Tratamento igualitário entre os licitantes nas fases de habilitação e julgamento

Com o fortalecimento e a ampliação dos sistemas de controle interno nos Municípios, especialmente no que se refere aos trabalhos de verificação das licitações, algumas por amostragem, tal como é feito pelos Tribunais de Contas, vê-se cada vez mais quão notável e complexa é uma licitação quanto aos seus detalhes e resultados. Algumas modalidades, cada qual com sua característica peculiar, que acaba despertando o interesse dos mais ávidos administrativistas, e aguçando a curiosidade dos estudiosos do Direito. Dentre todas as modalidades a Tomada de Preços talvez é a que apresenta um maior engodo em razão de sua suposta restrição a licitantes não cadastrados previamente.

A Tomada de Preços, segundo a definição da própria Lei de Licitações, “é a modalidade de licitação realizada entre interessados devidamente cadastrados ou que preencham os requisitos para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação” (art. 22, § 2°). Para facilitar os trabalhos da Comissão de Licitação, a Lei de Licitações estabeleceu o prévio cadastramento dos licitantes, evitando, inclusive, a morosidade na verificação de toda a extensa documentação por vezes exigida. A licitante cadastrada, ao receber seu “certificado de registro cadastral”, se torna apta a participar da Tomada de Preços em especial, desde que todos os documentos ali discriminados sejam compatíveis com os mesmos exigidos no edital, além de estarem dentro do prazo de validade, tanto os documentos como o próprio certificado, que deverá ser emitido com a validade de um ano. Ademais, devem ser observadas as especialidades na qual a licitante faz parte.

A finalidade, enfim, do certificado, e segundo Seabra Fagundes, ou seja, “o resultado prático que se procura alcançar”, é proporcionar à Comissão ater-se exclusivamente aos pontos essenciais apenas do certificado e de maneira célere, sem prejudicar, obviamente, os prazos para recurso e outras formalidades exigidas pela Lei que rege a matéria. Atrelado a essa finalidade, podem ser citados os princípios, em especial o da legalidade e da isonomia, e ainda o julgamento das propostas apresentadas em estrita conformidade com princípio da vinculação ao instrumento convocatório (art. 3° da Lei de Licitações).

A melhor interpretação, entretanto, da redação referente ao art. 22, § 2°, é a de ampliar a participação do maior número de interessados. “A lei atual, de certa forma, desnaturou o instituto ao permitir a participação de interessados que apresentem a documentação exigida até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em “Direito Administrativo”, pág. 354). É a exegese mais lógica que se poderia obter. A própria redação do artigo citado prevê a dualidade de opções quando exige o devido cadastro “ou” o pleno atendimento às outras condições exigidas. Convalidando esse entendimento, Toshio Mukai afirma que “qualquer empresa não cadastrada poderá participar de tomada de preços, desde que apresente junto à Comissão de Cadastro toda a documentação necessária para o cadastramento até o 3° (terceiro) dia anterior à data designada para recebimento das propostas (…) e se no curso do procedimento licitatório a Comissão de Cadastro vier a indeferir o cadastramento empresa deverá ser desqualificada por fato superveniente”. (Di Pietro, pág. 354)

Conclui-se, portanto, que se deve exigir o cumprimento integral das disposições impostas pelo edital, porém, sem negar aos interessados a possibilidade de apresentarem toda a documentação no momento do certame. Proporcionar a oportunidade de participação ao maior número de interessados é o objetivo primordial da licitação, e as duas alternativas encontradas no art. 22, § 2°, se forem preenchidas, habilita a qualquer interessado concorrer em busca do objeto licitado pela Administração Pública.

Na hierarquia normativa, como subsídio ao princípio da legalidade, impõe a deferência do instrumento convocatório ao que determina a lei que o regulamenta, no caso, a Lei Federal n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Um deve se adequar ao outro, conquanto que esse instrumento convocatório continue submisso, sem criar alternativas onde não possam ser admitidas. O edital, ao exigir como participação apenas o cadastro das licitantes até certo dia, sem, contudo, permitir a participação de tantas outras interessadas que, mesmo não cadastradas, preencham os requisitos necessários até o terceiro dia anterior, estará contrariando as perspícuas disposições legais contidas naquela Lei a qual deve ser compatível, evidenciando como incompleta a disposição do item do edital.

O prazo para apresentação até o terceiro dia anterior ao recebimento das propostas corresponde, até mesmo pelo entendimento do professor Marçal Justen Filho, em “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, pág. 198, não à demonstração real, física, de toda a documentação à Comissão de Cadastro três dias antes, até porque se isso fosse feito não haveria óbice à emissão do CRC; corresponde, outrossim, à disponibilidade da documentação em relação aos órgãos emissores. Ou seja, se até o terceiro dia anterior já se encontravam disponibilizados e regularizado qualquer pendência, capaz de habilitar o licitante caso fosse exigido que apresentasse naquele mesmo terceiro dia anterior os documentos.

Feitas estas considerações, a inabilitação de uma empresa concorrente, por não apresentar o CRC, até este momento, será despropositada, uma vez que, diga-se de passagem, toda sua documentação atende ao edital. A menos que o edital estivesse completo, haja vista que se o mesmo não contemplar todas as duas alternativas para a participação deste licitante, embora apresente toda sua documentação, emitida até o terceiro dia anterior ao recebimento das propostas, será uma medida desarrazoada. A decisão, entretanto, é delicada. A Comissão se vê atrelada ao edital, não cabendo neste momento questionar acerca do item que exigiu apenas o CRC, mesmo incompleto, até porque o próprio licitante inabilitado, despercebido de tal detalhe, talvez nem venha a recorrer da decisão que o inabilitou.

Por outro lado, a licitação tem por finalidade o tratamento igualitário entre os participantes, tanto no tratamento como no julgamento das propostas, estampado no art. 3° da Lei. A Lei Maior, no mais belo de seus axiomas, garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, o que determina um tratamento isonômico para com todos. Para Marino Pazzaglini Filho, em “Princípios Constitucionais Reguladores da Administração Pública”, pág. 36, “o que não é possível é a disparidade (…) e a diversidade de aplicação ou interpretação da mesma lei, seja pela Administração Pública (…), dada a idênticas situações concretas”.

Situações semelhantes requerem por parte da Comissão, medidas semelhantes. É inadmissível que se prejudique um licitante para, “a pretexto de tutelar o interesse público de cumprir o edital, produza a eliminação de propostas vantajosas para os cofres públicos” (Maria Luiza Machado Granziera, em “Licitações e Contratos Administrativos”). Ampliando esse entendimento, não é de se esperar que a Comissão empregue uma medida punitiva a um licitante, em supedâneo ao preceito legal e, mais adiante, na mesma sessão, deixe de fazê-lo a outro que, também, não atendeu in totum o edital.

Constantemente, assim como na fase de habilitação, são consignados nos editais as mesmas condições na fase de julgamento das propostas. Por exemplo, é comum encontrar a seguinte exigência: “O envelope n.° 2, Proposta Comercial, deverá conter em seu interior, obrigatoriamente e sob pena de desclassificação, o seguinte… e o prazo de validade da proposta não deverá ser inferior a 60 (sessenta) dias, contados da data de entrega das propostas”.

É verdade que os rigorismos exagerados devem ser evitados. Como sempre é lembrado Hely Lopes Meirelles, em “Direito Administrativo Brasileiro”, pág. 266, onde “o julgamento há de ser simples e objetivo, evitando-se rigorismos extremados, inconsentâneos com a boa exegese da lei”, recomendando que sejam arredadas do edital todas as exigências inúteis ou inessenciais, e que, por isso mesmo, trazem em si o vezo burocratizado de tão somente criar embaraços aos licitantes. Entretanto, não cabe apenas o desapego a tais rigorismos. Há que se contrabalançá-lo com o tratamento igualitário, sem prejudicar um e favorecer o outro. O mesmo tratamento deve ser dado. Se se desqualifica uma licitante por um rigor, o mesmo peso deve ser usado para com todos.

Insiste-se, para argumentar apenas, que o exame da aceitabilidade das propostas deve ser feito não só no sentido de se aferir se a licitante atendeu ou não o fim público ou se omitiu informações importantes ou desatendeu quesitos do edital, mas também, e, sobretudo, se o mesmo tratamento e julgamento foi empregado aos demais concorrentes. Se a Comissão desclassifica uma licitante por deixar de atender ao edital (deixar de apresentar o CRC, ainda com toda a documentação presente) e mais adiante esquece de fazê-lo a um caso semelhante para com outro licitante, resta claro a frustração do caráter competitivo da licitação e mais, a falta de tratamento igualitário.

Acredito que existam muitas comissões de licitação desprovidas do preparo adequado para a condução de um procedimento licitatório tão complexo como uma Tomada de Preços. Assim como nós, os membros dessas comissões de licitações têm suas dificuldades, e esperar que todos os membros tenham um raciocínio brilhante, a astúcia que atinja o nível da intuição, é exigir algo fantasioso. É importante a busca de aperfeiçoamento e treinamento adequado a essas comissões com maior despreparo, geralmente situadas nos rincões do nosso país, que mesmo bem intencionados acabam por colocar em risco a licitude do procedimento. Nesta mesma linha de entendimento, o despreparo, por vezes, transcende a própria comissão. Representantes e sócios muitas vezes deixam de lutar, quando inabilitados ou desclassificados, pelo direito de suas empresas por mero desconhecimento, falta de se aterem a pequenos detalhes. Participam da sessão, vêem, escutam tudo o que se passa, mas ainda continuam confusos e inertes, estribando-se na única explicação que dispõem, a ata do certame. É algo a ser pensado, como no axioma que diz que o Direito não socorre os que dormem.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Bruno Soares de Souza

 

Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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