Categories: FilosofiaRevista 50

Shylock” versus “Michael Kohlhaas”: um ideal, dois destinos

Resumo: Este artigo vai comparar sob o ponto de vista jurídico dois famosos personagens da literatura mundial – “Shylock” de “O Mercador de Veneza” de William Shakespeare e “Michael Kohlhaas” da novela  “Michael Kohlhaas” de Heinrich von Kleist.

Abstract: This article goes to compare under the legal point of view two famous personages of world-wide literature – “Shylock” from  William Shakespeare’s “The Merchant of Venice”  and “Michael Kohlhaas” from Heinrich von Kleist’s novel “Michael Kohlhaas”.

Palavras-chave: “Shylock” de “O Mercador de Veneza”. “Michael Kohlhaas” de “Michael Kohlhaas”. Lei e Justiça.

Key-words: “Shylock” from “The Merchant of Venice”. “Michael Kohlhaas” from  “Michael Kohlhaas”. Law and Justice.

Sumário: 1.Intróito, 2. Desenvolvimento, 2.1Shylock, 2.2 Michael Kohlhaas, 2.3 “Link” e  diferença entre os personagens, 3.Conclusão, Bibliografia.

Summary: 1. Introduction, 2. Development, 2.1Shylock, 2.2 Michael Kohlhaas, 2.3 “Link” and difference between the personages, 3. Conclusion, Bibliography.

1. INTRÓITO.

Em minha opinião, em todo o orbe lítero-jurídico-filosófico não existem dois personagens tão semelhantes e tão discrepantes ao mesmo tempo quanto “Shylock” e “Michael Kohlhaas”, pois ambos perseguem o mesmo ideal de justiça e lei, todavia têm destinos completamente antagônicos.

Visa, pois o presente artigo traçar um paralelo entre esses dois fascinantes personagens da literatura mundial, decupando a importância deles para o campo do Direito.

2. DESENVOLVIMENTO.

2.1SHYLOCK.

O Mercador de Veneza é uma peça de William Shakespeare escrita em alguma época entre 1596 e 1598. É notória por seus dois personagens principais: Antônio, o mercador; e Shylock, um agiota judeu.

Na história, o cristão Antônio é um  cidadão bem sucedido de Veneza que faz um contrato atípico com o agiota judeu Shylock, penhorando uma libra  de sua própria carne. Por motivos de força maior totalmente alheios a sua vontade, Antônio não consegue cumprir o acordado, levando o vilão a demandá-lo judicialmente para obter a aludida extração, que resultaria na morte de Antônio.

Em “O Mercador de Veneza”, os pontos principais de interesse para a seara jurídica são: o nó górdio da discussão entre os princípios “Pacta Sunt Servanda” e “Rebus Sic Stantibus”, e o julgamento final repleto de irregularidades jurídicas, perpassando por um aguçado sentimento de cumprir à risca a lei, interpretando-a ao pé-da-letra.

Em face da delimitação do objeto do presente artigo, vou me ater ao julgamento que se passa na parte final da trama.

Sobre o assunto, Rudolf von Ihering em seu famoso opúsculo intitulado “A Luta pelo Direito” (tido como a “Bíblia da humanidade civilizada”, por La Veleye) aduz que:

“Ninguém em Veneza duvidava da validade do título: os amigos de Antônio, o próprio  Antônio, o Doge, o tribunal, toda a gente enfim estava de acordo em admitir que o judeu tinha o direito a seu favor.É com esta confiança garantida no seu direito por todos reconhecido que Shylock reclama o auxílio da justiça (…)O juiz que reconhecia a Shylock o direito de cortar uma libra de carne do corpo de Antônio reconhecia-lhe por isso mesmo direito ao sangue, sem o qual não pode na hipótese haver carne, e aquele que tem o direito de cortar uma libra pode levar menos se quiser. O judeu vê que lhe não consentem nem uma nem outra coisa, não pode levar senão carne, nenhum sangue, e não pode cortar senão libra à justa, nem mais nem menos (…)Shylock foi defraudado no seu direito por perfídia”[1].E continua dispondo:“O ódio e a vingança levam Shyock à presença do tribunal para cortar uma libra de carne do corpo de Antônio, mas as palavras que o poeta lhe faz exclamar são tão verdadeiras na sua boca como seriam na de outro.É a linguagem de que usará sempre, em todos os lugares e em todos os tempos, o sentimento do direito violado.Exprime a força inabalável da convicção de que o direito deve subsistir como direito, e nela põe o entusiasmo a ênfase de um homem que tem consciência plena de que o objeto, por amor do qual luta, se trata não somente da sua pessoa, mas da lei (…)‘Eu invoco a lei’. Nestas quatro palavras que o poeta indicou a relação do direito subjetivo com o direito objetivo e a importância da luta pelo direito; mais justamente do que teria podido fazê-lo algum filósofo do direito. Por estas quatro palavras, a pretensão de Shylock transforma-se num só lance na questão do direito de Veneza.(…) já não é o judeu quem reclama a sua libra de carne, é a própria lei de Veneza (…) porque o seu direito e o direito de Veneza são um só; no seu direito é o direito de Veneza que se desmorona”.[2]Para ao fim e ao cabo arrematar com a sua opinião sobre a trama de Shakespeare, concluindo que:“Neste ponto principalmente assenta a meus olhos o interesse soberanamente trágico que Shylock nos oferece. Está realmente defraudado do seu direito. Assim, pelo menos, deve encarar o jurista o assunto.O poeta tem naturalmente liberdade para ele mesmo estabelecer a sua própria jurisprudência, e não queremos queixar-nos do fato de  SHAKESPEARE ter aproveitado, ou, antes, de ter conservado intacta a antiga lenda. Mas se o jurista quiser submetê-la a um exame crítico, não poderá deixar de dizer: o título em si era nulo visto que continha alguma coisa de imoral, o juiz deveria portanto recusá-lo por tal motivo desde o primeiro momento.Se não o fez, se o sábio Daniel lhe reconhecia validade, que era senão empregar um miserável subterfúgio, cometer um deplorável ato de chicana, proibir ao homem a quem se havia reconhecido o direito de cobrar uma libra de carne de um corpo vivo, a efusão de sangue que deveria ser uma conseqüência natural e inevitável!”.[3]

Em suma, o atavismo dramático de “O Mercador de Veneza” se constitui num “catalisador” de ponderações sobre questões que são jurídicas em seus backgrounds, com contornos acerca das leis locais de Veneza e o estrangeiro, focando nas fases processuais que o litígio abriga.

2.2 MICHAEL KOHLHAAS.

Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist (1777 – 1811) foi um poeta e escritor alemão. Sentindo-se pobre, endividado, marginalizado de sua classe social, fracassado e corroído pela impossibilidade de achar um sentido para a sua vida, suicidou-se em 21 de novembro de 1811. Após sua morte, transformou-se numa lenda para artistas, aclamado como um personagem romântico e gênio enlouquecido. O Prêmio Kleist, prestigiado prêmio da literatura alemã, foi batizado em sua homenagem.

É um autor praticamente desconhecido no Brasil. Nesse sentido dispõe Rodrigo Campos de Paiva Castro em sua Dissertação de Mestrado em Literatura Alemão apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do emérito Professor Doutor Helmut Galle, intitulada “Michael Kohlhaas – a vitória da derrota: Uma interpretação da novela ‘Michael Kohlhaas’ de Heinrich von Kleist”, in verbis:

“Kleist o quê? Essa a reação de muitos quando ouvem o nome do escritor. Heinrich von Kleist, apesar das constantes viagens que realizou durante sua curta vida, parece não ter conseguido aportar nestas paragens, Não que os autores de língua alemã encontrem um grande trânsito entre os (poucos) leitores brasileiros – e talvez seja mesmo uma impropriedade falar em algo como um “grande trânsito”nesse caso. De todo modo, para além dos clássicos de renome, como Goethe, Schiller, Kafka, Thomas Mann e Brecht, e talvez alguns autores mais recentes, como Günter Grass e Thomas Bernhard, há poucas notícias sobre a literatura alemã, o que significa deixar de lado autores do peso de Lessing, Jean Paul, Hölderlin, Musil, Broch e tantos outros. Entre os “renegados”, está também Kleist. O caso desse escritor deveria, portanto, ser mais um entre muitos não fosse a importância dele para a literatura alemã, e mundial. Kleist escreveu, segundo alguns críticos uma das principais novelas (“Michael Kohlhaas”), a principal tragédia (“Pentesileia”) e a principal comedia (“A Bilha Quebrada”) da língua alemã. Mas, talvez mais importante o que isso, foi o autor que antecipou , bastante precocemente, muitos dos traços característicos da literatura moderna, em especial da obra de Kafka, que tinha por Kleist uma confessa admiração. A atualidade evidente de textos como O Processo e A Metamorfose já pode ser encontrada, em grande parte, nos textos Kleistianos. No entanto, o destaque justificável dado à obra de Kafka no Brasil contrasta com  a desmerecida quase invisibilidade a que foi relegado Kleist. Talvez seja um gesto recorrente daqueles que se dedicam a analisar obras de autores meio desconhecidos tentar justificar seus esforços iniciando essas análises com a realização de peripécias para convencer seus eventuais leitores sobre a importância do autor estudado. Limito-me nesta introdução a constatar essa ausência de Kleist no Brasil, e deixo a cargo da análise apresentada nos próximos capítulos a tarefa de comprovar a importância do escritor.

O fato de esse ser um autor alemão explica em parte sua presença etérea no país. Como essa língua é considerada ‘difícil’ em vista do pequeno número de brasileiros que dominam o alemão, o recurso às traduções é quase incontornável. Essas, no entanto, estão pouco acessíveis. Há edições em inglês, francês, espanhol, italiano e português das obras Kleistianas, certamente, mas apenas as traduções para a primeira língua podem ser encontradas com maior facilidade e em maior abundância no país. Nas demais línguas, entre as quais o português, Kleist continua a ser algo raro para um leitor brasileiro. Da novela ‘Michael Kohlhaas’, encontrei duas traduções nas livrarias: uma de Cláudia Cavalcanti, para o português do Brasil, e outra anterior, de Egito Gonçalves, para o português de Portugal. Além de difíceis de serem achadas, essas traduções são pouco fiéis ao original. O tradutor português alterou bastante o texto de Kleist, fracionando os grandes parágrafos  e naturalizando a construção complexa das frases. Cavalcanti tentou ser mais fiel à obra do escritor alemão, mas acabou por cortar alguns trechos dela e por cometer deslizes na tradução de passagens importantes da novela, o que prejudicou o resultado final do esforço dela” [4]

De minha parte, os textos em português que encontrei disponíveis foram “Michael Kohlhaas, O Rebelde” e “A Vingança de Michael Kohlhaas”, os quais nem de longe podem ser comparados com o brilhante texto original em alemão.

Uma vez superada essas abordagens preliminares, passo a análise da obra em pauta.

Heinrich Kleist principiou a redigir a novela “Michael Kohlhaas” em torno de 1805, então com 29 anos de idade, só terminando o texto em 1810. O romantismo apaixonado e suicidário de Kleist se reflete no destino de Michael Kohlhaas, descrevendo de forma peculiar a revolta histórica, a ação violenta na qualidade de força de lei, o crime e as multifacetadas  oscilações do Direito, dentro do contexto da solidão sublime do heroísmo desesperado do seu protagonista.

O texto em questão se constitui numa lídima obra-prima, um clássico do romantismo alemão, produzido por um autor romântico por excelência, sendo tido por muitos como o melhor da augusta literatura alemã do século XIX.

A novela retrata a história de um negociante de cavalos do século XVI que em razão de dois cavalos que não lhe são restituídos nas condições em que os deixou por motivos alheios a sua vontade, passa o resto de sua vida, armado de ferro e fogo, desejando, por um idealismo além ou aquém do humano, repor a “ordem do mundo”. Senão vejamos:

Segundo a trama, Michael Kohlhaas era “um dos homens mais escorreitos, íntegros e retilíneos” de sua época, sendo um bom pai de família e um probo negociante de cavalos do século XVI , mas era tomado de “um excessivo sentido de retidão”, o qual termina por ser sua desgraça ao ser vítima de uma pequena injustiça por parte de um nobre. Tudo aconteceu quando, por motivos administrativos (a suposta falta de um salvo-conduto), durante uma viagem de negócios, precisa deixar dois cavalos como penhor nos domínios do barão Venceslau von Tronka. No estábulo, contrata um rapaz a quem confia à segurança e o bem-estar dos animais, prosseguindo viagem. Transcorrido algum tempo, retorna para reaver os cavalos, encontrando-os em um estado deplorável (para ele arruinados) empregados nos trabalhos de lavoura juntamente com os animais do barão no Castelo de Tronka. Indo averigüar o que tinha acontecido, toma conhecimento que o rapaz a quem pagara e confiara a guarda dos animais havia sido espancado e expulso instantes após sua partida. Apesar da indignação com o fato, Kohlhaas resolve abandonar o local e esquecer o ocorrido, mas acaba por compreender que há na arbitrariedade do barão algo que vai contra a sua forma de ver o orbe, passando a pleitear do Tribunal de Dresde, em nome do direito das gentes, a punição do barão Venceslau von Tronka dentro dos ditames legais. Destarte, a despeito do aludido barão não reter de modo algum os cavalos, falando que Michael Kohlhaas os mandasse buscar no castelo ou indicasse onde lhe deviam ser entregues, Kohlhaas almeja a restituição dos cavalos no estado anterior em que se encontravam e indenização por todos os prejuízos que sofrera. Assim, socorre-se de todos os meios legais, mas só sofre humilhações em virtude de os poderosos terem se unido entre si para defender um de seus pares (o  barão von Tronka era aparentado com dois fidalgos, tendo ligações com o Príncipe). Diante disso, Kohlhaas se arma contra um Estado que permite a injustiça, mas por ironia do destino, termina como ladrão e assassino justamente por amor a um exacerbado ideal de justiça e lei.

Quer dizer, é um enredo romanesco de uma trágica e ardente vingança que atinge um clímax difícil de escalar na trajetória de um homem íntegro que termina sendo um criminoso por querer fazer justiça.

Faz-se mister ressaltar que essa novela é encarada por vários experts como um testemunho de uma obsessão imperativa e prussiana do personagem principal e seu autor – a busca implacável do absoluto. Pois Michael Kohlhaas se norteia por uma ética que não transige, morrendo “de pé”, tendo “sido vingado e feita justiça” (como ele assim entendia). Kohlhaas também é tido como um herói “pré-kafkiano”, em busca de uma justiça que nunca alcançará na Terra.

2.3 “LINK” E  DIFERENÇA ENTRE OS PERSONAGENS.

O célebre doutrinador Rudolf von Ihering é um dos que chama a atenção dos leitores para a relação entre os dois protagonistas de suas tramas no livro “A Luta pelo Direito” asseverando que:

“A imagem de Shylock recorda-se uma outra que não é nem menos histórica nem menos poética, a de Michael Kohlhaas, que HENRI VON KLEIST representou com uma tão impressionante verdade no romance publicado com aquele título”[5].

A similitude entre os personagens em tela é que ambos perseguem de forma incansável a realização de seus direitos e decorrente justiça. Porém, enquanto o judeu Shylock se resigna quando percebe que não conseguirá ver seus direitos atendidos, Michael Kohlhaas se revolta e se arma contra o Estado que permite injustiças e as pessoas envolvidas na querela.

Nesse sentido é o escólio de Ihering:

“Shylock retira-se aniquilado, e, completamente abatido na energia, submete-se sem resistência à decisão do juiz.

Michael Kohlhaas procede diversamente. Quando tem esgotado todos os meios de recuperar o seu direito indignamente desprezado, quando um ato de criminosa justiça de gabinete que obstrui as vias legais e a justiça está até no seu mais alto representante – o príncipe soberano – colocada no lado da injustiça, sucumbindo a uma dor infinita pelo crime que contra ele em sua convicção cometeram, grita então: Antes ser um cão do que um homem, se assim me calcam aos pés (pág. 23). Desde esse momento toma energicamente uma resolução: Aquele que me recusa a proteção das leis coloca-me entre os selvagens do deserto e põe-me a mão a clava que servira para me proteger.

Arranca à justiça venal o seu gládio machado e brande-o de maneira tão perigosa, que o temor e o assombro se propagam ate longe por todo o país, o Estado carcomido é abalado no seus fundamentos e o príncipe treme sobre o trono.

Mas não é o sentimento selvagem da vingança que o anima(…)

A este dever tudo sacrifica, a felicidade da família, o seu nome honrado, os seus bens, o seu corpo, a própria vida, enfim.

Mas não se lança numa guerra de extermínio sem fim, não quer atingir senão o culpado e aqueles que com ele fazem causa comum.

E quando está em perspectiva de recuperar o seu direito, depõe voluntariamente as armas. Mas como se este houvesse sido escolhido para mostrar pelo seu exemplo a que grau de ignorância podiam descer nesta época a ilegalidade e a infâmia, violam-lhe o salvo-conduto que lhe havia sido dado, renuncia à anistia e acaba a vida sobre o cadafalso. Antes de morrer, no entanto, recupera o seu direito e a idéia de que não lutou em vão, que restabeleceu o direito com honra, que sustentou a sua dignidade de homem, eleva-lhe o coração muito acima dos pavores da morte,

Reconciliado consigo próprio, com o povo e com Deus, abandona-se com resignação e de bom grado ao carrasco.”[6]

Em minha opinião, essa obra se constitui numa verdadeira Ode ao Direito e a Justiça. O positivismo jurídico levado ao extremo. Uma magnum opus da Ciência Jurídica! Michael Kohlhaas simboliza um amor tão imensurável a tudo o que o Direito, as Leis e a Justiça representam que o indivíduo se torna “um marginal do Direito” para aplicar o próprio  Direito. Luta contra a Justiça para aplicar a própria justiça. Age contra a lei para aplicar a própria lei. Uma incomparável epifania para os leigos e mormente para os que professam as letras jurídicas!

Até o mestre Rudolf von Ihering se rende ao drama de Heinrich Kleist:

“Quantas reflexões não deve provocar este drama judiciário!

Um homem honesto e bondoso, cheio de amor pela família, cândido como um acriança, torna-se um Átila destruindo pelo ferro e pelo fogo o esconderijo onde se refugiou o inimigo.

E donde provém então esta transformação? Nasce precisamente dessa qualidade que o torna moralmente tão superior aos inimigos que em todo o caso triunfam sobre ele.

Vem da sua alta estima pelo direito, da sua fé na santidade do direito, da força de ação do seu sentimento jurídico absolutamente justo e são (…)

O que para ele se transforma em ruína é precisamente o que constitui a superioridade e a nobreza do seu temperamento: o arrebatamento ideal do seu sentimento jurídico, a sua abnegação heróica, esquecendo tudo e tudo sacrificando pela idéia de direito (…)

O assassinato judiciário, segundo a expressão frisante da nossa língua, é o verdadeiro pecado mortal do direito. O depositário e o defensor da lei tornam-se assassinos dela (…)”[7]

Vê-se, pois a nítida diferença entre Justiça e Direito.

Nesse diapasão, encerra Ihering:

“Para a justiça que violou o direito não há acusador mais comovente do que a figura sombria e repleta de exprobações daquele que o sentimento jurídico ferido tornou criminoso (..)

O homem vítima de uma injustiça venal ou parcial encontra-se quase violentamente arrojado para fora das vias do direito; faz da própria mão o vingador e executor do seu direito e, ultrapassando o fim imediato, torna-se mesmo por vezes um inimigo jurado da sociedade, um bandido, um criminoso (…)

Até aquele, a quem uma natureza nobre e moral protege contra este desvario, como Michael Kohlhaas, se torna criminoso e, magoado com a pena aplicada ao crime cometido, continua sendo um mártir do sentimento jurídico (…)

A luta pela lei transforma-se então numa luta contra a lei” [8]

3.CONCLUSÃO.

Direito e Justiça são conceitos distintos. Adquirir o direito, usá-lo, gozá-lo, dispô-lo e defendê-lo, não é, quando se trata de uma injustiça puramente objetiva mais do que uma questão de interesse. O interesse é o vórtex prático do direito, no aspecto subjetivo. Todavia, em presença do absolutismo este prisma materialista que confunde a questão do direito com a do interesse perde todo o valor, pois o golpe que o absolutismo vibra sobre o direito não pode atingi-lo sem atingir também a pessoa.Em suma, a luta pelo direito é, pari passu, uma luta pela lei, e vice-versa, tratando-se, em minha opinião, de um raciocínio circular.

Por fim, para que a figura do magnífico autor alemão Heinrich von Kleist e suas retumbantes obras não fiquem praticamente restritas ao “circuito Elizabeth Harden”, aproveito a oportunidade para rogar aos Digníssimos Diretores das Faculdades de Direito do Brasil por uma maior divulgação dos textos do aludido autor, máxime da novela “Michael Kohlhaas”, tão importante para as Ciências Jurídicas no mundo inteiro e tão ignorada nos bancos universitários pátrios. Fica, pois registrado de público o apelo.

 

Bibliografia.
CASTRO. Rodrigo Campos de Paiva. Michael Kohlhaas – a vitória da derrota: uma interpretação da novela “Michael Kohlhaas”, de Heinrich von Kleist. Disponível em www.teses.usp.br/teses [Capturado em 01 de dezembro de 2007].
IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. 19. ed. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2000.
KLEIST. Heinrich von. A Vingança de Michael Kohlhaas. Coleção Novelas do Mundo. Edições Melhoramentos: São Paulo.
KLEIST, Heinrich von. Michael Kohlhass, O Rebelde. Antígona: Lisboa, 2004.
Notas:
[1] Rudolf Von Ihering. A Luta pelo Direito, p.X-XI
[2] Op. Cit., p.48-49
[3] Op. Cit.,p.49.
[4] Rodrigo Campos de Paiva Castro. Michael Kohlhaas – a vitória da derrota: uma interpretação da novela “Michael Kohlhaas”, de Heinrich von Kleist, p..7-8
[5]Op. Cit., p. 50
[6] Op. Cit., p.50-51
[7] Op.cit,. p. 51-52
[8] Op. Cit., p. 52-53

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco Carlos Távora de Albuquerque Caixeta

 

Advogado/PA. Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pós-graduando em Direito Médico com capacitação para o ensino no magistério superior pela Escola Paulista de Direito (EPD).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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