“(…) o professor que está ensinando o Direito Penal sem levar em conta o princípio da ofensividade, bem como as teorias da norma penal, do bem jurídico e da imputação objetiva; o intérprete que os ignora em seus manuais; o juiz que não os menciona em suas decisões; e o estudante que deles nunca ouviu falar não são professores, nem intérpretes, nem juízes, nem estudantes do terceiro milênio. Continuam atrelados (e limitados) ao método formalista do século XX. São, portanto, juristas ou estudantes do século passado. Não são juristas ou estudantes do seu tempo. Cientificamente já morreram, embora ainda não tenham sido sepultados. Precisam se atualizar!” LUIZ FLÁVIO GOMES, Princípio da ofensividade no direito Penal: não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria), funções político-criminal e dogmático-interpretativa, o princípio da ofensividade como limite do ius puniendi, o princípio da ofensividade como limite do ius poenali. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pg. 07, nota do autor.
O Direito Penal tem como escopo a proteção de bens jurídicos, os quais, no dizer de Luiz Flávio Gomes[1], são “relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática.” Na mesma linha, Assis Toledo[2]: “A tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurídica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos”. Entretanto, no Estado constitucional democrático, ou dos direitos fundamentais, nem todo bem jurídico é considerado bem jurídico-penal e não será qualquer ataque que irá merecer a proteção do Direito Criminal. Somente a agressão intolerável, que cause real lesão ou perigo concreto de dano poderá ser penalmente punível (princípio da fragmentariedade). A reprimenda acontecerá apenas se não houver meios idôneos menos gravosos de resolução do conflito (princípio da subsidiariedade); e de forma proporcional (princípio da proporcionalidade ou da necessidade).[3]
Como quer o art. 1º do Decreto-Lei n. 3.914/41 – Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei das Contravenções Penais -, os crimes terão penas de “reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”, dependendo, obviamente, da gravidade da ofensa. Como se vê, “reclusão” e “detenção”, são espécies do gênero “penas privativas de liberdade”[4]. A primeira é aplicada aos crimes mais graves, a segunda é reservada para as infrações menos lesivas. Chega-se a tal conclusão a partir de uma interpretação sistemática do CP. Assim, apenas exemplificativamente, o crime de homicídio (art. 121) é apenado com reclusão, mas o infanticídio (art. 123), tendo em vista a condição especial da autora (estado puerperal) – considerado por isto mesmo menos agressivo -, prevê a pena de detenção. Esta forma de penalidade, mais moderada, não enseja a possibilidade de cumprimento em regime inicialmente fechado, ao contrário daquela, mais severa, dentre outras diferenças, a cuja análise não se propõe este exíguo estudo[5].
No dizer de Anibal Bruno[6]: “O critério para medir a responsabilidade penal do agente não é a sua intenção, nem a gravidade do seu pecado. Será apenas o dano que do seu crime resulte para a sociedade.”
Como se vê, a baliza para determinação das penas – em abstrato e em concreto – tem de se ter por estro fundamental o princípio da proporcionalidade. Vale lembrar Beccaria[7]: “Se fosse possível adaptar a geometria às combinações infinitas e obscuras das ações humanas, deveria existir uma escala correspondente de penas, indo da mais forte à mais fraca: mas bastará ao sábio legislador marcar os pontos principais, sem alterar a ordem, não decretando para os delitos de primeiro grau as penas do último.” Destarte, nessa linha de princípios, a perda da liberdade – um direito fundamental – só se justifica em face de agressão a outro direito, de igual ou maior hierarquia[8].
Ocorre que a Lei 9.099/95, instituidora dos chamados juizados especiais criminais, destinados ao trato dos crimes de menor potencial ofensivo, possibilitou, presentes os pressupostos subjetivos, os institutos despenalizadores da conciliação e da transação penal aos acusados de cometerem contravenções penais e delitos com cominação de pena máxima não superior a 1 (um) ano – limite alterado para 2 (dois) anos, ou multa, pela Lei n. 10.259/01 – e da suspensão condicional do processo, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, quando a imputação for a de infração cuja pena mínima seja igual ou inferior a 1 (um) ano. Não fez referência o Diploma em apreço à qualidade da sanção; nada importa ser ela de reclusão ou de detenção. Interessa, como requisito objetivo, tão-somente a previsão em abstrato de encarceramento.
Assim, por exemplo, o acusado pelo crime de estelionato (art.171), cuja pena prevista é a de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, dependendo de suas condições pessoais, terá direito à suspensão processual; fosse, entretanto, a acusação pelo delito de duplicata simulada (art. 172), pena de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, não teria o agente direito ao benefício.
Flagrante contradição!
O bem jurídico atingido em ambas as situações é, em primeiro lugar, o patrimônio, embora no segundo caso seja tutelada, “(…) também, a boa-fé de que devem estar revestidos os títulos comerciais, equiparados a documentos públicos (art. 297, § 2º)”[9]. Mas a agressão primeiramente descrita (art. 171) é mais grave do que a segunda (172). Esta, como antes dito, prevê detenção como reprimenda, aquela reclusão. E não é por menos.
É que, se o agente emitir fatura, duplicata ou nota de venda, em desconformidade com as operações realizadas, objetivando a fazer caixa, com o fito de resgatá-las no vencimento, sem pretender causar prejuízo real a quem quer que seja, há o crime do art. 172; se se quiser locupletar, no entanto, com dolo “ab initio” de causar prejuízo ao tomador ou a terceiros, responderá pelo art. 171 do CP. A matéria é pacífica na doutrina e na jurisprudência – TACRSP: “Se ao expedir duplicata sem causa o agente tem por fim induzir em erro e obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, comete o crime de estelionato e não o delito do art. 172 do CP, se, ao contrário, não o move o propósito de lesar o patrimônio do futuro tomador, mas apenas o de conseguir dinheiro, imaginado resgatar, oportunamente, o título, só pratica o crime de expedir duplicata simulada.” (JTACRIM 87/420). Ainda a corroborar este entendimento, v.g., cito o TJRS: “Se o meio para atingir a vantagem econômica, crime-fim, foi a prática de outro crime, emissão de duplicata simulada, crime-meio, resta evidente a absorção deste pelo crime de estelionato.” (RT 730/625). Ora, fosse o crime do art. 172 mais grave que o descrito no art. 171, como poderia este absorver aquele? O princípio da consunção impõe ser o crime menos grave absorvido pelo mais grave, quando servir de meio necessário à obtenção da meta optata, a qual será o crime-fim, não o contrário. Assim, por exemplo, as lesões corporais impostas à vítima, para causar-lhe a morte, serão absorvidas pelo homicídio, objetivo finalístico do agente, mais severamente castigado. Neste caso, como naquele, presente está o chamado crime progressivo.
Ao discorrer sobre o crime complexo, embora não seja esta a hipótese, pese poder ser utilizada a mesma regra, diz Walter Coelho[10]: “A aplicação no caso é a do princípio da consunção, continência ou absorção, em que a norma consuntiva, que define o crime complexo, sobrepõe-se e prevalece sobre as normas ditas consumidas (crimes-membros). Ou seja: ‘Lex consumens derogat legi consumptae’” Depois, diz o emérito penalista gaúcho[11]: “Trata-se, mais propriamente, de uma relação de continência, em que a parte se integra no todo.”
A Lei em comento, nesse aspecto de duvidosa constitucionalidade, pode levar a uma situação surrealista: confesse o agente tivesse a intenção de não pagar os títulos – ao arrepio da verdade -, dizendo ter agido desde o início com dolo de se favorecer, lesando o sacado (a fim de ver a imputação ser desclassificada para mais grave – do art. 172 – pena de detenção – para o art. 171 – apenado com reclusão – do CP) e gozará do benefício da suspensão condicional do processo.
Evidentemente o Estado constitucional democrático não se harmoniza com uma situação que tal. Com a introdução da Lei dos Juizados Especiais, buscou-se, por meio dos institutos antes referidos (conciliação e transação), na medida do possível, não punir condutas consideradas menos gravosas (crimes de menor potencial ofensivo), além de proporcionar a suspensão do processo nos casos de delitos com previsão de penas de pequena duração (médio potencial ofensivo), na esteira de uma política criminal mais assente com os postulados do Direito Penal moderno.
Em relação à teoria dos fins da pena, diz Roxin[12]: “Uma vez verificado que a ação do autor era errônea também do ponto de vista da regulação social de conflitos, falta ainda que o trabalho dogmático responda se um tal comportamento merece pena”.
Oportuna a lembrança da reflexão de Zaffaroni[13]: “Imaginemos o que sucederia em qualquer país ocidental desenvolvido, caso se conseguisse efetivamente punir com a privação de liberdade, conforme previsto em lei, todos os furtos a supermercados e todos os casos de porte de entorpecentes proibidos”.
De outra banda, em consonância com o acima exposto, traz-se, mais uma vez, à colação o emérito Luiz Flávio Gomes[14]: “Consoante a decisão do legislador, estão inseridas no espaço de consenso as infrações de menor potencial ofensivo (mencionadas no art. 98, I da Constituição Federal de 1988), assim como as de médio potencial ofensivo”.
Por isso, à luz do antes aludido princípio da necessidade, força é convir não existir lógica em se imaginar haver pretendido o Legislador negar os institutos despenalizadores a crimes que o próprio ordenamento jurídico já considera menos lesivos, a ponto de reservar-lhes reprimenda mais branda (detenção).
A menos se diga possam ser apenados com detenção crimes que não se enquadrem em nenhuma dessas duas categorias, o que seria oposto à razão. À evidência, esta qualidade de pena não se coaduna com delitos de grande potencial ofensivo, para os quais é reservada exclusivamente a punição de reclusão.
Destarte, o princípio da isonomia requer seja dado tratamento paritário às situações assemelhadas. Como ensinam o Professor Alberto Silva Franco e outros[15]: “Desse modo, não basta a igualdade perante a lei, mas ainda é de mister a igualdade através da lei”. Dizem mais: “Leis penais que tipifiquem condutas iguais como ensejadoras do mesmo delito, mas que impõem penas quantitativamente e qualitativamente desiguais ofendem, a um só tempo, os princípio da proporcionalidade e da humanização da pena e, portanto, desatendem, ainda, ao princípio da igualdade”.
O fato é que, na equivocada – e demagógica – política de endurecimento de penas, como panacéia para a resolução de problemas muito mais complexos, o Legislador penal alterou, por meio da Lei 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária), a pena do art. 172 (de forma absolutamente contraditória, porque exacerbou-a no “quantum” mínimo, diminuindo-a no máximo) que era detenção de 1(um) a 5 (cinco) anos, e multa, para detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Desta forma inepta, quebrou o sistema. É manifesto ser o apenamento anteriormente previsto mais consentâneo com o ordenamento jurídico pátrio.
Diante da Lei 10.259/01, verbi gratia, o delito do art. 216 (atentado ao pudor mediante fraude), apenado com reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos, é considerado de menor potencial ofensivo. Somente numa visão positivista e sem compromisso com os postulados da CF, poder-se-ia aceitar não serem assim classificados crimes apenados com detenção.
Em suma, em homenagem aos já referidos princípios constitucionais da isonomia – expressamente previsto na cabeça do art. 5º da Constituição Federal – e da proporcionalidade, o qual “(…) ostenta consagração constitucional (ao menos implícita) também no Brasil”[16], a pena para o crime do art. 172 deverá ser fixada desde o patamar de 1 (um) ano de detenção, isonômica, em relação ao “quantum” mínimo (embora – e com justiça! – mais suave em relação à qualidade), à punição prevista para o delito do art. 171 do CP; e a interpretação dos arts. 61 e 89 da Lei 9.099/95 e 2.º, parágrafo único da Lei 10.259/01, será no sentido de que, existentes os demais requisitos, os institutos da conciliação (quando houver vítima), da transação penal e, por último – e nesta ordem -, da suspensão condicional do processo, deverão ser propostos também a todos os crimes apenados com detenção.
Advogado em Porto Alegre. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA/Gravataí – RS
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