Como o direito à vida é o mais sagrado de todos os direitos, é necessário gerar mecanismos que garantam o cumprimento da obrigação de prover o sustento de quem não tem condições de manter-se sozinho.
Essa é a razão de o direito a alimentos receber regramento especial. Não só a ação para buscar a imposição do dever alimentar dispõe de lei própria, mas também outro não é o motivo de a execução da dívida de alimentos dispor de várias formas procedimentais para obter o seu adimplemento de maneira mais ágil e eficaz. O tratamento diferenciado justifica-se por si só. Entre a liberdade e o direito à vida, há que assegurar a sobrevivência de quem necessita perceber alimentos. Tanto é assim que a garantia constitucional que impede a prisão por dívidas comporta exceções (CF, art. 5º, LXVII): não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia…
Daí a possibilidade de buscar a execução de obrigação alimentar sob pena de coação pessoal. O procedimento está consagrado no artigo 733 do Código de Processo Civil, que autoriza a citação do devedor para, em três dias: efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo, sob pena de prisão de um a três meses. Também a Lei de Alimentos, para assegurar o pagamento dos alimentos, permite o decreto de prisão do devedor até 60 dias (Lei 5.478/68, art. 19).
Normas rigorosas tendem a ser interpretadas de forma restritiva, havendo uma busca incessante de contornar o seu verdadeiro sentido. A postura dominante é limitar ao máximo esta modalidade de cobrança, que, na prática, sempre se revelou como a de maior eficiência e efetividade imediata. Decretada a prisão, acaba o devedor pagando a dívida. Mas, como há diferentes limites temporais de aprisionamento, a tendência é não admitir a imposição da pena por período superior a 60 dias. Até com referência ao regime prisional há a recomendação de o cumprimento da pena ocorrer em regime aberto, sob a justificativa de permitir que o devedor trabalhe e, então, possa pagar os alimentos.
Na tentativa de assegurar o uso dessa forma executória, a jurisprudência consolidou-se no sentido de admitir o rito do apenamento somente com referência a três prestações alimentícias vencidas à data da propositura da demanda. O fundamento, de todo insubsistente, é que dívida anterior a tal período perde sua natureza alimentar, passando, em um passe de mágica, a dispor de feição indenizatória.
De outro lado, como a lei fala em ‘execução de sentença ou decisão’, há quem negue tal rito quando os alimentos foram fixados por acordo, ainda que referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria ou pelos advogados dos transatores, e apesar de tais avenças constituírem títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 585, II). Há, inclusive, decisões que olvidam a regra que determina a aplicação supletiva do processo de conhecimento (CPC, art. 598) e sequer admitem a citação do devedor por hora certa ou edital.
Também sob o mesmo fundamento havia expressivo número de julgados que negavam a aplicação de distinto dispositivo da lei processual. Diz o artigo 290 do Código de Processo Civil que, em se tratando de obrigação constituída em prestações periódicas – como o é a obrigação de pagar alimentos –, a condenação compreende as prestações vencidas no curso do processo. Porém, enorme era a dificuldade de invocar dita regra para o processo executório, impondo ao credor que, a cada três meses, ingressasse com nova ação, transformando a cobrança dos alimentos em um punhado de demandas.
Apesar de todos esses desencontros, a jurisprudência tendia a admitir o uso da execução coacta para a cobrança das três parcelas vencidas antes da propositura da demanda, safando-se o devedor da prisão somente mediante o pagamento de toda a dívida: as parcelas objeto da execução e mais as que se venceram até a data do efetivo pagamento.
A falta de uniformidade das decisões judiciais levou o STJ a sumular a matéria (Súmula 309): O débito alimentar que autoriza a prisão do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores à citação e as que se vencerem no curso do processo. Ainda que correta a definição do que deve ser considerado adimplemento da dívida, ou seja, que no seu montante se incluem as parcelas vencidas durante a tramitação da execução, o enunciado contém mácula que impõe imediata retificação. De forma absolutamente equivocada, estabelece que o período de abrangência da execução corresponde somente às prestações vencidas antes da citação do devedor, e não às impagas antes da propositura da ação. Tal assertiva se afasta dos próprios antecedentes indicados como parâmetro para sua edição, que não sufragam o mesmo entendimento. Sete deles, de modo expresso, indicam como marco a data do ajuizamento da ação e somente três dos julgados invocados fazem referência à data da citação.
Urge, portanto, que a Súmula seja retificada, pois baseada em jurisprudência que não serve para referendar a normatização levada a efeito. A mudança, frise-se, se faz urgente, sob pena de se incentivar que o devedor se esquive da citação, esconda-se do Oficial de Justiça e, de todas as formas, busque retardar o início da execução, pois, enquanto não for citado, não se sujeita a ser preso. Claro que o devedor vai tornar-se um fugitivo! Quanto mais tempo levar para ser citado, mais parcelas serão relegadas à modalidade executória cuja efetividade é consabidamente ineficaz em se tratando de obrigação de alimentos. Significa que as mensalidades pretéritas só poderão ser cobradas pelo rito da penhora, sujeitando-se o credor a esperar pela venda em hasta pública de algum bem de que o devedor eventualmente seja proprietário (CPC, art. 732).
Assim, ainda que o enunciado mereça aplausos pela definição do termo final da dívida, o retrocesso em que incidiu o STJ, no que diz com o início da obrigação a ser cumprida sob pena de prisão, acaba deixando de assegurar o direito à sobrevivência para privilegiar a liberdade daquele que não tem a responsabilidade de garantir a subsistência a quem deve alimentos.
A súmula, até ser corrigida, está a ferir de morte o direito à vida.
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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