Teoria da representação direta: A soberania do estado exercida por meio representativo, na forma indireta, sem mandatários

Resumo: O presente texto tem por interesse questionar o valores da soberania direta, as formas prescritas em lei, sua execução dentro da realidade brasileira. Através de indagações, questionamentos e releituras de diversos autores tem-se o propósito de provar que apesar da beleza jurídica do instituto da soberania direta o poder popular tem sido pouco usado. A lei em vigor tende a dificultar a participação direta do povo. Entre as principais dificuldades da representação soberana esta a omissão legal que impulsionam para a representação indireta através de representantes


INTRODUÇÃO


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Nos países de constituição rígida, como no Brasil, há rigorosos controles de constitucionalidade tanto pela via difusa como pela via abstrata, visando manter o texto normativo íntegro, coeso. Apesar da vasta experiência dos nossos tribunais no controle da inconstitucionalidade e da constitucionalidade não há casos de controle de emendas nascidas da vontade popular.


Através de questionamentos embasados nas doutrinas e jurisprudências disponíveis propõe-se aqui a discutir a soberania, seu papel, seus aspectos considerando seus fundamentos principalmente na ocorrência do referendo e do plebiscito. Vislumbra-se, ainda, analisar as formas de controle quando do ingresso das normas nascidas diretamente da vontade popular.


Em suma tende-se a verificar o tratamento dado à norma nascida através do exercício da soberania popular direta detentora tanto do poder constituinte originário como do poder reformador. Partindo do principio de que o poder soberano do estado é a viga mestra do direito positivo e das constituições estabelecidas, emergem algumas indagações.


O poder fonte teria maior status frente às normas originadas do legislador comum ordinário?


Os poderes legislativo e judicial, cada qual, nas suas atribuições, poderia anular projetos de lei quando estes nascem genuinamente do anseio popular?


Por certo, as bases encontram-se no parâmetro constitucional que se estabelece em favor do princípio da soberania popular que tem seu nascedouro na Carta Federativa de 1988. Esta, prescreve categoricamente que a União será formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentosrania. A carta constitucional trata com poucas palavras os temas relacionados à soberania direta ficando a nítida ideia de que muito mais longos serão os caminhos dos projetos populares se comparados às formas tradicionais.


QUESTÕES QUE ENVOLVEM O TEMA


O artigo 14, nos incisos I, II e III da Constituição Federativa do Brasil de 1988 afirma categoricamente que a soberania popular será exercida através do plebiscito, referendum e iniciativa popular. Daí se extrai e se afirma que a soberania nasce da exegese política que fundamenta os princípios norteadores do estado democrático de direito tal qual a cidadania e dignidade da pessoa humana. E, por tais razões, ela vem grafada simbolicamente na entrada da carta constitucional. Deste extrato norteador soma-se a importância histórica e sociológica advinda da carga ideológica que demarca o preâmbulo constitucional mostrando as origens do estado nascente.


O termo soberania nasceu na Grécia nos séculos IV e V a.C. Foi neste período de maior liberdade que os cidadãos passaram a discutir nas assembleias e tribunais populares os assuntos da polis. O conceito fora modificado muitas vezes até apresentar-se nos moldes como a conhecemos. No século XIII, entre os suíços já realizavam os Landsgemeindei, que era a participação direta do povo nas principais decisões políticas – mantida até os dias de hoje nos cantões de Appenzell, Glaris e Unterwald.


Miguel Reale na sua brilhante obra Teoria Geral do Estado alega que o poder estatal passa pela soberania. Nela, o poder é positivado, através da combinação de diversos elementos e que sempre esteve distante da vontade da massa humana que em nada, ou muito pouco, influencia no processo de criação das normas. Elaborar leis é trabalho técnico por excelência e que exige análise das vontades politicas, valores e contingências de forma que a entrega dos poderes soberanos a um grupo que represente os objetivos estatais e os anseios através dos representados é única forma encontrada desde a antiguidade.


Assim, o detentor dessa representação, supostamente conhecedor das aspirações comuns, da moral coletiva, da religião e do direito natural existente na comunidade fará o registro desses valores ou inovará de acordo com sua consciência e poderes atribuídos naquele determinado território. Jean Bodin (1596, p. 197.) foi quem primeiro disse que “soberania é o poder de legislar”, ou seja, é uma forma ilimitada juridicamente, pois se estabelece acima dos interesses dos habitam o estado como as corporações, grupos econômicos, etc. Hans Kelsen (1944) chega a afirmar que a soberania estava limitada pelo direito natural por ser este um poder que emana naturalmente mesmo sem a existência do estado. Porém são nos princípios do direto natural que a soberania encontra seu embasamento maior. Os jusnaturalistas já afirmavam que esse direito impera antes da norma ou mesmo quando não existe qualquer outra.


As assembleias constituintes, quando investidas deste poder soberano criam o futuro estado e nos que já estão estruturados inovam a ordem jurídica de forma a renascer outro estado juridicamente. Touscoz (1994) afirma que a soberania estabelece, em favor do Estado, uma “presunção” de competência, o que lhe dá exclusividade de competência no seu território. Já Bodin (1596), diz ser esta um poder supremo, incontrastável, não submetido a nenhum outro poder. Na obra, Os Seis Livros da República, esse autor defende que a soberania caracteriza-se por ser una, absoluta, indivisível, inalienável, imprescritível, irrevogável, perpétua. Rousseau (1778), trilhando na mesma direção de Bodin via a como poder supremo do povo.


Os traços de soberania, com os aspectos simbólicos que conhecemos hoje, embasaram os movimentos revolucionários, do fim do século XVIII e XIX na França e nos Estados Unidos. Nestes casos, a influência nasce do contratualismo de Rousseau e da filosofia jusnaturalistas – princípios da democracia semidireta ou participativa, quando estas ganharam maior dimensão e filiados.


Visando posicionar a soberania ou mesmo ajustá-la em relação ao poder reformador, Sahid Maluf (2003, p. 195) pontua:


“Em Geral os poderes constituídos conservam uma parcela do poder Constituinte, permanentemente, para reformas ou emendas da constituição, no curso das legislaturas, dentro dos limites estabelecidos pelo próprio texto. Essa função chamada de poder reformador, poder constituinte secundário, ou poder constituinte derivado coloca-se num posição intermediária entre o poder constituinte derivado e o poder constituído ordinário. Constitui na competência para reformar parcialmente ou emendar a constituição, que não é um código estático, mas dinâmico, devendo acompanhar a evolução da realidade social, econômica a e ético jurídica.”


Quanto ao exercício, a soberania manifesta-se mais comumente através dos institutos do referendum e do plebiscito – grafados na Carta brasileira, no rol dos princípios fundamentais, apesar de contraditoriamente a mesma não permitir o exercício direto desses institutos soberanos passando pelo crivo e autorização do congresso nacional.


Plebiscito é a forma jurídica pelo qual o povo é chamado a aprovar ou não um fato, um acontecimento, concernente à estrutura do Estado ou de seu governo, fato comum em episódios importantes como a divisão de um determinado território, área, estado, província.


No contexto deste trabalho, destacamos como mais adequada a definição de Azambuja apud Oliveira (1988, p. 97): “plebiscito é o que mais aproxima o Governo da democracia pura, mas também é o mais complexo, tanto por sua intimidade com outros instrumentos, como o plebiscito e o veto popular, como pelas diferentes classificações que abriga”


De forma objetiva, a soberania e a democracia direta, confundem-se ideologicamente, pois ambas trazem significados ideológicos, fincados nos aspectos sociais, antropológicos e históricos. A discussão entre público e privado no pensamento social e político ocidental remonta aos debates filosóficos da Grécia clássica sobre a vida da polis, quando os cidadãos se reuniam para discutir questões de interesse comum e criar uma ordem social voltada para o bem comum. Mais especificamente em Atenas, onde o povo, reunido na Ágora para o exercício direto e imediato do poder político, transformava a praça pública “no grande recinto da nação” (BONAVIDES, 2001, p. 268).


Dada à roupagem ideológica e histórica, não se concede o exercício da soberania popular a nações sem liberdade democrática. Soberania e democracia convergem e comungam simbolismos similares que desaguam nas mesmas bases: as aspirações populares quando geridas pelo próprio povo. Ambos os termos são semelhantes em significados. A soberania se exerce sem amarras ou coação de qualquer outro poder particular ou estatal e a democracia, conforme já explicitado, caminha chancelada pela vontade popular.


Em face do tema liberdade para exercer o poder soberano Sahid Maluf (1997 p. 194) narra um famoso episódio ocorrido entre Dom João VI e os constituintes portugueses em 1821. Diz o autor que o monarca determinou que nova constituição da monarquia, a ser elaborada, deveria “manter a religião católica, apostólica romana, manter a dinastia da casa de Bragança, bem como observar as bases da constituição da monarquia espanhola […]”


A democracia direta etimologicamente representa “forma de governo no qual o poder político é exercido pelo povo” (BOBBIO, 1986. pag. 135). Apesar dos termos revelarem-se ideologicamente como sinônimo, o seu exercício, latu sensu, nunca se concretizou no Brasil. Entre as muitas dificuldades de exercício estão as de ordem logística.


Os institutos do referendo, plesbicito e iniciativa popular são praticados na forma semidireta, mantendo-se apenas o espírito e a aspiração de se praticá-la na forma direta latu sensu. Ou seja, apesar de comumente se mencionar a existência do exercício de representação direta, o seu modus operandi ainda é representativo na forma indireta, ou seja, por mandatários.


Naturalmente o povo mantém-se detentor do poder, ainda que o faça pelos métodos da representação parlamentar dentro das peculiaridades do poder constituído. O professor Machado Paupério (1979, p. 179) chega a afirmar que a soberania não é propriamente um poder, mas a qualidade deste poder; a qualidade de supremacia que em uma determinada esfera, cabe a qualquer poder. Ou seja, seria um atributo do qual se reveste o estado para organizar o seu próprio poder de autodeterminação de forma que a soberania pertence originariamente à nação, mas o seu exercício é atribuído ao órgão estatal criado por ela donde se representa os interesses de todos e do estado.


Rousseau, defensor da liberdade no sentido positivo, que Berlin (1981, p.163) definiu como sendo referente “à posse por todos, e não somente por alguns membros mais qualificados de uma sociedade, de uma cota do poder público que pode interferir em todos os aspectos da vida de todos os cidadãos” seria um apologista da liberdade positiva, na medida em que defenderia a participação direta do povo na elaboração das leis e sua interferência ativa no processo político, sendo a população protagonista deste último.


A ideia de exercício compartilhado do poder, presente na definição de liberdade positiva de Berlin, corresponde à maneira direta, democrática e participativa pela qual Rousseau preconiza que seja exercido o poder Legislativo em seu modelo político. Assim, a liberdade positiva estaria associada à democracia participativa. Esta apologia da liberdade positiva pode ser constatada quando Rousseau afirma que “povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Rousseau, 1995, p. 99), ou quando escreve que “Toda lei que não foi ratificada pelo povo em pessoa é nula; não é de forma alguma uma lei” (Rousseau, 1995, p. 148). Nesse sentido, Liberdade positiva tem a ver com participação política e com exercício ativo da cidadania e dos direitos políticos, que são elementos onipresentes na abordagem política de Rousseau.


No período imperial, o Brasil exerceu a soberania representativa de forma indireta, através do voto de província. Por esse instituto o povo elegia Assembleias Paroquiais e os eleitores de províncias que seriam os representantes junto às Assembleias Gerais, local onde podiam votar nos deputados e senadores.


Jose Afonso da Silva (2004, p. 176) dissertando sobre o tema representatação pressupõe ser “um conjunto de instituições que disciplinam a participação popular no processo político, que vêm a formar os direitos políticos que qualificam a cidadania tais como as eleições, o sistema eleitoral, os partidos políticos”. Enfim, mecanismos disciplinadores para a escolha dos representantes do povo.


O exercício da soberania na forma direta está consagrado na Carta Constitucional de 1988 através de referendo e iniciativa popular. Se fizermos uma analogia, veremos que algumas conquistas importantes conseguidas pelos estadunidenses quando da implantação dos primeiros estados como o direito de revogação, veto popular, recall[1] nunca figuraram na pauta dos constituintes brasileiros. A participação direita do povo na votação de projetos numa espécie de referendo participativo como ocorre na federação Suíça nunca foram sequer cogitados em quaisquer das assembleias constituintes, por certo, não estava entre as aspirações do nosso povo.


Modelo de representação direta do povo no poder o recall é o mais famoso, pois age diretamente no controle dos atos normativos e dos detentores de poder, existente, por exemplo, em alguns estados da federação estadunidense. A participação direta do povo junto ao poder é fator importante no desenvolvimento da cidadania e talvez seja por esta razão que tanto os suíços como os norte-americanos são tidos como modelos de democracia e participação do povo junto à gestão pública.


conSIDERAÇÕES FINAIS


Antes de ser aspiração ideológica latu sensu, soberania é anseio sociológico e político de todos os povos minimamente organizados quando se debruçam para definir seus próprios rumos. A participação direta de promulgar e fixar seus interesses preserva e retoma o direito natural. O povo, fonte de todo o poder e, por isso, titular, é investido desta soberania e mantido em suas reservas nos constituintes secundários. Nas nações mais evoluídas o chamamento popular para demarcar novo início do estado já pressupõe uma prévia organização.


Nos estados que possuem guerras intestinas, o grupo mais organizado politicamente e detentor da avassaladora maioria investe-se da obrigação de juntar os interesses opostos. E, quando isso ocorre, fixa-se o início do estado. De qualquer sorte, somente o amadurecimento político da nação em pró do exercício democrático fará nascer as bases da soberania. Por ser participação direta e livre não se admite a coerção ou influências de poderes subjugados. Na forma direta tem status de mãe das outras normas, pois brota do próprio titular: o povo.


 


Referências

BRASIL Disponível em: Lei n.º 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm> Acesso em: 10/03/2012.

Berlin, I. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UnB, 1981;

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986. p. 135.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

Fortes, L. Rousseau: Da teoria à prática. São Paulo: Ática, 1976.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de; FERREIRA, José Rodrigues. Processo Legislativo : uma contribuição ao debate. Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1996.

Paupério, Arthur Machado. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

REALE, Miguel. Teoria do direito do estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

SAHID Maluf. Teoria Geral do Estado. 29. Ed. São Paulo: Saraiva,. 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

TABOSA, Agerson. Da representação política na antiguidade clássica. Fortaleza: UFC. Imprensa Universitária, 1987.


Notas:

[1] Recall: É o poder de cassar e revogar o mandato de qualquer representante político, pelo eleitorado; é chamar de volta para “reavaliação” popular, não só os mandatários reconhecidamente corruptos, mas os incompetentes ou inoperantes (Revista Eletrônica Wikipédia para: navegação, pesquisa Recall político).

Informações Sobre o Autor

Célio dos Santos Fagundes

Advogado e professor de Direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB


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Equipe Âmbito Jurídico

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