Resumo: O trabalho que se segue se presta a analisar a eventual inconstitucionalidade da Lei de Recursos Repetitivos e, em conseqüência, a possível responsabilização civil do Estado em virtude dos danos causados aos consumidores pseudo-devedores, traçando uma abordagem específica ao caso da inscrição em cadastros de inadimplentes.
Sumário: 1. Nota Introdutória 2. A Lei de Recursos Repetitivos e seu efeito fabril 3. A aplicação da Lei, sua inconstitucionalidade e o caso concreto: inscrição em cadastros de proteção ao crédito 4. A teoria da perda de uma chance 5. A perda da chance de apreciação do direito 6. A natureza indenizatória da perda de uma chance: dano emergente, lucro cessante ou dano moral 7. A Responsabilidade Civil do Estado e seu caráter objetivo 8. Síntese Conclusiva.
Palavras-chaves: Consumidor – Perda – Chance – Responsabilidade – Civil.
1. Nota Introdutória
Em virtude da promulgação da Lei dos Recursos Repetitivos – Lei nº 11.672/2008, de 8 de maio – tem-se verificado uma severa e repentina alteração incidente sobre entendimentos preteritamente firmados em instâncias superiores.
Sua justificativa se prende à necessidade de tornar mais célere o trâmite processual, de modo a minimizar a demanda de ações judiciais nos Tribunais e, em conseqüência, buscar a uniformização do entendimento acerca de matérias de maior relevância e alcance.
Contudo, a contrario sensu, o que se tem percebido é a instauração de um verdadeiro estado de insegurança jurídica, ao passo que entendimentos já pacificados têm sofrido direta alteração e, sobretudo, mandamentos constitucionais têm morrido à míngua.
O presente trabalho se presta a adotar uma postura eminentemente crítica acerca não necessariamente de norma em si, mas, em especial, quanto à forma da sua aplicação, de modo a verificar a incidência de conduta lesiva ao consumidor e, sendo esta a conclusão, apontar a responsabilização do Estado no âmbito civil.
2. A Lei de Recursos Repetitivos e seu efeito fabril
Em oito de maio de 2008 fora publicada a Lei nº 11.672/2008, de 8 de maio, batizada Lei de Recursos Repetitivos, que acresceu o art. 543-C ao Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Abandonando o formalismo exacerbado da linguagem jurídica, tal norma se presta a reduzir a demanda de trabalho que chega aos Tribunais, de modo à ‘revolucionar’ a Justiça permanentemente apontada como ineficiente. E quando assim a qualifica, é certo que se alude ao verdadeiro estado de frustração que causa ao jurisdicionado, que convive ao lado da incerteza ‘orgânica’ quanto ao recebimento de um resultado emanado da Corte. Terá ele vida neste dia tão remoto?
Esta norma, como tantas outras, foi elaborada e aprovada em caráter de urgência, dada a pressão e influência de setores ligados à magistratura. Não que tenha surgido um acesso de humanização ou qualquer outro sentimento de caráter eminentemente social que justificasse tamanha intervenção, mas, sim, tanto empenho se deu pela inquietude provocada pelo brado inconformado com a ineficiência resultante do histórico déficit de gestão racional dos processos.
Assim sendo, ante o problema, optou-se por seguir o caminho mais fácil na tentativa, diga-se, vã, de resolvê-lo (ou seria maquiá-lo?). Se a insatisfação contornava especialmente os critérios temporais, ainda que sem desmerecer os qualitativos, criou-se o mecanismo de atingi-la. Atacou-se o efeito.
Solucionar a morosidade, conseqüência da ineficiência, provocaria, além de maior impacto social (e que impacto!), a estúpida redução da demanda. Portanto, criou-se a fábrica de decisões. “Com apenas dez julgamentos pelo rito da nova Lei o Superior Tribunal poderá resolver aproximadamente 120 mil processos (…)”, festejou o presidente do STJ, ministro César Asfor Rocha, em manifestação publicada em 23/09/2008.
Solucionar a ineficiência, entretanto, teria implicações tanto quanto mais profundas. Uma fábrica, de igual modo, poderia trazer soluções. Mas não de julgados. Quem sabe, de bom senso.
3. A aplicação da Lei, sua inconstitucionalidade e o caso concreto: inscrição em cadastros de proteção ao crédito
Passada a vigorar em oito de agosto, a Lei de Recursos Repetitivos tem sido aplicada por ocasião das sessões de julgamento. Em pauta estiveram, dentre outros, seis temas atinentes aos contratos de natureza bancária, a saber: juros remuneratórios, capitalização de juros, mora, comissão de permanência, inscrição do nome do devedor em cadastros de proteção ao crédito e reconhecimento de ofício sem que tenha havido o pedido para o Tribunal.
Por razões de limitação temática, restringir-se-á a abordagem à decisão no que respeita à inscrição do nome do devedor em cadastros de proteção ao crédito. Ressalte-se, pseudo-devedor, haja vista os efeitos provocados pelo posicionamento adotado pela Corte.
Em vinte e três de outubro emanou o entendimento. Considerou-se enquadradas no âmbito da pré-falada Lei as demandas que versem sobre o tema. Veio a formação do entendimento. Decidiu o STJ que a inscrição do nome do devedor só está vedada se, cumulativamente: houver interposição de ação revisional, as alegações do devedor fundarem-se na aparência do bom direito e na jurisprudência do STJ ou do STF e, ainda, for depositada a parcela incontroversa do débito.
Não suficiente, determinou-se que qualquer demanda que aborde a matéria deverá, como condição sine qua non para o seu recebimento, cumprir os três pré-requisitos supra, concomitantemente.
Salvo melhor juízo, tal entendimento, que ora se entende adequado apelidar de atropelamento, exterminará por completo garantias fundamentais de cunho constitucional. O art. 5º, LV da Carta assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Admitindo-se a decisão em comento, há de se admitir também o mortal ferimento ao dispositivo supra, visto que as condições impostas ao consumidor pseudo-devedor que se encontrar inserido no rol dos maus pagadores deixam por completo de assegurar o contraditório e a ampla defesa.
Não suficiente, se conclui que, partindo de então, caberá ao consumidor o ônus da responsabilidade por eventual falha no serviço prestado pelos órgãos de proteção ao crédito, vez que lhe restará suportar a inscrição, ainda que indevida, do seu nome no rol dos maus pagadores, senão quitar o débito a si imputado.
Assim sendo, para que o consumidor não devedor alcance um direito que lhe é conferido pela Constituição Federal e, não menos, pela Lei civil e consumerista, haverá que propor ação revisional, o que de certo lhe acarretará (mais) custos, pagar o que lhe é imputado como devido, ainda que indevido e, pior, fundar seus argumentos no bom direito.
Ora, bom direito é este que será atropelado! O direito ao bom nome, à boa imagem e reputação. O direito ao contraditório, à ampla defesa, ao crédito, à cidadania. O direito de acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos (art. 6º, VII do CDC) e, ainda, à facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência (art. 6º, VIII do CDC).
Neste contexto, ainda que verossímeis as alegações, estas só serão convalidadas se outros quesitos forem observados e atendidos. Em suma, além de necessitar de dispor financeiramente para custear uma ação judicial e pagar um débito que não contraiu, o consumidor terá que contar com a própria sorte. Não apenas de constituir representante legal que bem fundamente a pretensão, mas, e sobretudo, que tal fundamento contente o julgador.
Custa-nos identificar o mais subjetivo e desarrazoado dos quesitos.
4. A teoria da perda de uma chance
O tema se origina das construções doutrinárias francesa e italiana, configurando-se na possibilidade de obter indenização em decorrência da perda da oportunidade de alcançar determinado resultado ou evitar determinado prejuízo. [1]
Perte d’une chance, ou perda da chance, a teoria é um legado dos tribunais franceses ao julgarem os médicos daquele país sob o enfoque da responsabilidade civil. O caso precípuo tratou da acusação e posterior condenação de um médico ao pagamento de uma pensão devido à verificação de falta grave contra as regras da arte, considerado desnecessário o procedimento que adotava, consistente em amputar os braços de uma criança para facilitar o parto.
O julgado que inaugurou a jurisprudência francesa adveio da 1ª Câmara da Corte de Cassação, por ocasião da reapreciação de caso julgado pela Corte de Apelação de Paris, de 17/7/1964, sobre fato ocorrido no ano de 1957. Houve um erro de diagnóstico, que redundou em tratamento inadequado. Entendeu-se, logo em sede de 1ª instância, que entre o erro do médico e as graves conseqüências (invalidez) do menor não se podia estabelecer de modo preciso um nexo de causalidade. A Corte de Cassação assentou que: ‘Presunções suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à responsabilidade’. Tal entendimento foi acatado a partir da avaliação do fato de o médico haver perdido uma ‘chance’ de agir de modo diverso – e condenou-o a uma indenização de 65.000 francos. [2]
Ainda recente, a teoria, que passou a ser adotada pela jurisprudência francesa a partir de 1965, tem encontrado albergue no direito brasileiro, evoluindo ao passo da compreensão cada vez mais sólida do que se presta a responsabilidade civil.
5. A perda da chance de apreciação do direito
Sem que se possa olvidar, a teoria da perda de uma chance embasa o direito à reparação em virtude de dano, assim considerado como perda da oportunidade de alcançar determinado resultado ou evitar determinado prejuízo. Perde-se aí uma oportunidade, não necessariamente de alcançar, mas de tentar alcançar.
Neste caso coexistem um elemento de certeza e um elemento de incerteza. Aquele, justificado pela não realização do evento danoso e, em conseqüência, o prejudicado manteria a esperança de, no futuro, obter um lucro real ou evitar uma perda patrimonial. Este, noutra ponta, em virtude de não se haver produzido tal evento prejudicial e, com isso, mantido a chance, não se teria certeza da obtenção do lucro ou se a perda teria sido evitada.
Com a objetividade que lhe é característica, Sérgio Cavalieri Filho bem define que não se deve considerar a chance como a perda de um resultado certo, haja vista a sua incerteza de realização. Deve-se, sim, pensar na chance como a perda da possibilidade de alcançar um resultado ou evitar que este resultado se concretize. E arremata: “Há que se fazer a distinção entre o resultado perdido e a possibilidade de consegui-lo.” [3]
Neste sentido, para que seja configurada a responsabilidade civil fundada na teoria, a chance perdida reparável deverá caracterizar um prejuízo material ou imaterial resultante de um fato consumado, não hipotético. No caso em comento, o fato consumado consubstancia-se na rejeição da apreciação do direito do consumidor, retirando-lhe a chance de manter incólume sua reputação, em que pese tratar-se de irregular inscrição protetiva de crédito.
E mais, dada a imposição de condições para apreciação do direito, haverá, concomitantemente, o prejuízo material e moral. Aquele, hipoteticamente decorrente das despesas relativas ao patrocínio da causa e pagamento da verba suposta e alegadamente incontroversa. Este, comungando com o entendimento doutrinário, jurisprudencial e legal, em razão do cometimento de ato ilícito atentatório aos direitos da personalidade.
6. A natureza indenizatória da perda de uma chance: dano emergente, lucro cessante ou dano moral
Em que pese a teoria da perda de uma chance encontrar-se galgando passos cada vez mais firmes no direito brasileiro, a doutrina ainda não é uníssona quanto à natureza indenizatória deste instituto. Diverge quanto à caracterização em dano emergente, lucro cessante ou dano moral.
Há, ainda, quem defenda o descabimento do pleito indenizatório sob este enfoque, eis que, como inexiste possibilidade de se determinar qual seria o resultado final, não se cogita dano pela perda da chance, pois esta recai na seara do dano hipotético, eventual e, por sua vez, juridicamente repelido.
Tarda a pacificação do entendimento, acredita-se, em razão da resistência imposta por alguns autores em negar a cisão entre a possibilidade de ganho ou de se evitar um prejuízo com o resultado final. Conquanto ousar-se-á discordar. A chance, em nenhuma hipótese, se deve desvencilhar do resultado, posto que este, por mais vantajoso que se configure, somente assim o é em razão de ter sido garantida ao beneficiário a chance de alcançá-lo. Do mesmo modo se refere ao impedimento de um dano. Em melhor dizer, “a chance da vitória terá sempre um valor menor que a vitória futura” [4], mas a própria vitória, para assim se conformar, não prescindiu da chance.
Não se trata de mitigação do nexo causal, mas, tão somente, do deslocamento do seu vínculo para a perda de chance, constituindo-se esta, em si mesma, o próprio dano. Afigura-se mesmo uma zona limítrofe entre o certo e o incerto, o hipotético e o real, tratando-se de uma situação na qual se mede o comportamento antijurídico que interfere no curso normal e esperável dos acontecimentos, de tal forma que não mais se poderá saber se o afetado, por si mesmo, obteria ou não os ganhos ou se evitaria ou não certa vantagem, pois um fato de terceiro o impede de ter a oportunidade de participar na definição dessas probabilidades. O fator externo causou um estado de plena ingerência da vítima sobre ela mesma.
Nesta compreensão, a oportunidade de ganhar ou de se evitar um prejuízo, por si só, já é incorporada ao patrimônio jurídico do indivíduo, passando a possuir cunho material, sendo certo, portanto, que a sua violação ensejará o dever de reparar.
Para tanto, admitindo-se que assume a natureza patrimonial, eis que real a chance de sucesso, aparenta-se mais favorável a filiação à corrente doutrinária que compreende a natureza da indenização pela perda de uma chance como sendo dano emergente, embora não hajam óbices quanto ao alcance do dano também moral.
Desta feita observa-se, no que tange às chances perdidas, não obstante às diversas tipificações estipuladas – seja como dano emergente, lucro cessante ou mesmo dano moral -, admite-se a interpretação de que, havendo uma oportunidade perdida, desde que existente no plano real, integrará o patrimônio da vítima, possuindo valor econômico, e, assim, passível de indenização.
7. A Responsabilidade Civil do Estado e seu caráter objetivo
Inobstante o princípio basilar da cláusula geral da responsabilidade civil, merece destaque um segundo dogma basilar do direito brasileiro quanto à matéria: o da proteção integral dos danos. Trata-se de uma derivação do mandamento constitucional, mormente o descrito nos incisos V e X do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.
De certo que não há, até então, nenhuma norma que expressamente autorize o dever de reparar os danos fundados na perda de uma chance. Entretanto, à luz da regra geral da responsabilidade civil, a vítima não poderá suportar os prejuízos que lhe são acarretados, mesmo que provenientes da perda da oportunidade de obter uma vantagem.
A Constituição Federal de 1946, em seu art. 194, foi precursora da criação da responsabilidade objetiva do Estado, assim compreendida como aquela que independe da culpa do agente. De certo que fora precedida pelo art. 15 do Código Civil de 1916, conquanto este tenha restringido-se a tão somente definir a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, sem fazer menção, como aquela, ao caráter objetivo.
Dada a evolução, adotou-se a Teoria do Risco Administrativo, no sentido de que a administração pública gera risco para os administrados, entendendo-se como tal a possibilidade de dano que os jurisdicionados podem sofrer em decorrência da normal ou anormal atividade desenvolvida pelo Estado. Portanto, deve ele suportar o ônus da sua atividade, independentemente de culpa dos seus agentes. [5]
8. Síntese Conclusiva
Ao atribuir à teoria da perda de uma chance o condão de justificar a natureza da reparação devida pelo estado ao jurisdicionado (conforme o tema, consumidor), mormente quando se trata do caso em tela, não se deve escusar de traçar, ainda que com brevidade, o liame dessa justificativa.
De certo que se buscou, ao que parece, sanar os inconvenientes geradores da mais legítima insatisfação face à lentidão do trâmite processual. Para tanto editou-se a Lei de Recursos Repetitivos, a qual já nasceu com a árdua missão de revolucionar o Judiciário brasileiro.
Perdidos entre as causas e conseqüências desta verdadeira crise existencial pela qual se encontra, aqueles que a conceberam concentraram seus esforços no sentido de exterminar a morosidade do sistema. Adotou-se uma conduta absolutamente anti-social e antijurídica ao passo que se concedeu privilégios a critérios meramente quantitativos, em detrimento da atenção que carece cada caso, que é uno, inigualável.
Pode parecer excelente a idéia de reduzir a demanda, os números deficitários e os custos quando se trata de gestão de recursos, de cunho empresarial. Mas o caso em comento se refere à gestão de vidas e de direitos. A redução do acesso à justiça é diretamente proporcional à redução do direito das partes.
Assim sendo, sob a análise paralela entre os quesitos de causas e conseqüências, é esta a conclusão que se alcança: em breve os concursos públicos do Poder Judiciário serão substituídos por licitações para fins de aquisição de impressoras. Viva às impressoras! Viva à tecnologia! Abaixo ao intelecto!
Advogada, Professora Universitária – Responsabilidade Civil, Direito do Consumidor e Teoria Geral do Direito Pós-Graduada em Direito do Consumidor, Especializanda em Direito Processual Civil, Mestranda em Ciências Jurídico-Empresariais, Coordenadora de Produção Científica da Comissão de Defesa do Consumidor – OAB/CE
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