Resumo: O presente artigo trata da instrução probatória – atividade do julgador – nos sistemas processuais sob uma perspectiva constitucional e acordando com os instrumentos internacionais. Primeiramente, são abordados os sistemas processuais intitulados inquisitório, acusatório e misto. Destacando-se que nesse último, constata-se a inaptidão de ser intitulado sistema, visto que, conforme o princípio regente dos sistemas, apenas, podem assim ser considerados os tipos inquisitivo e dispositivo. Portanto, normas dentro de um sistema de processo regido por ambos é contrassenso jurídico. Em segundo momento, aborda-se a gestão das provas, tanto no sistema inquisitório como acusatório, analisando, sobretudo, os poderes instrutórios do julgador (art. 156 do CPP), com supedâneo nesse artigo, examina-se a atribuição da iniciativa probatória pelo juiz e constata-se a impossibilidade de compatibilizar tal iniciativa com o sistema acusatório, cujo sistema preconiza a Constituição da República Federal do Brasil e, consequentemente, tal iniciativa infringe o princípio da imparcialidade do julgador.
Palavras-chave: Processo penal. Constitucional. Sistemas processuais. Gestão das provas.
Abstract: This article deals with the evidentiary instruction – the judge’s activity – in the court action systems, in a constitutional perspective and by agreement with the international law instruments. First, it will be addressed the court action systems entitled inquisitorial, accusatorial, and mixed, the latter, however, cannot be truly entitled as a system, considering that the principles defining systems can only be based upon the inquisitive and the dispositive. Therefore, norms within a process system governed by both systems is a juridical contradiction. Secondly, it will be discussed the management of evidence, both in the inquisitorial and accusatory system and, in particular, the analyses of the supporting powers of the judge (art. 156 of CPP). Moreover, and still based in this article, it is examined the attribution of evidentiary initiative by the judge, showing the impossibility to reconcile such an initiative with the accusatory system, whose system is based upon the Federal Constitution. As a consequence, such an initiative violates the principle of the impartiality of the judge.
Keywords: Criminal procedural. Constitutional. Procedural systems. Management of the evidence.
Sumário: 1. Introdução. 1.1. Sistema inquisitório; 1.2 Sistema acusatório; 1.3 Sistema misto; 1.4 Gestão das provas. 1.4.1 Desenvolvimento de gestão das provas. 2. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Segundo parte da doutrina, o tratamento das categorias do processo penal difere daquele do processo civil, sobretudo, quanto às condições da ação[1], pois “dizer que as condições da ação no processo penal são interesse e possibilidade jurídica do pedido é um erro repetido sem maior reflexão por grande parte da doutrina”[2]. E, em razão desse equívoco, muitos autores conclamam no sentido de que repensemos cientificamente as categorias do processo penal.
Aury Lopes Jr. ressalta que já se vão mais de 60 anos que Carnelutti indicou que não se deve revestir o processo penal dos mesmos requisitos e condições do processo civil, pois, tratá-lo com as mesmas peculiaridades do processo civil, significa considerá-lo a “gata borralheira quando comparado com o processo civil, ou seja, veste-o de 'roupas emprestadas'”[3], em outras palavras: das categorias do processo civil.
Processos Civil e Penal tratam de objetos diferentes. Tendo objetos diferentes, então, conceituada doutrina adverte que o processo penal não é disciplina que contempla normas atinentes à propriedade, ao ter, o meu, ou seja, as coisas de interesses coisificados, mas, ao contrário, é uma processualística que trata de liberdade ou de pena[4]. Portanto, é aconselhável que, ao abordar a disciplina, distancie-se de estudá-lo na disciplina unificada, ou seja, estudo da Teoria Geral do Processo.
Posto que o Código de Processo Penal (CPP) trata de liberdade e pena, logo, vê-se que ele possui nítida correlação com o direito penal, cuja ciência visa tutelar bens jurídicos essenciais da coletividade no Estado Democrático de Direito, tais como vida, patrimônio, honra, fé pública, etc. Dessa feita, quando alguns desses bens estabelecidos nas normas jurídicas são infringidos, quase sempre surge o crime e, consequentemente, a atribuição do Estado Juiz – direito de punir, cujo direito de punição faz-se mediante o processo penal, cuja processualística na sua “noção de instrumentalidade tem por conteúdo a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetido à violência do ritual judiciário”.[5]
Dessa narrativa observa-se que o sistema processual nos Estados democráticos afasta-se do modelo de sistema inquisitivo, dado que, na democracia, o Estado deva ofertar a máxima garantia dos direitos e garantias fundamentais. E, quando se fala em processo penal, diretamente ele se liga a dois tipos de sistemas muito importantes: o acusatório e o inquisitorial, os quais, por sua vez, encontram-se diretamente ligados com a gestão de prova.
Visto que parte da doutrina indica que os processos penal e civil possuem objetos diferentes, então, a seguir, analisar-se-ão esses sistemas e, posteriormente, será tratada a gestão de provas.
1.1. Sistema Inquisitorial
O sistema inquisitorial substituiu lentamente o antigo sistema acusatório romano, por volta do século XII ao XIV, sua origem se deu no momento em que Inocêncio III, ao vivenciar momento histórico e político melindroso quanto ao domínio de poder, então, reuniu a cúpula da Igreja Católica, em São João de Latrão, e decidiu atuar pela força, a partir daí, é que o sistema inquisitorial começa a ser adotado pela Igreja Católica (Santo Ofício, 1215)[6].
Tal sistema apresenta como característica prevalente aquela que confunde “as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto de investigação”[7]. Nesse sistema, o julgador investiga, acusa e julga, desse modo, ele atua de modo parcial, arbitrário e totalmente incompatível com a democracia.
Na abordagem do sistema inquisitorial, Aury Lopes Jr. indica que ele contempla duas partes: “A primeira fase (geral) estava destinada à comprovação da autoria e materialidade, e tinha um caráter de investigação preliminar e preparativa […] à segunda (especial), se ocupava da condenação e castigo”[8], sendo regido pelo princípio inquisitivo, uma vez que realçava a concentração e o poder nas mãos do órgão julgador[9].
No sistema inquisitório, o magistrado toma para si, paulatinamente, as atribuições reservadas ao acusador privado, cumulando, ao final, todas as atribuições que competem ao hoje MP e polícia investigativa, assim, é da essência do sistema inquisitório um “ “desamor” total pelo contraditório”.[10]
O sujeito processual – juiz – no sistema inquisitivo – atua de maneira que impera a pessoalidade, a intolerância, o mito de salvador do mundo e da segurança[11], invoca o uso indevido da frase de que o julgador é um missionário de “Deus” e, ainda, é esse sistema permeado pela “infeliz” verdade real e absoluta, de modo tal que termina compactuando com a tortura psicológica e física, cabendo ao inquiridor “o mister de acusar e julgar, transformando o imputado em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido.”[12]
Abstém-se da característica democrática e garantista, em razão disso, enuncia Manoel Messias Dias Pereira:
“No sistema inquisitório, por ter uma finalidade utilitarista antigarantista, o julgador interfere na produção do contraditório, ao levantar provas, por exemplo, que venham a ratificar a afirmação existente na acusação. Passam as partes, portanto, a constituírem-se em meros coadjuvantes, menosprezando as atribuições institucionais do próprio Ministério Público, de acordo com nossa ordem constitucional (1988). A verdade passa a ser determinada unilateralmente e não extraída da relação dialética processual. A fábula da verdade real impera nesse sistema”.[13]
Verificam-se, daí, ideias de parcialidade (do julgador), verdade real e, sobretudo, atuação ativa do julgador na investigação, de modo tal a permitir que o julgador manipule o veredito final (condenação ou absolvição). Portanto, é sistema regido pelo princípio inquisitivo, que se traduz na ação inquisitiva de produção das provas pelo magistrado[14]. Com isso demonstra ser um sistema totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito e com os princípios orientadores da ciência no processo penal.
1.2. Sistema Acusatório
Quando se originou o sistema acusatório?
O sistema acusatório puro originou-se na Inglaterra com a invasão normanda, o seu desenvolvimento ocorreu com o reinado de Henrique II (1154-1189); esse rei adotou uma política integrativa e, na seara do jurídico, empenhou-se em acabar com os juízos de “Deus”, então, estabelecendo que quem se sentisse prejudicado poderia reclamar a ele mediante petição, a partir daí, houve um grande avanço na formulação do sistema acusatório, pois formou[15],
“[…] por ele, um Grand Jury, composto por 23 cidadãos (boni homines) indictment um acusado e, se admitida a acusação, seria ele julgado por um Petty Jury, composto por 12 membros. Nele, o Jury dizia o direito material, ao passo que as regras processuais eram ditadas pelo rei. O representante real, porém, não intervinha, a não ser para manter a ordem e, assim, o julgamento se transformava num grande debate, numa grande disputa entre acusado e defesa.”[16]
As regras do processo eram ditadas pelo rei, mas ele apenas decidia em conformidade com o que era abordado e trazido no processo pelas partes (acusação e defesa), cujas partes atuavam mediante um jogo dialético, demonstrando os seus argumentos e contra-argumentos; sendo que os debates e o julgamento ocorriam em lugar público.
De modo consensual, a doutrina entende por sistema acusatório aquele que possui como fundamento as separações processuais de julgar, acusar e defender, tendo como elemento diferenciador a absoluta separação entre as funções de acusar e julgar, de maneira que tal divisão é denominada “núcleo caracterizador-determinante”, ou ainda núcleo fundante.[17]
Por sua vez, alguns autores, numa visão mais democrática, vão além, para eles, o processo penal:
“Caracteriza-se, portanto, pela clara separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo (por isso de nada serve a separação inicial das funções se depois permite-se que o juiz atue de ofício na gestão de prova, determine a prisão de ofício etc.) […] a Constituição demarca o modelo acusatório, pois desenha o núcleo desse sistema ao afirmar que a acusação incumbe ao Ministério Público (art. 129) exigindo a separação das funções de acusar e julgar […].”[18] (grifo nosso).
Decorre desse posicionamento a demarcação entre a atuação da acusação e do julgador, o julgador atua imparcialmente quanto ao momento investigativo e no decorrer do processo penal. Ainda, observa-se que o julgador distancia-se de questões atinentes às provas – gestão de prova –, desse modo, garantindo efetivamente o contraditório e oportunizando às partes (Ministério Público e Defesa) a paridade de armas.
Portanto, trata-se de um processo penal de partes e é regido pelo princípio dispositivo, visto que a gestão das provas está nas mãos das partes, então, “o processo continua sendo um instrumento da descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a gestão da prova está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso concreto”[19]. Eis o sistema de processo penal acusatório, que é essencialmente contraditório e dialético e almejado pelo Estado Democrático de Direito.
1.3. Sistema misto: processo penal brasileiro
O sistema inquisitorial e, também, o acusatório demandam, por parte do jurista, de boa compreensão, especialmente, no tocante às suas regras e limitações. Esse regramento diretamente se liga com a gestão de provas, uma vez que, compreendendo essa gestão, consequentemente, infere-se o modelo e sistema de que se trata. Tal domínio, modelo de sistema, é de muita serventia quando se depara com normas do código de processo penal (1941), legislado sob a égide da Constituição outorgada de 1937.
Como é estruturado o Código de Processo Penal brasileiro?
O Código de Processo Penal brasileiro de 1941 possui bases num Estado e governo autoritários em que vigorava a Constituição outorgada de 1937, essa Constituição ditatorial abeberou-se das ideias fascistas do Codice Rocco ‒ da Itália de 1930 ‒, de estrutura inquisitorial.[20] Esse modelo italiano fascista foi inspirado no Código de Napoleão de 17.11.1808, que, segundo Jacinto Coutinho: “O dito processo misto, com o hálito do qual Napoleão tocou o mundo a partir da Europa continental mostrou-se, desde sempre uma fraude à democracia processual”.[21]
Para o autor, quando confronta o sistema misto com os princípios estruturantes dos modelos de sistemas inquisitorial e acusatório, isto é, respectivamente, o princípio inquisitivo e dispositivo, acaba por não o ser nem puramente de partes (acusatório) nem inquisitorial puro.
O modelo inquisitorial é regido totalmente pelo princípio inquisitivo, cujo modelo indica que o julgador é interventor e produtor de provas; e o modelo acusatório é regido pelo princípio dispositivo, neste, o julgador é totalmente alheio à produção de provas, sua decisão é prolatada a partir das provas trazidas pelas partes no processo. Então, levando em conta que apenas existe esses dois princípios regentes de sistemas processuais, cujos princípios são o inquisitivo e dispositivo, torna-se fácil inferir que o CPP deve ser analisado por um dos dois princípios, dado que não existe princípio misto[22], portanto, não há coerência lógica afirmar que o processo rege-se por ambos os princípios.
Fácil constatar que algumas normas do processo penal possuem traços eminentemente inquisitorial, v.g., o art. 156 do CPP enuncia que:
“A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”
Observa-se que o legislador ensaiou em contemplar o onus probandi às partes – sobretudo ao MP –, porém, na segunda parte, contradisse, pois facultou ao julgador agir de ofício, ou seja, intervir na produção de provas. A partir dessa constatação é impossível não acompanhar Jacinto Coutinho ao sustentar que o processo penal brasileiro, ainda, segue a tradição inquisitorial.[23]
Porém necessário consignar que a maioria dos sistemas apresenta modelo de estrutura com fase investigativa e acusatória, essa assertiva corrobora o enunciado do autor português Jorge de Figueiredo Dias, ao inferir que:
“No processo penal português – como, se dizer-se, em todos os do continente europeu – nem deve afirmar-se que MP e arguido se encontram praticamente armados com as mesmas possibilidades, nem sequer que os interesses por um e outro prosseguidos, aos olhos do Estado e da comunidade jurídica, revestidos de idêntico valor. Logo deste ponto de vista, faltam, pois, as condições absolutamente indispensáveis à existência de um verdadeiro processo de partes”.[24] (grifo nosso).
Conquanto seja um sistema não puramente de partes, a maioria dos sistemas processuais do continente europeu é mais democrática e com feições majoritariamente do tipo acusatório se comparados com o nosso sistema de processo, como o autor português Jorge de Figueiredo Dias complementa:
“[…] a estrutura fundamental do processo penal português é, tipicamente e em princípio, a de um processo sem partes. Do nosso ponto de vista, porém, e como já atrás pusemos suficientemente em relevo, grave erro cometeria quem se servisse desta conclusão para aparentar o nosso processo penal com as notas constitutivas do modelo inquisitório, ou mesmo com as de um modelo misto que comungasse de notas acusatórias e inquisitórias. O nosso processo penal é basicamente acusatório e simplesmente integrado por um princípio de investigação; tanto a conformação dinâmica que possui como a dialéctica própria que nele vive o afastam por completo de uma estrutura processual total ou parcialmente inquisitória.”[25] (grifos nossos).
Veja que o modelo de sistema português é eminentemente acusatório, integrado, num primeiro momento, pelo princípio da investigação, momento este que se destina à averiguação da existência do crime, determina quem é/são o (s) autor (es) e respectiva responsabilidade e, ainda, a recolha de provas, cuja investigação criminal é dirigida pelo Ministério Público e coadjuvado pelos órgãos da polícia criminal.[26] Portanto, os modelos europeus diferem do sistema processual brasileiro.
Embora “parte significativa dos processualistas penais afirma que no Brasil vigora um sistema misto, predominantemente considerado como acusatório"[27], não se percebe essa pureza de processo de partes – acusatório – pois, mesmo após as reformas no nosso processo, ainda, constata-se a existência de normas processuais de cunho de sistema inquisitivo e outras de feições de tipo acusatório.
Isso posto, admitindo-se que há normas de princípio inquisitivo e outras de acusatório, por sua vez, vinculado, também, às normas de conteúdo de provas, acaba por levar parte da doutrina a sustentar que a estrutura do processo é essencial e demasiadamente inquisitória[28]. Logo, é nesse sentido que reside a crítica acadêmica, sobretudo, de Aury Lopes, quando classifica o nosso Código de Processo Penal como sistema misto inquisitorial ou neoinquisitorial[29] por, ainda, apresentar “ideias autoritárias”, pois
“[…] o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz […] a Constituição de 1988 define um processo penal acusatório […] Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, é necessário fazer uma “filtragem constitucional”.[30] (grifo nosso)
Ou seja, para o autor, as normas processuais apenas se legitimam com a filtragem constitucional e, ainda, em princípios como o contraditório, ampla defesa, imparcialidade, jurisdição, juiz natural, inércia da jurisdição (juiz não atuar de ofício), devido processo penal, etc., cujos princípios ensejam ao julgador que reviste suas decisões de modo convergente às normas constitucionais e acordando com os instrumentos internacionais. Aqui, mais do que nunca, faz-se necessário atentar para as diversas normas inquisitivas processuais e não as aplicar.
Ademais, não é por estarem estabelecidas na Constituição e incidirem, desse modo, no processo penal as divisões de funções dos sujeitos processuais que, por consequência, já se possa dizer que o sistema é acusatório, pois, para sê-lo, é necessário muito mais, sendo imprescindível que o julgador se afaste da atitude de produtor de provas, uma vez que: “O fundamento primeiro para se concluir se um sistema é acusatório ou inquisitório está imprescindivelmente, na gestão de provas, incluindo é claro, sua iniciativa. E gestão quer dizer administração, gerenciamento, e não produção, intromissão, interferência”.[31]
Daí que, a melhor doutrina classifica o processo penal de inquisitorial ou neoinquisitorial, embora o comando constitucional se dê no sentido de que as normas processuais penais sejam interpretadas de acordo a Constituição Federal e os princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Tendo-se essas ponderações doutrinárias relativas ao sistema misto – processo penal brasileiro –, especialmente, de que o núcleo fundante do sistema relaciona-se com a gestão de provas, adiante, serão analisadas as provas no processo penal.
1.4. Gestão das provas
A gestão da prova e a separação das funções de acusar, defender e julgar são núcleos fundantes do sistema acusatório – no processo penal de partes – constitucional [32]. Cujo sistema requer a prática da atividade probatória, de modo tal que respeite o contraditório e a ampla defesa, conforme o que preceitua o art. 5º, ao prever: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.[33] Portanto, a interpretação de princípios como o contraditório e a ampla defesa, numa perspectiva constitucional, adota postura essencialmente dialética no que
“[…] implica aceitar que, na realidade processual, co-existem afirmação e negação, consubstanciadas na tese da parte-acusação (a afirmação) e na antítese da parte-defesa (a negação). Propicia uma verdadeiramente interação entre ambos (afirmação e negação) para que o julgador constitucionalmente competente fundamente sua síntese (decisão).”[34]
Posto que a decisão é síntese, ou seja, resultado de todo o conjunto probatório e provinda do conjunto de prova, então, necessariamente as provas devem ser produzidas pelas partes, e jamais pelo julgador, uma vez que a nossa Constituição, mediante interpretação sistemática, consagra o sistema acusatório (art. 5º, LV; LIV; LVII; art. 93, X e 129, I, todos da CF), de modo que a:
“Gestão da prova deve estar nas mãos das partes (mais especificamente, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador), assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim suprapartes e preservando sua imparcialidade”.[35] (grifo nosso)
Nesse sentido, a gestão das provas nas mãos das partes após produzidas no processo torna-se comum. Cuja prova se define como a reconstrução histórica dos fatos que se desenvolvem em conformidade com as regras legais estabelecidas, isto é, em todas as suas fases, ou seja, na investigação, admissão, produção e valoração. E, em tal perspectiva, ensina Carnelutti:
“Prueba se usa como comprobación, de la verdad de una proposición; sólo se habla de prueba a propósito de alguna cosa que ha sido afirmada y cuya exactitud se trata de comprobar; no pertenece a la prueba el procedimiento mediante el cual se descubre una verdad no afirmada sino, por el contrario, aquel mediante el cual se demuestra o se halla una verdad afirmada.”[36]
Visto que a reconstrução dos fatos desenvolve-se mediante provas, com as quais se almeja comprovação de uma proposição, esse desenvolvimento da atividade probatória caracteriza-se como finalidade em ser meio[37] para que se chegue a uma conclusão. Ou seja, a finalidade é no sentido de que o julgador chegue à verdade e ao convencimento do fato alegado pela acusação. Contudo é imprescindível que reflita: que verdade é essa?
Lógico que não é a verdade absoluta ou mesmo a ontológica, dado que a teoria da relatividade proporcionou para a ciência, de modo geral, uma nova visão de perceber e apreender as coisas. Atualmente, tudo é relativo, pois os juízos dos deuses e da absoluta certeza foram banidos da contemporaneidade; e não resta dúvida que esse novo paradigma, que é o da relatividade, incide sobre o processo penal.[38]
Por consequência, a busca da verdade real[39], da certeza e do convencimento do magistrado, na moderna doutrina[40], é entendida, no sentido processual, como a elevada probabilidade de que os fatos indicados na acusação (imputação feita pelo MP) ocorreram em conformidade aos alegados na denúncia, devendo esses fatos serem demonstrados mediante provas[41] de acordo com as regras do devido processo legal.
Assim, quando ao falar em prova, no sistema acusatório, significa o conjunto de atos jurídicos, o que possui a função de formar, no julgador, o convencimento de que os fatos aconteceram ou não, mas tal convencimento desenvolve-se dentro de regras jurídicas, da dialética/contraditório, do devido processo legal, imparcialidade; isto é, no processo. Portanto, a gestão das provas está nas mãos das partes – sistema acusatório – e a valoração delas é feita pelo julgador, com atuação que se desenvolve mediante recognição, cuja atuação veremos a seguir.
1.4.1. Desenvolvimento de gestão das provas
É certo que o julgador exerce atividade essencialmente recognitiva, uma vez que “a um juiz com jurisdição que não sabe, mas que precisa saber, dá se a missão (mas seria dizer Poder, com o peso do substantivo tem) de dizer o direito no caso concreto”.[42] Logo, o desenvolvimento da recognição realiza-se com a instrução probatória.
Nesse sentido, parte-se do princípio que a parte acusadora (órgão –MP – totalmente independente) promove a peça inicial acusatória no Poder Judiciário, dessa forma, alegando pretenso fato típico ilícito e culpável, pedindo, em sua narração, a aplicação da pena e, consequentemente, o pedido de condenação. Daí que a prova das afirmações do alegado (objeto da prova), ou seja, o que se busca provar no desenvolvimento do processo, são aquelas alegações nos moldes narrados na acusação, essa prova incumbe, tão somente, a parte acusadora. Em síntese, não se busca provar fatos, mas o que se busca provar na instrução probatória são as afirmações da existência dos fatos.[43]
Desta feita, faz-se necessário que a peça acusatória demonstre claramente a tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Deve a peça acusatória narrar os fatos (crime) de forma que não comporte possibilidade de exclusão da tipicidade (formal e material); ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito); e, culpabilidade (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa), desse modo, a constituição do crime deve estar narrada de acordo com a dogmática penal e imputada à infração penal ao acusado.
Em segundo momento, fazendo parte da dialética do processo, há a parte defensora, que é o sujeito processual que tem o dever de apresentar a antítese (defensiva) objetivando desconstruir a peça acusatória, pois reina a favor do acusado o princípio constitucional da presunção da inocência, uma vez que, se a acusação não se sustentar, por haver umas daquelas excludentes (art. 397, incisos I, II e III), impera a favor dele a absolvição sumária.
Portanto, quem possui o ônus de provar a alegação dos fatos é a parte acusadora (MP), cabendo à defesa, tão só, a incumbência de desconstruir a acusação, e não provar absolutamente nada, uma vez que o acusado se beneficia do estado constitucional da inocência ou não culpabilidade (art. 5º, LVII da CF). Logo, é preciso que tal defesa se exerça em igualdade de condições com a acusação (paridade de armas), no aspecto da defesa técnica e realmente efetiva, assegurando, a autodefesa do acusado.
Contudo o art. 156 do CPP traz uma problemática quanto à carga do ônus probatório por atribuir esse ônus tanto à acusação como à defesa e, ainda, na segunda parte desse artigo, nos incisos I e II, há afronta direta ao sistema acusatório, porque prevê a possibilidade real de que o julgador produza provas. Desse modo, a faculdade de atuação interfere diretamente nas atribuições das partes, pois por certo que não é atribuição do julgador ir atrás de provas para dizer ou desdizer o alegado na peça acusatória, mas das partes, a função do juiz é julgar, proferir julgamento, função esta nada fácil. Corroborando esse sentido, indica a doutrina:
“No sistema inquisitorial, o instrutor trabalha solitário: elabora hipóteses e as cultiva, buscando as provas; quando as descobre, as colhe. É um sistema que exclui os diálogos […]. Essas lições são fundamentais quando se trata de analisar o art. 156 do CPP que absurdamente atribui poderes instrutórios ao juiz antes mesmo de haver processo, fundando assim um sistema inquisitório substancialmente inconstitucional.”[44]
Pelo narrado, constata-se que, no sistema inquisitivo, a gestão das provas realiza-se mediante intromissão direta do julgador, ou seja, produz provas e demonstra atitude de parcialidade. Já no sistema acusatório, por ser um sistema de partes, então, o julgador apenas administra as provas e atua com total imparcialidade – atua na recognição assegurando as regras legais instrução probatória. Ou seja, a função do julgador é assegurar o contraditório, sendo este desenvolvido mediante informação (citação, intimação ou notificação).
Conquanto, em sede final, necessário consignar, com mais clareza, os dois posicionamentos divergentes na doutrina acerca da licitude dos poderes de investigação e instrutório do julgador. Uma parte da doutrina, capitaneada por Ada Pelegrini Grinover[45], defende que os poderes instrutórios do juiz estão circunscritos à vinculação probatória oficial e o intento de promoção da igualdade substancial entre os litigantes, sendo que essa promoção se dá mediante atitude ativa do julgador no desenvolvimento do processo.
Ainda, argumenta-se que essa iniciativa instrutória não infringe princípios basilares como o da imparcialidade. Numa abordagem próxima, Badaró afirma que o julgador estaria apenas viabilizando que se introduza no processo um meio de prova; e esse, por sua vez, decorre de uma fonte de prova já existente (no processo), sendo assim, não saberia o julgador a qual das partes iria a prova (alegações de fatos) beneficiar[46].
Por sua vez, importante setor doutrinário (o qual seguimos) afirma que o sistema acusatório não se caracteriza, apenas, pela divisão de funções dos sujeitos processuais, mas transcende a esse postulado[47], e encerra a análise do modelo de sistema processual a partir de princípios como o da imparcialidade, acusatório, não culpabilidade ou presunção de inocência, é lógico, desse último decorre o in dúbio pro reo.
Para esse setor doutrinário, a demarcação do modelo de sistema vincula-se à iniciativa probatória (poderes instrutórios do julgador) a partir daí que se sabe qual é o sistema que o CPP adota, ou seja, se é o sistema acusatório constitucional ou o inquisitivo. Contudo, a hermenêutica no sentido do sistema acusatório, não é extraído do art. 156 do CPP, na medida em que a norma faculta ao julgador o atuar de ofício, e essa faculdade nada mais é do que forte resquício do sistema inquisitivo –visto que o julgador, ainda, na instrução criminal busca a “infeliz” verdade “real”. Logo, a projeção dessa norma nada mais é do que se vincular ao modelo de processo de tradição inquisitorial, que se traduz em processo penal essencialmente neoinquisitorial.
Essa compreensão – de gestão das provas do CPP – circunscreve a tradição de modelo de processo antidemocrático e arbitrário, desse modo, contraria o que preconiza a Constituição Federal, uma vez que ela adota o sistema acusatório, então, necessário que realize interpretação sistemática de alguns artigos, tal como o citado entre outros (v.g., arts. 156, 209, 242, 310, 385, todos do CPP) de modo que a hermenêutica respeite aos princípios constitucionais e normas internacionais, pois o Tribunal Europeu do Direitos Humanos (TEDH) já enfrentou casos de concentração de poder nas mãos do julgador – resquícios do sistema inquisitorial – e posicionou-se no sentido de que quem atua na fase investigativa e, posteriormente, na fase de julgamento, acaba por infringir o art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.[48]
Consequentemente, esse julgado do TEDH trouxe reflexo em decisões no Tribunal Constitucional Espanhol e Corte Costituzionale (Itália)[49], pois várias delas contemplam argumento no sentido de que quem atua na fase investigativa (preliminar) não pode atuar em fase de julgamento, por sua vez, em terra brasilis, constatam-se ares incipientes de um processo mais democrático consubstanciado, sobretudo, em nossa Constituição Federal, visto que algumas decisões de nossos Tribunais[50] perfilham no sentido de realmente assegurar o sistema essencialmente acusatório (processo de partes), respeitando, entre outros, o princípio da imparcialidade.
2. CONCLUSÃO
Em nossa pesquisa, ao buscar analisar os sistemas processuais e a gestão de provas chegamos as seguintes conclusões.
1. O nosso Código de Processo Penal (1941) foi forjado no governo de Getúlio Vargas e à sombra de uma Constituição ditatorial outorgada (1937), em pleno período de governo arbitrário. Ainda, no tocante ao desenvolvimento histórico, presenciamos outros governos autoritários, sobretudo, com o nazismo (Escola de Kiel) e fascismo italiano mussoliniano de Arturo Rocco (Escola Técnica Jurídica), assim, acenando à conclusão de que a nossa legislação de processo penal, ainda, em vigor, foi altamente influenciada pelas ideias ditatoriais, em especial, apresentando conjunto de norma sistematizado com resquícios incompatíveis com o atual Estado Democrático de Direito com ênfase nos Direitos Humanos.
2. Em análise aos sistemas processuais e seus dois princípios, inquisitivo e dispositivo, concluímos que o nosso Código de Processo Penal de 1941 é sistema essencialmente inquisitorial, embora com as reformas processuais haja normas ofertando componentes de estrutura acusatória.
3. Em razão de o CPP ainda conter normas inquisitivas, é necessário que o intérprete julgador atenha-se à filtragem constitucional, de modo a harmonizá-lo em conformidade ao sistema preconizado na Constituição Federal, que é acusatório.
4. Ainda, para que garanta a imparcialidade do julgador, acreditamos que a demarcação do sistema acusatório não é apenas as divisões das funções de acusar e julgar distribuídas em entidades diferentes. E, por assim entendermos, filiamo-nos ao posicionamento doutrinário de que, além dessa análise, requer a verificabilidade quanto à gestão da prova.
5. Gestão de prova significa gerenciamento, e não intromissão, então, o art. 156 do CPP, ao preconizar que o julgador pode agir de ofício, visa indicar interferência direta em matéria de prova, assim como quanto à possibilidade do decreto da prisão preventiva de ofício pelo magistrado (art. 311), sem a oitiva da parte acusatória; decretação de ofício da busca e apreensão (art. 242), entre outros artigos. Tal agir de ofício traduz-se na não observância do contraditório dialético, previsto na Constituição Federal e em instrumentos internacionais.
6. Concluímos que é totalmente plausível afirmar que o processo penal está em crise (por isso se encontra em trâmite o Projeto 156/2009-PLS), cujo momento crítico é da mesma magnitude do nosso direito penal – em razão de vivenciarmos o expansionismo desmesurado do bem jurídico penal aliado com a ideologia do punitivismo –; logo, é momento de grandes reflexões acadêmicas e sem descuidar da ciência processual penal, sobretudo, quanto aos princípios garantistas conquistados mediante derramamento de sangue.
Doutoranda em Ciências Jurídico-Criminais (Universidade Nova de Lisboa – Portugal), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais (Universidade “Clássica” de Lisboa – Portugal), título convalidado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Recife-PE. Especialista em Filosofia pela UFMT. Advogada e Professora da Pós-Graduação. Assessora Jurídica
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