Resumo: O trabalho desenvolvido tem o intuito de analisar a responsabilidade civil do tomador de serviços diante da redução do sujeito a condição análoga à de escravo. Tem por escopo avaliar a aplicação de dano moral diante do que outrora se chamava “trabalho escravo”.
Palavras-chave: Trabalho escravo. Responsabilidade civil. Dano moral.
Abstract: The work aims to analyze the borrower's liability on the reduction of services subject to a condition analogous to slavery. Its scope evaluate the application of moral damage before what once was called "slave labor".
Keywords: Slave labor. Liability. Moral damage.
Sumário. Introdução. 1. Trabalho escravo. 1.1 Expressões. 2. Responsabilidade. 2.1. Responsabilidade civil. 2.1.1. Pressupostos. 2.1.1.1. Dano. 2.1.1.1.1. Dano moral. 2.1.1.1.1.1. Dano moral na Justiça do Trabalho. 2.1.2. Funções. 3. Redução a condição análoga à de escravo e o dano moral. Conclusão.
Introdução
Curioso pensar que o ser humano ainda hoje possa ser coisificado, num flagrante desrespeito à ordem constitucional. É intrigante conceber que sujeitos possam ser vistos como res[1], sendo submetidos a práticas violadoras do princípio da dignidade da pessoa humana[2].
Praticas que relembram a escravidão do período antigo, conquanto numa nova roupagem, ainda insistem em serem observadas nas relações sociais.
Conquanto o sistema político-econômico adotado viabilize a venda da força de trabalho, vê-se muitas vezes flagrante violação de direito ou mesmo abuso de direito[3] nas relações jurídicas travadas em torno do trabalho humano.
Dessa forma, ao Estado restou o encargo de coibir tais abusos. Através das mais distintas ações, ao Poder Público coube a tarefa de inibir praticas sociais que venham reduzir o trabalhador a condição análoga à de escravo.
Nestes termos, busca-se com o presente artigo, a partir de leitura mais moderna dos institutos, a contextualização do trabalho escravo, apurando as responsabilidades ensejadas pelo uso da força de trabalho nestes moldes, com destaque àquela decorrente de dano moral.
1. Trabalho escravo
São distintas as formas de exploração da força de trabalho humana. No entanto, a sua utilização forçosa, em desacordo com o direito de liberdade de locomoção dos sujeitos, em afronta à dignidade da pessoa humana, tem destaque no presente trabalho.
Desde a antiguidade já se via, com saliência, a escravização dos seres humanos[4]. Nesse período, a condição de escravo levava a apreciação do homem como mercadoria. Considerados coisas, portanto, pessoas eram objeto de compra e venda.
Durante a idade média, porém, a exploração do trabalho humano ganhou novos contornos. A igreja não admitia que a escravização de pessoas. Sob a influência dos ideais cristãos, sedimentados pela concepção de igualdade entre os homens, o antigo escravo passara, portanto, à condição de servo.
Com a idade moderna, marcada pela ascensão da burguesia ao poder, lastreada pelo pensamento iluminista e pelos ideais liberais, rechaça-se a escravidão. Os servos passaram a ser intitulados de trabalhadores – nomenclatura ainda hoje utilizada para se referir ao proletariado.
1.1. Expressões
Em tempos remotos era comum a utilização da expressão “trabalho escravo”. A sua utilização remetia à ideia de afronta ao direito de liberdade de locomoção do sujeito.
Nestes ternos, alguns documentos internacionais mais antigos, inclusive, correlacionavam essa conjectura à noção de propriedade. A Convenção sobre a escravatura das Nações Unidas, em 1926, traz em seu artigo 1º, item 1, que “a escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”.[5]
Porém, diante da construção de novos cenários, a expressão comumente utilizada cedera espaço para outra, “redução do trabalhador a condição análoga à de escravo”.
No Brasil, por exemplo, o Código Penal, preceitua em seu artigo 149, tipificando como crime, ipsis verbis[6]: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva[7], quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho[8], quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.[9]
Nestes termos, observa-se, portanto, que a acepção mais moderna de trabalho escravo perpassa não só pela sua concepção clássica – cerceamento da liberdade de locomoção – como também, pela ideia de afronta à dignidade do cidadão.
A utilização dessa nova expressão vem para firmar um significado bem mais amplo do que aquele inicialmente concebido quando se falava em trabalho escravo, abrangendo também, hipóteses em total desajuste com o conteúdo exarado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, a ofensa a direitos não estão atreladas somente à liberdade de locomoção do sujeito, mas também às condições de trabalho aos quais ele é submetido.
2. Responsabilidade
Ao reduzir alguém a condição análoga à de escravo, a pessoa é responsabilizada em diversas searas do Direito. Destaca-se, entretanto, a responsabilidade civil.
2.1. Responsabilidade civil
É intuitivo se pensar que o cometimento de um ilícito que resulte em dano a outrem, implica no dever daquele que o causou de repará-lo.
Nestes termos, a legislação pátria previu nos artigos 186, 187 e 927, todos do Código Civil, respectivamente: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”[10]; “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”[11]; “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.[12]
Assim, uma vez violado o dever jurídico primário, gera-se um dever jurídico secundário[13]. Nesse sentido, afirma Sérgio Cavalieri Filho que “é aqui que entra a noção de responsabilidade civil […] Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico […] A responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário”.[14]
Enfim, diante da violação de uma regra imposta, resta ao sujeito a responsabilidade pelos prejuízos causados quando da sua transgressão.
2.1.1. Pressupostos
Ao se falar em responsabilidade civil, faz-se necessário observar a correlação entre conduta humana, nexo causal, dano e culpa[15].
O primeiro dos elementos citados, a conduta humana, é ato volitivo capaz de ensejar um dano.
O nexo causal[16], por conseguinte, é o elo entre a conduta humana e o dano. Nesse sentido afirma Sergio Cavalieri Filho que “o conceito de nexo causal não é jurídico; decorre das leis naturais. É o vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado. A relação causal, portanto, estabelece o vínculo entre um determinado comportamento e um evento, permitindo concluir com base nas leis naturais, se a ação ou omissão do agente foi ou não a causa do dano”.[17]
O dano, por sua vez, está atrelado ao prejuízo sofrido por alguém em razão de determinado ato volitivo.
Por fim, a culpa está arraigada a uma acepção subjetiva do ato volitivo responsável pelo dano causado.
Dessa forma, a partir do instante em que um sujeito mediante culpa[18], viola direito de outrem causando-lhe prejuízo, comete ato ilícito, gerando o dever de reparar o dano causado.
2.1.1.1. Dano
Tendo em destaque o penúltimo elemento dos quatro citados para análise da responsabilidade civil do sujeito, é impérios destacar suas espécies. São três: dano material, dano moral e dano estético.
O dano material, também conhecido como dano patrimonial, é aquele que atinge os bens apreciáveis em pecúnia do patrimônio do ofendido. Entende a doutrina, que esta espécie de dano, se subdivide em: dano emergente, lucro cessante e perda de uma chance.
Enquanto o dano emergente importa na imediata e efetiva diminuição do patrimônio da vítima, o lucro cessante se correlaciona sobre uma perspectiva futura dos efeitos do ilícito cometido sobre o patrimônio do ofendido.
A perda de uma chance, por sua vez, está arraigada às hipóteses em que o ilícito praticado retira a possibilidade de se obter uma situação futura mais favorável à vítima.
Já o dano moral, nada mais é senão o dano decorrente de ofensa a direito da personalidade.
Por fim, quando o dano se estende na morfologia do sujeito e que importe no afeiamento do ofendido, ainda que seja mínimo, fala-se em dano estético.
2.1.1.1.1. Dano moral
É imperioso destacar que a dor, a angustia, o sofrimento não são a causa, mas sim a consequência do dano moral.
Como dito alhures, dano moral é espécie de dano decorrente da lesão a direitos da personalidade, ou seja, a direitos imprescindíveis à caracterização do sujeito ou à inserção nas relações jurídicas.
Salienta-se, todavia, que há correntes, numa visão mais ampliativa, que afirmam que o dano moral decorre de lesão a dignidade da pessoa humana.
Ademais, é curioso pensar que nem sempre o dano moral fora objeto de compensação. Isso porque, no passado se pensava que seria espúrio cogitar um valor para o dano moral causado. Assim não se admitia o pagamento do praetium doloris[19].
Hoje, contudo, já se sedimentou o entendimento que é possível a compensação pelo dano moral sofrido. Espúrio, portanto, seria o não pagamento pelo dano causado.
De mais a mais, não se pode olvidar que o dano moral, não só pode ser individual – relaciona-se a um sujeito determinado –, como também coletivo[20] – diz respeito a um grupo de sujeitos determinados.
2.1.1.1.1.1. Dano moral na Justiça do Trabalho
No ordenamento jurídico brasileiro, a compensação pelo dano moral causado tem sustentáculo no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal de 1988 – CF 88 – ex vi[21]: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […] V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem […] X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.[22]
Ademais, tendo em vistas os artigos 186, 187 e 927, do Código Civil – transcritos alhures – observados pelo Direito do Trabalho, em razão do parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, não restam dúvidas acerca da possibilidade de dano moral na seara trabalhista.
Nestes termos, tem a Justiça do Trabalho competência para processar e julgar demandas que envolvam essa espécie de dano. Nesse sentido alude o artigo 114, inciso VI, da CF 88: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar […] VI – As ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”.[23]
O Tribunal Superior do Trabalho, inclusive, publicou o enunciado 392, ex vi: “Nos termos do art. 114 da CF/1988, a Justiça do Trabalho é competente para dirimir controvérsias referentes à indenização por dano moral, quando decorrente da relação de trabalho”.[24]
Mais especificamente, no que tange ao acidente do trabalho, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante nº 22, ipsi literis[25]: “A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho propostas por empregado contra empregador, inclusive aquelas que ainda não possuíam sentença de mérito em primeiro grau quando da promulgação da Emenda Constitucional no 45/04”.[26]
Enfim, o dano moral é algo possível na seara trabalhista, e a Justiça do Trabalho detém competência para processar e julgar demandas que tenham este objeto.
2.1.2. Funções
Conforme sedimentado pela doutrina moderna mais abalizada, a responsabilidade civil pode ter três funções, quais sejam, reparatória, pedagógica ou punitiva.
A primeira delas, a função reparatória, pode implicar em reparação, indenização ou compensação. Ter-se-ia reparação quando se reestabelece o statu quo[27]. Já a indenização e a compensação remontam a impossibilidade de restaurar o estado anterior, porém, enquanto na primeira se pode atribuir um valor pecuniário aproximado para suprir a inviabilidade, o segundo não tem como cogitar um valor pecuniário preciso.
Por sua vez, a função pedagógica coaduna-se com a perspectiva educativa da sanção imposta.
Por fim, a função punitiva, visa penalizar o sujeito autor do ato pelo ilícito cometido.
3. Redução a condição análoga à de escravo e o dano moral
Embora a legislação nacional e internacional tenha avançado no combate ao trabalho forçoso do ser humano, ou em condições exaustivas e/ou desumanas, não são raros os episódios em que se observa a exploração do trabalho humano nessas condições.
Assim, não é estranho pensar que o cometimento desse ilícito implica responsabilidade civil do sujeito transgressor. Portanto, o tomador de serviços que cerceia a liberdade de seus trabalhadores, bem como os submete a trabalhos exaustivos e/ou desumanos, estão sujeitos a responderem civilmente pelo ato praticado.
Nestes termos, ao se submeter pessoa a trabalho forçado, limitando sua autonomia ou obrigando-o a se sujeitar a condições exaustivas e/ou degradantes, incorre na hipótese do artigo 186 ou 187 do Código Civil, ensejando a responsabilidade civil pelo dano causado, a ser apurado pela Justiça do Trabalho.
Aquele que tem a sua força de trabalho usada nessas condições, pois, tem a possibilidade, individual e/ou coletivamente, de chamar o Estado-juiz para exigir uma compensação pelo dano moral sofrido.
Dessa forma, estando a violação cometida ofendendo direitos da personalidade, surge um dever jurídico secundário de compensar as vítimas pelo dano moral sofrido, seja individual e/ou coletivamente.
Conclusão
Diante do exposto, resta notório que o tempo, diante do surgimento de novos cenários, concebeu o surgimento de direitos inéditos, contemplados sob uma ótica protetiva em torno daqueles que fornecem a força de trabalho.
Dessa forma, se editou preceitos inibitórios do trabalho escravo, admitindo-se a possibilidade de se pleitear dano moral, inclusive, coletivamente.
Analista judiciário – área judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 4 Região. Especialista em Direito Público.
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