Resumo: O presente artigo discute questões relativas ao objeto, método, finalidade e estatuto científico do direito comparado, procurando estimular o desenvolvimento de mais análises com base na comparação jurídica e, porventura, contribuir para sua eventual integração de forma mais pronunciada à vida acadêmica brasileira. A bibliografia utilizada no artigo abarca os autores de maior renome no campo da comparação jurídica, como Ancel, Jescheck, Sacco e David, entre outros.
Palavras-chave: direito comparado, comparação jurídica, método, história, ciência.
Sumário. Introdução. 1. A questão da finalidade e do estatuto científico do direito comparado. 2. Pequena história da idéia de comparação jurídica. 2.1 O surgimento da comparação jurídica no século XIX. 2.1.1 O surgimento do direito comparado na França. 2.1.2 O direito comparado na Alemanha oitocentista. 3. O desenvolvimento do direito comparado no século XX. 3.1 Fase constitutiva da ciência jurídica comparativa 3.2 O direito comparado entre as duas guerras. 3.3 O Direito Comparado após a Segunda Guerra Mundial. 4. Os Problemas Metodológicos do Ponto de Vista Doutrinário e Teórico. 4.1 As Controvérsias Metodológicas da Primeira Metade do Século. 4.2 As Teorias Críticas após 1945. 4.3 Afinal, o direito comparado é uma ciência? 5. O direito comparado como modo de abordagem de sistemas jurídicos.
Introdução
A importância dos estudos no campo do direito comparado é inegável, apesar da escassa produção acadêmica brasileira na área. No que se refere ao âmbito jurídico-penal, vários trabalhos de relevo foram publicados nos últimos anos, merecendo especial destaque “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”, de Aury Lopes Jr e “Legalidade, Oportunidade e Consenso no Processo Penal” de Nereu José Giacomolli. São obras que rompem com o pensamento jurídico monolítico preso a um recorte exclusivamente nacional e observam – desde seus respectivos enfoques teóricos – os sistemas de vários países, representando contribuições significativas às questões abordadas.
No entanto, apesar da existência de algumas obras de peso, a tradição jurídica brasileira costuma dar pouca importância ao direito comparado, algo que é muito distinto da realidade acadêmica européia. É comum que uma disciplina de direito comparado integre o currículo dos cursos de direito de universidades européias, sendo considerada a discussão da tradição comparatista como algo essencial à própria formação do jurista. Com certeza é uma abordagem que particularmente pode ser de grande valia para minimizar os problemas de (de)formação que são tão comuns aos bacharéis em direito. Não por acaso, Ferreira de Almeida designa ao direito comparado o que chama de função de cultura jurídica, considerada por ele como provavelmente a mais importante e certamente a mais nobre das funções do direito comparado. Para o autor, o direito comparado é ciência auxiliar de todas as disciplinas jurídicas. No limite, poderá dizer-se – com Zweigert – que, sem direito comparado, não há verdadeira ciência jurídica. Ferreira de Almeida chama atenção para o fato de “[…] que as concepções e soluções do direito nacional não são as únicas concebíveis e nem sempre são as melhores; a formação comparativa contraria as tendências para a auto-suficiência e o chauvinismo, o isolacionismo e o provincianismo”.[1] O direito comparado tem aptidão para ser uma via de conhecimento crítico do direito. Como refere Muir Watt, é urgente retirar essa disciplina da sombra, do estatuto de parente pobre que ainda tem em relação a outras matérias julgadas mais sérias, imediatamente mais úteis, notadamente no currículo universitário, mas também, talvez, entre as fontes de inspiração das decisões judiciárias.[2]
1. A questão da finalidade e do estatuto científico do direito comparado
A história do direito comparado é marcada por inúmeras polêmicas referentes ao método, à finalidade, ao objeto e ao estatuto científico dessa disciplina. As tentativas de obtenção de uma definição do direito comparado a partir de sua finalidade não se mostraram bem sucedidas e a polêmica quanto à sua cientificidade (afinal, trata-se de ciência ou apenas de um método?) ainda permanece, em alguma medida, aberta. Como refere Jimenez Serrano,
“O problema da construção teórica e metodológica do comparativismo jurídico continua sendo um desafio para os pesquisadores e historiadores do Direito. Sabe-se que, depois de tantas décadas de esforços, de formulação e reformulação teórica desta importante parte do Direito, ainda não se adotou, de maneira uniforme, uma definição científica acabada sobre o Direito comparado.”[3]
Tanto a questão da finalidade como a questão da cientificidade parecem remeter ao próprio sentido do direito comparado: afinal, qual a contribuição que a comparação jurídica tem a prestar? Rodolfo Sacco é incisivo ao afirmar que “a assertiva de que uma função utilitária é necessária e essencial para a legitimação do direito comparado é fruto de um mal-entendido hoje quase superado”.[4] Segundo Sacco, “somente para a comparação jurídica se adotam (ou ao menos se adotavam, há trinta anos) um outro peso e uma outra medida; pensava-se, assim, que deveriam ser-lhe verificadas as finalidades. Esta verificação tinha tudo para ser concebida como uma espécie de prova liberatória, necessária para garantir a legitimidade da comparação”. [5]
Apesar da posição de Sacco, o fato é que continuam sendo levantadas muitas objeções quanto à utilidade dos estudos no âmbito do direito comparado, quanto ao método empregado e seu objeto, assim como quanto ao seu estatuto científico. O presente artigo preocupa-se com essa questão e estrutura-se em torno da pergunta formulada por Marc Ancel em seu clássico estudo sobre direito comparado: quando e em que condições somos levados a falar em direito comparado?[6] Trata-se da “[…] questão essencial de saber qual a tendência do direito comparado, se se trata de ciência ou de método e se, verdadeiramente, existe como tal.[7] Ancel questiona:
“Por que convém estudar o direito comparado e como é preciso abordar e conduzir semelhante estudo? […] o como da pesquisa comparativa é freqüentemente colocado em função de seu porquê, pois o fim a que se propõe o comparativista determina, largamente, a técnica de sua investigação; e ao inverso, os meios disponíveis são em grande parte a condição primeira – e em todo caso constituem o limite – de sua investigação.”[8]
Neste trecho Ancel está referindo o problema da finalidade, que historicamente se mostrou apto a gerar enormes polêmicas quanto à validade das comparações jurídicas e especialmente, no que diz respeito ao seu estatuto científico. De acordo com o autor, são basicamente três as principais críticas levantadas contra toda pesquisa jurídica comparativa[9]:
a) O direito nacional já é, por si só, suficientemente complexo, ainda mais em tempos de inflação legislativa.
b) A pretensa ciência comparativa comporta a ilusão de querer conhecer e assimilar e o direito estrangeiro. Importações apressadas e graves erros fazem do direito comparado uma fonte de grande confusão.
c) O direito de um país faz parte de seu patrimônio nacional: é fruto da tradição da sociedade onde se aplica. Em vez de aproximá-lo dos outros sistemas, deve ser defendido de toda alteração vinda do estrangeiro.
Ancel considera que a última oposição é na realidade a principal. O jurista sempre é mais ou menos xenófobo em direito: sua ordem jurídica lhe parece necessária e se lhe afigura justificada pela sua própria existência. Para Ancel, é contra tal posição que se deve reagir. A ciência pura não conhece fronteiras, nem línguas, nem políticas. Por que a ciência jurídica deveria se aprisionar nos limites de um só Estado?[10] Sixto Sanchez Lorenzo afirma que embora o conceito de globalização não seja dos seus preferidos, suas conseqüências são evidentes. Portanto, como é possível sustentar o isolamento da ciência jurídica com base no nacionalismo e no positivismo (idéia de direito como direito nacional, por excelência) diante desse contexto de complexidade?[11] Em sentido semelhante, Horatia Muir Watt, em um artigo com o sugestivo nome de “A Função Subversiva do Direito Comparado”, assinala que a comparação dos direitos é uma fonte de interrogação, de reflexão e de abertura benéfica, portadora de uma mensagem de interdisciplinaridade, capaz de liberar o raciocínio jurídico de certas opressões conceituais esclerosantes e de abrir outras possibilidades de leitura. O autor sustenta que a “comparação se engaja contra o dogmatismo, contra os estereótipos, contra o etnocentrismo, isto é, contra a convicção propagada (seja qual for o país), segundo a qual as categorias e os conceitos nacionais são os únicos possíveis”.[12] Segundo Muir Watt, a riqueza da comparação dos direitos está em revelar a riqueza de um sistema jurídico, escondida por detrás da aparência redutora, para denunciar em seguida a parcialidade do discurso positivo.[13] Para ele,
“Tendo visto e entendido o outro, a percepção pelo comparatista de si mesmo ou do seu próprio direito se acha alterada. Um dos avanços mais importantes do pensamento comparativo contemporâneo consiste precisamente na atenção dada a esta percepção crítica da sua própria realidade jurídica informada por um olhar para o outro”.[14]
Jescheck também vê no direito comparado um importante instrumento de conhecimento, afirmando que “como existe uma Teoria Geral do Estado e uma Teoria Geral da Economia política, deve ser possível também uma Teoria Geral do Direito Penal, e na verdade uma que construa não apenas pressupostos filosóficos-gerais, mas que parta de fundamentos empíricos-comparados”.[15] Segundo Marc Ancel, há uma série de vantagens e benefícios que advém do direito comparado[16]:
a) Não há sob a diversidade das leis – ou das legislações – uma unidade, ao menos uma universalidade do direito, enquanto instrumento da concórdia social e enquanto criação do espírito humano? Formular essa questão implica, desde logo, justificar o estudo comparado do direito.
b) No terreno prático e concreto, ao inverso, é por demais evidente que o conhecimento do direito estrangeiro – ao menos o contato com o direito estrangeiro é freqüentemente indispensável […] todos os sistemas de conflitos de leis admitem, em certos casos, a aplicação da lei estrangeira: é preciso ignorá-la? Como, de resto, poderíamos fazê-lo, se este mesmo sistema de conflito de leis nos obriga a confrontar esta lei estrangeira com a nossa ordem pública nacional?
c) O papel formador do direito comparado não mais precisa ser relevado. Ele possibilita ao estudante novas aberturas, fazendo-lhe conhecer outras regras e sistemas diferentes dos seus. Ele permite ao jurista um melhor conhecimento e uma melhor compreensão do seu direito, cujas características particulares se evidenciam, muito mais, através de uma comparação com o estrangeiro. A comparação jurídica fornece ao jurista as perspectivas, as idéias, os argumentos que o simples conhecimento de seu próprio direito não lhe permitiria.
d) O método comparativo é, em todo caso, necessário para o estudo aprofundado da história do direito ou da filosofia jurídica. Ele releva ainda, a teoria geral do direito, que somente atinge seu valor quando abstraída da estreita técnica de um sistema particular. Somente ele pode oferecer uma visão completa, não compartimentada, do fenômeno jurídico.
e) Enfim, desde a antiguidade, sempre se pensou que o conhecimento dos direitos estrangeiros era de importância primeira para o legislador. Qual legislação, sobretudo hoje em dia, pode ignorar as demais?
Os argumentos favoráveis ao direito comparado parecem muito mais consistentes do que as críticas levantadas contra ele. Não é por acaso que René David sustenta que “[…] o direito comparado veio a ser considerado, atualmente, como um elemento necessário de toda a ciência e cultura jurídicas”.[17] Entretanto, isso não significa que mesmo entre os partidários da comparação jurídica exista consenso quanto ao seu objeto, método, finalidade e estatuto científico: na maioria das vezes em que o termo direito comparado é utilizado, os autores são obrigados a indicar em que sentido o empregam e a partir de que local de fala. Jayro Mayda fez uma série de críticas, preocupando-se com o estatuto científico do direito comparado e apontou os seguintes problemas como obstáculos a superar: a) conceitos imprecisos e cientificamente inexatos; b) doutrinas filosóficas de pouco valor científico; c) preocupação com questões irrelevantes; d) análises puramente descritivas e desprovidas de método.[18]
Ainda que a postura aqui sustentada seja de defesa da importância do direito comparado, a confusão em torno do termo não é sem razão de ser e relaciona-se ao fato do direito comparado ter sido utilizado com as mais variadas finalidades e sentidos ao longo da história, motivo pelo qual uma apreciação da trajetória desse campo de saber jurídico se faz necessária.
2. Pequena história da idéia de comparação jurídica
Para que o problema relativo ao objeto, método, finalidade e estatuto científico do direito comparado possa ser analisado satisfatoriamente, se faz necessário recorrer à história do desenvolvimento da disciplina de direito comparado, o que passa pela apreciação da trajetória de suas noções fundamentais. Ancel se pergunta, nesse sentido, “porque e como somente após cem anos é que se pode falar de direito comparado e qual o caminho científico que aqui se chegou. Em cada uma dessas fases o jovem direito comparado se desenvolveu, adquirindo aspectos novos e problemas sucessivos”.[19]
2.1 O surgimento da comparação jurídica no século XIX
O direito comparado ganha existência efetiva – ainda que com o estatuto científico em questão – no século XIX.[20] Segundo Jescheck, “o Direito comparado, no sentido de um método geral, sistemático e decisivo em razão do emprego de meios técnicos valiosos, começou a se mover somente no século XIX”.[21] Para René David, apesar de alguns importantes precedentes, o desenvolvimento do direito comparado como ciência é um fenômeno recente: “há somente um século a importância dos estudos de direito comparado foi reconhecida, o método e os objetivos do direito comparado foram sistematicamente estudados, a própria expressão direito comparado foi acolhida e entrou em uso”.[22]
Ainda que com algum atraso, o fato é que perspectiva comparatista se desenvolveu quase que simultaneamente ao surgimento do direito moderno. No entanto, trata-se de um desenvolvimento que se deu de forma bastante distinta na França e na Alemanha, o que pode ser percebido através dos estudos de Jescheck e Ancel. Assim, embora já existisse – pelo menos de forma embrionária – um direito comparado no século XIX, seu significado e propósito estavam longe de ser unívocos.
2.1.1 O surgimento do direito comparado na França
O nascente direito moderno, diante de um modelo cientificista orientado de acordo com o estipulado pelas chamadas ciências naturais, via-se diante de um problema comum aos vários saberes que se formavam nos oitocentos: buscava-se a constituição e legitimação de um campo de saber, de um campo científico. O século XIX foi marcado pela constituição de campos de saber, de disciplinas, de áreas de atuação de cada ciência, bem como da sua autonomia face às demais. Tal ambição científica esteve profundamente ligada ao positivismo. Segundo Bobbio, o termo é derivado da contraposição entre direito positivo e direito natural.[23]
Resumidamente, foi a partir da afirmação do direito positivo e afastamento das demais fontes que o direito passou a ser inserido no modelo científico do século XIX. O espírito da codificação nasceu ligado justamente a essa pretensão científica. Pretendia-se que o direito positivo fosse simples, objetivo e de aplicabilidade imediata, deixando para trás a interpretação e a pluralidade, que de acordo com aquele paradigma, conduziam à arbitrariedade.[24] Tal crença vinculava-se à pretensão de separação entre observador e objeto, de forma que o conhecimento científico objetivo implicava a eliminação do indivíduo e da subjetividade, sendo perturbador quando havia um sujeito nessa relação, pois o mesmo era visto como um ruído indesejado. Constituía-se assim a grande dicotomia moderna, expressada pelo binômio sujeito/objeto e razão/emoção. De acordo com esta linha de pensamento, gradativamente era construído um virtual “amordaçamento” dos juízes e uma exclusão de todas as fontes de interpretação que não a lei positivada, intenção que foi atingida a partir da codificação, com o Código Napoleônico de 1804.
Diante desse contexto, o direito comparado encontrou grandes dificuldades para florescer na França. Como aponta Ancel, a partir da promulgação do código de 1804 os juristas franceses mantiveram por muitas gerações à exegese desse monumento legislativo, acreditando que nele tudo estava ou devia se deduzir, sem nenhum apelo a outros textos. [25] O positivismo jurídico clássico teve o seu desenvolvimento diretamente relacionado com a codificação, o que levou inclusive à afirmação do dogma da completude do direito, que estaria completamente inserido nos respectivos códigos. Conforme Ancel, se a influência exterior do código de 1804 foi grande, não resta dúvida que a política das nacionalidades teve, em seguida, a conseqüência de provocar, ou de acentuar, o isolamento das legislações e, portanto, gerar um clima desfavorável para a comparação jurídica, que se manteve por muitas décadas.[26] Segundo René David, “o desenvolvimento do direito comparado foi uma reação contra a nacionalização do direito que se produziu no século XIX”.[27]
O primeiro desenvolvimento significativo do direito comparado na França ocorre em 1869, quando é constituída uma Sociedade de Legislação Comparada, cuja criação foi freqüentemente considerada como símbolo do surgimento do direito comparado. No mesmo ano foi criada, na Inglaterra, em Oxford, a primeira cadeira de direito comparado, intitulada “Historical and Comparative Jurisprudence”.[28]
A Sociedade de Legislação Comparada destacou a necessidade de conhecer a legislação e a maneira de viver de seus vizinhos, tendo como objeto o estudo das leis dos diferentes países e a pesquisa dos meios práticos de aprimorar os diversos ramos da legislação. Para Ancel, “surge assim, uma primeira concepção da utilidade do direito comparado, qual seja a de informar, de maneira precisa e rigorosa, sobre as instituições estrangeiras e procurar, nas experiências dos outros países, os meios técnicos de suprir as lacunas e imperfeições do direito nacional”.[29] Trata-se de uma perspectiva que permanecia presa à ótica do direito nacional, mas que já conformava um avanço diante do isolacionismo em que incorria a idolatria do Código de 1804, corretamente apontada por muitos como um fetiche da lei.
2.1.2 O direito comparado na Alemanha oitocentista
Na Alemanha a codificação foi retardada em praticamente um século pela escola histórica do direito, cujo maior representante foi Savigny. A escola histórica adotou uma posição de conservadorismo diante dos ideais revolucionários franceses, o que está relacionado ao contexto histórico da Alemanha não unificada. Enquanto na França a codificação foi plenamente bem sucedida, gerando o primeiro Código da modernidade em 1804 (Código Civil Napoleônico), na Alemanha a codificação somente se concretizou no final do século XIX. Como refere Ancel, a ausência de codificação poderia auxiliar no desenvolvimento do comparativismo, mas pela influência da escola histórica de Savigny (que considerava o direito como resultado necessário da organização interior da nação e de sua história) prevaleceu um historicismo fechado sobre si mesmo, onde o direito deriva menos das leis existentes do que dos fundamentos e exigências inelutáveis. Como o autor assinala, qual o interesse então em se preocupar com leis estrangeiras?[30]
No entanto apesar do que aponta Ancel, é importante citar que havia exceções dentro desse contexto: como refere Jescheck, Feuerbach não desprezava a experiência do método jurídico comparado e inclusive o utilizava na disputa jurídico-política do seu tempo acerca da reforma do processo penal.[31] Outro exemplo pode ser encontrado em Karl Joseph Anton Mittermaier, que é lembrado por Jescheck e também por Ancel. Mittermaier é considerado o criador da apresentação comparada na Alemanha. Tornou o método jurídico-comparado sua principal arma na luta pela reforma do processo comum, avançando do Direito francês para os sistemas processuais americano, inglês e escocês. Mittermaier apresentou como resultado prático da comparação os modernos princípios processuais do acusatório, da oralidade, da publicidade e da livre valoração da prova, bem como da organização do Ministério Público como uma autoridade funcional separada do Tribunal. Sem dúvida, pode ser dito que o Direito Comparado não teve uma mera participação secundária no que diz respeito à rápida e energética vitória do processo de reforma na Alemanha. [32]
De fato, a história do direito comparado na Alemanha é rica em exemplos célebres. Franz Von Lizst fez uma defesa apaixonada do direito comparado em sua apresentação comparada do Direito Penal alemão e estrangeiro:
“A ciência do Direito Comparado nos ensina a conhecer a direção de desenvolvimento, na qual se move a organização da vida social; ela possibilita ao legislador, dentro desta direção de desenvolvimento, o estabelecimento consciente de fins. Na direção de desenvolvimento da vida social organizada no Estado, dada empiricamente, eu avisto, portanto, o conhecimento do Direito justo”.[33]
Os esforços de Von Lizst fizeram com que o método jurídico-comparado se tornasse um método de auxílio legislativo reconhecido oficialmente. Quase todos os professores alemães de Direito Penal seguiram o apelo e se entregaram a essa tarefa, que sem dúvida era altamente penosa em face das dificuldades de material: o Direito Comparado tinha conquistado, na Alemanha, a dogmática jurídico-penal. Segundo Jescheck, as maiores mentes da moderna Escola voltavam-se aos grandes temas da Política Criminal; eles mostraram com isso, que tinham descoberto, naquele tempo, sobre qual ramo a Alemanha podia aprender, principalmente, do estrangeiro.[34]
No final do século, com a vitória dos partidários da codificação sobre os defensores da Escola Histórica na Alemanha, surgiu um clima muito favorável ao comparativismo, tornando-se o tema essencial da comparação a confrontação do velho Código Napoleônico com o jovem B.G.B.[35]
3. O desenvolvimento do direito comparado no século XX
Diante de um contexto que se mostrava favorável, em 1900 a Sociedade de Legislação Comparada convocou um congresso internacional de direito comparado, que reuniu boa parte dos maiores juristas da época. Raymond Saleilles, um dos principais participantes, destaca no relatório de síntese do congresso o caminho percorrido após trinta anos de fundação da Sociedade:
“à “vulgarização da vida jurídica particular dos povos civilizados” que, segundo ele, sinalava o período de 1869, é conveniente substituir por uma ciência nova, “a ciência do direito comparado, no sentido jurídico da palavra”, disciplina nova, “independente e autônoma”, tendo por objeto “deduzir do conjunto de instituições particulares um fundo comum, ou ao menos, pontos de aproximação suscetíveis de fazer transparecer, sob a diversidade aparente das formas, a unidade profunda da vida jurídica universal”[36]
Segundo Ancel, trata-se de uma profissão de fé que assinala de modo ostensivo o nascimento – ou renascimento – do direito comparado como tal. Para chegar a essa posição, se passou da curiosidade cosmopolita à consideração de leis; depois, da legislação estrangeira à legislação comparada, para se alcançar, afinal, o direito comparado, isto é, a ciência jurídica comparativa propriamente dita.[37] Para o autor, o desenvolvimento do direito comparado passou por três fases sucessivas que precisam ser bem caracterizadas, uma vez que o porquê da pesquisa comparativa foi compreendido de maneira distinta em cada uma delas.[38]
3.1 Fase constitutiva da ciência jurídica comparativa
Ancel considera que essa fase inicia com o Congresso de 1900, cujos trabalhos perfazem dois volumes. Para Ancel, o Congresso de 1900 pode ser considerado como o ato de nascimento do direito comparado como o conhecemos contemporaneamente, segundo a expressão de H.C. Gutteridge. A idéia dos comparativistas de então é que a comparação dos direitos devia trazer a lume, sob a diversidade das soluções nacionais e a divergência das legislações existentes, um fundo comum. A proposta do direito comparado consistiria na tarefa essencial de pesquisar e formular esses princípios comuns.[39]
A primeira fase de desenvolvimento apontada por Ancel se encaixa no que Ferreira de Almeida chama de funções utópicas do direito comparado.[40] Alguns comparatistas acreditaram (ou acreditam) que o direito comparado dispõe de virtualidades que ultrapassam a efêmera verificação e explicação de semelhanças e diferenças entre sistemas jurídicos, podendo contribuir para a descoberta de tendências universais ou influenciar o devir das instituições.[41] De acordo com Sacco, na época a comparação perseguia somente o objetivo da descoberta dos dados comuns.[42] Segundo Saleilles, a ciência do direito comparado, no sentido jurídico do termo, tem como objeto extrair do conjunto das instituições particulares uma base comum, ou, pelo menos, pontos de contato capazes de trazer à luz a unidade fundamental da vida jurídica universal.[43] De acordo com Ancel, a partir dessa perspectiva,
“A comparação metódica das legislações e das instituições jurídicas deve apenas revelar, sob formulações quiça distintas, que certas normas de direito positivo se encontram em um e outro sistemas: elas constituem, por conseguinte, as regras de direito comum legislativo, consoante a expressão de Lambert, e a função essencial do direito comparado consiste, precisamente, em revelar essas regras comuns através de uma realidade jurídica múltipla. Os comparativistas de 1900, em sua imensa maioria, são, não se deve esquecer, adeptos do positivismo jurídico.”[44]
Para Ancel, a busca por um fundo comum produz uma série de conseqüências para a comparação jurídica[45]:
a) Esse direito comum legislativo somente pode existir entre países com o mesmo desenvolvimento político-social, econômico e moral; neste sentido é que se restringe ao direito dos países civilizados.
b) Pela mesma razão, o comparativista somente deverá comparar coisas comparáveis; e este critério de comparabilidade restringe a pesquisa comparativa, fazendo surgir certos problemas.
c) Enfim, esse direito comum (salvo exceções negligenciáveis) não se origina da identidade formal das regras de direito. Não se trata, portanto, como se fazia no século XIX, de revelar as concordâncias entre o Código Napoleônico, por exemplo, e tal ou qual código estrangeiro. É preciso superar a divergência das regras para reencontrar a unidade essencial do direito.
Não é por acaso que os comparatistas procuravam um fundo comum. É exatamente esse fundo comum que lhes garantiria a tão desejada legitimidade científica, a partir das premissas da cientificidade moderna.[46] Para o paradigma científico oitocentista, a idéia de transitoriedade do conhecimento era inaceitável: buscavam-se verdades absolutas e universais. Pode ser percebido que os comparatistas permaneciam presos a ideais científicos modernos, como a “[…] crença característica do século XIX de que se poderia colher a verdade e a certeza, de certo modo, da generalidade de um desenvolvimento, de que se deveria olhar apenas o “tear corrente da época” para, ainda que nem sempre, se obter conhecimentos válidos em geral. [47] Sacco aponta que
“[…] nenhuma ciência deve preestabelecer os resultados de suas pesquisas. A comparação, da mesma forma, não deve escolher de antemão o que encontrará. Poderá encontrar concordâncias, princípios (mais ou menos transcendentes) uniformes, núcleos comuns. Deve estar pronta a encontrar discordâncias, princípios contrapostos, núcleos diversificados.”[48]
Jescheck sustenta um ponto de vista semelhante ao acima explicitado: “naturalmente é preciso ser capaz de mudar o próprio ponto de partida, logo que se trate de decisões jurídico-políticas, pois a base espiritual para toda comparação está justamente na disposição para se deixar informar melhor”.[49] Para o autor, “o estímulo ao trabalho comparativo está justamente na vinculação de modos de pensar e de trabalhar heterogêneos e, até certo grau, opostos”.[50]
De qualquer modo, a partir da perspectiva adotada em 1900, à pura e simples legislação comparada sucede um direito comparado, que não mais se limita à comparação de textos e de leis, mas leva em consideração a jurisprudência, a prática, as doutrinas dos autores e, inclusive, a formação histórica e a evolução de conjunto de um regime jurídico determinado, em busca da unidade e do fundo comum almejados. Ancel destaca que surge assim uma noção nova: a de sistema jurídico enquanto complexo ético-jurídico-social, diverso da legislação normativa de um país determinado. Trata-se de um objeto complexo, mas a concepção comparativa desabrochou em 1900 em um ambiente de euforia.[51]
No que se refere ao contexto alemão, merece menção a importância assumida antes da Primeira Guerra Mundial pela Associação Internacional de Criminalística (Internationale Kriminalistische Vereinigung – IKV), que tornou-se o grande repositório da Moderna Escola Sociológica alemã. Sua finalidade era o estudo constante do Direito comparado para a promoção do progresso legal e científico e a realizou neste âmbito através da cooperação dos seus vários grupos regionais europeus e extra-europeus, que, ainda hoje, na forma de anais de congressos publicados com informações da IKV, são de valor inestimável.[52]
3.2 O direito comparado entre as duas guerras
De acordo com Ancel, a segunda fase do desenvolvimento comparativista ocorre após a Primeira Guerra Mundial. Rodolfo Sacco faz críticas contundentes ao sentido que o direito comparado adquiriu no período:
“A partir do término da Primeira Guerra Mundial, os comparatistas se propuseram a não mais encontrar as concordâncias, mas a criá-las. Desfraldaram o ideal da unificação, ou pelo menos da uniformização do direito. E, fato dos mais significativos em uma história da ciência, pensaram que a própria finalidade da comparação, e dela indissociável, fosse a unificação”.[53]
Como aponta Ancel, o foco se deslocava para o plano da unificação dos direitos, enquanto os comparativistas de 1900 pretenderam simplesmente pesquisar, descobrir ou constatar as semelhanças já existentes entre as legislações e as constantes jurídicas entre os sistemas.[54] A aproximação das instituições jurídicas passou a não ter mais somente por fim depreender a unidade de um direito subjacente às expressões nacionais, mas deveria conduzir também as nações, doravante constituídas em sociedade internacional, a um direito único ou uniforme, ao mesmo tempo símbolo de sua compreensão e garantia de seu entendimento pacífico.[55] Sacco afasta – poderia ser dito até que ridiculariza – por completo a idéia de direito comparado como meio de compreensão entre os povos:
“Um sentimento “meloso” tem de fato sugerido a idéia de que a comparação aumentaria a compreensão entre os povos e contribuiria para a coexistência das nações. Uma idéia como essa nos levaria a crer que os poderes políticos que desencadearam as duas guerras mundiais talvez tivessem sido freados nos limiares da catástrofe, caso tivessem seguido cursos de direito comparado”.[56]
Em síntese, Sacco afirma que o desenvolvimento da ciência comparatista não é condição suficiente, nem condição necessária, para a unificação do direito.[57] Portanto, trata-se de uma disposição inteiramente vã e equivocada. Mas essa não foi a única tendência do período, embora pareça ter sido, ao menos em âmbito internacional, a prevalecente.
O contexto entre as duas grandes guerras produziu uma inovação importante, que se deu a partir de 1920: a comparação entre os ditos direitos latinos e direitos germânicos (que era o parâmetro seguro das coisas comparáveis) começou a perder relevância uma vez que os comparativistas do continente conscientizavam-se da existência, importância e extensão do sistema da common law.[58] Segundo Ancel, a comparação passou a se dar no período entre guerras, primordialmente entre common law e civil law.[59] Assim, a comparação do início do século entre o B.G.B. e o Código Francês decresceu em importância.
Para Jescheck, após a Primeira Guerra Mundial, não se realizava mais a ampla cooperação internacional de outrora, o que com certeza é correto em relação à contribuição alemã.[60] O legado da IKV no âmbito internacional foi apresentado após a Primeira Guerra Mundial com a Association Internationale de Droit Pénal, que foi fundada em 1924 sob a liderança francesa – mas não sem um propósito político. Como uma ramificação colateral, a partir dessa associação surgia, no ano de 1927, o Bureau International pour l’ Unification du Droit Pénal em Paris; a criação foi a expressão dos esforços de uniformização dos anos 20 e deveria servir principalmente de apoio para os trabalhos de codificação do Direito Penal nos Estados europeus do leste e do sudeste. Ambas associações organizavam uma série de congressos, cujas atas continham materiais importantes. No entanto, Jescheck assinala que “a perceptível tensão na relação com o grupo regional alemão da IKV até o ano de 1932 não pode ser resolvida, apesar do fiel trabalho de intermediação realizado por Ernst Delaquis”.[61]
Ainda no contexto alemão, Wolfgang Mittermaier, neto de Karl Mittermaier, apresentou em 1927 um projeto de uma Parte Geral do Código Penal Alemão de maneira jurídico-comparada, onde constavam os mais importantes problemas político-criminais, as questões do Direito Penal Internacional e alguns tipos penais da Parte Especial altamente controvertidos.[62] Assim, na Alemanha, o Direito Penal comparado se tornou um método de investigação científica reconhecido de modo geral, o qual, aliás, encontrou acolhida na jurisprudência.[63] As traduções dos Códigos Penais de fora da Alemanha apareceram novamente de forma rápida e inclusive surgiu um periódico de Direito Penal comparado, quer era editado pelo grupo de Direito Penal da Sociedade Alemã de Direito Comparado.[64]
Ainda dentro do espírito de unificação, a XI e XII Assembléia da Liga das Nações (1930 e 1931) decidiram iniciar um trabalho conjunto com as grandes organizações jurídico-penais.[65] A Alemanha, no entanto, passou a se isolar cada vez mais a partir de 1933. O país adentrava o período nacional-socialista e com isso a comparação jurídica deixava de ter importância, pois o que interessava era fundamentar o novo direito penal alemão.[66] Como destaca Ancel, o clima favorável para comparação foi abandonado logo em seguida: o cataclisma de 1939-1945 sinalou a eclipse do direito comparado.[67] Posteriormente a Organização das Nações Unidas assumiu a direção da cooperação jurídico-penal internacional. [68]
3.3 O Direito Comparado após a Segunda Guerra Mundial
Os esforços de retomada de cooperação jurídica que ocorreram após a Primeira Guerra Mundial não foram atingidos; a pretensão de unificação não foi bem sucedida. O antigo clima de confiança e de otimismo da virada do século havia desaparecido; o cenário era de grande tensão. A confrontação de sistemas passava a implicar em novos e delicados problemas: para Ancel, o direito comparado atravessava uma crise.[69]
Jescheck, que escreveu sua obra sobre direito comparado na década de 50, refere que a retomada da Alemanha na cooperação jurídico-penal após a Segunda Guerra Mundial, abstraindo disso todos os obstáculos de ordem psicológica, encontrou muitas dificuldades técnicas “[…] de modo que o país, cuja ciência jurídico-penal possuía validade mundial, hoje não mais apresenta relações oficiais com a central de cooperação internacional jurídico-penal”.[70]
Outro acontecimento que merece destaque no contexto da época é a entrada em cena de um novo regime jurídico no Leste Europeu. Segundo Ancel, era um sistema que somente poderia ser explicado a partir de sua estrutura econômico-social, radicalmente diferente da de outros países. Assim, em 1900 predominava a comparação germano-latina; a partir de 1925, a comparação entre sistema continental e sistema anglo-americano e após a Segunda Guerra, a comparação entre direito ocidental e direito socialista. Foi reconhecida a existência de um terceiro grande sistema.[71]
4. Os Problemas Metodológicos do Ponto de Vista Doutrinário e Teórico
Uma vez que já foram traçadas as linhas por onde se desenvolveu a comparação jurídica no século XIX e nas décadas iniciais do século XX, abre-se o espaço para dar início à discussão contemporânea em torno do objeto, método e fim do direito comparado, assim como de seu controverso estatuto científico.
4.1 As Controvérsias Metodológicas da Primeira Metade do Século
Os autores sempre procuraram definir o direito comparado a partir da sua finalidade, sendo assim proposta sua natureza e método. Para Ancel, essa
“[…] constatação já deixa dúvida sobre a legitimidade dessa conduta científica: pois uma ciência se propõe inicialmente à sistematização dos conhecimentos relativos a uma ordem particular de fenômenos e sua finalidade é o próprio conhecimento. No entanto, o próprio direito pode ser visto como uma arte tanto quanto uma ciência na medida em que ele se propõe a outro fim que não o conhecimento sistemático desinteressado”.[72]
Pode ser percebido que de forma subjacente ao problema da cientificidade do direito comparado está a própria consideração do direito como ciência, o que conduz a exigência de finalidade, embora ela não seja uma característica indispensável ao conhecimento científico de forma geral. De qualquer forma, foi a partir dessa perspectiva que desenvolveram-se três direções principais da sistemática comparativa na primeira metade do século, como apontadas por Marc Ancel: a) as noções de estudo do conjunto dos direitos positivos em sua evolução e realidade efetiva; b) um direito comparado normativo, que se esforça em descobrir os princípios comuns das nações civilizadas, chegando à idéia de uma ciência universal do direito; c) superação sistemática dos particularismos nacionais, procurando fornecer as bases de um sistema jurídico universal. Como refere Ancel, a preocupação se dá em função de realizações concretas e não de especulações metodológicas.[73] Trata-se da obsessão em torno da finalidade do direito comparado, que é criticada duramente por Sacco:
“[…] existem aqueles que acreditam tecer um elogio todo especial à comparação, ao enumerar-lhe as finalidades conexas com várias formas de progresso e profilaxia social, entre as quais se destacam a melhor compreensão entre os povos, a criação de um melhor direito internacional público, a uniformização e a unificação das normas jurídicas e o aperfeiçoamento do direito nacional […] Há quem queira condicionar o próprio reconhecimento da validade científica da comparação à sua capacidade de atingir esta ou aquela finalidade prática – preparando em concreto, o advento de um direito melhor […] a especulação sem objetivo a respeito dos modelos jurídicos de diversos ordenamentos seria puro empirismo ou um exercício erudito, mas não ciência”.[74]
O problema de exigência de uma finalidade prática para o direito comparado é, sem dúvida, um dos mais marcantes da história dessa disciplina e algo que costuma ser levantado como critério máximo de sua legitimidade científica; motivo pelo qual a crítica de Sacco é mais do que acertada. Finalidade prática e estatuto científico não são termos equivalentes. Nesse sentido, Ferreira de Almeida sustenta que:
“Uma perspectiva mais céptica, que é também a mais divulgada, afirma que o direito comparado deve ter aspirações mais realistas. Como sucede em outras ciências, a investigação pode dirigir-se a finalidades utilitárias (relativas aos direitos nacionais, à uniformização e harmonização de direitos, à construção de regras de aplicação subsidiária) ou ter uma função “pura”, de natureza cultural, em que está ausente qualquer objetivo pragmático”.[75]
A posição de Ferreira de Almeida parece ser a mais condizente: de um lado não nega uma eventual finalidade prática, mas não considera que esta é constitutiva ou necessária ao conhecimento construído pela atividade dos comparatistas.
4.2 As Teorias Críticas após 1945
Após a Segunda Guerra Mundial surgem modificações significativas quanto aos propósitos e enfoque do direito comparado. Tais modificações, entretanto, em nada diminuem a controvérsia em torno de sua cientificidade: pelo contrário, é a partir daí que ela é colocada em questão de forma mais aguda. Surge a Escola Crítica, cujo caráter é acentuadamente contestatório e marca o rompimento com as concepções anteriores. Em 1946 é publicada a célebre obra Comparative Law, onde H.C. Gutteridge afirma que o direito comparado não é, como se afirmava até então, um ramo autônomo da ciência jurídica: ele consiste unicamente no emprego de um método particular, o método comparativo, o qual pode – e deve – ser usado em todos os ramos do direito. [76] O estatuto científico do direito comparado é colocado em xeque de forma inédita até então, inaugurando uma polêmica que não pode ser considerada assentada até os dias de hoje.
Essa doutrina pôs fim a algumas controvérsias estéreis e produziu três conseqüências importantes: a) o método comparativo, essência e substância do novo direito comparado, deve ser definido, aprofundado e mesmo ensinado por si só; b) o método comparativo pressupõe o conhecimento exato dos dois termos da comparação, isto é, do direito nacional, do qual parte naturalmente o jurista, e também do ou dos direitos que se pretende com ele comparar; e este conhecimento não compreende regras que devem ser justapostas, mas o conjunto do sistema estrangeiro sob a ótica de sua estrutura, de suas fontes, de seu conhecimento efetivo; c) Daí a importância primordial reconhecida ao estudo dos sistemas de direito estrangeiro, que bem cedo se tornou o objeto primeiro, senão, talvez, até o objeto único do direito comparado em sua nova acepção.[77] O sucesso dessa teoria crítica foi enorme, sobretudo junto àqueles que, por diversas razões, desconfiavam de toda aproximação unificadora das legislações.[78]
A teoria crítica parte de uma dupla constatação: após cinqüenta anos, ainda não se chegou a formular uma definição de direito comparado aceita por todos e as discussões metodológicas sobre a função, a natureza e a posição do direito comparado, face às outras ciências jurídicas, resultaram apenas na maior confusão.[79] Segundo Jimenez Serrano,
“Comparar significa examinar simultaneamente duas ou mais coisas ou idéias, para lhes determinar semelhanças, diferenças ou relações. Assim, a comparação científica consiste na atividade pela qual se determina o caráter das idéias ou se confrontam duas ou várias coisas com o objetivo de cotejá-las, igualá-las ou unificá-las.”[80]
Para o autor, “podemos considerar que o Direito comparado é uma parte da ciência do Direito e, embora sejam científicas as suas formulações, tal parte ou fragmentação do Direito não poderia ser considerada ”ciência” por sua falta de independência e autonomia”.[81] Segundo Serrano,
“[…] não há Direito comparado no sentido em que se fala de Direito Civil, de Direito Penal ou de Direito Administrativo; a expressão é, destarte, equívoca, por se considerar que o Direito comparado não tem um objeto próprio, como o têm os diferentes ramos do direito. O Direito comparado, mais que um ramo, é método jurídico de comparação que se aplica às matérias que pertencem a um outro ramo do Direito, ou melhor, um modo científico de unificação (coordenação) e aperfeiçoamento dos institutos jurídicos vigentes.”[82]
Serrano afirma que o método comparativo é algo de caráter genérico e desconstitui, portanto, o direito comparado como ciência. Para ele, a comparação do Direito é um método de pesquisa jurídica, “[…] sendo um conjunto de procedimentos que orientam a confrontação de sistemas (ordens ou ordenamentos), institutos, normas, regras, teorias e doutrinas jurídicas para, de forma coerente e sistemática, determinar as semelhanças e diferenças existentes entre as legislações nacionais e estrangeiras.[83] Ao discutir a definição do direito comparado como método ou ciência, Jescheck se posiciona de forma semelhante ao sustentar que
“A resposta evidentemente depende daquilo que se compreende sob estes conceitos. Se se parte de que uma ciência é caracterizada principalmente pela delimitação do seu objeto, enquanto que no método a forma de pensar e de investigar é visível, deveríamos designar o Direito Comparado como um método, e na verdade um método universal, pois ele pode ser aplicado a todos os âmbitos da ciência jurídica com os mais diferentes fins”.[84]
4.3 Afinal, o direito comparado é uma ciência?
Ancel considera que a teoria da Escola Crítica é questionável sob alguns aspectos, particularmente no que tange à afirmação de que o direito comparado é apenas um método. Para ele, ao mesmo tempo que afirma a inexistência do comparativista e do direito comparado nos moldes de 1900 e 1925, a teoria propõe exigências prévias à utilização do método comparativo, que reclamam uma especialização do pesquisador e uma especificidade da pesquisa, dirigida de início ao conhecimento exato dos sistema estrangeiros. Fica a pergunta: não se trata então, de fazer ressurgir em novos moldes o direito comparado e o comparativista?[85]
A partir da perspectiva da Escola Crítica, surge uma orientação diferenciada: as leis devem ser estudadas à luz de sua finalidade sócio-econômica, sendo necessário fixar-se mais no seu aspecto dinâmico do que no estático, mais à sua significação real do que na análise puramente doutrinária. Todavia, como Ancel considera, essa pretensão estabelece um objeto, o que parece caracterizar uma ciência e não somente um método.[86] Outro aspecto relevante da nova abordagem é o que Ancel chama de estraneidade, que transforma radicalmente o processo de comparação, uma vez que a partir daí os sistemas comparados sempre serão considerados como sistemas distintos, inicialmente não conhecidos ou não assimilados. Ou seja, a pesquisa jamais poderá ser conduzida da mesma forma que o seria se fosse relativa a um ramo do direito interno.[87]
Para Ancel este “novo direito comparado” continua a ser uma ciência, o que ele sustenta a partir de dois aspectos distintos, mas complementares:
a) A idéia de geografia jurídica, enquanto paralela à história das instituições jurídicas, acompanhada da tarefa de reconhecimento das grandes famílias de direito do mundo moderno. Para ele, a dimensão geográfica e de evolução histórica da pesquisa comparativa revela-se, de maneira indiscutível, de caráter científico.
b) A comparação implica em um método que é característico de uma ciência que, mesmo admitindo-se não ter um objeto próprio no início, chega, ao termo da pesquisa, a um resultado, a um produto que se torna objeto de uma ciência específica. Nas palavras de Ancel, “se o método existe apenas quando empregado, é porque se trata de um meio, e não de um fim, e menos ainda de um objeto de conhecimento: e o objeto é precisamente este resultado, o qual é distinto do estudo da mesma matéria na ordem interna”. Para o autor, a ciência comparativa constrói, por si só, seu objeto final e a esta construção objetiva não se pode legitimamente contestar o título ou a expressão direito comparado. O direito comparado torna-se a matéria de um conjunto de conhecimentos sistematicamente organizados, o que para Ancel, é a característica fundamental de uma ciência.[88]
Segundo Ancel, o direito comparado consiste em uma arte: a arte da aproximação, da unificação e do aperfeiçoamento das instituições vigentes, mas lhe parece difícil que possa ser negado seu caráter científico, mesmo que não tenha sido concebido como tal pelos que o construíram.[89] De acordo com René David, “[…] para a maior parte, o direito comparado será apenas um método, o método comparativo, podendo servir para os mais variados fins a que ele se propõe”.[90] Mas “pelo contrário, para outros, pode se conceber que o direito comparado seja uma verdadeira ciência, um ramo autônomo do direito, se a preocupação for concentrada sobre os próprios direitos estrangeiros e sobre a comparação que importa, em diferentes aspectos, facilitar o direito nacional”.[91] Segundo o autor, existem juristas que fazem uso do direito comparado e há comparatistas. Ferreira de Almeida constata que
“Para alguns juristas (geralmente para aqueles que não se dedicam à comparação jurídica, mas também para comparatistas como Gutteridge), o direito comparado é apenas um método, porque não tem objeto próprio e definido. Esta posição constitui uma extrapolação inadequada de critérios de disciplinas que correspondem aos chamados ramos de direito. Na verdade, o direito comparado, para além de usar um método específico (o método comparativo), tem também um objeto próprio que é constituído precisamente por uma pluralidade de ordens jurídicas.”[92]
Para Constantinescu, o direito comparado é uma ciência autônoma cujo objeto exclusivo é a comparação entre sistemas jurídicos considerados na sua globalidade (macrocomparação).[93] Ferreira de Almeida conclui (seguindo Zweigert) que o direito comparado é uma ciência autônoma, que se subdivide em dois ramos ou vertentes complementares – a macrocomparação e a microcomparação (comparação de institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes).[94] Uma citação extensa de Rodolfo Sacco parece resolver em definitivo o problema, uma vez que seus argumentos são muito bem embasados:
“Em cada caso, cada disciplina é em parte ciência, em parte método. Em sentido mais estrito, pode-se entender como método um conjunto de procedimentos pré-escolhidos para chegar a certos resultados (e dever-se-ia então entender por ciência em sentido estrito um particular campo de indagação, ou então um certo domínio de dados). Isto posto, pode-se ver como não existe um único modo de comparar: é reciprocamente possível utilizar métodos diversos (estruturalismo, funcionalismo etc.) na comparação; e pode-se ver também como existe efetivamente um âmbito particular de fenômenos dos quais se ocupa a comparação a respeito de outras disciplinas jurídicas – a circulação de modelos; as suas dissociações e relações internas; as homologações e a correspondentes comparações. Quem diz que a comparação é método, tem uma visão limitada do método da comparação (porque não observa que se podem usar mais métodos para comparar, e que não existem o método puro de comparar), quando não tem uma visão limitada dos seus escopos e do seu objeto (porque não observa, ou não conhece, o seu específico, e já desenvolvido, campo de indagação)”.[95]
De fato, Sacco parece sepultar a questão, embora seja importante ressaltar que é uma polêmica que não parece mais ser relevante. Independentemente do seu estatuto científico (que já deixou há muito de ser um critério irrefutável de legitimidade) o direito comparado é um saber, que certamente é de grande importância para o jurista, apesar da nomenclatura utilizada para designá-lo ser reconhecidamente infeliz. O direito comparado é essencialmente um processo de comparação e nesse sentido a expressão direito comparado pôde ser legitimamente criticada; não há direito comparado no sentido em que se fala de direito penal, por exemplo. A expressão alemã rechtsvergleichung é certamente preferível. Mas o termo direito comparado é tão corrente e aceito que para Ancel, não seria correto modificá-lo ou mesmo discuti-lo.[96] Segundo Fix-Zamudio, uma vez que se trata de uma comparação entre ordenamentos jurídicos, o termo comparação jurídica parece mais apropriado. Outros termos como método jurídico comparativo, estudo comparativo do direito e ciência jurídica comparativa também parecem mais corretos. Mas por uma questão prática (devido à sua difusão), o termo direito comparado é utilizado, ainda que seja reconhecida sua incorreção.[97]
5. O direito comparado como modo de abordagem de sistemas jurídicos
John Henry Merryman procurou esclarecer o direito comparado a partir de três dimensões: a) o que – o objeto; b) como – o método e c) para – fim. Não por acaso, o título de seu artigo é “Fins, objeto e método do direito comparado”. [98] Segundo Ferreira de Almeida, o direito comparado deve ser pensado como estudo comparativo de direitos e, logo, direito comparado significa comparação de direitos. Direitos têm nesta acepção sentido equivalente a sistemas jurídicos (ou ordens jurídicas). Portanto, comparação é a atividade que consiste em estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças, isto é, pesquisar e relacionar semelhanças e diferenças segundo um método adequado a um objetivo. Assim, numa primeira noção, dir-se-á que o direito comparado (ou estudo comparativo de direitos) é a disciplina jurídica que tem por objeto estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre ordens jurídicas.[99]
Segundo Ferreira de Almeida, a comparação se divide em duas espécies. A macrocomparação realiza-se pela comparação entre sistemas jurídicos considerados na sua globalidade.[100] Sistemas jurídicos (ou ordens jurídicas) são conjuntos coerentes de normas e de instituições jurídicas que vigoram em relação a um dado espaço e/ou certa comunidade.[101] Já a microcomparação consiste na comparação entre institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes.[102] O autor designa por “[…]instituto jurídico um conjunto de normas, princípios, instituições e organizações de natureza jurídica que, numa dada ordem jurídica, possam ser tomados unitariamente sob certa perspectiva ou critério”.[103] Assim,
“O direito comparado pode ser definido de modo analítico como a disciplina que tem por objeto estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre sistemas jurídicos considerados na sua globalidade (macrocomparação) e entre institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes (microcomparação) […] O direito comparado se distingue do simples estudo de direitos estrangeiros pela utilização do método comparativo e pela apresentação de conclusões (síntese comparativa).”[104]
Ancel destaca que o termo sistema jurídico tem dois sentidos, o primeiro, estrito (sistema francês contra sistema italiano, por exemplo) e o segundo (amplo sistema continental contra sistema anglo-americano). Para evitar a ambigüidade, alguns comparativistas, como René David, preferem falar no segundo sentido em família de direito. O termo sistema jurídico costuma ser empregado de forma contemporânea no segundo sentido. Na definição de Ancel, “[…] se entende por sistema jurídico um conjunto mais ou menos amplo de legislações nacionais, unidas por uma comunidade de origem, de fontes, de concepções fundamentais, de métodos e processos de desenvolvimento”.[105] Os sistemas dividem-se em grupos essenciais e completamentares. Os primeiros dividem-se em a) Sistema romano-germânico; b) Sistema de common-law; c) Sistema socialista. Os segundos dividem-se em a) Sistemas religiosos; b) Sistema de novos países de terceiro mundo (África e Ásia).
Ferreira afirma que o direito comparado tem duas grandes finalidades. Em primeiro lugar, destaca as funções relativas aos direitos nacionais: a) melhor conhecimento do sistema jurídico e seus institutos, propiciado pela evidência de originalidades ou de características afins a outros sistemas; b) interpretação de normas jurídicas, maxime quando tenham sido inspiradas em estudos comparativos; c) aplicação de regras de direito, com destaque para as de direito internacional privado e para aquelas cuja aplicação depende de reciprocidade ou que dêem prevalência ao direito mais favorável; d) integração de lacunas quando a liberdade do julgador possa apoiar-se em tendências verificadas nos outros direitos; e) instrumento de política legislativa.[106] Por outro lado, o autor afirma que o direito comparado é também meio eficaz para o correto conhecimento e aplicação de direitos estrangeiros. Juristas que estudam a macrocomparação e dominam os métodos comparativos ficam melhor preparados para: a) alegação e prova de direitos estrangeiros perante os tribunais nacionais; b) negociação e interpretação de contratos internacionais ou redigidos numa língua estrangeira; c) participação em reuniões jurídicas internacionais e em litígios dirimidos perante tribunais arbitrais internacionais; d) desenvolvimento de ações de cooperação jurídica, em especial as relativas à produção legislativa.[107]
A comparação em direito comparado tende a ser atual e sincrônica, reportando-se à situação contemporânea de cada um dos sistemas jurídicos em comparação. Assim se distingue, pelo objeto, de outras disciplinas jurídicas comparativas, tais como a história do direito (que envolve uma visão diacrônica) e a história comparativa do direito (que compara a evolução de vários sistemas). De acordo com Sacco, “a comparação tem uma visão fática do direito e diacrônica (além de sincrônica) e por isso é encontrada nos dados de fato que determinam ou paralisam o impulso em direção à inovação jurídica”.[108] O autor destaca que a comparação acompanha o conhecimento dos modelos, pois só é possível a comparação de modelos conhecidos, sendo exigível o conhecimento de tais modelos. No entanto, destaca que “as ciências (sociais ou naturais) comparativas não ignoram – e ensinam à ciência jurídica, que lhe é muito próxima – que o conhecimento dos modelos progride por efeito da comparação”.[109]
Sacco refere que “qualquer um poderia sugerir ao comparatista que limitasse a sua atenção às normas jurídicas adotadas pelas autoridades competentes para este fim. Uma tal concepção do direito (chamado formalismo jurídico) é formalmente legítima, mas pouco interessante para o comparatista”.[110] Para Sacco, a comparação jurídica implica em uma analise de maior escala:
“Tudo o que incide sobre a decisão do caso concreto, e tudo o que poderia incidir sobre a decisão, ou que poderá incidir no futuro, é fonte (secundária, acessória, como se queira) do direito, e por isso pode interessar ao comparatista. Aliás, o comparatista, porque sistemólogo, é sumamente interessado em certas fontes indiretas, que condicionam o inteiro funcionamento do direito no âmbito de um sistema dado, e que não podem ser denominadas normas autoritárias adotadas por um órgão competente. É o caso, por exemplo, do ensino ministrado aos alunos, dentre os quais serão recrutados os juízes.”[111]
Marc Ancel também destacou a complexidade apontada por Sacco, sustentando que todo sistema que se aborda – ou mais simplesmente, todo direito estrangeiro que se toma por matéria de estudo – deve constituir o objeto de uma apreensão global, em seus dados históricos e condições sócio-econômicas. É a condição primeira para uma utilização verdadeiramente científica do método comparativo. Nas palavras de Ancel, é preciso analisar o sistema “menos em suas regras e suas instituições do que nas formas do pensamento jurídico, em sua atmosfera e o seu espírito, na maneira pela qual o juiz e o advogado, o procurador e o funcionário, o grande público e o que ousaríamos chamar os usuários do sistema o compreendem, o vivem e querem vê-lo evoluir”. Tratando-se a seguir de sistemas diferenciados, deve constituir o objeto de uma análise particular. Não é por acaso que Jescheck se mostrou preocupado com a amplitude do objeto da comparação jurídica, referindo que “A dificuldade peculiar do Direito Penal Comparado como toda atividade jurídico-comparada está na abundância do material e no risco particularmente grande de cometimento de erros”.[112] Para ele,
“[…] sempre haverá uma quantidade previsível de particularidades que se moverá contra o trabalho comparativo dos juristas. Eu acredito que em face do perigo da mera coletânea de curiosidades jurídicas de todo o mundo, como um museu, somente o método auxilia que se parta do próprio ponto de partida dogmático e político-criminal e se relacione com isso os resultados que o trabalho exegético fornece ao direito estrangeiro. O perigo de erro – ou nós denominamos puramente o perigo de diletantismo – no Direito Comparado é particularmente grande porque ninguém pode dominar o Direito estrangeiro seguramente como o seu próprio, e porque as fontes do Direito estrangeiro são dificilmente acessíveis, dificilmente interpretáveis e frequentemente pouco completas como os materiais do próprio”.[113]
Segundo Muir Watt, o aspecto lingüístico é um excelente índice do risco de deformação da realidade jurídica estrangeira. “O autor aponta a dificuldade que pode existir para traduzir um conceito correto contra uma tendência que presume, muito rapidamente, que seus próprios esquemas intelectuais serão encontrados no outro”.[114] Desse conjunto de problemas em potencial decorre a grande importância da correta utilização do método em direito comparado.[115] Segundo o renomado comparatista romeno Constantinesco, são três fases ou momentos lógicos comuns a qualquer estudo de direito comparado: a) conhecimento (fase analítica); b) compreensão (fase integrativa); c) comparação (síntese comparativa).[116] Jescheck, por sua vez, apresenta um método composto por quatro níveis: a) o próprio ponto de partida dogmático e político-criminal[117]; b) o trabalho exegético com o direito estrangeiro[118]; c) a classificação e a exposição sistemática do material; d) valoração jurídico-política das soluções encontradas. O autor sustenta que
“O Direito Comparado é um método universal de altíssimo valor para todos os ramos da ciência jurídica. O Direito Penal deve a ele, há mais de um século, a ampliação extraordinária do seu campo de visão e uma série de idéias. O trabalho de comparação cria contrapesos contra a supervalorização da própria dogmática e do seu mundo conceptual, ele desperta a atenção para temas centrais que em outros locais estão em primeiro plano, e nos dá a possibilidade de empreender conjuntamente com o estrangeiro as tarefas que se apresentam à cooperação internacional no âmbito do Direito Penal. O Direito Comparado é uma ponte para o mundo, um campo de desafio pacífico dos povos em prol de um Direito Penal melhor e mais humano, um local de intercâmbio, onde a Alemanha é chamada para dar e obter consciência de uma grande tradição.”[119]
De tudo que foi dito, merece menção especial o chamado às armas de Muir Watt, que refere que a mensagem subversiva é simples, mas forte: “devemos olhar alhures, comparar; interrogar-nos sobre as alternativas – para aumentar a perspectiva tradicional, enriquecer o discurso jurídico e lutar contra os hábitos de pensamento esclerosantes”.[120] Talvez tenha sido justamente por isso que Rodolfo Sacco preveniu com justificado entusiasmo que nada mais seria igual após a comparação.
Professor assistente de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Coordenador da Especialização em Direito Constitucional da FURG. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de Ambição de Verdade no Processo Penal (Desconstrução Hermenêutica do Mito da Verdade Real), editora jusPODIVM. 2009.
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