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Solidariedade alimentar: breve ensaio sobre os influxos dos direitos de terceira dimensão em prol da efetivação do direito à alimentação adequada

Resumo: É cediço que alimentação e nutrição configuram elementos indissociáveis para o desenvolvimento humano, compondo, a partir de 1996, com o advento da Cúpula de Roma, de maneira expressa, o rol dos direitos humanos. Nesta esteira, como uma típica manifestação dos ideários de solidariedade, o direito à alimentação adequada passa a transpor o individualismo humano, reclamando, por via de extensão, um agir coletivo, encontrando no gênero humano o destinatário de sua efetiva concretização. No cenário nacional, o direito à alimentação adequada foi incluído no rol dos artigos sociais preconizados no artigo 6º da Constituição Federal, passando, por consequência, a compor o denominado “mínimo existencial socioambiental”, ou seja, os elementos mínimos e imprescindíveis para que o indivíduo possa se desenvolver e tenha uma existência digna. Nesta linha de exposição, o presente objetiva promover uma análise sobre a concretização do direito em comento a partir da participação popular. [1]

Palavra-Chave: Direito à Alimentação Adequada. Solidariedade Alimentar. Mínimo Existencial Socioambiental.

Abstract: It’s musty that food and nutrition constitute inseparable elements for human development, composing, from 1994, with the advent of the Summit of Rome, express way, the human rights list. On this track, as a typical manifestation of solidarity ideals, the right to adequate food passes to cross the human individualism, claiming, by extension via a collective act, finding the human race the recipient of its effective implementation. In the domestic scenario, the right to adequate food was included in the list of social goods envisaged in Article 6 of the Constitution, passing therefore to compose the so-called “environmental existential minimum”, ie, the minimum and indispensable elements for the individual can develop and have a dignified existence. In this display line, the objective this promote an analysis of the realization of the right in comment from the popular participation.

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Keyword: Right to Adequate Food. Food solidarity. Minimum Environmental Existential.

Sumário: 1. Introdução; 2. Delineamento do vocábulo “solidariedade”: o reconhecimento da terceira dimensão dos direitos fundamentais; 3. O direito humano à alimentação adequada em pauta: caracterização e delineamento; 4. Solidariedade alimentar: os influxos da moldura caracterizadora do vocábulo solidariedade em sede de DHAA; 5. Considerações finais.

1 INTRODUÇÃO

Há que se reconhecer, inicialmente, que a temática da fome materializa assunto dotado de complexidade e de difícil abordagem pela sociedade, sobretudo em decorrência da fome estar diretamente associada à pobreza, a condições consideradas impróprias para o desenvolvimento humano e, até mesmo, à capacidade de retirar do faminto sua dignidade. Contudo, apesar da negação, este é um problema real que assola as sociedades desde os primórdios das civilizações, delineando diversos momentos de crise, nos quais a fome assumia sua feição mais potencializada, denominada carestia, tornando-se fator de desagregação social. Nesta linha de exposição, cuida ponderar que a fome encontra sua origem, sobretudo na contemporaneidade, em outras mazelas sociais, sobremaneira na desigualdade social e econômica e a ausência de distribuição de alimentos de forma isonômica.

Assim, é possível afirmar que as mazelas sociais têm o condão de gerar um “efeito cascata”, desencadeando uma série de outros problemas, os quais vão substancializando um cenário caótico, no qual a população desprovida de condições econômicas é a maior vítima. Entender esse dilema, como ponto de partida da análise proposta no presente, apresenta-se como fundamental. Ora, combater a fome, sobretudo na contemporaneidade, tornou-se uma tarefa hercúlea, um verdadeiro desafio consistente em assegurar a todos o acesso à alimentação adequada e, com isso, ter condições mínimas para assegurar desenvolvimento físico, psíquico e intelectual e, por extensão, a concretização do ideário maior de dignidade da pessoa humana. Em tal cenário, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) desempenha papel fundamental, porquanto seu objetivo maior é aumentar a capacidade internacional para que, de forma eficaz, seja promovido o suporte adequado e sustentável para a segurança alimentar e nutrição global.

Desta feita, para que seja possível ter-se uma dimensão do tamanho de tal problemática, quadra reconhecer que alguns dados são fundamentais. Segundo a FAO, cerca de 1,3 bilhão de toneladas de tudo que é produzido por ano é desperdiçado, ou seja, não chega a finalidade a que se destinaria. Ora, 30% (trinta por cento) da produção mundial se perdem na cadeia produtiva e obsta a concretização do direito à alimentação adequada. O desperdício é responsável por cerca de 8% das emissões globais de efeito estufa. Além disso, a produção de alimentos é a principal responsável pelo desmatamento, pela ampliação das fronteiras produtivas e pelo esgotamento de água do planeta. Portanto, mesmo que a produção anual de alimentos tenha alcançado elevados patamares de qualidade e seja mais do que suficiente para atender a população mundial, elevado é o número daqueles que sofrem fome crônica no século XXI. Neste sentido, convém apresentar o Mapa da Fome produzido pela FAO, referente ao biênio 2014-2016:

Ora, é ilógico que, com tanto alimento de qualidade sendo produzido no mundo anualmente, o número de pessoas atingido pela fome seja tão elevado. De acordo com os estudos apresentados pela FAO (2016), os maiores índices de fome estão concentrados na Ásia e na África, como se percebe dos dados apresentados: (i) 15,2% da população total da Índia é subnutrida, o que equivale a 194,6 milhões de pessoas; (ii) 16,4% da população de Bangladesh, o que perfaz o número de 26,3 milhões de pessoas; (iii) 47,7% da população da República Centro Africana, o que perfaz 2,3 milhões de pessoas; (iv) 47,8% da população da Zâmbia, isto é, 7,4 milhões de pessoas; (v) 42,3% da população da Namíbia, ou seja, cerca de 1 milhão de pessoas. Entretanto, a problemática não se encontra limitada apenas aqueles continentes, mas também é verificada no continente americano, sendo possível, ainda, fazer alusão: (i) 53,4% da população do Haiti, ou seja, 5,7 milhões de pessoas; (ii) 16,6% da população da Nicarágua, isto é, 1 milhão de pessoas; (iii) 15,9% da população da Bolívia, o que equivale a 1,8 milhões de pessoas.

No cenário nacional, a temática da fome, segundo os dados da FAO (2016), apresentou elevada evolução, reduzindo os índices de subnutridos. Neste sentido, convém mencionar que, no período entre 2000-2002, o Brasil apresentava uma população de 19,9 milhões de pessoas subnutridas (FAO, 2016). Contudo, a partir do período 2005-2007 há um salto qualitativo, reduzindo o número de subnutridos a número inferior a 5% da população em estado de subnutrição, o que é verificável no período 2010-2012 e 2014-2016. Ora, há que reconhecer que esses índices sofreram diminuição em especial devido ao programa de redistribuição de renda encampado pelo governo federal, o que se deu, em especial, com o Programa Bolsa Família. Vale ressaltar que o direito à alimentação adequada substancializa um proeminente direito humano e tem amparo jurídico. Isso significa dizer, que a legislação brasileira protege o direito de alimentação da pessoa humana, e mais que isso, tem o intuito de garanti-lo, sendo isso graças à emenda constitucional 064/2010, onde passou a figurar o mesmo, no artigo 6º como direito social.

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).

O real problema da fome vai além de não se ter o que comer, ou seja, identificar a alimentação como uma simples ração a ser distribuída periodicamente, pois não basta ter o que comer, mas sim é necessário comer com qualidade, em quantidade suficiente e hábitos culturalmente aceitáveis para que se supram as necessidades biológicas humanas. Trata-se, aqui, não da fome aguda, aquela passageira, o real intuito deste artigo é falar sobre a fome crônica, aquela a que milhões de pessoas estão expostas.

2 DELINEAMENTO DO VOCÁBULO “SOLIDARIEDADE”: O RECONHECIMENTO DA TERCEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Antes de abordar o que seria propriamente dito o conceito de solidariedade, cabe, aqui, remontar e tratar das dimensões dos direitos fundamentais, para que seja possível, dessa forma, entender, como surgiu e como atinge os indivíduos tal concepção. Os direitos fundamentais, pilares da sociedade, encontram, em seu florescimento, inspiração nos ideais da Revolução Francesa, que tinham como lema os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade (liberté, egalité e fraternité), e, assim, como tal vêm trazer a lume as vontades, anseios e direitos do povo, daquele que não é adornado com privilégios e regalias, ou seja, esses direitos desempenham a função de “barreiras” que protegem o cidadão.

“A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na defesa jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo (sic), o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos” (liberdade negativa). (CANOTILHO apud MORAES, 2003, p. 58).

Ainda de acordo com Cunha Júnior (2013), se a dignidade da condição humana reclama o respeito a determinados bens ou valores em qualquer circunstância, responsável pelo aparecimento de direitos humanos, concernentes às liberdades públicas, à exigência de condições sociais aptas a permitir a realização de todas as virtudes do ser humano. O movimento histórico de expansão e afirmação progressiva dos direitos humanos fundamentais que reclama o estudo da temática na evolução do tempo. Os direitos fundamentais vão se dividindo em várias dimensões e, sobre essa expansão, Cunha Júnior (2013, p. 586) explica que essa “corresponde a uma sucessão temporal de afirmação e acumulação de novos direitos fundamentais”. E completa:

“As gerações dos direitos revelam a ordem cronológica do reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais, que se proclamam gradualmente na proporção das carências do ser humano, nascidas em função da mudança das condições sociais”. (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 588).

A partir desse pensamento que se pode entender o porquê do conceito de solidariedade só vir à tona para discussão agora, pois é com o evoluir da sociedade que vai se dando o seu reconhecimento e sua concretização. Os direitos fundamentais que compõem a primeira dimensão são em geral ligados a ideia de liberdade, ou seja, direitos civis e políticos. Fazem-se presentes em todas as constituições das sociedades democráticas. Nesta dimensão os direitos fundamentais têm como foco o cidadão, são individualistas, portanto, aqui o indivíduo tem reconhecidos os seus direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança, à igualdade de todos perante a lei, o direito a livre iniciativa, a liberdade de opinião, a liberdade para escolha de sua profissão. A pessoa passa a ser senhora de sua vida, escritora de sua própria história.

Preciosas são as palavras de Dirley da Cunha Júnior (2013, p.595) ao referenciar que tais direitos “são denominados de direitos de igualdade, porque são animados pelo propósito de reduzir material e concretamente as desigualdades sociais e econômicas até então existentes, que debilitavam a dignidade humana”. Em complemento, Bonavides (2007, p. 563) vai apontar que “os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”, aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais.

Neste ponto, o Estado respeita a condição livre de cada indivíduo. Isso significa dizer que aquele Estado que tem por objetivo a consagração de direitos de primeira dimensão é liberal, ou seja, que simplesmente se abstém de intervir na liberdade da pessoa humana. Por isso, inexiste a estruturação de para a atuação em um contexto social, característica essa que se contrapõe ao Estado solidário.

Para Cunha Júnior (2013, p. 663), os direitos considerados típicos da primeira dimensão são “todos aqueles que visam à defesa de uma autonomia pessoal no âmbito no qual o indivíduo possa desenvolver as suas potencialidades e gozar de sua liberdade sem a interferência indevida do Estado e do particular”. Neste caso, conclui-se que os direitos de liberdade são assegurados a todos, sendo característico de um governo democrático que concede ampla miscigenação de ideias e opiniões populares, reconhecendo na afirmação da liberdade do indivíduo e na proteção de seus direitos mais basilares, a exemplo de vida, liberdade, livre manifestação e integridade, como expressões claras do reconhecimento do indivíduo como cidadão.

Entretanto, como dito acima, ao passo que o indivíduo e a sociedade evoluem esses direitos passam a não ser mais suficientes, e não imprimem mais a realidade de seu tempo. Tratam-se, agora, dos direitos de segunda dimensão (igualdade), direitos sociais, culturais e econômicos, ligados, intrinsecamente, à igualdade do lema supracitado da Revolução Francesa. O Estado, mesmo na sua forma mínima, emerge para garantir os direitos dos cidadãos, contudo não se confunde ainda com a concepção ideológica de solidariedade. Seu surgimento é marcado, em geral, por movimentos de cunho social e oposição à exploração desmedida das classes trabalhadoras e operárias, sobretudo sob o argumento do combate ao lucro e a acumulação de riqueza como justificativa para extenuantes jornadas de trabalho. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal” (BONAVIDES, 2007, p. 564). Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade.

Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da história é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”, como bem evidencia Ferreira Filho (2004, p. 47). Cumpre explanar que o Estado nesta dimensão possui um papel dessemelhante do anterior. Melhor dizendo, agora ele passa a agir e garantir o mínimo necessário para que o indivíduo possa ter condições materiais de usufruir os direitos que lhe são consagrados. É a figura do Estado do Bem-estar Social (welfare state) em busca da diminuição das desigualdades sociais, proporcionando até mesmo proteção aos mais fracos. Como, por exemplo, uma pessoa tem o direito à inviolabilidade do domicílio, mas não tem domicílio. Logo, o intento da segunda dimensão é propiciar condições mínimas para que os cidadãos venham exercer plenamente seus direitos de primeira dimensão.

Esses devem ser considerados segundo Cunha (2013, p. 587) “como instrumentos de viabilização das próprias liberdades públicas, cujo gozo pressupõe o direito de acesso aos meios de existência”. Logo, neste ponto, o Estado enquanto governo, se levanta em favor do povo usando os seus poderes contra os abusos experenciados pela classe trabalhadora e operária. Portanto, declara Cunha (2013, p. 587) “as liberdades públicas, tornar-se-iam pura utopia se o poder público não interviesse para criar as condições materiais necessárias que habilitassem o indivíduo a efetivamente exercê-las”. Vale ressaltar que esta dimensão não substitui à anterior, ao avesso disso, permite um acréscimo ao rol dos direitos já garantidos. Isto é, conforme novas necessidades vão surgindo, novos direitos são gerados. Conforme assevera Dirley da Cunha Júnior (2013, p.586), “o progressivo reconhecimento de novos direitos fundamentais consiste num processo cumulativo, de complementaridade, onde não há alternância, substituição ou suspensão temporal de direitos anteriormente reconhecidos”.

A terceira dimensão dos Direitos Fundamentais remete-se a direitos metaindividuais, também chamados de direitos de solidariedade e fraternidade, dando-se aqui o verdadeiro motivo pelo qual foi relatado acima todas as dimensões anteriores, para que se possa entender que o conceito de solidariedade vai além de garantir liberdades, vai além de buscar respeitar e concretizar essas liberdade, trata-se do dever do Estado de solidariedade para com seu cidadão, não sendo aqui, solidariedade no sentido de caridade, mas no sentido de dever, de obrigação. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo” (BONAVIDES, 2007, p. 569) ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Essa dimensão recebe esse título, pois segundo Cunha Júnior (2013, p.599) “caracterizam-se por destinarem-se à proteção, não do homem em sua individualidade, mas do homem em coletividade social, sendo, portanto, de titularidade coletiva ou difusa”. Ou seja, possuem maior amplitude, por serem direitos que atingem a todos e não somente a uma pessoa de forma individual.

“[…] marcados pela alteração da sociedade, por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e cientifico), as relações econômico-sociais se alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade” (LENZA, 2008, p.588).

Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo” (MOTTA; BARCHET, 2007, p. 152). Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas.

Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (BONAVIDES, 2007, p. 569). A respeito do assunto, Motta e Barchet (2007) ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações.

Dizer que o ser humano tem direito a solidariedade, quer dizer que o Estado deve zelar pelos direitos dos cidadãos, deve garantir que este viva de forma digna, que tenha acesso a alimentação, saúde, educação, lazer e trabalho de qualidade, mas também impõe a sociedade, de maneira geral, um agir pautado no pensamento coletivo, preocupado com os concidadãos e superando a tradicional perspectiva individualista. Esses direitos surgem em pleno século XX, em decorrência das barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial. O cenário foi propício para os novos direitos alcançados: direito à paz, à solidariedade universal, ao reconhecimento recíproco de direitos entre vários países, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, e à comunicação.

Segundo Fachin e Silva (2012), os direitos fundamentais, consagrados na terceira esfera, podem ser vistos como escudos protetivos em favor das garantias coletivas e difusas. Os direitos desta dimensão, diferentes dos direitos das dimensões citados anteriormente, não tem como objetivo a liberdade ou a igualdade, mas sim a preservação da própria existência do grupo, do ser humano em si e mais que isso, a perpetuação desse. Portanto, conceituar solidariedade tornar-se-ia impossível se não o fizesse com devido respaldo de como ocorreu o desdobramento dos direitos fundamentais nas dimensões anteriores, dessa forma o principio de solidariedade é nitidamente expresso na Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988).

Nesta linha de exposição, denota-se que o constituinte buscava deixar clara a posição do Estado quanto aos cidadãos, qual seja: um Estado que além de dar direitos (primeira dimensão), dar maneiras pelas quais esses direitos poderiam ser exercidos, políticas públicas (segunda dimensão), daria, também, a oportunidade e a responsabilidade de que os entes sejam responsáveis e solidários uns pelos outros, tornando a violação do direito de um individuo, a violação do direito de todos os indivíduos da cidade, estado federado, país, continente e planeta. Ou seja, isso quer dizer, que as milhares de criança que sofrem de inanição na África todos os dias, é problema de cada individuo do planeta, porque quando uma criança enfrenta a desnutrição grave e a fome, o seu Direito Humano a uma Alimentação Adequada (DHAA) é ferido e junto com ele é ferido o Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) de cada indivíduo. Isso vem desmontar a ideia de o “meu” direito ou o “seu” direito, o que existe agora é um direito uno, indivisível, que deve ser cuidado e preservado por todos.

3 O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA EM PAUTA: CARACTERIZAÇÃO E DELINEAMENTO

Na mesma linha, buscando ainda compreender de forma profunda o conceito de solidariedade e como essa deve ser inserida na vida social, cabe retratar o que seria verdadeiramente o Direito Humano à Alimentação Adequada e quais são suas implicações no campo pratico do direito. O direito à alimentação começa a ser citado e notado como direito humano na Convenção de Genebra (1864), na qual se identificou o poder do alimento como forma de dominação de um ser humano sobre outro, de um Estado sobre o outro e até mesmo como uma possível arma de guerra. Posteriormente, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), foi reconhecido internacionalmente normativamente como um direito humano, a alimentação adequada, em seus artigos 25 e 11 consecutivamente.

“Art. 25 Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, s.p.).

“Art. 11 Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos […]” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966, s.p.).

Buscando, ainda, a efetiva concretização desses direitos, partindo do principio de que, se esses permanecessem apenas no plano teórico, não passariam de mera utopia, em 1966, na Cúpula Mundial de Alimentação (CMA), reconheceu-se como um direito fundamental estar o homem livre da fome e, como resultado disso, nasce um Plano de Ação que apontava sete compromissos que buscariam a erradicação da pobreza e da desigualdade e a promoção da segurança alimentar para todos. Em complemento as ponderações apresentadas até o momento, é possível, ainda, se socorrer das lições de Castro, que acenam no sentido que:

“Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo” (CASTRO, 1984, p. 21).

É imprescindível dizer, portanto, que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) encontra intrínseca relação com o direito à vida, comportando, por vezes, “confusão” ideológica em seu núcleo sensível. Tal fato, destaque-se, decorrer da premissa que a alimentação é condição básica para o exercício do direito à vida e, dessa forma, portanto, fica demonstrado incontestavelmente a importância do reconhecimento e da concretização da essencialidade que o DHAA passa a ser revestido. Neste passo, cuida ponderar que o acesso à alimentação é um direito humano centrado em si mesmo, reconhecendo-se, portanto, que o direito à alimentação constitui o próprio direito à vida. Neste aspecto, negar o direito em comento, antes de qualquer coisa, é negar a primeira condição para o exercício pleno da cidadania que é o próprio direito à vida.

Prosseguindo na discussão da temática, é imperioso sublinhar que o Direito Humano à Alimentação Adequada inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2008, p.15). A relação do homem com a alimentação extrapola os fenômenos químicos necessários para a subsistência do individuo, há toda uma cultura ritualística no ato de se alimentar e, sobretudo, há toda uma gama de responsabilidade histórica na ideia de alimentação, já que este é um dos principais motivos pelo qual surgiram as sociedades, e as mesmas evoluíram, ou seja, alimentar-se é preciso, e pode ser feito com mais facilidade em grupo. Primeiramente com a caça, a pesca e a colheita, com os nômades; posteriormente com surgimento da agricultura, nas sociedades mais evoluídas; e, assim por diante, com o surgimento do comércio, por exemplo. Ou seja, a busca pelo alimento, levou o homem a evoluir, o ensinou viver em sociedade.

“A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer” (CASTRO, 1984, p. 05)

Dito isso, é fácil concluir que a alimentação mudou, evoluiu, e com a multiplicação da população mundial, multiplicou-se também a carência por alimentos e, da mesma forma, a necessidade de uma correta distribuição dos mesmos para essa população. O que lamentavelmente inúmeras vezes não ocorre, ferindo assim o DHAA de cada individuo, tanto daquele que passa fome, quando daquele que não passa, já que como supracitado, a responsabilidade de solidariedade trazida pela terceira dimensão dos direitos fundamentais, impõe que quando um único individuo tem seu DHAA ferido, o DHAA de cada individuo do planeta é ferido da mesma forma. Isto é, enquanto houver no planeta um único indivíduo sofrendo de fome, nenhum ser humano terá seu DHAA concretizado. Vale ressaltar que a fome em si, é um problema tão grave, que segundo estudos, as diferenças entre os indivíduos que enfrentam a fome e os que não enfrentam, se manifestam fisicamente e posteriormente intelectualmente, o que por si só gera um circulo vicioso, considerando que essa desnutrição seja causada pelo fator financeiro, já que um indivíduo desnutrido tem sua capacidade intelectual diminuída, já que o cérebro não tem fontes energéticas, nutricionais e hormonais para realizar as sinapses necessárias para a conclusão de raciocínios mais complexos.

“[…] outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda mais alarmante, pois se refere à região considerada mais sadia de todo o Brasil: o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de São Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianças gaúchas (1 milhão em 2 milhões e 600 mil) são desnutridas (sic). A desnutrição é responsável pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evasão escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava série do ensino fundamental. A desnutrição é causada pela falta de alimentos, dificuldades econômicas e desconhecimento dos princípios de alimentação balanceada. Uma criança de quatro anos da classe A (isto é, das camadas ricas da população, lembro eu), diz a revista, é em geral, 9,19 centímetros mais altas que uma da classe B (isto é, das camadas populares, lembro eu) e seu peso é superior” (CASTRO, 1984, p. 13).

Isso quer dizer concretamente, que no Brasil temos coexistindo dois tipos de população, uma biologicamente superior e outra biologicamente inferior. Dizer isso parece cruel, mas retrata exatamente o que acontece no país, talvez dessa forma, seja possível alertar o tamanho do problema enfrentado, a gravidade e a complexidade disso, tampo para o direito, quanto para a evolução dessa sociedade, que hoje, já enfrenta números expressivos de desigualdade social, e que só tende a aumentar, pois quanto mais gerações enfrentam essa fome, mais se distanciam esses dois grupos. Josué de Castro em sábias palavras sintetiza essa situação em uma frase, que talvez devesse ser estampada em todos os meios de comunicação possíveis, para que ao mesmo tempo em que chocasse, alertasse para uma realidade que a sociedade atualmente tão capitalista não enxerga: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come” (CASTRO, 1984, p. 14).

O direito humano à alimentação adequada substancializa o direito de todos os seres humanos vivos, entendendo-se neste contexto também o direito de alimentação do nascituro, já que apesar de não nascido, este tem seus direitos resguardados. No primeiro momento, pode parecer óbvio, já que a alimentação do feto depende no primeiro momento da alimentação da mãe, assim como na fase do aleitamento exclusivo, entretanto cabe ressaltar, que no período de gestação, a gestante em prol do nascituro carece de vitaminas, que supram a alimentação, sendo assim, portanto, tais vitaminas não são essenciais para a vida da gestante, mas são fundamentais para a manutenção da vida do nascituro. Dessa forma, entende-se, portanto, que fica assim resguardado também o direito ao acesso a tais vitaminas. Há uma extensão robusta do direito à alimentação adequada, inclusive, para aqueles que foram concebidos, mas, ainda, não nascidos, a fim de resguardar o acesso à possibilidade de desenvolvimento desde o útero materno.

Cabe, no mesmo sentido, destacar os diferentes tipos de fome enfrentados atualmente, a saber: a fome aguda e a fome crônica, bem como quais serão as implicações dessas no DHAA de cada indivíduo. Primeiramente, a fome aguda, que é a fome momentânea, ocorre pela privação de alimentação pelo um determinado espaço de tempo; De outro lado, tem-se a fome aguda, que é, realmente, a mais relevante para esse estudo, já que essa é a que causa ao faminto a permanente falta de alimento suficiente para suprir suas necessidades energéticas e nutricionais, é a fome que causa a desnutrição, a perda ou, então, a falta do ganho de peso e que torna os indivíduos, na grande maioria das vezes, menor, em quesito de estatura e de desenvolvimento de suas capacidades biológicas. Neste ponto, vale ressaltar que essas características ficam muito claras e contrastadas na fase da adolescência, fase que comumente o indivíduo daria o chamado “estirão”, ou seja, uma fase em que o indivíduo cresce e tem grandes transformações corporais rapidamente.

Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista económico” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas.

A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluidos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela.

4 SOLIDARIEDADE ALIMENTAR: OS INFLUXOS DA MOLDURA CARACTERIZADORA DO VOCÁBULO SOLIDARIEDADE EM SEDE DE DHAA

A possibilidade constitucionalmente reconhecida em prol da participação popular configura um dos mais robustos elementos constituintes do Estado Social de Direito, vez que todos os direitos sociais são a estrutura essencial de uma saudável qualidade de vida, que é um dos pontos cardeais da tutela ambiental. Com realce, a efetiva estruturação do Estado Democrático de Direito reclama o fortalecimento do corolário da obrigatoriedade de atuação estatal e do preceito da participação comunitária, por meio da participação da sociedade nas questões socioambientais, abrangendo a ação conjunta do Estado e da coletividade na preservação dos recursos naturais, bem como na concreção dos direitos fundamentais. Ora, “essa participação também não é substitutiva da atuação do Poder Público. A proteção dos interesses difusos deve levar a uma nova forma participativa de atuação dos órgãos públicos, desde que não seja matéria especificamente de segurança dos Estados” (FACIN, 2002, s.p.). Digno de nota ainda, é que a participação, consagrado entre os ideários do presente baldrame são responsáveis por atuar como maciços sustentáculos do Estado Democrático de Direito, vez que dá corpo a própria democracia, assim como seu exercício.

Ora, diante deste cenário, cuida reconhecer que a denominada “solidariedade alimentar” encontra-se vinculada na efetiva participação comunitária na realização do direito à alimentação adequada. Trata-se, com efeito, de um agir ativo em prol daqueles que não possuem, por vezes, acesso à alimentação, sem que isso implique em uma dependência absoluta da atuação estatal e de seus programas. Obviamente, primar pela solidariedade alimentar significa envidar esforços, sobretudo a partir de uma atuação orgânica advinda do seio da população, a fim de estruturar mecanismos e programas sociais que assegurem a concreção do direito em comento. Neste contexto, inúmeras outras instituições atuam na tentativa de transformar a realidade em que vivem, como as organizações sem fins lucrativos. Esses tipos de entidades são movidas pela vontade de ajudar o próximo, reconhecendo como agente transformador da realidade local e identificando o gênero humano como unidade, superando a individualidade como aspecto característico, e têm conseguido expressivos resultados nas áreas em que existem.

Como exemplo claro da verificação da “solidariedade alimentar”, como valor orgânico do agir comunitário, pode ser citado o “Projeto Hortão Comunitário”, no Bairro Village da Luz, um dos bairros que apresenta altos índices de população desassistida pelo Poder Público do Município Cachoeiro de Itapemirim – ES. Neste projeto, a população do bairro tem a possibilidade de visitar a horta comunitária, bem como se beneficiar do que é produzido, incorporando em sua alimentação hortaliças e verduras de qualidade e sem agrotóxico. Destaque-se que o projeto, com o escopo de fomentar o fortalecimento da participação da comunidade, não utiliza de qualquer cadastro prévio ou burocracia, adotando, para tanto, o ideário de que todos aqueles que necessitam poderão usufruir da produção local. É interessante, ainda, apontar que a experiência do “Hortão Comunitário” do Bairro Village da Luz já fora implantada em outra oportunidade, porém, aos poucos, justamente em decorrência da comunidade não reconhecer o projeto como algo orgânico em sua realidade, abandonou, até sua completa desativação. No ano de 2015, o projeto foi reimplantado, acompanhado da conscientização da população que poderia usufruir de seus benefícios, produzindo, desta vez, resultados positivos e de significativa relevância para a população.

Outro projeto que tem produzido benefícios para a população local é o “Vill’Agindo para ser feliz”, cuja espinha dorsal está estruturada na participação comunitária e na implementação da solidariedade como elementos capazes de desempenhar modificações na realidade dos indivíduos. No projeto são atendidas aproximadamente 250 (duzentas e cinquenta) crianças, adolescentes e jovens residentes no bairro Village da Luz e entorno (Bairro Rubem Braga e Conjunto Fé e Raça), com atividade que visam a participação dos usuários em oficinas culturais, esportivas, recreativas e encontros de formação que despertam o protagonismo juvenil, estimulando habilidades, potencialidades e talentos. Além disso, o projeto em comento, apesar do foco sociocultural, destina esforços para assegurar acesso à alimentação adequada aos participantes, que, em sua maioria, é constituída por uma população que carece da solidariedade alimentar para ter efetivado tal direito.

É, exatamente, neste ponto que reside a grande questão, agir de maneira autônoma e organizada, conferindo protagonismo à população como elemento capaz de provocar, assegurar e possibilitar a concreção de direitos, em especial o direito à alimentação adequada por meio de projetos e propostas emancipatórias e inclusivas. Trata-se, igualmente, de reconhecer a corresponsabilização de todos no processo de gestão e efetivação de direitos. Os projetos brevemente apresentados configuram mecanismos, em uma comunidade caracterizada pela diminuta assistência do Poder Público Municipal, de concretização da responsabilidade coletiva e do desenvolvimento do discurso da solidariedade como elemento propulsor, tal como de corresponsabilidade de um indivíduo pelos demais, alcançando a máxima da terceira dimensão dos direitos humanos, encontrando o gênero humano como destinatário e não mais o indivíduo isolado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o artigo 2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessária para promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de alimentação requer a presença de alimentos em qualidade, em quantidade e de maneira regular, a fim de que haja concretização do ideário de dignidade que reveste a vida humana. A reunião dos três pilares materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional e direito humano à alimentação adequada. Denota-se que está se valendo da premissa de acesso de alimentos, o que é diferente de disponibilidade de alimentos, já que esses podem estar disponíveis, mas as populações mais pobres podem não ter acesso a eles, em decorrência da renda ou outros fatores.

É possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser humano. Neste cenário, a concepção que orbita no em torno da locução “solidariedade alimentar” configura visão contemporânea de concretização dos direitos humanos, em especial o direito à alimentação adequada, por meio de uma atuação ativa, organizada e orgânica da coletividade, substancializando o ideário da coletividade (gênero humano) como destinatário dos direitos humanos e ultrapassando o discurso individualizado.

 

Referências
MENDES, Alissandra. Hortão comunitário vai beneficiar famílias. Jornal Aqui Notícias. Disponível em: <http://www.aquinoticias.com/social/2015/08/hortao-comunitario-vai-beneficiar-familias/1497439/>. Acesso em 25 ago. 2016.
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__________. Emenda Constitucional nº 64, de 04 de Fevereiro de 2010. Altera o art. 6º da Constituição Federal, para introduzir a alimentação como direito social. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm>. Acesso em 25 ago. 2016.
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FACIN, Andréia Minussi. Meio Ambiente e Direitos Humanos. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 60, 01 nov. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3463>. Acesso em 26 ago. 2016.
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Fundamentais. 6 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
Nota:

[1] Artigo vinculado ao Projeto de Iniciação Científica intitulado “O direito humano à alimentação adequada (DHAA) em uma ótica regionalizada: os impactos da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional em Cachoeiro de Itapemirim-ES, à luz dos equipamentos públicos de alimentação”.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Viviane da Silva Fidelis

 

Acadêmica de Direito do Instituto de Ensino Superior do Espírito Santo IESES Unidade Cachoeira de Itapemirim

 

Tauã Lima Verdan Rangel

 

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES

 


 

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