Sumário[1]: 1. Introdução 2. O que são organismos geneticamente modificados 3. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 4. O Princípio da Precaução 5. O Direito à Informação 6. A legislação brasileira e a rotulagem: análise crítica 7. Conclusão
Resumo: O presente artigo busca desenvolver o tema da rotulagem dos organismos geneticamente modificados e analisar sua regulamentação no Brasil. A partir do estudo dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Precaução, e do Direito à informação, pretende-se investigar as causas de sua não aplicação, sempre com base na idéia de que se deve permitir ao consumidor fazer a escolha de modo esclarecido.
Resumé: L’article a pour but develloper le sujêt sur l’étiquetage des organismes genetiquement modifiés et analyzer critiquement sa legislatión au Brésil. À partir de l’étude de le principe de la Dignité Humaine et de la Precautión, et de le Droit d’information, on a l’intention de rechercher les causes de la faute d’utilisation de la legislation, toujours en ayant comme l’idée principal, permetre au consommateur choisir, d’une façon claire, ce qu’il veut.
1. Introdução
Em uma sociedade em que novas tecnologias são desenvolvidas diariamente, torna-se de vital importância que os aplicadores do direito se debrucem e estudem as conseqüências que poderão decorrer da sua utilização na vida prática.
As tecnologias não se limitam mais ao âmbito de criar ou modificar máquinas com a finalidade de tornar o nosso dia-a-dia mais agradável e confortável. Atualmente e cada vez mais, há noticiário acerca do desenvolvimento de pesquisas no âmbito da medicina que podem vir a possibilitar a clonagem humana, seja com fins terapêuticos ou não, a descoberta de novos genes que poderão ser utilizados para tratar determinada enfermidade ou ser responsável por determinadas características. Esta é área de preocupação do biodireito, portanto.
Contudo, nas últimas décadas, as descobertas e modificações realizadas pelo ser humano em organismos vegetais e animais, que vêm sendo estudados, desenvolvidos e introduzidos na cadeia alimentar, não são divulgados de forma massiva nos meios de comunicação apesar de seu extraordinário potencial de impacto tanto na vida social como no meio ambiente. Este aspecto do biodireito também é importante estudar.
Ao tratar dos organismos geneticamente modificados, JORGE RIECHMANN[2] apresenta estatísticas impressionantes e afirma que, em 1999, antes mesmo que os transgênicos fossem largamente conhecidos pela população como uma nova realidade na área alimentícia, mais de 70% dos produtos comercializados nos supermercados estadunidenses continham em sua composição algum tipo de ingrediente que havia sido objeto da engenharia genética. Não obstante, naquele mesmo ano, o Laboratório de Nutrição de York, Inglaterra, divulgou um aumento mais do que significativo de 50% de alergias à soja após apenas um ano da introdução da soja transgênica na cadeia alimentar[3].
Diante desse impasse entre desenvolvimento de tecnologias e as possíveis conseqüências à saúde humana por sua utilização, busca-se, por este estudo, um entendimento acerca da ausência de uma efetiva aplicação da rotulagem de produtos compostos que utilizam organismos geneticamente modificados, apesar de existir legislação específica acerca do tema em nosso ordenamento jurídico.
2. O que são organismos geneticamente modificados
Os organismos geneticamente modificados são obtidos a partir da transferência de genes de um ser vivo para outro por meio da transgenia, constituindo variedades que tiveram seu genoma alterado a partir da introdução de DNA proveniente de outro ser vivo, contendo uma seqüência promotora, estrutural e terminal. A seqüência estrutural permitirá que o organismo transgênico expresse a característica relevante desejada, uma vez que determinará a produção de uma proteína nova. Essa nova proteína pode, por exemplo, tornar uma variedade vegetal resistente a certo tipo de herbicida, como é o caso da soja Roundup Ready, um tipo de semente de soja que foi desenvolvida pela Monsanto na década de 80, resistente a herbicidas à base de glifosato.
É importante estabelecer as principais distinções entre o melhoramento tradicional e a transgenia (técnica do DNA recombinante). As técnicas tradicionais estão restritas ao cruzamento sexual, apresentando, o organismo obtido, invariavelmente metade do código genético das variedades parentais da mesma espécie que o originaram. O que torna a transgenia uma técnica economicamente relevante é a possibilidade de controle específico dos genes que serão transferidos, além de possibilitar a expressão de genes cujas características são conhecidas em uma espécie distinta daquela da qual foi extraído o DNA.
Em que pese permitir a transgenia a alteração genética de qualquer espécie, o presente artigo cingir-se-á tão-somente às variedades vegetais e à questão da rotulagem como mecanismo de garantir ao consumidor uma escolha baseada num juízo esclarecido.
Melhoramento tradicional[4]:
Técnica da Transgenia:
3. O Direito à Saúde a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Partindo da idéia de transgeníase exposta acima, pode-se, então, iniciar uma crítica voltada para o cenário jurídico nacional. Como toda construção, deve-se, antes de tudo, desenvolver uma base a partir da qual aquela deverá ser feita e, no presente artigo, busca-se uma fundamentação diretamente extraída dos princípios e direitos fundamentais (arts. 1º e 5º da Constituição Federal de 1988), principalmente, daqueles diretamente ligados ao Direito Civil.
Assim, de início, é imperativo trabalhar-se com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Inserido no artigo 1º, inc. III, da Constituição Federal, tal princípio inaugura a Ordem Jurídica Nacional, atuando como seu fundamento (e, principalmente, para os direitos e garantias fundamentais) e forçando a adaptação de todos os outros direitos que em sua égide se situam. Se a Constituição é centro de referência para todas as leis e atos administrativos nacionais, a conformidade com seu texto e suas idéias é obrigatória, sob pena de inconstitucionalidade.
Porém, a simples enunciação do princípio, por si só, não é garantia de que este venha a ser seguido. Corre-se, ainda, o risco de deixar em aberto seu conteúdo. Logo, faz-se necessário delimitar sua substância para com ela trabalharmos.
Tal princípio transporta para dentro do ordenamento jurídico um suporte ético, servindo como modelo para as relações intersubjetivas na comunidade ou entre esta e o Estado. Historicamente delimitado, aquele princípio tem seu conteúdo definitivamente aceito[5], basicamente, a partir do pensamento de Kant, com “a dignidade da pessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio”[6], podendo-se afirmar que a concepção de dignidade da pessoa humana como algo inerente a qualquer ser humano parece melhor se amoldar ao ordenamento pátrio.
No âmbito do Direito Civil, a ser melhor trabalhado neste artigo, mencionam-se as palavras de FRANCISCO AMARAL:
!”om uma visão mais atualizada, pode-se dizer que pessoa traduz a qualificação jurídica da condição natural do indivíduo, em uma transposição do conceito ético de pessoa para a esfera do direito privado, e no reconhecimento de que são inseparáveis as construções jurídicas da realidade social, na qual se integram e pela qual se justificam[7].”
Como decorrência disso, o ser humano, perante o Estado e a comunidade, deve ser encarado e respeitado, por si só, como ser racional e independente para a tomada de suas decisões. Para tanto, a idéia de dignidade da pessoa humana impõe certas condutas ao Estado (sentido positivo do princípio), devendo este atuar sempre em prol do desenvolvimento da dignidade humana, possibilitando sua inserção social e as condições necessárias para isso. Tem o dever também, de repelir aquelas condutas que venham de encontro ao enunciado ético imposto pelo princípio; o Estado, enquanto ente organizado pela coletividade, deve sempre trabalhar em prol desta, nunca em seu desfavor.
Do mesmo modo, tal postulado impõe certas condutas de abstenção perante a pessoa (sentido negativo), cabendo ao Estado e à comunidade respeitar a autonomia ética do ser humano, quanto ao seu desenvolvimento e formação.
“[…] sustenta-se que uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação[8].”
No âmbito da Dignidade da Pessoa Humana, quando se trabalha com os organismos geneticamente modificados e, principalmente, com questões relacionadas à transgeníase e à bioética, torna-se obrigatório invocar o Direito à Saúde, potencial afetado por aqueles.
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Deste modo se pronuncia a Constituição Federal em seu art. 196, traçando, nitidamente, uma linha, em conformidade com todo o exposto acima, de atuação do Estado. De outra maneira não poderia ser o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, do qual transcreve-se o trecho abaixo:
“O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”. (Decisão Monocrática – Supremo Tribunal Federal – Relator Ministro GILMAR MENDES – AI 565098 / RS – RIO GRANDE DO SUL – Julgado em 21/11/2005 – Publicado DJ 02/12/2005 PP-00053)
Reconhecidamente, o direito à saúde é um direito fundamental do ser humano, mesmo que fora do rol do art. 5º da Constituição Federal. Sua inegável importância, ao que parece, dispensa comentários. Sua positivação no texto da Lei Fundamental, além disso, demonstra o importante caráter social da Constituição de 1988, impondo ao Estado promover, tal qual o sentido positivo do princípio da dignidade da pessoa humana, o respeito à saúde dos cidadãos e a sua manutenção.
Para isso, deverá adotar uma postura ativa e ética de revisar as políticas públicas a serem implantadas e apoiadas no Brasil, tendo o interesse público como paradigma.
“Assim, o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como – e esta a dimensão mais problemática – impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde […][9]”
Em relação aos organismos geneticamente modificados encontra-se aqui uma barreira inicial, pois não têm ainda um caráter seguro, devendo, por enquanto, serem utilizados com bastante cautela, cabendo ao Estado, pelo próprio preceito constitucional, fazer esta mediação para a sua incorporação no cotidiano, buscando sempre minimizar os efeitos que estes possam vir a causar à saúde humana.
4. O Princípio da Precaução
Um dos principais problemas advindos das pesquisas e da utilização dos OGMs está relacionado à imprevisibilidade dos efeitos que a alteração da estrutura físico-química desses organismos pode gerar para a saúde dos seres humanos. É aqui que se pode ressaltar a aplicação do princípio da precaução.
Este princípio, ainda pouco debatido em nossa doutrina, foi desenvolvido pela doutrina alemã. Em 1804, Georg Ludwig Hartig, um dos mais importantes engenheiros florestais alemães de todos os tempos, afirmava que uma administração florestal inteligente é aquela capaz de se utilizar da Natureza de tal forma que torne possível às próximas gerações usufruir as mesmas vantagens das quais usufrui a atual[10]. O Vorsorgeprinzip surge, então, como um princípio diretor de política relativa à proteção do meio ambiente e da saúde, reforçando os dispositivos existentes que objetivam o respeito à proporcionalidade, o direito à informação e à prevenção dentre outros, servindo ainda como base para a elaboração de novas normas.
Apesar de sua larga existência, apenas em junho 1992, após ser citado pelo Tratado de Maastricht como princípio basilar do Direito Comunitário europeu, foi ele consagrado expressamente pela primeira vez na ordem internacional. A Declaração da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em seu capítulo 35, parágrafo 3, da Agenda 21, refere-se a sua aplicação sem, contudo, defini-lo:
“(…) In the face of threats of irreversible environmental damage, lack of full scientific understanding should not be an excuse for postponing actions which are justified in their own right. The precautionary approach could provide a basis for policies relating to complex systems that are not yet fully understood and whose consequences of disturbances cannot yet be predicted.” [11] (Ante ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, a falta de completo conhecimento científico não deve ser usada como justificativa para postergar a adoção de medidas que se justificam por si mesmas. O enfoque baseado no princípio da precaução pode servir como base para políticas relativas a sistemas complexos que ainda não são completamente compreendidos e cujas conseqüências não podem ainda ser previstas – tradução livre)
Entretanto, mesmo após regulamentação no Protocolo de Cartagena que trata da Biossegurança[12] e autoriza sua utilização como fundamento no caso de uma eventual recusa na aquisição de organismos geneticamente modificados, sua efetiva aplicação ainda é sede de debate.
Os Estados Unidos, grandes produtores de organismos geneticamente modificados, defendem que os transgênicos, como qualquer outro produto agrícola, devem se submeter, no âmbito da OMC, ao princípio do livre-comércio, enquanto a União Européia, mais conservadora, filia-se ao entendimento de que o Protocolo de Cartagena e, conseqüentemente, o princípio da precaução devem ser utilizados universalmente como fundamentos a sua política de autorização prévia da entrada e venda desses produtos, em vigor desde 1990[13].
Contudo, torna-se importante distinguir o princípio em tela da responsabilidade civil e do princípio da prevenção.
Prevenir é, segundo definição do Dicionário Aurélio[14], dispor com antecipação, ou de sorte que evite dano ou mal. Apesar de aparentemente os termos, precaução e prevenção apresentarem-se como sinônimos, distinguem-se quanto ao conhecimento ou não dos possíveis riscos ou conseqüências futuras. Assim, segundo ensinamento doutrinário, enquanto o princípio da precaução busca evitar danos ainda desconhecidos, ou, ao menos, incertos tendo em vista a falta de um estudo conclusivo acerca dos efeitos nocivos que podem decorrer da utilização de determinado produto, o princípio da prevenção se aplica quando os riscos já são conhecidos.
A responsabilidade civil afasta-se do princípio em debate, pois somente poderá incidir quando os danos já foram causados, impondo ao agente responsável pela sua produção algum tipo reparação.
Desta forma, é elucidativa a definição francesa trazida pela Lei Barnier de fevereiro de 1995, como sendo este o princípio segundo o qual a ausência de certeza, levando-se em consideração o conhecimento do momento, não pode retardar a adoção de medidas efetivas e proporcionais, visando prevenir riscos de danos graves e irreversíveis, a um custo econômico aceitável[15].
5. O Direito à Informação
Enquanto, há menos de um século levava-se meses para que uma informação cruzasse o Oceano Atlântico, com o desenvolvimento dos meios de telecomunicação hoje as trocas são instantâneas, tornando o direito à informação de vital importância, principalmente no que diz respeito às novas tecnologias e suas conseqüências. Sendo este, portanto, na atualidade, considerado como um dos principais direitos dos cidadãos.
A Constituição Federal de 1988, elevando-o à categoria de direito e garantia fundamental, em seu artigo 5º inciso XXXIII, dispõe que sendo todos iguais perante a lei, independentemente de qualquer distinção,
“têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”
Como bem analisa ANA CLÁUDIA BENTO GRAF[16] “o direito de acesso às informações públicas é decorrente do princípio da publicidade ou da transparência, previsto no art. 37 da Constituição Federal”, sendo, assim, um principio norteador da política publica.
Desta forma, afirma Luis Gustavo Grandinetti[17] que esta garantia fundamental se apresenta tanto como um direito subjetivo público, oponível ao Estado com o objetivo de impedir qualquer tipo de obstáculo e possibilitar a livre investigação, como um direito subjetivo privado, oponível às pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, a fim de exigir a correção ou a exibição de informações. Citando Pilar Cousido, sustenta que a informação tem uma dupla função: uma função social e outra política.
Como função social se apresenta com o objetivo de disseminar o conhecimento, a fim de que, estando em posse daquela informação, os cidadãos estejam em condições mais igualitárias, aproximando-os um dos outros, de forma a torná-los mais aptos a tomar decisões e a comparti-las. Em sua função política, o direito à informação faz-se essencial para garantir que o cidadão exercendo o seu poder de opção, possa escolher de forma consciente, haja vista que por meio de informações sérias, seguras e imparciais, encontra-se cientificado de todas as possíveis conseqüências que poderão decorrer de sua escolha.
Em âmbito infraconstitucional, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º inciso III, estabelece como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.
Pode-se concluir que:
“direito à informação lida com o processo massivo de informação compreendido como aquele dirigido para alcançar, senão toda, boa parcela da comunidade. É justamente aí que reside a circunstância de ser um direito difuso, ou seja, pertence a todos, sem poder ser fracionado entre os integrantes da comunidade. A informação a todos interessa, a todos submete, a todos é dirigida, a todos acessível. Se não atinge todas as pessoas de cada comunidade, pelo menos está disponível, potencialmente, para atingi-las[18].”
6. A legislação brasileira e a rotulagem: análise crítica
Além do artigo 6º, inciso III, do CDC, especificamente acerca da rotulagem dos organismos geneticamente modificados, são relevantes a Lei Federal 11.105/05 (Lei de Biossegurança), o Decreto 4.680/03 e a Portaria 2.658/03.
O artigo 40 da Lei de Biossegurança prevê que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.
O Decreto Federal 4.680/03, por sua vez, dispõe em seu artigo 2º que “Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto.”
É imprescindível ressaltar a impossibilidade de a Lei de Biossegurança ter seu conteúdo modificado pelo Decreto 4.680/03 que a regulamenta, de acordo com o princípio da legalidade e da hierarquia das leis. Nesse diapasão, com a promulgação da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), foi revogada a disposição do Decreto 4.680/03 que restringe a rotulagem aos produtos que tenham composição transgênica acima do limite de um por cento, uma vez que o Decreto 4.680/03 não pode conter disposições que contrariem ou sejam incompatíveis com a Lei de Biossegurança.
A Portaria 2.658/03 estabelece o layout do símbolo que deverá ser estampado nos produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de Organismos Geneticamente Modificados.
Por fim, cita-se o Decreto 5.591/05 que regulamenta os dispositivos da Lei de Biossegurança, repetindo em seu artigo 91 a disposição do artigo 40 da Lei 11.105/05 de que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de decreto específico.
No entanto, é patente o desrespeito às normas de rotulagem, principalmente ao considerarmos o recrudescimento da produção de gêneros alimentares geneticamente modificados e a inobservância de embalagens devidamente rotuladas. Em sua defesa, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação alega[19]estar cumprindo o disposto no Decreto 4680/03 e que todos os produtos industrializados existentes no mercado brasileiro que contenham ou que sejam produzidos a partir de OGMs obedecem ao limite de 1% (um por cento) estabelecido pelo Decreto em comento.
Entende-se, porém, que o dispositivo que condiciona a rotulagem à presença de OGMs acima do limite de 1% (um por cento) foi revogado pela Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05).
Entretanto, é possível vislumbrar uma esperança de aplicação da rotulagem, expressa na liminar[20], proferida pelo Juiz Federal da VARA ÚNICA DE RONDONÓPOLIS, Francisco Alexandre Ribeiro:
“PROCESSO 2007.36.02.000701-5. D E C I S Ã O. O autor requereu a concessão de medida liminar que determine à terceira ré, BUNGE, que providencie a inclusão nos rótulos e documentos fiscais de seus produtos, nos termos do art. 40 da Lei 10.105/2005 [Lei 11.105/05] e do Decreto 4.680/2003, a informação de que eles derivariam de soja transgênica (emenda à petição inicial, fls.53/55). 2. A referida ré, por seu turno, requereu o indeferimento do pedido liminar, ao argumento de que seu produto final não conteria traços de soja transgênica, razão por que não estaria sujeita, segundo o Decreto 4.680/2003, à obrigação de rotulagem (petição à fls.73/81). 3. Os representantes judiciais da União e da ANVISA, embora intimados a se manifestar, não o fizeram, sob o pretexto de não ter interesse jurídico acerca do pedido liminar sob exame ( fls.88/89 e 104/105, respectivamente). 4. É o relatório. 5. A princípio, não se verifica nenhuma controvérsia quanto ao fato de que há traços relevantes de OGM (organismos geneticamente modificados) na soja em grãos que é industrializada pela filial da BUNGE em Rondonópolis, conforme apurado no exame administrativo requisitado pelo Ministério Público Federal à Superintendência Federal de Agricultura em Mato Grosso (ofício às fls.48/50). 6. Importa saber, então, se tal fato deve ou não ser informado nos rótulos dos produtos industrializados pela filial da BUNGE neste município. 7. O art. 40 da Lei 10.105/2005 [Lei 11.105/05] preceitua: “Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.” 8. A norma é de uma clareza solar: o alimento e o ingrediente alimentar que contiver ou for produzido a partir de OGM ou derivado deverá conter tal informação no respectivo rótulo! 9. Assim, se os produtos que a filial da BUNGE em Rondonópolis-MT afirma produzir – a saber: óleo de soja degomado (destinado ao refino) e farelo de soja (ingrediente alimentar animal) – o são a partir de OGM (soja transgênica), forçoso é convir que devam, sim, ser devidamente rotulados com esta informação. Note-se que a informação não será no sentido de que tais alimentos/ingredientes CONTÊM OGM, mas, sim, que são produzidos A PARTIR DE OGM. 10. A rigor, a tese advogada pela BUNGE é fruto, no meu sentir, da interpretação isolada e literal do quanto disposto no art. 2º, caput, do Decreto 4.680/2003 – mais precisamente no trecho “com presença acima do limite de um por cento do produto”, – editado para regulamentar o direito à informação estatuído no Código do Consumidor em face dos alimentos transgênicos – e o pior -, agravada pelo solene e total descaso pela superveniência de lei especial sobre o assunto (Lei 10.105 /2005) [Lei 11.105/05]. 11. Ocorre que o decreto invocado (Decreto 4.680/03), enquanto ato normativo, por força do princípio da legalidade, é absolutamente subordinado à lei em sua função de regulamentá-la, não podendo, sob nenhuma hipótese inovar na ordem jurídica nem muito menos contrariá-la, razão por que, com a edição da Lei de Biossegurança (Lei 10.105/05) [Lei 11.105/05], restou revogada toda e qualquer disposição legal ou regulamentar com ela incompatível, mormente aquela invocada pela ré, ao menos no sentido que dela tenta extrair, de cunho exclusivamente gramatical. 12. Note-se que a interpretação sistemática do referido decreto chegaria a resultado bem diverso, mais consentâneo com o que veio a ficar estreme de dúvida pela novel lei, qual seja, de que a rotulagem deva informar tanto o percentual de OGM detectável no produto final, quanto aquele encontradiço na respectiva matéria-prima. 13. A par da sensível fumaça do bom direito, antolha-se, ainda, a presença do periculum in mora. O perigo de demora aqui é qualificado pelo evidente risco de perecimento de direito, não, obviamente, do direito objetivo à informação, mas, sim, do subjacente direito subjetivo coletivo de um sem-número de consumidores, o qual, a cada processamento de soja transgênica sem a consectária rotulagem, será, ao longo da demanda, diuturna e reiteradamente vilipendiado, o que, lógica e curialmente, deve ser coarctado, desde logo, à guisa de precaução e prevenção, pelo Poder Judiciário. 14. Diga-se, por fim, que com a edição da Lei de Biossegurança, no que tange à questão dos alimentos transgênicos, o que se espera da agroindústria e da indústria alimentícia, de um modo geral, é uma tomada de posição, clara e transparente, a seu respeito, sem maniqueísmos nem preconceitos. Entretanto, enquanto não se avança nesse campo – mais pertencente à Ética do que ao Direito -, salvantes raras e louváveis exceções no âmbito empresarial, o mínimo que se deve assegurar é o direito à informação do cidadão brasileiro quanto ao conteúdo e à origem do produto alimentício que está comprando, cabendo a ele, aí sim, tomar também a sua posição a favor ou contra os transgênicos. 15. Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar, determinando à BUNGE que providencie a inclusão nos rótulos e documentos fiscais relativos aos alimentos/ingredientes produzidos a partir de soja transgênica (OGM), por intermédio de sua filial de Rondonópolis, a respectiva informação nesse sentido, nos termos regulamentares estatuídos no Decreto 4.680/2003, no prazo de trinta (30) dias. Oficie-se aos órgãos regionais da ANVISA e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, cientificando-lhes da presente decisão e requisitando-se-lhes a fiscalização do respectivo cumprimento. Citem-se e intimem-se os réus, por carta precatória. Intime-se o autor. Publique-se. Rondonópolis-MT, 27 de setembro de 2007. FRANCISCO ALEXANDRE RIBEIRO Juiz Federal
Pode ser apontada como uma conquista relevante a recente rotulagem[21] dos óleos de milho produzidos pela empresas Bunge e Cargill, rés na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo, Processo nº 583.00.2007.218243-0, em cumprimento à decisão liminar proferida no dia 12 de Setembro de 2007 pelo Juízo da 3ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo.
No entanto, as conquistas são específicas, havendo uma gama de produtos notadamente produzidos a partir de OGMs por ser rotulada.
As dificuldades concernentes à aplicação da legislação de rotulagem de transgênicos em vigor advêm principalmente da complexidade do tema em tela. Os OGMs são, em primeiro lugar, uma questão de saúde pública, uma vez que os possíveis riscos que seu consumo pode acarretar à saúde humana são ainda desconhecidos. Além disso, o tema pode ser concebido sob o aspecto do direito à informação, devendo ser assegurado, nesse sentido, o direito de escolha por parte do consumidor do produto que irá consumir com base num juízo esclarecido. Por fim, os transgênicos representam um risco eminente de impacto ambiental.
Assim, ao se falar em rotulagem, também se deve considerar as falhas no tocante à fiscalização, que são, atualmente, justificadas pelo fato de, até o momento não se ter decido acerca da competência para que seja exercida, reflexo também da complexidade acima citada.
7. Conclusões
Vistas algumas premissas que tornam possível o entendimento acerca da rotulagem de organismos geneticamente modificados (transgênicos) no Brasil, pode-se então, atingir determinadas conclusões.
Inicialmente, cabe constatar-se o fato de, até o momento, pouco se ter comentado acerca da rotulagem dos organismos geneticamente modificados. Este tópico de extrema importância para o consumidor só começa a surgir atualmente, a partir da nova lei de biossegurança, muito embora a legislação existente seja datada de 2003. Isto é, há quatro anos o poder público vem se omitindo na defesa do consumidor e, do mesmo modo, na sua fiscalização.
Vistos os princípios da dignidade da pessoa humana, o da precaução e os direitos à saúde e à informação, tomados como modelo para este estudo, percebe-se que, adotando tal conduta, o Estado acaba por violar a todos.
A idéia da dignidade humana, em seu sentido positivo e negativo, resta esvaziada, uma vez que os organismos geneticamente modificados, possíveis causadores de danos à saúde, até o momento, não tiveram uma regulamentação mais efetiva, principalmente em relação à rotulagem, assim como não têm qualquer tipo de controle que seja condizente com seu porte.
Do mesmo modo, pode-se também afirmar quanto ao direito à saúde, haja vista que pouco se fala em relação à situação dos consumidores e aos efeitos que podem a estes serem causados, em explícito desrespeito ao princípio da precaução. Talvez, seja o momento de se citar um argumento mais prático, qual seja, o fato de, em havendo rotulagem, os OGMs acabam por terem sua rastreabilidade facilitada no caso de virem a causar qualquer dano seja ele ao ser humano ou ao meio ambiente.
Em relação ao direito à informação, expresso no Código de Defesa do Consumidor como um dos direitos básicos deste, é também suprimido, uma vez que não há, atualmente, qualquer tipo de rotulagem, de modo que, como indicado no item anterior, esta só começa a ser exigida atualmente por meio de decisões judiciais. Resta indagar como é possível permitir ao consumidor uma escolha esclarecida e consciente acerca de sua opção de consumo, se para isso não lhe foi fornecida a informação necessária.
Como se pôde notar ao longo desta pesquisa, a idéia da rotulagem dos organismos geneticamente modificados envolve questões jurídicas bastante complexas que devem ser pensadas sempre tendo em vista a ótica do Direito Civil e do Direito Constitucional, e, precipuamente, uma visão voltada para o interesse público, haja vista que, antes de tudo, essa é uma questão que envolve interesses concernentes a todos os brasileiros e são eles, enquanto consumidores, os diretamente afetados.
Prof. Adjunto de Direito Civil na UFRJ e na UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da UNIFLU. Coordenador Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas
Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
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