente pode ser entendido dentro do contexto de uma sociedade que ainda entende que o homossexual é inferior ao heterossexual e o discrimina. Assim, diz o magistrado sobre a conduta do empregador em sua sentença:
“Dizem os psicólogos e terapeutas que o exibicionista é aquele que necessita periodicamente confirmar sua masculinidade, já que tem dúvida sobre sua opção sexual”.
O papel de conselheiro pessoal adotado pelo magistrado também se encontra aqui presente. Na ausência do empregador na audiência, o magistrado se vale da sentença para poder dar conselhos ao empregador para que conduta não mais se repita. Nesse sentido são as palavras do magistrado:
“Espero que assim o Sr. R.G. reflita bastante antes de exibir novamente seu pênis aos empregados, pois se a cada espetáculo desses tiver que pagar indenização igual ou maior, provavelmente em pouco tempo estará na ruína. Então, ele deve encontrar outros meios de “relaxar o ambiente” e guardar sua “hérnia” dentro da calça (lugar, por sinal, de onde não deveria sair durante o expediente de trabalho, exceto para atender às necessidades fisiológicas inafastáveis), pois no mínimo é mais econômico”.
A ironia também está presente nessa sentença e pode ser vista quando o magistrado se questiona em tom irônico, se a prática do empregador mostrar o pênis a seus empregados seria uma nova forma de administração. Nas palavras do magistrado:
“ J.E. (fl. 69), testemunha da própria empresa, confirmou que já viu o Sr. J.P. discutindo com empregados que chegavam atrasados ou faltavam ao serviço e que, em relação ao titular da empresa, que quando ele “ficava excitado diante dos empregados, mostrava seu órgão sexual a todos; que isso era feito para descontrair o ambiente e o depoente não vê nisso nada demais”. Muito interessante…… Agora temos uma nova forma de administração e gestão estratégica das empresas, qual seja, a do chefe mostrar suas partes íntimas para todos – e realmente desconheço com que objetivo.”.
A ironia frente ao caso tem direta relação com o absurdo da situação e principalmente da justificativa: descontrair o ambiente de trabalho. Ao final de suas considerações o magistrado também se utiliza da ironia, dizendo: “Por outro lado, a condenação também poderá se revelar um poderoso impotente sexual, o que também atende aos reclames da justiça, ainda que por via reflexa.” Imputar a uma sentença ter efeitos de impotente sexual é no mínimo uma situação estranha, mas que mostra a perspicácia e indignação do magistrado frente a um caso bizarro. A sentença não tem como condenação apenas o pagamento do dano moral, mas é também vexatória para o empregador. Talvez esta seja a maior condenação da sentença. Longe de estar prevista nos códices, a sentença que humilha o humilhador é a sentença do leigo e a que aproxima o magistrado do homem comum.
A nona sentença a ser analisada tem como particular a demonstração da ira do magistrado e a mentira do autor da ação. Trata-se de uma questão sobre a jornada de trabalho no qual o autor da ação alega que laborava 24 horas por dia sem intervalo para descanso, refeição ou mesmo para dormir. Como a parte contrária não compareceu à audiência, o comum seria se presumir que o falou o autor é verdade. Diante dessa presunção relativa, geralmente o magistrado na ausência de outras provas, acaba condenando a reclamada. Porém, nesse caso o magistrado demonstra sua indignação, e acaba não condenando a reclamada por ser a declaração do autor da ação absurda. O magistrado utiliza como epígrafe de sua sentença, e utilizá-la não é usual, uma consideração de um filósofo alemão sobre o tema.
O magistrado não reconhece a declaração do autor como verdadeira por ela ser improvável, ou melhor, impossível para um humano. Por conter uma mentira acintosa o depoimento do autor não é tido como verdadeiro pelo juiz, que diz: “A revelia não confirmaria que o reclamante trabalhava voando por sobre o telhado da empresa, como também não confirmaria que ele recepcionava extraterrestres, quando das visitas regulares dos marcianos à Terra”. Mais uma vez a ironia está presente na sentença, porém dessa vez não na forma de um deboche jocoso, mas de ira frente às declarações mentirosas do autor.
Mentir em juízo não é um fato estranho ou mesmo incomum entre as partes e as testemunhas, porém há um pequeno desestímulo para que isso aconteça com menos freqüência: a litigância de má-fé. O magistrado entende que a mentira do autor é deslealdade processual e que a “sentença judicial tem caráter e função públicos, não se prestando a ratificar absurdos”. O magistrado não se utiliza da presunção de verdade dos fatos alegados pelo autor, mesmo com a revelia da parte contrária, pois considera que o interesse individual do autor não pode estar acima do interesse público da verdade. Sobre isso diz:
“O processo não é um jogo de pega-pega, é instrumento de distribuição da justiça e de fixação dos parâmetros da cidadania e isto está acima do interesse privado de defesa do reclamado. Não pode o Judiciário reconhecer o impossível, sob pena de desrespeito à sociedade”.
É importante ressaltar a diferença entre se afirmar um absurdo ou algo improvável e se afirmar uma inverdade, pois no caso da primeira é muito provável que quase todos detectem que se falta com a verdade, sendo isso mais difícil de averiguar quando somente se afirma uma inverdade. O papel do juiz em um processo é sempre tentar alcançar o que realmente aconteceu, porém em grande parte dos casos isso não é possível. Na doutrina foram criados conceitos para diferenciar o que chamam de verdade real, daquilo que se consegue no processo e o juiz entende que é verdade, a verdade processual. Muitas vezes o magistrado pode não alcançar a verdade real, porém não pode ratificar a verdade processual que é um absurdo.
O magistrado não condena o autor da ação por mentir em juízo, mas sim por querer que absurdos se tornem verdade através da chancela de uma sentença judicial. Nesse caso a mentira é castigada e isso é estranho em um processo judicial, em que muitas vezes os participantes do processo mentem ou se calam sobre a verdade e não há grandes conseqüências para esses atos. A mentira é vista muitas vezes como uma afronta a regras da moral e em outros casos como uma afronta ao Direito, porém nesses casos é preciso de uma tipificação legal proibindo tais condutas ou exigindo uma postura verdadeira. A ação de mentir sobre o horário de trabalho não é considerada ilícita no seu conteúdo, mas é ilícita porque sendo absurda prejudica o processo.
A ira do magistrado pode ser vista na condenação à litigância de má-fé, que é muito rara nos processos trabalhistas, em especial quando esta é aplicada ao reclamante que geralmente é o empregado. Tido como parte vulnerável no âmbito do trabalho, o Direito do trabalho criou uma série de mecanismos para a proteção do empregado e alguns admitem essa situação de hipossuficiência inclusive na relação processual. Não obstante, nem sempre o empregado que entra com ação tem realmente os direitos que alega. Porém, essa é uma situação rara em um país com uma grande proteção legal na codificação e por outro lado um baixo cumprimento dessa legislação, com o estabelecimento de práticas informais socialmente reconhecidas que estão na contra-mão da legislação. O juiz trabalhista torna-se muitas vezes um efetivador de direitos que deveriam ser seguidos sem necessidade da constante coerção judicial. A sentença analisada é estranha uma vez que não segue o caminho mais fácil de proteção do empregado, independente das causas. O magistrado analisando o caso concreto, resolve ir além da decisão comum, se indignando com a mentira e buscando a justiça.
A questão das sentenças tidas como estranhas vai além do Direito brasileiro, existindo em diversos lugares. Os Estados Unidos da América tido por muitos juristas brasileiros como modelo de justiça a ser implantada, devido a sua rapidez, também é famoso por suas sentenças “estranhas”. Um dos tipos de sentença estranha nos EUA é a sentença que tem como pena causar a vergonha ao réu, as chamadas shaming punishments. Apesar de muitas das penas não terem qualquer precedente, uma vez que cada pena é dada com base em características do réu e do crime visando envergonhá-lo, essas sentenças não são tidas como abuso do direito do magistrado[14].
Como o juiz norte americano tem maior margem de julgar devido à própria estrutura do Direito da common law, dificilmente há sentenças estranhas como no Brasil. Aqui há o predomínio das sentenças que contrariam a lei positivada e que adotam regras das normas morais. O que se pode verificar que a presença de sentenças que estão na contra-mão das sentenças mais comuns, fazem parte de um fenômeno jurídico a ser estudado, pois elas podem dizer coisas importantes sobre como o Direito é entendido e praticado. Cada país terá sua particularidade nessas sentenças, o que pode indicar que essas sentenças refletem posições jurídicas e valores que são escamoteados pela grande parte do Direito formal e pela teoria do Direito.
4. Direito e criação
Segundo Castoriadis o homem não se diferencia dos outros animais pela racionalidade, mas pela capacidade de criação. Essa criação é possível pelo imaginário radical, que permite o surgimento da subjetividade dos homens e faz com que o homem vá além daquilo que é biológico. O imaginário radical cria o novo, logo é uma criação propriamente dita, pois ela não surge a partir de nada anterior. Isso não quer dizer que a criação não dependa de coisas e conhecimentos criados antes, mas quer dizer que ela não é determinada. O imaginário é um fluxo de representação, que é inconsciente e forma aquilo que Castoriadis chama de “magmas”.
Logo, o conceito de imaginário para o autor não tem relação com imaginação, ou seja, imagem de algo que não é real. O imaginário é representação, que é fruto da psique. A psique do homem tem sua parte socializada, que permite levar o homem além de seus instintos animais. A socialização da psique do homem é um processo que leva o homem do seu fechamento para a incorporação de valores de sua sociedade. Castoriadis não opõe homem e sociedade, como muitos autores, mas sim, psique e sociedade. Isso porque, o homem é sociedade e a sociedade faz o homem.
Assim, pode-se dizer que o Direito novo, tem por base as tradições e as leis, mas que a criação das sentenças não tem por base nenhuma outra criação. O homem que cria essas sentenças “estranhas” é o magistrado, que se utilizando do imaginário radical, elabora representações. A criação está no homem e não na sociedade e é essa criação que pode alterar o que é instituído pela sociedade. O Direito instituído pode ser transformado em um outro direito, por meio da criação. Uma vez que a capacidade de criar é o que define o homem, não é estranho que magistrados apresentem sentenças em que há criação, pois isso é o que os pode identificar como humanos e a privação da criação é justamente a privação de sua humanidade. É a criatividade que permite um outro tipo de sentença e que cria um direito novo.
Essa capacidade criadora somente é possível porque há um caos criativo, que não segue uma lógica conjuntista-identitária, que pode ser entendida nos termos de uma “racionalidade”. Isso não quer dizer que o homem seja somente dotado dessa dimensão do caos que permite a criação, mas que essa é mais uma dimensão e que ela ficou esquecida em um predomínio de uma explicação de que no homem havia o predomínio da razão.
Essa dimensão do caos é que a abordagem racionalista do Direito pretendeu escamotear. O Direito entendido como uma significação imaginária da sociedade se cria e se recria, pois possibilita que a criação destrua o existente e instaure o novo, impedindo com isso a imobilidade. Esse direito é um direito democrático, um direito que não está cristalizado e que se permite a mudanças. Uma abordagem que nega o caos, busca a estratificação das instituições.
A abordagem racionalista do Direito ao negar o caos, restringe a criação, colocando-a como um não-Direito. Essa abordagem não afirma que o Direito criado e que afronta seus princípios é um outro-Direito, mas sim afirma que é um não-Direito. Nega-se com isso a possibilidade de mudança. Porém, mesmo nessa tentativa de negar o caos, ele aparece. O caos é negado na tentativa de se homogenizar o ser e com isso ocultar a criação do próprio Direito pelos homens, que leva a um Direito heterônomo. A heteronomia instaura a homogenidade do ser, levando a uma simplificação de suas formas e ocultando a dimensão do caos. Isso permite com que o direito como instituição imaginária social heterônoma, somente considere um só direito e não múltiplos direitos. Permite também que o caos seja escamoteado e que a auto-criação do Direito fique oculta, dificultando que o novo caos criativo se instaure para a criação de um novo direito.
O direito como instituição heterônoma da sociedade aproxima-se de uma outra instituição social que é a religião, que também nega a auto-instituição ao reconhecer e ao ocultar o caos. O caos é considerado como o sagrado e é nele circunscrito. O caos, o abismo e o sem-fundo são colocados para fora da sociedade, encobrindo parte daquilo que a sociedade é. O Direito como instituição imaginária heterônoma nega a possibilidade de criação, instituindo o sagrado em seus cânones interpretativos, ao mesmo tempo em que nega o status ontológico a qualquer outro Direito, em uma homogenização do ser. O Direito heterônomo oculta o abismo e fornece ídolos a serem seguidos, fórmulas interpretativas e conceitos cristalizados. O Direito heterônomo se nega como auto-instituição, colocando-se como uma instituição transcendente e requer que as pessoas que dela se utilizam (juristas, estudantes e até os operadores do direito) estabeleçam com ele um compromisso e acatar suas regras. Quando o caos aparece no Direito ele é escamoteado, como se pode ver nas sentenças analisadas. Esse caos pode ser desconfortável em uma sociedade heterônoma, mas é o que permite o novo, que é democrático e que possibilita a criação, que é aquilo que torna o homem humano.
Considerações Finais
O judiciário brasileiro analisa por ano milhões de ações de diversas áreas e dos mais diferentes assuntos. Os juízes que realizam esse trabalho proferem seus entendimentos com base em regras previamente estipuladas, que estipula um procedimento padrão. Porém, em alguns casos esse procedimento é parcialmente ou totalmente ignorado em busca de algo diferente, que escapa muitas vezes a explicação dos estudiosos. As sentenças “estranhas” aqui estudadas são alguns desses casos.
Entende-se que as sentenças “estranhas” não são anomalias fora do sistema, mas sim uma manifestação da imaginação-radical do magistrado. Isso só é possível uma vez que o direito é entendido como uma instituição imaginária social. O direito entendido como sendo somente um sistema de normas, estabelece uma lógica especial, que é a lógica conjuntista-identitária, que está fechado em si mesmo e não permite a criação do novo. Esse tipo de entendimento do Direito como um conjunto de normas não dá conta de explicar a prática jurídica, que tem fortes relações com a política (práticas da e na polis).
As sentenças “estranhas” são parte de um Direito, que não restringe o Direito ao racional. Essas sentenças acabam por denunciar que o direito racional é apenas uma parte do Direito, e a restrição a essa parte é uma prática desenvolvida especialmente em meados do século XIX que visava legitimar o direito como ciência. Esse entendimento vem sendo alterado, porém o direito ainda é visto por muitos como uma ciência, e é assim colocada, pois o que se pretende é dar um caráter “neutro”, “não-ideológico” e principalmente “a-político” ao Direito. O direito é uma criação humana e é uma instituição social.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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