Direito do Trabalho

Trabalho e Dignidade da Pessoa Humana: Uma Visão Acerca da Construção da Identidade Social do Trabalhador

Cristina Gerhardt Benedetti[1]

Resumo: Partindo do pressuposto de que o trabalho é condição essencial para que o homem desenvolva as suas potencialidades e eleve sua consciência moral, que pode, no entanto, transformar-se em condição de aviltamento, o presente ensaio pretende diagnosticar a conexão existente entre dignidade, trabalho e identidade social. O trabalho deve provocar no seu executor a noção de que ele é ferramenta essencial na estrutura social e, que como membro desta, pode e deve exigir que a dinâmica tutelada pelo direito positivo seja cumprida, a fim de que seja assegurada a sua proteção. Essa é a condição básica para a existência da satisfação pessoal e partilhada no (e pelo) trabalho. No atual cenário de globalização neoliberal, em que as medidas flexibilizantes de direitos preponderam, o presente estudo ganha relevância, ao procurar estabelecer os elementos necessários para que o trabalho seja o meio de garantia de concretização da dignidade do trabalhador.

Palavras-chave: Dignidade. Trabalho. Identidade social.

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Abstract: Assuming that work is an essential condition for man to develop his potencial and moral conscience, which can, however, become a condition of degradation, this essay aims to diagnose the connection between dignity, work and social identity. The work must provoke in its executor the notion that he is an essential tool in the social structure and that, as a member of it, he can and must demand that the dynamics protected by positive law be fulfilled, in order to ensure his protection. This is the basic condition for the existence of personal and shared satisfaction in (and by) work. In the current neoliberal globalization scenario in which the flexible measures of rights prevail, this study gains relevance, as it seeks to establish the necessary elements so that work is the means of guaranteeing the achievement of the worker’s dignity.

Keywords:  Dignity. Job. Social identity.

 

Sumário: Introdução. 1. Sobre a Dignidade da Pessoa Humana. 2. Trabalho e Identidade Social do Trabalhador. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Tema constante nas discussões acerca do trabalho humano, a dignidade já foi vista sob os mais variados prismas. A proposta do estudo que se segue é a análise do trabalho como atividade dignificante do ser humano, condição precípua para a construção e edificação de sua identidade social, considerada a perspectiva do Estado Democrático.

A formação da identidade social de uma pessoa, da sua noção de “eu”, depende da formação e da sustentação de sua consciência psicológica e de sua consciência moral. Só assim a pessoa poderá se tornar representante de si, desenvolver suas potencialidades e direcionar sua própria vida. É através de sua identidade social que o ser humano se apresenta autonomamente na seara social, revelando sua condição jurídica de sujeito de direitos e deveres.

Na condição de ator social, o ser humano tem nos seus atos e, na finalidade destes atos, os meios para firmar sua consciência moral nas relações que estabelece em família, na comunidade, no trabalho, entre outras.

A identidade social desenvolvida por meio do trabalho permite ao trabalhador identificar-se como ser humano consciente, apto a participar da dinâmica social da vida em sociedade. Mas tão somente o trabalho desenvolvido sob condições dignas é capaz de alçá-lo  a tal patamar.

Neste contexto, o trabalho, ainda que seja condição essencial para que o trabalhador desenvolva as suas potencialidades e eleve sua consciência moral, pode transudar-se condição de aviltamento. Quando praticado em condições indignas, o trabalho é capaz de provocar os mais sofríveis sentimentos, levando o trabalhador a acreditar na sua inaptidão para o convívio social.

O trabalho deve provocar no operário a noção de que ele é ferramenta essencial na estrutura social e, que como membro desta, pode e deve exigir que a dinâmica tutelada pelo direito positivo seja cumprida, a fim de que seja assegurada a sua proteção. Essa é a condição básica para a existência da satisfação pessoal e partilhada do homem no (e pelo) trabalho.

O processo de flexibilização dos direitos trabalhistas que, guiado pelo espírito capitalista do estimulo à concorrência desenfreada, há tempos se instaurou no ordenamento brasileiro vai de encontro ao ideário do trabalho dignificante, pois visa a supressão de direitos que constituem a base mínima para que o trabalhador desenvolva suas atividades com segurança física, psíquica e econômica.

Suprimir direitos que garantam ao trabalhador uma remuneração capaz de lhe permitir o mínimo para sua subsistência, um ambiente de trabalho saudável, a proteção contra efeitos danosos, entre outros, é retirar-lhe a satisfação e afastar as condições para o seu desenvolvimento pessoal.

Assim, este ensaio trabalhara com a articulação entre o princípio da dignidade humana, a construção da identidade social do trabalhador e os direitos necessários para a garantia do trabalho digno. Buscar-se-á demonstrar, através dos relevantes aspectos da dignidade, a idéia de trabalho digno e sua relevância aos aspectos psíquicos e sociológicos do trabalhador.

O estudo será estruturado de acordo com o modelo francês de metodologia, dividindo-se em duas partes distintas, sendo que a primeira abordará as questões pertinentes ao princípio da dignidade humana e, em especial os seus fundamentos ético-filosóficos e, na segunda parte far-se-á uma análise acerca da construção da identidade social do homem e, do papel do trabalho nesse processo.

 

1. Sobre a Dignidade Humana

A consagração do princípio da dignidade humana, como valor maior do texto constitucional brasileiro de 1988, não tem sido acompanhada por uma concomitante reflexão sobre seus fundamentos ético-filosóficos. Essa falta de reflexão crítica sobre um tema tão importante tem implicado no uso indiscriminado do princípio para tudo abranger e justificar.

Segundo Barreto (2010, p.57), “essa pouca elaboração teórica tem a ver com o fato de que a palavra não é um conceito propriamente jurídico. Para que se torne um conceito jurídico, a idéia de dignidade humana, como escreve Edelman, necessita uma história que irá lhe definir o seu próprio espaço”.

A idéia de que a pessoa possui uma dignidade que lhe é inerente remota suas origens na história da filosofia Ocidental. Para Barretto (2010, p.58), mesmo antes do texto clássico de Picco de La Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem (1486), a questão já era vista nas obras de Aristóteles, Santo Agostinho, Boécio, Alcuino e Santo Tomás, indicando como através dos tempos agregaram-se valores à idéia de pessoa, que culminaram na objetivação da idéia de dignidade humana.

No que tange aos antecedentes históricos da idéia de dignidade humana, Sarlet (2008, p. 32) esclarece que “para a afirmação da idéia de dignidade humana, foi especialmente preciosa a contribuição do espanhol Francisco de Vitoria, quando no século XVI, no limiar da colonização espanhola, sustentou, relativamente ao processo de aniquilação, exploração e escravização dos habitantes dos índios e baseado no pensamento estóico e cristão, que os indígenas, em função do direito natural e de sua natureza humana – e não pelo fato de serem cristãos, católicos ou protestantes – eram, em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direito, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados com a coroa espanhola.”

Todavia, a dignidade humana no espaço da teoria do direito é um conceito novo, que se encontra presente em diversos textos internacionais[2], mas que não figurou na declaração da independência dos Estados Unidos, nem na declaração revolucionária francesa de 1789 e tampouco nos texto que as seguiram, durante praticamente dois séculos, embora estivesse presente como princípio, como referência moral obrigatória (BARRETO, 2010, p. 58).

Contudo, mesmo que a dignidade preexista ao direito, o seu reconhecimento e a sua proteção pela ordem jurídica é o que lhe reveste de legitimidade. E no reconhecimento da dignidade da pessoa humana pelo ordenamento brasileiro, a Constituição de 1988 apresentou uma relevante inovação ao reconhece – lá como fundamento do Estado. Ocorre que a nova Carta Constitucional, para cumprir também um novo papel, precisava passar de um mero Estatuto de Estado, para ser sobretudo, Estatuto de uma nova cidadania (GONÇALVES, 2006, p. 167).

O Estado Democrático de Direito é reconhecido como principal agente de transformação, a dar realce ao conceito material da igualdade, evidenciando-se, cada vez mais, a busca por uma interação expansionista dos valores da liberdade e da igualdade, centrados no postulado da dignidade humana.

Conforme refere Häberle (2005, p. 128), o respeito e a proteção da dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do estado democrático constitui a premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. A dignidade humana ultrapassa os fundamentos do Estado, ela é acima de tudo, fundamento para a sociedade constituída e, para a sociedade que irá se constituir.

No entanto, para que se possa estabelecer o conceito jurídico de dignidade humana é necessário distingui-lo de outros conceitos comuns da teoria do direito. Tencionando distinguir a dignidade dos direitos humanos, Barreto (2010, p. 60) afirma que “a dignidade humana designaria não o ser homem, o indivíduo, mas a humanidade que se encontra em todos os seres humanos. Enquanto os direitos humanos representaram a defesa da liberdade diante do despotismo, a dignidade humana significou a marca da humanidade diante da barbárie”.

O conceito de dignidade humana situa-se em um plano epistemológico diverso do conceito de direitos humanos, pois não assinala nem mais nem menos a essência do homem, como ocorre nos direitos humanos, mas atribui um significado diverso a essa essência. “A dignidade humana situa-se no cerne da luta contra o risco da desumanização, conseqüência do desenvolvimento desmesurado da tecnologia e do mercado. O inimigo não é mais unicamente e exclusivamente o poder do Estado, mas também o próprio produto do conhecimento humano e do sistema produtivo” (BARRETO, 2010, p. 61).

Vê-se assim, que a dignidade humana se refere não ao indivíduo, mas à humanidade. O homem, dos direitos humanos representa, juridicamente, o individuo universal, no exercício de sua liberdade também universal. A humanidade, entretanto, é o conjunto simbólico de todos os homens enquanto seres humanos.

À dignidade humana podem ser atribuídas três diferentes acepções: social, honorífica e moral. As duas primeiras definições fazem referência a forma como a qual a dignidade humana é atribuída pela sociedade a um indivíduo. Já a acepção moral da dignidade, que fundamenta seu o conceito jurídico, advém de um longo processo de sedimentação teórica, fruto da obra de diversos autores, em diversas épocas.

Na sua significação moral, a dignidade vincula-se ao respeito a si mesmo, à auto-estima. O indivíduo não pode se considerar um ser desqualificado, envergonhado de si próprio. Essa acepção de dignidade possui mais uma conotação psicológica do que propriamente moral. A acepção moral implica em reconhecer no indivíduo uma pessoa, distinta das coisas ou dos animais. Essa acepção fornece os alicerces para a conceituação jurídica da dignidade humana, pois toda a pessoa é dotada de qualidades que impedem que ela seja tratada como um meio, tendo um valor em si mesmo.

Em similar sentido, Alfredo Culleton (2009, p. 81), para quem a dignidade pode ser distinguida em dignidade como mérito, como estrutura moral, como identidade e como totalidade, afirma que as três primeiras destas noções, embora bastante distintas, possuem duas características importantes em comum. Primeiro, que as pessoas podem ter esses tipos de dignidade em vários graus e segundo, que todas elas podem ir e vir, todas podem variar de uma posição sobre uma escala para outra.

Há, contudo, uma espécie de dignidade que é completamente diferente. Um tipo de dignidade que todos os seres humanos têm, ou se presume que tenham, pelo simples fato de serem humanos. Essa dignidade, denominada de Menschenwürde, refere-se ao valor humano e, implica no reconhecimento de que todos possuímos o mesmo valor. E é justamente pela nossa Menschenwürde igual, que ninguém pode ser tratado com menos respeito do que qualquer outra pessoa no que concerne aos direitos humanos básicos (KANT, 1980, pp. 134/135).

Para chegarmos até essa concepção atual de dignidade humana, muitos autores foram decisivos, conforme já referimos, mas a construção do conceito de dignidade humana na cultura contemporânea deita suas raízes, principalmente no pensamento de Immanuel Kant.

Kant atribuiu o fundamento da dignidade não ao fato do ser humano ser a imagem e semelhança de Deus, mas sim pela sua capacidade de submeter-se às leis por ele mesmo elaborada e de formar um projeto de vida consciente. Surge aí, a concepção de indivíduo e de sujeito de direito. Kant estabelece a esfera inviolável da consciência humana, essencial à noção de autonomia, que é característica exclusiva do ser racional. Para Kant, o homem existe como um fim em si mesmo, não como um meio para o uso da sua vontade ou de outrem. Para ele, o homem não possui valor, está acima de qualquer preço, porque possui dignidade.

Com base nesta premissa, Kant sustenta que “o Homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. (…) Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativos como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) (1980, pp. 134/135).

A concepção Kantiana de valor afasta qualquer coisificação e instrumentalização do ser humano. Porém, não basta que a ação não contradiga a humanidade da pessoa, o próprio homem deve concordar com ela. Deve haver um esforço de cada individuo para o alcance dos fins de seus semelhantes (GOSDAL, 2007.pg. 54)

Ainda segundo Kant, “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade… Esta apreciação dá, pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-se infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade” (1980, p. 140).

Para Kant, a dignidade é um traço distintivo entre a pessoa e os demais seres vivos. Para ele, o homem é um ser dotado de autonomia, capaz de criar, aperfeiçoar-se ou então degradar-se, sujeitando-se à lei da heteronomia, externa à consciência da pessoa.

De acordo com Barreto, o núcleo da idéia Kantiana da dignidade humana se expressa através de sete conceitos interligados por uma cadeia argumentativa: ser racional, homo noumenon, personalidade, fim em si mesmo, moralidade, autonomia e liberdade (2010, pg. 69).

Para Kant, a dignidade é o resultado de uma sequência que tem início no reconhecimento da pessoa como ser racional para poder defini-la como ser dotado de autonomia na liberdade. Em cada pessoa reside a humanidade que exige o respeito de todas as demais pessoas. Mas, a dignidade se encontra no respeito que, antes de mais nada, cada pessoa tem consigo mesma, como pessoa em geral e como ser humano. Nas palavras de Barreto, “essa valoração de si mesmo representa o caráter sublime da constituição moral do ser humano, sendo que a dignidade humana reside em última análise na preservação pelo homem da dignidade da humanidade” (2010, pg. 69).

A contribuição Kantiana foi determinante para a definição do princípio da dignidade humana. É a concepção filosófica sustentada por Kant que garante a transição lógico-conceitual entre o patamar da reflexão racional e o espaço da empiria jurídico-constitucional, processo esse essencial para a própria leitura do texto constitucional (BARRETO, 2010, pg.70)

Vem da filosofia a idéia do homem como ser dotado de vontade, de capacidade de agir com autonomia. Surge na filosofia a idéia do ser humano autoconsciente. O homem possui consciência de sua subjetividade, é capaz de enxergar-se como sujeito no mundo, e estas premissas é que irão nortear a concepção jurídica de dignidade (GOSDAL, 2007. pg. 76).

Portanto, o conteúdo do princípio da dignidade humana pode ser desdobrado em duas máximas: não tratar a pessoa humana como simples meio e assegurar suas necessidades vitais. Pode-se verificar que a primeira destas máximas deita suas raízes no imperativo categórico de Kant, que estabelece que a pessoa jamais poderá ser utilizada como meio de vontade de outra pessoa, mas sempre, e concomitantemente, como tendo um fim e si mesma.

Nesse sentido, Barreto destaca que as condições de trabalho de trabalho muitas vezes provocam um tratamento indigno da pessoa, razão pela qual o princípio da dignidade humana é tão comumente citado nas declarações internacionais sobre o direito do trabalho. O autor destaca ainda, o caráter ambivalente do trabalho que, tanto pode ser fator de aviltamento da condição humana, como condição de realização do ser humano como pessoa (2010, pg. 70).

Já a segunda máxima nos alça a um conceito mais abrangente de dignidade humana, pois dela se extrai que o ser humano não é um espírito puro. A pessoa é um ser corpóreo que possui necessidades que devem ser atingidas para livrá-la da sujeição e da degradação. Neste contexto, a dignidade da pessoa exige para sua preservação o acesso a um trabalho decente, à moradia e aos cuidados relativos à saúde. Ainda, o princípio da dignidade humana exige também o acesso aos bens espirituais, como a educação e a cultura, e a proteção da integridade física e mental da pessoa, com vistas a coibir a tortura mental, que pode assumir diversas formas (BARRETO, 2010, pg. 71).

Neste sentido, Airton Pereira Pinto, afirma que sem a dignidade, o ser humano perece como ser autônomo, sujeito da ação política, jurídica, cultural, social e econômica. Para o autor, a dignidade é um valor supremo e evidente no humano. “É ao mesmo tempo algo que é e que se impõe como necessário na realidade existente” (2006, pg. 87).

Em verdade, a dignidade da pessoa humana, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade, razão pela qual é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade (SARLET, 2008, pg. 57).

A tarefa da manutenção e promoção da dignidade humana é imensa e não deve demandar excessiva razão ao direito. Senão, deve ser uma razão do próprio Estado em suas diversas maneiras de criar e gerir as políticas públicas e incentivar outras de natureza privada. A dignidade não se realiza sem um conjunto de outras exigências, como uma espécie de sistema integrado, comunicante e que não funciona somente em partes estanques e separadas.

No ideário de que a dignidade humana está implícita no conceito de que “todos são iguais”, a proclamação da indistinção deve iluminar todos os campos da vida humana. O todo é igual perante o Estado, que é lei, mas a dignidade humana é mais que a lei estatal. Ela surge como é direito e está no campo do justo (PINTO, 2006, pg. 90).

O Estado não é um espaço simplesmente para o exercício de direito individual e seus interesses, mas deve ser fim coletivo e social, na medida em que o todo coletivo e o interesse público estão se realizando, ou na proposta de efetiva possibilidade de sua realização. Assim é que o todo da dignidade humana se realiza no todo Estado e as dignidades particulares devem ser realizadas no todo particular.

Marcio Sotelo Felippe, em análise á generalização da dignidade humana, como referida ao Estado que é norma e, valendo-se dos pensamentos de Kant, Rousseau e Kelsen, afirma que “a abstração das diferenças pessoais é a idéia de que todo indivíduo vale em si mesmo, tem um valor de dignidade independentemente de sua condição particular étnica, de classe, origem social, etc. A abstração dos fins particulares significa a superação dos interesses específicos, como os de classe, por exemplo. Um reino dos fins que atingisse a absoluta abstração das diferenças pessoais e dos fins particulares seria a comunidade humana perfeita: cada homem como fim em si mesmo. Se essa comunidade humana perfeita fosse uma imensa praia, a idéia dos direitos humanos seria um grão de areia, e é somente isso que temos na mão. Direito à vida, igualdade de oportunidades, trabalho, educação, saúde, bens culturais, enfim, o mínimo de dignidade material e espiritual”. (1996, pg. 75).

A dignidade humana que se coloca como fim da juridicidade da norma, reclama a aplicabilidade da totalidade das normas em seu sentido mais libertário. O sentido da reclamação é a justiça, como valor e conteúdo dos instrumentos – norma e direito – disponíveis na comunidade humana. Num sentido Kantiano, a dignidade humana, produto da razão que legisla sobre si, apresenta claro fator de igualdade com a realização dos direitos humanos totais, para então ser valor maior, ser princípio que ilumina as várias atividades humanas (PINTO, 2006, pg. 91).

Essas e outras reflexões induzem ao reconhecimento manifesto de que a sociedade contemporânea, dirigida pelos ideólogos do neoliberalismo e pelos efeitos da globalização econômica, requer grandes transformações do legado do passado e exige o fortalecimento do Direito em uma rede de vínculos, para reconectá-lo com outras áreas do saber científico. É nesse contexto que se vem ressaltando a necessidade de se introduzir mecanismos de eficácia e efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio unificador dos direitos fundamentais e uma das bases do Estado Democrático.

Enfim, o princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual se reporta como um dos fundamentos do Estado Democrático, torna-se o elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. Exige uma concepção diferenciada do que seja segurança, igualdade, justiça e liberdade, para impedir que o ser humano seja tratado como mero objeto, principalmente na condição de trabalhador, muitas vezes assim reconhecido, a serviço da economia, como uma simples peça da engrenagem.(GOMES, 2005, pg. 28).

Entende-se assim, que na esfera das relações de trabalho o direito deve atuar de forma mais dinâmica, inovando e transformando, porque o trabalho torna o homem mais homem, ao possibilitar-lhe o pleno desenvolvimento de sua personalidade, de onde resulta sua valorização como pessoa humana.

Nesta senda, nos cabe, por conseguinte, analisarmos a intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e o trabalho humano.

 

  1. Trabalho e identidade social do trabalhador

            Em certo sentido, o trabalho é suporte de valor, por isso é identificado de diversas maneiras, dependendo do ponto de vista de quem analisa, e de quem é agraciado por ele. O trabalho pode ser valorizado como digno ou indigno, lícito ou ilícito, formal ou informal, seguro ou perigoso, e assim sucessivamente (JARDIM, 1997, pg. 83).

A análise que aqui se propõe, recai sobre o trabalho digno. Trabalho que, sendo uma das categorias de maior relevância social, transforma simultaneamente o sujeito e a sociedade. Todavia, se considerarmos a dinâmica do capitalismo, sobretudo ao final do século XX e início do século XXI, constataremos a fragilização do valor trabalho e de seu significado mais fundamental de construção da identidade, seja considerada a identidade individual, seja considerada a identidade social do individuo (DELGADO, 2006, pg. 142).

Nesse sentido, Tereza Gosdal (2007, pg. 105), destaca que “sob o capitalismo, o trabalho concreto particular é vendido como trabalho abstrato, reduzido a uma unidade formal. O trabalho humano passa a constituir meio de produção de valores de troca, de bens esvaziados de sua qualidade de utilidade, considerados apenas por sua equivalência com outras mercadorias e com o dinheiro. O trabalho abstrato é a força criadora do valor, sendo o valor das mercadorias proporcional á quantidade de trabalho incorporada, o que só é possível num sistema econômico que generaliza a troca de mercadorias, como o capitalismo. No valor das mercadorias não está contido apenas o trabalho humano vivo imediato, mas também o trabalho cristalizado nos meios de produção e envolvido na circulação das mercadorias”.

Para Karl Marx (1818-1883) o trabalho humano é integrante da estrutura da vida em sociedade. Segundo o pensamento marxista, os homens necessitam do trabalho para a produção de objetos materiais e de alimentos no seu cotidiano. Tais objetos e alimentos são produtos do trabalho dos homens sob a natureza, mas nenhum homem trabalha em solidão ou vive apartado da natureza (DELGADO, 2006, pg. 127).

O trabalho humano para Marx é um trabalho socialmente necessário. Nesse processo as pessoas passam a depender umas das outras e criam as denominadas relações sociais de produção. Nessa dinâmica, o trabalho individual integra-se ao trabalho social. E assim, o valor trabalho relaciona-se ao valor social do trabalho produzido, ou seja, á capacidade de satisfação das necessidades humanas com o fruto do trabalho realizado. Constitui-se assim, o “ser social”.

Logo, “os indivíduos só podem ser explicados pelas relações sociais que mantêm, isto é, pela organização social a que pertencem e que os constitui como eles são. Cada modo social de produção criaria os indivíduos de que necessita. Não haveria um homem universal, mas o concretamente produzido pelo conjunto das relações sociais de produção” (REIS, 2004, pg. 54).

Percebe-se, portanto, que o ser pensado por Marx é fruto das relações concretas de produção, organizado para a produção e dependente dela. O trabalho presente na dinâmica da produção econômica possui, no pensamento marxista, valor inerente a si mesmo. É valor integrado às necessidades de sobrevivência das sociedades que, como fator essencial ao processo produtivo, impulsiona as transformações das sociedades nas quais se realiza (DELGADO, 2006, pg. 132).

Mas, no diversificado campo da teoria marxista, destaca-se o processo de construção da identidade social do trabalhador. Segundo Marilda Villela Iamamoto (2001, pgs. 37/38), para Marx, a constituição social do homem apresenta-se quando ele procura implementar projetos na vida social, inserindo-se no contexto da produção por meio do trabalho. O pressuposto, conforme assevera a autora, é que a pessoa se insira no conjunto das relações sociais, promovendo, com determinismo e liberdade, projetos de desenvolvimento social. É por isso, que na constituição da essência humana, deve revelar-se, inevitavelmente, o indivíduo social.

Na compreensão da identidade social da pessoa, é indissociável o conceito de trabalho humano, já que o ser social se revela potencialmente pelo trabalho. “Identificar o homem trabalhador enquanto indivíduo social é garantir-lhe espaço de relação com outros homens que também disponham da força de trabalho. Dessa maneira, é concedida ao homem a possibilidade de formação de sua identidade, pelo trabalho” (DELGADO, 2006, pg. 134).

No momento em que a pessoa se identifica como trabalhadora de um determinado segmento, ela passa a criar vínculo com os seus semelhantes, incorporando à sua vida privada os valores absorvidos no seu ambiente de trabalho. O trabalhador espelha o seu modo de ser ao executar as funções e recebe do espaço social tanto resultados materiais (para sua sobrevivência enquanto espécie), como imateriais (na produção de sua identidade).

É nesse sentido que Iamamoto (2001, pgs. 39/40) descreve o trabalho como a “condição da vida humana, atividade existencial do homem, sua atividade livre e consciente”, já que “o pressuposto é o homem, criatura natural, dotado de uma base orgânica, em que se encontram inscritas infinitas capacidades e possibilidades. Para prover suas necessidades interage com objetos de natureza orgânica e inorgânica. Ainda que parte da natureza, suas atividades vitais diferenciam-se, pelo trabalho, dos demais seres naturais, que se limitam a consumir diretamente os objetos dados no meio natural. Sendo o trabalho a atividade vital específica do homem, ele mediatiza a satisfação de suas necessidades pela transformação prévia da realidade material, modificando a sua forma natural, produzindo os valores de uso. O homem é um agente ativo, capaz de dar respostas prático-conscientes aos seus carecimentos, através da atividade laborativa. Como agente ativo amplia incessantemente o círculo de objetos que podem servir á atividade vital humana, seja para seu consumo direto, seja como meio de trabalho. Vive em um universo humanizado, ele mesmo produto da atividade humana de gerações precedentes: de objetivações de suas experiências, faculdades e necessidades”. (Grifos da autora)

Ou seja: é característica do trabalho sua capacidade de se revelar como produção objetiva e subjetiva. Objetivamente, o trabalho possibilita processos de criação e transformação da natureza em bens materiais, para que o ser humano possa sobreviver no habitat artificial por ele mesmo criado. Subjetivamente, o trabalho deve contribuir para o desenvolvimento do próprio trabalhador, aperfeiçoando suas potencialidades, revelando aptidões e gerando novas necessidades.

O trabalho constitui uma atividade vital para o ser humano, que pode fazê-la de forma  livre e consciente, distinguindo-se dos demais animais. Ao homem é possibilitado produzir e ser livre diante do produto do seu trabalho. Essa relação se inverte diante do trabalho alienado, em que o trabalhador transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio de sua existência. Ao retirar do trabalhador o produto do trabalho, o trabalho alienado também lhe retira a vida genérica.

Para que se possa ter da dignidade do trabalhador uma visão crítica é preciso partir da análise do conceito de trabalho abstrato para se chegar à ideia de trabalho decente. O trabalho abstrato se caracteriza pela abstração das formas concretas de trabalho. Encontra expressão na forma de valor contida na mercadoria, sopesada pelo tempo socialmente despendido para a sua produção. Gosdal (2007, pg. 106), afirma que, na economia de mercado, o indivíduo precisa participar das relações de troca para obter os bens necessários para a sua subsistência, e cada indivíduo pode participar dessa relação, como proprietário dos meios de produção, ou como proprietário da força de trabalho. O proprietário da força de trabalho, ou, trabalhador, é livre para vender o seu produto, mas quando o faz, sujeita-se à lei do mercado, e à ordem jurídica objetiva, trabalhista e previdenciária.

Segundo Marx, é a quantidade de homens no mercado de trabalho que irá regular a produção desses mesmos homens, como ocorre com qualquer outra mercadoria, sendo que o excesso de trabalhadores à disponibilidade das empresas irá fadar alguns desses mesmos trabalhadores à miséria. “O trabalhador transformou-se em mercadoria e terá muita sorte se encontrar um comprador.” (MARX, 2004, pg. 67).

Vê-se cotidianamente os doutrinadores da área juslaboral dizer que o trabalhador não se vende por meio de contrato, porque não é mercadoria, já que é dotado de dignidade. No entanto, é forçoso concordar com aqueles que referem que esta assertiva não passa de uma ficção jurídica, já que não é possível, de fato, separar o homem de sua força de trabalho ou atividade. E mais: a realidade das relações trabalhistas parece não se importar com a teoria.

Havendo excesso na mão-de-obra no mercado de trabalho, há redução salarial, há incremento das práticas discriminatórias na admissão e manutenção do emprego, há superexploração do emprego. A ficção da separação entre a força de trabalho e o trabalhador, a hipótese do trabalhador vender tão somente a sua força de trabalho e, não a si mesmo, não se apresenta de maneira clara nas relações cotidianas de trabalho.

O trabalhador como um todo comparece à empresa para realizar a jornada contratada, todo ele se submete ao poder diretivo do empregador e às condições de trabalho por ele impostas, todo o ser do trabalhador depende da contraprestação salarial. “E o trabalho é considerado mero custo da produção, a ser reduzido ao mínimo possível de qualquer maneira. Esta impossibilidade de cisão real interfere na tutela da dignidade nas relações de trabalho” (GOSDAL, 2007, pg. 108).

A dignidade do trabalhador deve ser encarada como fator limitador ao exercício da livre iniciativa e ao direito de propriedade do empregador, que deve observá-la no exercício de seu poder diretivo e na tutela de seu patrimônio, criando o dever de realizar a utilidade social do empreendimento e de promover no ambiente de trabalho os direitos fundamentais dos trabalhadores. É sabido que o trabalho humano pode ser definido e analisado pelas mais diversas ciências. Todavia, para que seja assegurada a dignidade no trabalho, é imperioso que se realize a análise do trabalho pelo enfoque da ética.

O trabalho é essencial à vida humana, porém, para ser ético, deve ser condizente com a moral e a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Bataglia (1958, pg. 23) esclarece que “é preciso repelir por isso uma prática de trabalho mecânica ou fisiologicamente comprovada se, como entende o pensamento ético, a moral se sente lesiva à dignidade humana; uma sistematização produtora ideada pela técnica, proclamada útil pela economia, se diminui certas exigências da liberdade, não deve de modo algum executar-se. A motivação moral é superior a toda outra motivação. O trabalho da mecânica, da física, da fisiologia, da técnica, da economia, deve ser sempre trabalho do homem que a moral aprove, pois importa ao homem, já que é fim do homem (não aquele trabalho mas o trabalho; aquele trabalho que é o trabalho do homem)”.

Bataglia (1958, pg. 288) explica ainda que, no trabalho há a descrição da personalidade humana na liberdade, “pois que o trabalho é a atividade consciente do homem que se faz pessoa e que, numa escolha espontânea de meios e de fins, procede livremente”, sendo que, apesar de ser uma liberdade, o trabalho também se apresenta como uma obrigatoriedade ou um dever moral.

Assim, se do trabalho decorre um dever moral, este deve ser compreendido enquanto a própria moralidade. Isto é, para que um trabalho seja moral é imprescindível que por meio dele, o homem, sujeito livre e consciente estabeleça planos e exercite o seu querer.

É por intermédio do trabalho que o impulso instintivo das vontades humanas se transforma em um fim. O trabalho é a oportunidade exclusiva, através da qual o homem adquire consciência de si como ser inteligente e como vontade, constitui-se e eleva-se verdadeiramente à ordem moral. O trabalho valoriza o homem, assegurando a sua mais ampla sociabilidade.

Há uma “ética social no trabalho”. “No trabalho, ou melhor, na atividade, o homem sai de si próprio; a satisfação de si próprio o induz a invadir e a procurar, pois, as coisas, e, mais do que as coisas, os outros. Os outros ele reconhece na mesma dignidade de que se encontra investido, reconhece-os como sujeitos na ordem ética. Se reconhece os outros, exige ser reconhecido conforme a uma exigência de paridade e de reciprocidade. Sente, em conclusão, e reconhece a si e aos outros associados, dá sentido, numa relação que é forma transcendental, ao mesmo tempo de convivência e de colaboração” (BATAGLIA, 1958, pg. 297).

Há, pois, uma relação direta entre o trabalho enquanto instrumento de constituição do sujeito ético e enquanto instrumento de inserção social. Quanto maior for a inserção social do sujeito pelo trabalho, mais plena tornar-se-á sua constituição ética.

A dignidade sob o enfoque do direito do trabalho pode ser entendida de acordo com a noção de trabalho decente. O trabalho decente não é um conceito adaptável a qualquer interpretação, por isso, pode ser bastante útil na delimitação do conteúdo da dignidade no âmbito das relações de trabalho.

Há de se ressaltar que, atualmente, diante do fenômeno da globalização econômica, o Estado, ao promulgar suas leis, preocupa-se cada vez mais com o cenário internacional, a fim de saber o que, efetivamente pode regular e quais serão as normas efetivamente respeitadas. Adotam-se as polêmicas estratégias da descentralização, desformalização, deslegalização e desconstitucionalização no mundo inteiro, paralelamente aos programas de privatização dos monopólios públicos e à substituição dos mecanismos estatais de seguridade social, por seguros privados, ampliando assim o pluralismo de ordens normativas. “Não resta ao legislador do Estado-nação outra alternativa para preservar sua autoridade funcional que não seja aquela de menos intervir e menos disciplinar, pois, quanto menos disciplinar e intervir menor será o risco de ser desmoralizado pela ineficácia de seu instrumental regulatório”. (GOMES, 2005, pg. 89).

As empresas buscam hoje mais a criatividade, o conhecimento geral, o saber multifacetado. O trabalho material, no entanto, continua sendo extremamente importante na maior parte do mundo em termos quantitativos; porém a tecnologia da informação vem se tornando cada vez mais o foco da economia global. Em outras palavras, o papel central, antes ocupado pela força de trabalho de operários de fábrica na produção de mais-valia, está sendo hoje preenchido, progressivamente, pela força de trabalho intelectual, imaterial e comunicativa.

Essas mudanças trazem consigo novas formas de exploração humana, com o aumento do trabalho precário, a agravar a pobreza, ao mesmo tempo em que põe a intelectualidade do trabalhador vivo e cooperante no centro da valorização econômica e social. A exclusão social aumenta na medida em que os ganhos da produtividade são obtidos à custa da degradação salarial, da informatização da produção e do conseqüente fechamento dos postos de trabalho. Nesse quadro, o cidadão-trabalhador, quando não excluído e condenado ao universo da informalidade, é integrado e submetido á lógica avassaladora do capital transnacionalizado. (GOMES, 2005, pg. 90).

Em verdade, as imposições advindas do neoliberalismo e da globalização trazem como resultado, o amargo retorno à pré-modernadade, o que evidencia a volta da barbárie, ou mais precisamente, impõe uma nova forma de regulação feudal, a ignorar completamente o longo percurso das conquistas dos direitos dos trabalhadores.

Neste cenário, é imprescindível que se ressalte o valor do trabalho decente. Trabalho decente é aquele desenvolvido com justa remuneração e que se exerce em condições de liberdade, eqüidade, seguridade e respeito à dignidade da pessoa humana.

O trabalho decente está voltado à promoção do progresso social, à redução da pobreza e a um desenvolvimento eqüitativo e integrador, em face da crescente situação de interdependência dos países na atualidade. O trabalho decente não se coaduna com as reformas trabalhistas fortemente sentidas a partir de 2007 e que visam tão somente à flexibilização de direitos.

A conjectura de trabalho decente como trabalho justamente remunerado, significa que a remuneração deve possibilitar a satisfação das necessidades vitais mínimas do trabalhador, retribuindo devidamente a contribuição do trabalhador para a produção de riquezas.

No mais, dizer que o trabalho decente pretende ocorrer em condições de liberdade significa dizer que a liberdade de associação e o direito á negociação coletiva devem encontrar condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

O trabalho decente é aquele que ocorre em condições de equidade, tanto nas questões de gênero e raça, nas questões relativas ao culto religioso, de convicções políticas, idade, e vários outros critérios discriminatórios.

Há, ainda, a necessidade de se assegurar segurança básica e emprego, protegendo-se o obreiro contra vulnerabilidades no trabalho, como doenças, velhices e desemprego. Todos esses fatores constituem condições de respeito à dignidade do ser humano.

Por tal razão é que se entende que, ao menos, os direitos alçados a qualidade de indisponibilidade absoluta, devem estar assegurados a todo e qualquer trabalhador. Isto é, se existe um direito fundamental, deve também existir um dever fundamental de proteção. A proteção jurídica social do homem deve ser a diretriz do Direito do Trabalho. Deve-se privilegiar a valorização e tutela da pessoa do trabalhador, ao invés de focalizarmos a proteção jurídica tão somente no trabalho.

O trabalho deve ser reconhecido em sua significação ética e, através dele, o homem deverá realizar-se e revelar-se em sua identidade social. “O significado do trabalho na realidade contemporânea não se prende às amarras de uma limitação meramente reprodutiva ou econômica e encerra um outro sentido, próprio de uma sociedade solidária – sociedade em que a exclusão é concebida como desvio social, que exige correção pelos seus próprios membros e instituições. Nessa compreensão, de corte histórico-axiológico e humanístico, o trabalho eleva-se como uma das fórmulas de inserção social, como meio que deve ser assegurado à pessoa, desempenhar um papel em sua comunidade”. (        NASCIMENTO, 2006, pg. 236)

A identidade social do trabalhador somente será assegurada se o seu labor for digno, se o trabalho for prestado em condições decentes. Ora, se o trabalhador é mal remunerado, se não existem condições mínimas de higiene e segurança do trabalho, por exemplo, não há espaço para a concretização da dignidade. O Direito será mera abstração. Compreender o trabalhador enquanto mero instrumento para a realização de determinado serviço, compromete o entendimento de que o homem deve ser fim em si mesmo.

Para que a pessoa possa efetivamente ser considerada um fim em si mesmo, é necessário que o Estado garanta a efetividade do direito ao trabalho decente por meios de práticas sociais de caráter interno e externo.

O sentido de trabalho decente está diretamente ligado ao desenvolvimento da liberdade a permitir ao ser humano, a sua ampla formação enquanto ser racional. É preciso, portanto, assegurar o estado de liberdade, para que o trabalho cumpra o sentido ético indispensável à formação da identidade humana.

 

Conclusão

O presente ensaio buscou refletir sobre a relação entre o trabalho, a dignidade da pessoa-trabalhadora e os pressupostos indispensáveis à formação de sua identidade social. O princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual se reporta a idéia democrática, como um dos fundamentos do Estado de Direito Democrático, tornou-se o elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. O princípio da dignidade humana exige uma concepção diferenciada do que seja segurança, igualdade, justiça e liberdade, para impedir que o ser humano seja tratado como mero objeto, principalmente na condição de trabalhador, onde muitas vezes, a serviço da economia, é visto como uma simples peça da engrenagem.

Percebe-se, pois, que, na esfera das relações de trabalho, o direito deve atuar de forma mais dinâmica, inovando e transformando, porque o trabalho torna o ser humano mais humano, ao possibilitar-lhe o pleno desenvolvimento de sua personalidade, de onde resulta sua valorização como pessoa humana.

Vê-se que no Estado Democrático de Direito onde a Constituição Federal não só reconhece a existência e a eminência da dignidade da pessoa humana, mas transforma-a em valor supremo da ordem jurídica, não se pode privilegiar os interesses da economia, deixando o trabalhador vagar solitário em meio às leis do mercado. Ao contrário, ele deve ser amparado, de fato e de direito, pelas normas pétreas da Constituição, que nada mais são do que o resultado da árdua luta traçada durante século pelos seus iguais.

Neste sentido, percebe-se que a identidade social do homem somente será assegurada se o seu labor for digno, se o trabalho for prestado em condições decentes. A explicação deve ser compreendida por meio da contradição existente em nossa sociedade: ao mesmo tempo em que o trabalho possibilita a construção da identidade social da pessoa, pode também destruir a sua existência, caso não assegure condições mínimas para o seu exercício.

Negar o trabalho decente é negar os Direitos Humanos do trabalhador, e, portanto, ir de encontro aos princípios básicos que os regem, principalmente o maior deles, a dignidade da pessoa humana. (BRITO FILHO, 2004, pg. 62).

Somente o trabalho prestado em condições dignas, será capaz de assegurar a identidade social do trabalhador, pois, para que o indivíduo seja considerado fim em si mesmo é necessário que o Estado garanta a efetividade do direito ao trabalho digno, por meio de práticas sociais de caráter interno e externo. Por meio da promoção de direitos é que a dignidade será reconhecida em cada ser humano. Eis, portanto, a importância do Direito do Trabalho enquanto cânone de conduta e de organização social.

Ora, não há como separar-se o trabalhador de sua força de trabalho, assim, se faz necessária a observância da dignidade que o indivíduo possui como pessoa humana, da qual não se despe quando se coloca na posição de trabalhador. A tutela da dignidade nas relações de trabalho exige a consideração do trabalhador concreto, em suas relações concretas. Não basta que a dignidade esteja protegida em textos Constitucionais e em tratados e convenções internacionais, é necessário haver uma consciência ético-jurídica e uma praxe da dignidade nas relações de trabalho.

Faz-se necessária, pois, a existência de um patamar mínimo de direitos, a garantir o trabalho decente, a fim de viabilizar o valor da dignidade no trabalho e garantir a afirmação social do sujeito que labora.

 

BIBLIOGRAFIA

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[1] Advogada. Graduada em Direito pela PUC/RS. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.   Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Email: cristina.benedetti@bol.com.br.

[2] É o caso, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1949, art.22; Convenção relativa aos direitos da criança, 1959, art.39; Pacto internacional relativo aos direitos civis e políticos, 1966, art. 10; Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, 1997, Parte A, art.2.

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