Inventar, Descobrir ou Interpretar o Direito: Uma Concepção Dworkiniana do Atual Processo Legislativo Brasileiro na Tipificação dos Crimes Virtuais

Resumo:  O presente artigo discorre sobre a nova realidade social engendrada pela intensa revolução verificada no campo das tecnologias de informação, particulamente a rede mundial de computadores Internet. Esta serve não apenas de intercâmbio de informações e de conexão entre os diferentes pontos do planeta, mas também para práticas delituosas cometidas por indivíduos que, confiantes talvez numa aparente sensação de anonimato propiciada pelos sistemas de informação, julgam-se fora do alcance do braço da lei, muitas vezes incapaz de acompanhar o rápido progresso e as transformações sociais e tecnológicas da sociedade contemporânea. Porém, e é exatamente isto que procuraremos demonstrar neste trabalho, a partir de uma visão integralista do Direito concebida por Ronald Dworkin, muitas das ilicitudes praticadas no âmbito das redes virtuais de informação estão amparadas pelo atual ordenamento jurídico brasileiro, resultando que frequentemente a produção de legislações específicas sobre determinadas matérias tornam-se excesso de formalismo retórico sem efeito concreto.


Palavras-chave: Crimes Virtuais, Dworkin, Direito como Integridade.


Abstract: This article discusses the new social revolution engendered by the intense verified in the field of information technology, particularly the World Wide Web Internet. This serves not only the exchange of information and connections between different parts of the world, but also for criminal practices committed by individuals who, perhaps confident in an apparent sense of anonymity afforded by information systems, they think themselves out of arm’s reach law, often unable to keep up with rapid progress and social and technological transformations of contemporary society. However, and this is exactly what we propose to show in this paper, from an integral vision of law conceived by Roland Dworkin, many of the illegal activity committed within the virtual networks of information are protected by the current Brazilian legal system, often resulting in the production of specific laws on certain subjects become excessive formalism rhetoric without practical effect.


Key words: Cybercrime, Dworkin, Law as Integrity.


Sumário: 1. Introdução. 2. A Tipificação dos Novos Crimes Virtuais: Uma Visão Integralista do Direito. 3. Dois Casos Que Merecem Análise à Luz da Visão Interpretativa de Dworkin. 3.1. O Caso do Cracker Otavio de Oliveira Bandetini. 4. Considerações Finais. Referências bibliográficas.


1. Introdução


Ferramenta que hoje figura-se indispensável dentro da conjuntura mundial de globalização em todos os níveis da atividade humana, sejam elas econômicas, políticas ou sócio-culturais, a Internet surgiu como arma estratégica de defesa estadunidense, durante o período da Guerra Fria, que viabilizou a descentralização do banco de dados militar, dificultando assim a acesso da Ex-União Soviética a informações de caráter confidencial para segurança nacional dos EUA.


Rapidamente as comunicações virtuais popularizaram-se, promovendo uma verdadeira revolução tecnológica na maneira de interagir com o mundo e as pessoas de diferentes nacionalidades, etnias e interesses. No entanto, e isto não chega a surpreender, embora esta nova tecnologia abra um horizonte repleto de possibilidades em termos de otimização e facilidades advindas desta e refletidas nos diversos campos de atuação humana, sejam político, socioeconômico ou culturais, o fato é que a Internet também vem sendo utilizada massivamente como instrumento para ações e práticas ilegais ou atentatórias dos bons costumes. É o que sugere a notícia veiculada pelo Jornal Estadão (2010), em seu formato eletrônico, dando conta de um crescimento vertiginoso do número de crimes cometidos pela Internet, 6.513%, entre 2004 e 2009. O número de sentenças judiciais também aumentou, segundo o Superior Tribunal de Justiça, corte máxima em matérias de natureza infraconstitucional, de 400 em 2004, para 17 mil sentenças em 2008.


O que desperta estranheza e abre margem para questionamentos e dúvidas a respeito da real necessidade de uma legislação específica sobre o tema é o fato de, até o término da feitura deste trabalho, o Projeto de Lei nº 84 de 1999, que dispõe sobre os crimes de informática e suas penalidades, ainda encontrava-se emperrado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – CCJC da Câmara dos Deputados, aguardando parecer de seus integrantes. Há realmente uma exigência imprescindível por parte da opinião pública, da sociedade civil organizada, do ordenamento jurídico brasileiro, que se manifeste no sentido de criarem-se leis voltadas especificamente para os delitos cibernéticos? Será a alegação muitas vezes suscitada de que a ausência de um direito específico, voltado exclusivamente para tipificar os crimes perpetrados no ambiente virtual, a principal razão para justificar a falta de preparo dos agentes policiais e do sistema judiciário nacional em coibir tais crimes e aplicar a legislação já existente? Semelhante alegação procede?


Ao longo deste artigo, procuraremos responder a estes questionamentos a partir de uma concepção do Direito como integridade elaborada por Roland Dworkin, segundo a qual o direito deve ser aplicado, criado, interpretado levando-se em consideração a produção legislativa passada, os valores morais e políticos que permeiam toda uma sociedade e na qual encontra-se inserida a figura do jurista e o conjunto de princípios fundamentais e gerais que norteiam as normas legislativas. Tudo isto em auxílio de uma interpretação construtiva e consistente do Direito, tendo em vista a busca por uma única solução correta para cada caso levado ao Poder Judiciário. É o que assevera o próprio Dworkin em sua obra O Império do Direito:


“As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas próprias convicções sobre o “sentido” (grifo do autor) – o propósito, objetivo ou princípio justificativo – da prática do direito como um todo, e essas convicções serão inevitavelmente diferentes, pelos menos nos detalhes, daqueles de outros juízes. […] Juízes diferentes pertencem a tradições políticas diferentes e antagônicas, e a lâmina das interpretações de diferentes juízes será afiada por diferentes ideologias. […] De repente, o que parecia incontestável é contestado; uma nova interpretação – ou mesmo uma interpretação radical – de uma parte importante da aplicação do direito é desenvolvida por alguém em seu gabinete de trabalho, vendo-se logo aceita por uma minoria “progressista” (grifo do autor). Os paradigmas são rompidos, e surgem novos paradigmas”. (DWORKIN, 2007, p. 110, 111 e 112).


Em um primeiro momento, realizaremos uma análise de alguns crimes virtuais passíveis de serem enquadrados em determinados dispositivos do atual Código Penal, editado em 1940, ainda durante o Governo de Getúlio Vargas, na melhor concepção dworkiniana do Direito como integridade.


Em seguida, faremos a abordagem de dois casos específicos de crimes virtuais apreciados pelo Judiciário brasileiro e cuja sentença será objeto de nossa análise. O primeiro caso faz referência ao julgamento do cracker Otavio de Oliveira Bandetini, condenado a 10 anos e 11 meses de prisão em regime fechado. O segundo caso diz respeito a sentença judicial que determinou a liberdade de três piratas virtuais, acusados de clonagem de cartões de créditos e roubo de senhas bancárias pela Internet.


Por fim, faremos as últimas considerações em relação ao estudo realizado e às implicações incidentes sobre a jurisprudência e legislação brasileiras das transformações das relações humanas com advento de novas tecnologias, tendo em perspectiva a aplicação do Direito de forma construtiva e adaptável às mudanças sociais, conforme Dworkin defende.


2. A Tipificação dos Novos Crimes Virtuais: Uma Visão Integralista do Direito


Um dos principais problemas em se tipificar os crimes da Internet está na dificuldade de se identificar o suposto autor da ação criminosa, bem como de comprovar tal delito no mundo real. Um sujeito hábil em informática como os crackers modernos podem perfeitamente se apropriar de uma senha alheia e utilizá-la para diversos fins. Desta feita, estaria usando a identidade alheia, aplicando golpes ou simplesmente navegando na internet como se fosse o titular daquele código ou senha. Daí a preocupação em determinar a sua real identidade para que a pretensão punitiva seja justa e contra aquele que realmente perpetrou o delito. Aqui cabe fazer uma distinção entre cracker e hacker: genericamente hacker é uma denominação para alguém que possui uma grande habilidade em computação. Cracker, black-hat ou script kiddie neste ambiente denomina aqueles hackers que tem como hobby atacar computadores. Portanto a palavra hacker é gênero e o cracker espécie.


É possível estabelecer uma diferença fundamental entre dois tipos específicos de crimes virtuais. Aqueles de fácil materialização no mundo real e passíveis de serem enquadrados invariavelmente em um dos artigos do Código Penal brasileiro e de leis específicas como é o caso de insultar a honra de alguém (calúnia – artigo138 do C. Penal), espalhar boatos eletrônicos sobre pessoas (difamação – artigo 139, idem), insultar pessoas considerando suas características ou utilizar apelidos grosseiros (injúria – artigo 140, idem), ameaçar alguém (ameaça – artigo 147, idem), utilizar dados da conta bancária de outrem para desvio ou saque de dinheiro (furto – artigo 155, idem), comentar, em chats, e-mails e outros, de forma negativa, sobre raças, religiões e etnias (preconceito ou discriminação – artigo 20 da Lei n. 7.716/89), enviar, trocar fotos de crianças nuas (pedofilia – artigo 247 da Lei n. 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA); e aqueles crimes cuja materialidade e, consequentemente, a imputação se tornam mais complicadas, como é o caso do intercâmbio de mídia, seja ela de texto, som ou imagem, sem a observância dos direitos autorais, da disseminação de pragas digitais (vírus, phishing, etc.) com objetivo de interceptar informações pessoais sigilosas ou obter acesso ao banco de dados de grandes corporações econômicas e Estados (espionagem industrial, governamental, etc.).


Em nosso entendimento, o primeiro grupo de crimes virtuais inclui delitos que podem ser classificados como casos previstos ou referenciados pela legislação atual, jurisprudência ou princípios fundamentais do direito, que, na terminologia do próprio Dworkin, ficaram conhecidos como casos fáceis, uma vez que basta aos juízes adaptar o direito já existente para decidir casos de injúria, difamação, estelionato, furto, entre outros, cometidos no ambiente cibernético. Assim tem-se posicionado o STJ, entendendo que tais crimes, embora praticados em espaço virtual, a sua materialização é perceptível, na medida em que as conseqüências e prejuízos para terceiros são sentidos e verificados no mundo real. É o caso, por exemplo, do cracker Otavio de Oliveira Bandetini que analisaremos a seguir.


Já o segundo grupo de crimes cibernéticos, que representam uma fração ínfima dos delitos cometidos pela Internet – a incidência é maior daqueles pertencentes ao primeiro grupo – compreende infrações que dependem de legislação específica para serem tipificados. Seriam aqueles casos que, a nosso ver, Dworkin (2007) chamaria de hard case ou casos difíceis. É caso, por exemplo, dos três piratas de computador que, conquanto não houvesse uma lei específica que os incriminassem como crackers, foram condenados pela Justiça.


3. Dois Casos Que Merecem Análise à Luz da Visão Interpretativa de Dworkin


3.1. O Caso do Cracker Otavio de Oliveira Bandetini


O cracker Otávio Oliveira Bandetini, 20 anos, jovem de classe média e com conhecimento em informática, foi condenado pela 32ª Vara Criminal do Rio a 10 anos e 11 meses de reclusão, em regime fechado, pelos crimes de furto qualificado (seis anos e oito meses) e de interceptação telemática não autorizada (quatro anos e dois meses). Ele foi acusado de retirar irregularmente, via internet, cerca de R$ 2 milhões de contas bancárias de terceiros. O réu foi preso no ano passado, num flat do Hotel Sheraton, na Barra da Tijuca, onde estava hospedado há alguns meses. Na ocasião, foram encontrados arquivos em seu computador contendo dados bancários sigilosos de 242 pessoas e contas correntes de outras 44. A decisão foi do juiz Mário Henrique Mazza, que assim se pronunciou sobre o caso:


“[…] Não há nenhuma dúvida de que Otávio procedeu a inúmeras interceptações não autorizadas de comunicações telemáticas e subtraiu, mediante fraude, senhas sigilosas e créditos das contas de dezenas de correntistas, sendo robustos os elementos de prova que atestam a prática desses crimes[…].” (Disponível em: <http://www.direito2.com.br/tjrj/2006/mai/11/justica-do-rio-condena-hacker-por-invasao-em>. Acesso em: 07 jul. 2011).


Os crimes ocorreram no período de fevereiro a abril de 2005, no Rio de Janeiro. Na decisão, ficou esclarecido ainda que nos discos rígido e virtual remoto do computador do cracker, apreendidos no momento da sua prisão, estavam armazenados programas destinados a instalação na máquina das vítimas do vírus trojan, conhecido como cavalos de tróia, que tinha como função monitorar, de forma oculta, sites da internet navegados pela pessoa, principalmente, os de instituições bancárias. Eram ativadas, então, as funções de captura, armazenamento e remessa de dados sigilosos que, por sua vez, passavam a ser capturadas por Otávio, assim como, senhas e créditos, através do monitoramento de teclados e mouses.


Em grau de recurso do tipo apelação criminal, o STJ manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, negando o relaxamento da prisão ao apelante. Assim se pronunciou o relator do caso o Ministro Gilson Dipp da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:


“As peculiaridades concretas das práticas supostamente criminosas e o posto do acusado na quadrilha revelam que a sua liberdade poderia ensejar, facilmente, a reiteração da atividade delitiva, indicando a manutenção da custódia cautelar. As eventuais fraudes podem ser perpetradas na privacidade da residência, do escritório ou, sem muita dificuldade, em qualquer lugar em que se possa ter acesso à rede mundial de computadores. A real possibilidade de reiteração criminosa, constatada pelas evidências concretas do caso em tela, é suficiente para fundamentar a segregação do paciente para garantia da ordem pública”. (Disponível em: <http://br.vlex.com/vid/-40809138>. Acesso em: 07 jul. 2011).


Estabelece-se, então, um precedente de caráter nacional, a partir do qual todos os casos de crimes virtuais que se ajustarem na descrição do caso acima, ou seja, interceptação não autorizada de informação eletrônica sigilosa através de propagandas ou páginas da internet falsas (phishing) com fim de transferir valores financeiros sem a devida permissão dos proprietários de tais valores, caracterizarão furto mediante fraude, nos termos do Código Penal brasileiro.


A observação de tal fato permite-nos afirmar que, apesar de não haver demasiada margem para discricionariedade por parte dos juristas – já que a decisão deste caso específico supracitado está amarrada a legislatura vigente, sendo, portanto, um caso fácil – ocorreu uma ampliação do sentido estrito, literal contido no dispositivo do Código Penal que dispõe sobre o crime de furto.


Assim, é impossível não fazer referência a idéia de uma produção legislativa que não cessa ao longo da história, é ininterrupta, como se fosse, nas palavras de Dworkin (2007, p.62-64), um romance escrito a várias mãos que deve ser interpretado levando-se em conta não só as intenções dos legisladores do passado, fundamentalmente – como apregoa, segundo Dworkin (2007, p. 124-125.), uma concepção convencionalista do Direito presa às decisões políticas do passado, mas principalmente os propósitos do intérprete contemporâneo de forma construtiva, ou seja, em função de torná-lo a melhor obra possível. Esta obrigatoriedade de interpretar construtivamente a legislatura passada, segundo os valores fundamentais da sociedade e uma moral política própria, buscando sempre a sua melhoria, gera, conforme observa Dworkin (2007, p.64), uma forma de coerção legítima que impede o intérprete de fazer do Direito, enquanto romance em cadeia, o que bem entendesse.


3.2. O Caso dos Três Piratas Virtuais


Os três piratas cibernéticos, Paulo Henrique da Cunha Vieira, 22, Ruan Tales Silva de Oliveira, 23, e Raul Bezerra de Arruda Júnior, 30, tiveram sua ação de habeas corpus concedida pelo Juiz Mário Jambo, da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, sendo liberados em abril de 2008, sob condição de liberdade provisória.


Eles haviam sido presos durante a operação Colossus deflagrada pela Polícia Federal, em meados de 2007. Assim o sítio G1 noticiou a ação:


“[…] tem como objetivo desarticular uma quadrilha especializada em utilizar a internet para furtar senhas de correntistas de bancos e falsificar cartões de crédito.


De acordo com a PF do Rio Grande do Norte, as investigações tiveram início em janeiro deste ano e revelaram que os integrantes da quadrilha dividiam as tarefas. Uma parte era responsável por espalhar e-mails falsos, contendo vírus capazes de capturar dados bancários. Já outros integrantes do bando são especializados em confeccionar cartões de crédito a partir dos dados colhidos.” (Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,AA1615552-5598,00.html>. Acesso em: 07 jul. 2011.).


A notícia prossegue, afirmando que foram:


“[…] cumpridos 41 mandados de busca e apreensão e 29 mandados de prisão nos Estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Paraíba. O nome da ação é uma referência ao computador Colossus (grifo nosso), utilizado na 2ª Guerra Mundial para decifrar os códigos da inteligência nazista”. (Idem.).


O que chama a atenção neste caso é o caráter peculiar das restrições imposta pelo juiz Mário Jambo, particularmente aquelas compreendidas nos itens (j) e (m) contido no resumo abaixo da sentença judicial, como condições para manter a decisão que concedia o habeas corpus:


“[…] por considerar que não mais subsistem os fundamentos para a manutenção da prisão preventiva, CONCEDO A LIBERDADE PROVISÓRIA aos acusados P. H. C. V., R. B. A. J. e R. T. S. O., impondo, porém, A CADA UM DOS RÉUS, o compromisso de cumprimento das seguintes condições: a) acompanhar todos os atos processuais e atender aos chamamentos judiciais; b) não se ausentar da comarca onde reside por mais de 24 (vinte e quatro) horas, sem prévia autorização deste Juízo; c) recolher-se à sua residência no horário máximo das 20:00h, ficando proibido de se ausentar de sua residência nos finais de semana e feriados; d) ocupar-se licitamente; e) não freqüentar locais suspeitos, tais como casas de prostituição e de tavolagem; f) comparecer quinzenalmente em Juízo, na 1ª (primeira) e na 3ª (terceira) semana de cada mês, para informar e justificar suas atividades, ressaltando que o acusado residente em outro Estado da Federação (P. H. C. V.) deverá comparecer no Juízo Federal com jurisdição em matéria penal sobre a cidade onde reside; g) não freqüentar “lan houses”; h) não manter cadastro ou tela na rede de relacionamento “orkut” ou similar; i) não freqüentar salas de “bate-papo” virtual ou de MSN e assemelhados; j) matricular-se e freqüentar imediatamente instituição de ensino que dê continuidade ao seu grau regular de estudo, comprovando em Juízo, trimestralmente, a assiduidade e aproveitamento em tal curso; l) não fazer uso de substâncias entorpecentes, inclusive o álcool; e m) realizar a leitura de obras literárias a serem indicadas trimestralmente por este Juízo, devendo cada réu apresentar relatório, produzido de próprio punho, com o mínimo de 10 (dez) laudas, revelando suas impressões sobre os temas principais de cada livro, iniciando-se pelas obras (a) “A hora e a vez de Augusto Matraga”, último conto do livro “Sagarana”, do escritor Guimarães Rosa, e (b) “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, trabalhos literários que se encontram disponíveis em bibliotecas públicas desta cidade de Natal/RN. Determino, especificamente ao réu R. T. S. O., que se submeta a tratamento de desintoxicação contra o uso de drogas, a ser indicado por este Juízo em 10 (dias) dias, e que apresente trimestralmente relatório de aproveitamento terapêutico subscrito pelo profissional responsável. Alerte-se que a violação de quaisquer das obrigações e limitações ora impostas aos acusados recrudesce o risco ponderável de repetição dos atos ilícitos que lhes são imputados, o que poderá acarretar a reconsideração da liberdade provisória. Expeça-se o Alvará de Soltura em favor de P. H. C. V., R. B. A. J. e R. T. S. O., se por motivo outro não devam permanecer presos. Determino aos réus o comparecimento a esta Segunda Vara Federal, no dia 17 de abril de 2008, às 17:00h, para audiência de advertência das condições.” (Disponível em: <http://eilicito.wordpress.com/2009/11/12/hackers-liberados-pela-justica-terao-de-resumir-classicos-da-literatura/>. Acesso em: 07 jul. 2011.).


A peculiaridade das condições previstas nestes itens específicos da sentença, que determinou a liberdade provisória dos três rapazes, apresenta uma feição eminentemente sócio-pedagógica, sugerindo que, e isto são conjecturas nossas embasadas apenas no trecho da decisão judicial que tivemos acesso, a referida prisão preventiva dos três já não mais se justificava, por razões que nos escapam ao conhecimento – talvez por insuficiência de provas materiais que incriminassem os acusados, salientando novamente que são apenas suposições, reconhecendo, contudo, e isto é perfeitamente apreensível do trecho da sentença citado acima, o ato de utilizar as ferramentas computacionais e de redes de informação para invadir sistemas virtuais com o intuito de interceptar informações sigilosas de terceiros, ainda que não cause prejuízos materializáveis no mundo real a estes, como sendo atos de contravenção atentatórios dos princípios fundamentais do direito e da moralidade política que permeiam a sociedade como um todo. Só desta maneira é minimamente possível justificar as restrições impostas pelo Juiz Mário Jambo, de caráter notadamente sócio-pedagógico e que fazem referência ao princípio de moralidade norteador do Direito, como condições para conceder a liberdade provisória dos três acusados. Este é um típico caso difícil ou hard case (DWORKIN, p. 127) uma vez que a abordagem principiológica objetiva encontrar a melhor resposta nos casos em haja lacunas na lei ou antinomias entre regras.   


Assim, embora não esteja explícito no fragmento a que tivemos acesso da referida sentença de concessão de habeas corpus, é possível apreender o reconhecimento implícito da figura do cracker, como contraventor, apesar de ainda não estar tipificada, até o presente momento, por uma legislação específica brasileira. Mais ainda, é possível afirmar que houve larga margem de discricionariedade por parte do juiz do caso, não do tipo combatida por Dworkin, pragmática e voltada apenas para pretensões e expectativas futuras, mas uma do tipo que “[…] se faz necessária em função da correta percepção dos verdadeiros fundamentos do direito, ainda que isso não tenha sido previamente reconhecido, ou tenha sido, inclusive, negado.”(DWORKIN, 2007, p. 9.).


Na subseção anterior, fizemos uma referência ao Direito, nos dizeres de Dworkin, como um romance em cadeia, escrito a várias mãos. Aqui faremos uma referência aos juízes, os verdadeiros intérpretes do Direito, que, inseridos cada qual em seu tempo histórico, escrevem e reescrevem-no “[…] de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade.” (DWORKIN, 2007, p. 276).


4. Considerações Finais


Assim, conquanto existam casos de crimes virtuais não previstos pela atual legislação brasileira, a imensa maioria dos crimes cometidos via internet são passíveis de enquadramento pelo atual Código penal Brasileiro e por leis específicas já vigentes em território nacional, e este era o caso que analisamos do cracker Otávio Oliveira Bandetini, condenado a 10 anos e 11 meses de prisão em regime fechado.


Porém, mesmos nos casos não previstos pelo ordenamento jurídico nacional, é possível sim, como foi verificado no exemplo específico de hard case que analisamos, o dos três piratas virtuais do Rio Grande do Norte, emitir decisões judiciais, desde que, em concordância com visão dworkiniana do Direito como Integridade, os juristas e intérpretes do direito derivem suas decisões dos “[…] princípios de justiça, eqüidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.” (DWORKIN, 2007, p. 271-272). Em outras palavras, o juiz deverá optar pela interpretação que, do ponto de vista da moral política, melhor reflita a estrutura das instituições e decisões da comunidade, ou seja, a que melhor represente o direito histórico vigente, sendo que esta seria, assim, a resposta correta para o caso concreto.


Conclui-se, portanto, que alegação de que a inexistência de uma legislação específica é a principal razão para a falta de preparo dos agentes policiais e do sistema judiciário nacional em coibir os crimes virtuais é  falaciosa, encontrando-se o problema provavelmente na dificuldade de se identificar de fato os autores dos crimes e na enorme burocracia, que emperra o sistema judicial e o aparato policial, em face do volume dos crimes cibernéticos e rapidez com que eles são praticados no âmbito das redes virtuais.


Em suma, o Direito deve ser entendido como integridade, negando que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados pra o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Assim leciona o próprio Dworkin:


“[…] começa no presente e se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. (…) Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer. O otimismo do direito é, nesse sentido, conceitual; as declarações do direito são permanentemente construtivas, em virtude de sua própria natureza.” (2007, p. 274).


          


Referências bibliográficas:

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FARIA, Renato Luiz Miyasato de. Entendendo Os Princípios Através de Ronald Dworkin. Disponível em: <http://www.unigran.br/revistas/juridica/ed_anteriores/22/artigos/artigo03.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2011.).

LUCENA, Jonatas. Crimes Virtuais. Disponível em: <http://www.drjonatas.com.br/crimes-virtuais.php>. Acesso em: 07 jul. 2011.

TERCEIRO, Cecílio da Fonseca Vieira Ramalho. O problema na tipificação penal dos crimes virtuais. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/3186/o-problema-na-tipificacao-penal-dos-crimes-virtuais. Acesso em: 07 jul. 2011.


Informações Sobre os Autores

André Freitas Silva

Estudante de Direito.

Michelle Machado Simão

Estudante de Direito.


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