Resumo: O trabalho visa a analisar a prisão decorrente da sentença de pronuncia, demonstrando sua incompatibilidade com os princípios do Direito Penal. Para tanto, traça a evolução da prisão desde as ordenações filipinas, mostrando que,de medida cautelar, passou a ser a pena por excelência. A partir desta evolução, não se pode mais ter a prisão como regra, daí porque a incongruência do disposto no artigo 408 do CPP. Conclui o trabalho por propor que a prisão decorrente da pronuncia esteja atrelada aos mesmos requisitos da prisão preventiva.
O artigo 408, parágrafo 1º, parte final do nosso atual Código de Processo Penal prescreve que o juiz, ao pronunciar o réu expedirá as ordens necessárias para a sua captura. Estabelece, assim, a denominada prisão por pronúncia. Todavia, tal dispositivo legal afronta princípios constitucionais e penais, além de representar odioso resquício de épocas menos liberais do direito penal.
As primeiras ordenações vigentes no Brasil, ainda que por muito pouco tempo, foram as Afonsinas, promulgadas em 1446, na qual se fundava o ordenamento jurídico português. Já em 1514, o Brasil passou a ser regido pelas ordenações Manuelinas.
Tanto em uma como na outra, a prisão, embora prevista com freqüência, tinha em regra um caráter preventivo, consistente em evitar a fuga do autor do crime até ser julgado. Assim, a prisão raramente surgia como reação de natureza repressiva. As penas eram muito mais cruéis, sendo de morte, de mutilação, dentre outras.
Também entre os índios, ao tempo do descobrimento do Brasil, conforme noticia João Bernardino Gonzaga, a privação da liberdade era imposta para se deter os inimigos em seguida à captura ou nas horas que precediam de imediato o seu sacrifício. (O Direito Penal Indígena, São Paulo, s.d., p. 128).
Entre os romanos não era diferente, conforme informa Carrara, eles utilizavam o cárcere como custódia, mas não como sanção autônoma. (Programma del diritto crimminale, Parte generale, Firenze, 1924, vol II, p. 56).
Ainda segundo Carrara, na França, até o advento do Código Penal de 1791, a detenção não era reconhecida como pena, mas como meio para impedir a fuga do réu. (ob. e v. cit. p. 53).
A prisão, então, na sua origem não tinha caráter repressivo, antes, tinha caráter preventivo, cautelar, razão pela qual era aplicada com freqüência e assim poderia ser, posto que se comparada às penas extremamente cruéis à época cominadas, não representava grande lesão ao cidadão.
No Brasil, o Código Criminal do Império, de 1830, estabelecia um sistema mais brando de penas, sinalizando já com tendências mais liberais, influenciado pelas idéias humanistas que ecoavam pela Europa sob os brados de Beccaria, e principalmente na França por causa da revolução.
Este diploma legal, que para os dias de hoje não tem nada de liberal, previa 11 modalidades de pena, desde a morte, até a multa, passando pela perda de emprego e pela prisão, podendo esta ser com trabalho, ou simples.
Aqui, portanto, começa-se a ver a prisão como pena e não somente como medida preventiva, embora continue em alguns casos a ter este caráter. O próprio artigo 37 do Código Imperial cuidava de separar os conceitos de prisão como sanção e de prisão como meio processual de se impedir a fuga.
Assim, a partir de então, a prisão em nosso direito sempre foi vista sob dois prismas: reação de natureza repressiva e natureza cautelar. Também grande parte das legislações estrangeiras a vêem destes dois modos.
Com o advento da república, elaborou-se um novo Código Penal, que entrou em vigor em 1890. Com ele, aboliu-se a pena de morte, as penas infamantes, e restringiu-se a pena privativa de liberdade ao tempo máximo de 30 anos, nos moldes do que temos hoje.
A base do sistema penitenciário era, então, a privação da liberdade, que poderia ser por prisão celular, aplicável para quase todos os crimes; reclusão; prisão com trabalho obrigatório; prisão disciplinar para os menores de 21 anos. Previa-se, ainda, o banimento, a interdição, a suspensão e perda do emprego público.
Com a segunda república sobreveio a Consolidação das Leis Penais. Em 1934 a nossa Carta Magna chegou a prever a pena de morte mesmo em casos outros que não militares – previsão esta que jamais foi aplicada. Surgem, então, com o Estado Novo de Getúlio Vargas, os Códigos Penal, em 1940 e Processual Penal, em 1941, inspirados no código fascista da Itália de Mussolini, de 1930.
Ainda aqui a base do nosso sistema penitenciário é a privação da liberdade, representada pela reclusão, pela detenção e pela prisão simples, esta última destinada às contravenções.
Em 1977 entrou em vigor a lei 6.416, de filosofia claramente liberal no que tange às penas, visou ao esvaziamento dos cárceres prevendo a progressão de regime prisional, a supressão do isolamento celular contínuo, institucionalizou a prisão albergue, dentre outras medidas adotadas em consonância com esta tendência.
Cumpre ainda ressaltar, dentro dessa filosofia, as novas matizes do direito penal no sentido de prever cada vez mais penas alternativas em detrimento das privativas de liberdade, face a conhecida ineficácia e crueldade destas.
De tudo isso podemos perceber que, se antes o direito admitia a prisão como medida processual cautelar – e isso era razoável em face da crueldade das penas, hoje com a evidente amenização destas, já não se pode entender natural a prisão com aquela natureza.
Naqueles tempos havia ao menos uma lógica na proporção entre a medida cautelar para assegurar o julgamento e a pena imposta após este. Atualmente inexiste esta proporção, porquanto a própria medida preventiva confunde-se, na prática, com a pena a ser cumprida. Isto quando não a ultrapassa, o que é inadmissível.
A par desta problemática, o novo Código de Processo Penal Italiano, de 1988, prevê outras formas de medida cautelar que não o cárcere, apesar desta ser ainda reservada para alguns casos. Exemplo disso é o ‘arresti domiciliari’ previsto no artigo 284.
É bem verdade que também entre nós, com relação à odiosa medida cautelar houve clara evolução – o que por obvio não poderia deixar de acontecer tendo em vista que o direito como um todo evolui sempre, e ainda que de forma lenta, procura rechaçar incongruências em seu sistema.
Desta forma, a prisão como meio cautelar hoje em nosso direito é genericamente chamada de prisão provisória conquanto sua aplicação, à obviedade, tem cabimento antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. São as principais subespécies da prisão provisória, a prisão em flagrante, a prisão preventiva ‘stritu sensu’, a prisão por sentença condenatória que não admite recurso em liberdade e a prisão por pronúncia.
Destas modalidades de prisão, pelo seu caráter patentemente processual, cuida o nosso Código de Processo Penal, cuja promulgação se deu em 1941, em pleno governo Vargas. Referido diploma, como já dito, é de inspiração fascista e por isso de extremo rigor no trato com os acusados, tanto que para a adequação às novas tendências do direito sofreu inúmeras modificações. Apenas para se ter uma idéia da filosofia adotada pelo diploma processual, transcreve-se o trecho inicial de sua exposição de motivos.
“De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código Único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem.
…
Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em detrimento do bem comum.
…
É restringida a aplicação do in dúbio pro reo. É ampliada a noção do flagrante delito, para efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que em certos casos deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz”
Na trilha desta filosofia processual, o artigo 312 deste diploma dispunha a compulsoriedade da decretação da prisão preventiva, independentemente de outros fatores, nos crimes a que era cominada pena de reclusão por tempo igual ou superior a dez anos, sem embargo de crimes menos apenados onde a conveniência ou não da decretação da prisão preventiva ficava a cargo do magistrado, desde que presentes os requisitos legais.
Indigitado dispositivo, ainda que perfeitamente encaixado na sistemática do Diploma Processual, foi muito criticado, tendo sido alterado pela lei 5.349/67 que juntamente com a lei 8.884/94, delinearam o instituto nos moldes do que ele é hoje.
Assim no nosso direito atual a prisão preventiva repousa na necessidade. Para sua decretação é mister a prova da materialidade delitiva e indícios suficientes da autoria, além da fundamentada necessidade. Portanto, ressalta-se, não bastam indícios de autoria e prova da materialidade, há que estar presente a necessidade. Esta, por sua vez, justifica-se pela garantia da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal e para a asseguração de eventual pena a ser imposta.
Estas justificativas, no entanto, devem emanar dos autos e não da convicção do magistrado. Assim, não pode este dizer ‘decreto a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal’. Terá ele que fundamentar com elementos extraídos dos autos, a sua convicção, o porque seria inconveniente a instrução criminal com o réu em liberdade. Terá ele que demonstrar, por exemplo, que o réu esta ameaçando testemunhas. Também com relação às outras justificadoras deve o juiz demonstrar a necessidade da decretação da medida odiosa.
A regra é a liberdade. A prisão preventiva é exceção.
E nem poderia ser diferente face aos princípios constitucionais que prestigiam o ‘status libertatis’ e a presunção de inocência.
Destarte, com relação à prisão preventiva ‘stritu sensu’ o rigor do código teve de ser alterado, dado o seu patente absurdo.
De outro lado, temos a prisão por pronúncia, como modalidade de prisão provisória.
O texto originário do Código de Processo determinava que, sendo o réu pronunciado por crime inafiançável, deveria aguardar preso o julgamento. Sobreveio, no entanto, a Lei 5.941/73 – Lei Fleury – possibilitando ao magistrado, em casos em que o pronunciado for primário e ostentar bons antecedentes, conceder-lhe o direito de aguardar o julgamento em liberdade.
Nota-se, pois, um enorme avanço ao se permitir ao réu primário e de bons antecedentes aguardar em liberdade o seu julgamento, quando tal possibilidade lhe era totalmente vetada, independentemente da sua situação. Todavia, mesmo com este avanço, aqui a prisão é a regra, e a liberdade a exceção.
Analisando comparativamente as duas modalidades de prisão provisória: a prisão preventiva e a prisão por pronúncia, tem-se que, naquela a liberdade é a regra e a prisão a exceção, enquanto que nesta, a prisão é a regra. É este o absurdo.
Para a sentença de pronúncia, bastam a prova da materialidade delitiva e indícios de autoria. Nesta fase vigora o princípio do ‘in dúbio pró societates’, ou seja, havendo dúvidas deve o réu ser pronunciado. Importante mencionar que a dúvida aqui não é em relação ao crime, pois esta sempre haverá enquanto o processo não for julgado pelo próprio Tribunal Popular, Juiz Natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A dúvida aqui é quanto aos próprios indícios. Ou seja, não há necessidade de que estes indícios sejam robustos, bastando que não sejam extremamente frágeis.
Assim, chega-se ao absurdo de ser regra a determinação da prisão em decorrência de uma decisão fundamentada apenas em indícios. Se não for o réu primário e de bons antecedentes, bastará a dúvida para que ele seja conduzido ao cárcere. Na dúvida prende-se.
É bem verdade que, sem embargo de ser a regra a prisão, deve esta ser bem fundamentada pelo magistrado que pronunciou. O problema é que aqui, esta fundamentação se restringirá a critérios objetivos como a primariedade e os bons antecedentes, quando na verdade, deveria, tal qual na prisão preventiva, estar atrelada à necessidade.
Fernando da Costa Tourinho Filho leciona que a pedra de toque da prisão provisória em nosso direito descansa na necessidade. É a necessidade que deve reger todo e qualquer tipo de prisão provisória.
A par destas incongruências os nossos tribunais vem proferindo decisões que acabam por flexibilizar a letra da lei, entendendo dever o magistrado analisar não só os requisitos objetivos como também a necessidade de se impor a custódia.
Não obstante, há ainda muita recalcitrância nesse sentido, havendo também muitas decisões mantendo a prisão por pronúncia apenas com base nos já mencionados requisitos – não primariedade ou maus antecedentes, deixando de analisar a real necessidade desta prisão.
Assim, melhor seria o entendimento – possível juridicamente – de que a prisão por pronúncia é espécie da qual é gênero a prisão preventiva. Desta forma, a sentença de pronúncia seria apenas mais uma oportunidade para que o magistrado decretasse a prisão preventiva se o pronunciado estivesse solto ou a mantivesse se fosse o caso, ou por outro lado, analisasse a possibilidade de revogá-la, sem no entanto mudar a natureza jurídica daquela custódia. Ou seja, a prisão por pronúncia e a prisão preventiva teriam a mesma essência, a mesma `ratio` – a necessidade.
Duas seriam as utilidades praticas de tal interpretação.
A primeira, a de pacificar o entendimento acerca dos requisitos para a decretação da prisão. Analisar-se-ia sempre a necessidade e, a primariedade e os antecedentes seriam apenas elementos a orientar o magistrado na análise da necessidade. Este entendimento, aliás, é o que mais se coaduna com o instituto da prisão provisória e que vem sendo adotado pelos nossos tribunais.
A segunda viria a resolver um problema que, com freqüência, vem acontecendo. Em muitos casos os magistrados decretam a prisão preventiva dos acusados. Destas decisões recorrem os réus. No entanto, antes do julgamento deste recurso, sobrevém a sentença de pronúncia e, consequentemente a prisão decorrente desta decisão. Neste ponto então, não há mais se falar em prisão preventiva, o que quer significar que aquele recurso que estava para ser julgado restou prejudicado, pois a natureza jurídica da prisão não é mais a mesma. Para atacar a nova prisão demandará mais tempo, tempo do qual o acusado estando preso não dispõe.
Tivesse a prisão mesmo após a sentença de pronúncia a mesma natureza jurídica ‘stritu sensu’ da preventiva (pois, em última análise a natureza jurídica é a mesma – custódia cautelar), aquele recurso poderia ainda ser julgado, o que, se fosse provido, à obviedade, reduziria o tempo de cárcere.
Assim, de muita utilidade seria o entendimento de que a prisão por pronúncia é espécie da prisão preventiva, tendo ambas a mesma natureza e estando atreladas ao mesmo requisito – a necessidade.
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