Um estudo sobre os manuais de direito do trabalho e a questão dos movimentos operários na Primeira República

Resumo: Este artigo procura analisar como os manuais de direito do trabalho tem apresentado os movimentos por direitos sociais, em especial, o movimento operário na Primeira República. Para isso, o artigo trata do gênero do manual e suas especificidades, buscando entender o papel da história do Direito nesses manuais.


Sumário: Introdução, 1. O gênero manual e seu caráter didático/informativo, 2.Os Manuais de Direito e a História do Direito, 3. Breve análise da História do Direito do Trabalho no Brasil em alguns manuais, a) O mito do Não-Direito do Trabalho antes da década de 30 nos manuais de Direito do Trabalho, b) O mito da “outorga do Direito do Trabalho” nos manuais de Direito do Trabalho, a)O mito do homem cordial e a paz social nos manuais de Direito do Trabalho, 4.   O movimento operário na Primeira República nos principais manuais e livros de Direito do Trabalho brasileiros, Considerações Finais, Bibliografia


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Palavras chave: Manual de Direito, Ensino do Direito, Direito operário na Primeira República


Introdução:


A História do Direito está presente em diversos manuais, englobando as diferentes áreas do Direito. Nos manuais de Direito do Trabalho a História do Direito também está presente como parte introdutória dos estudos dessa disciplina. A maioria do conhecimento de História do Direito vem desses manuais, porém há uma série de problemas encontrados nesses manuais, que vão além da questão da superficialidade dos conteúdos, que é própria desse tipo de produção didática. Um dos problemas encontrados nos manuais de Direito do Trabalho é o apagamento dos sujeitos de direito e a busca de uma história que se faz somente com leis e não retrata os movimentos sociais. Um movimento social é particularmente esquecido pelos juristas em seus manuais, que é o movimento operário de 1917, que produziu diversas greves e foi o primeiro grande movimento de luta por direitos operários.


O primeiro item visa tratar dessa particularidade dos manuais que é o caráter generalista, informativo e didático, contrastando com a produção realizada na História, que geralmente é monográfica. A comparação das duas histórias, histórias dos juristas e história dos historiadores tem levar em conta a diferença entre os tipos de produção, não podendo comparar uma obra de pesquisa monográfica, com outra obra didática, como o manual. Porém, é possível uma análise do que os manuais estão retratando como História do Direito, a seleção do conteúdo que tem realizado e as implicações dessa seleção.


O segundo item busca apresentar a diferença entre essas histórias e resgatar um pouco de seu nascimento, que tem como seu principal fundador Savigny. Esse jurista com sua história dos conceitos de Direito trouxe para os estudos de Direito um caráter de periodização e a busca do “espírito do povo” nas leis, criando a Escola Histórica do Direito. Os estudos de História do Direito têm por característica uma visão enciclopedista, não monográfica e de longos períodos. Essa característica é entendida, quando se percebe que a origem da disciplina estava em um estudo que queria mostrar a continuidade dos conceitos ao longo do tempo. Os manuais produzidos por autores que estudam a História do Direito vão procurar apresentar essa continuidade.


Esse estudo de História do Direito se diferencia nesse ponto dos manuais, por ser monográfico e utilizar uma abordagem da história que quer ressaltar que os conceitos de direito tem um caráter social e histórico. Porém, diferentemente de Savigny, a História do Direito que se defende aqui é aquela que entende os conceitos dentro de um tempo e um espaço, e que não busca a universalidade.


Em um terceiro momento pretende-se analisar o que os manuais de Direito falam da História do Direito operário. Como o foco da pesquisa é o direito, busca-se entender o que os juristas geralmente estão querendo dizer quando fazem uma história cujo objeto é o Direito. A hipótese levantada é que os juristas apresentam um conceito muito restrito de Direito, limitando esse à legislação oficial produzida, ou seja, ao direito positivo. A conseqüência é que a história é produzida a partir do momento em que há legislação sobre o tema, ficando o período estudado sem uma História do Direito. O que essa pesquisa visa é mostrar que mudando o conceito de direito, é possível uma historia do direito a ser produzida nessa época e principalmente mudar o foco da história, apontando o povo como produtor de direito.


Em um quarto momento busca-se afunilar a questão e analisar o que os manuais que tratam da História do Direito, falam das greves e do movimento operário entre os anos de 1917 e 1920. Ressalta-se aqui o episódio da greve de 1917, que por seu caráter singular, foi assunto de algumas considerações dos juristas.


1. O gênero manual e seu caráter didático/informativo


O manual é hoje um dos mais conhecidos gêneros literários no mundo acadêmico do Direito. As universidades de direito adotam manuais de todas as áreas do Direito, tanto das disciplinas dogmáticas ou técnicas quanto nas disciplinas zetéticas. Enquanto grande parte das ciências humanas abandonou completamente esse gênero em favor da especialidade, o Direito ainda investe na generalidade e na informação, e o manual é um ótimo instrumento para isso. A crítica ao ensino do direito dificilmente percebe essa questão nas faculdades de Direito, colocando foco na questão da “qualidade” da produção acadêmica e dos livros utilizados pelos professores, mas não é comum se falar em uma aposta diferente do Direito, uma aposta no manual e não na monografia ou na tese.


O manual não é o único gênero literário usado no ensino de Direito, dividindo espaço com os comentários e os tratados. Enquanto o tratado tem como objeto um único tema, o manual pretende abordar de uma forma ampla, com pouca profundidade, uma série de temas. O manual está presente desde a formação dos cursos de Direito no Brasil, como aponta José Reinaldo de Lima Lopes:


“A reforma pombalina já anunciava o gênero literário que seria dominante: o manual, ou compêndio. No Brasil, a Carta de Lei que criou os cursos jurídicos, em 11 de agosto de 1827, dispunha no art. 7: os “lentes farão a escolha dos compêndios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos contanto que as doutrinas estejam de acordo com os sistema jurado peã nação. Estes compêndios, depois de aprovados pela Congregação Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer às escolas, competindo aos seus autores o privilégio exclusivo da obra por dez anos”[1].


O manual tem um caráter informativo e didático que é utilizado pelo professor de direito para expor os principais assuntos da disciplina. Assim, o manual de direito no Brasil está próximo do livro didático. O que ocorre em muitas faculdades de ciências humanas é o que os livros didáticos dificilmente são utilizados por alunos e professores, ficando esse tipo de livro limitado ao ensino anterior à faculdade. Esse fato é propiciado pela existência de matérias nos ensinos médio e fundamental que abordam essas matérias, dando para o aluno uma série de informações básicas para que na faculdade não seja necessário os livros didáticos. Esse é o caso de ciências como a História, a Filosofia, a Geografia, a Literatura, etc., porém não é o caso do direito, em que não há conteúdo básico e o aluno chega na faculdade de direito sem o mesmo conhecimento básico desta matéria. Os manuais visam trazer um conhecimento básico ao estudante de direito, que será aprofundado depois.


Essa diferença de perspectivas entre as ciências humanas é um dos fatores que tem levado a uma dificuldade de diálogo e na impossibilidade da interdisciplinaridade. Esse fato é particularmente grave, quando se trata dos estudos de História do Direito, que há uma disputa acadêmica entre historiadores e juristas, de tradições muito diferentes, uma da monografia e outra do manual.


2. Os Manuais de Direito e a História do Direito


A História do Direito é estudada nas faculdades de direito em matéria específica, mas ela está presente em todas as disciplinas de direito, na forma de uma introdução ao assunto tratado. Os manuais de Direito utilizam-se da história para recuperar as legislações anteriores, tratar dos principais juristas da matéria e de alguns fatos relevantes. O objetivo não é produzir história do Direito, mas sim de compilar o que já foi produzido por outros autores. Assim, a história do Direito é vista de uma maneira muito superficial, assim como todos os assuntos ao longo dos manuais, uma vez que o objetivo do manual é panorâmico e não monográfico.


Nesses manuais há uma tendência de tratar a História como um instrumento de introdução à análise da legislação positivada atual. Buscam traçar um panorama da ‘história universal’ em poucas páginas, pouca ou nenhuma utilização de fontes históricas, elencam leis em ordem cronológica e reforçam o caráter do Direito atual ligado a uma tradição. Essa abordagem é comum entre os juristas, que já a consideram uma praxe, porém incomoda ao historiador que não vê nesses capítulos quase nada que se enquadre no paradigma metodológico da História. Por isso é muito comum os historiadores modernos não considerarem essas apresentações como História.


Esse fato pode ser tomado como um desleixo dos juristas em elaborar uma História com uma metodologia criteriosa, com estudos de campo, com citações de fontes e um rico debate historiográfico. Porém, grande parte dos juristas que escrevem esses manuais não tem a pretensão de serem historiadores do Direito e parece que estão fazendo outra coisa, que chega a ser explicitada por alguns. Um dos autores que explicita isso é Catharino, que inicia seu livro explicando o que vai fazer, nas seguintes palavras:


“Evolução do Direito do Trabalho, considerado como um todo que se fez, que se está fazendo e perfazendo, e não História do Direito do Trabalho, nem História do Trabalho, matérias apropriadas a curso de pós-graduação.


Formação histórica, apenas para melhor compreensão da disciplina, ainda que elementar. Sua gestação: seu nascimento e suas primeiras manifestações; seu crescimento e sua maturidade, e, também as transformações por que está passando no presente quase futuro”[2].


Este autor é cuidadoso com suas fontes, demonstrando um conhecimento de diversos autores de Direito do Trabalho, inclusive os mais antigos. Porém, acredita que não pode fazer em um manual de Direito uma História do Direito do Trabalho, que segundo ele é para o curso de pós-graduação. É preciso um esclarecimento, uma vez que a afirmação do autor geralmente não se configura, pois a História do Direito, como disciplina não costumava fazer parte dos cursos de graduação e mesmo os de pós-graduação, que tendem a privilegiar as disciplinas técnicas-profissionais. A situação tem se alterado na última década, com a reintrodução da disciplina de História do Direito no currículo de muitas faculdades, mas esta ainda é vista como um “histórico”.


Parte dos autores de manuais de Direito são enfáticos em afirmar a importância da História para o estudo do Direito. A pergunta que fica é por que a História do Direito (em especial do Direito do Trabalho) parece tão mal cuidada e por que se gasta tão pouco espaço para desenvolvê-la se ela é tão importante? A hipótese formulada aqui é que a História se mantém como uma reminiscência da tradição dos compêndios de Direito, dentro de outro paradigma de Direito que o vê como ciência-técnica. Assim, a História do Direito é vista como uma introdução, pois os compêndios de Direito, que tinham como paradigma o Direito natural, entendiam que era importante saber o conteúdo de criação daquele direito, para sua melhor interpretação. A História do Direito como “histórico”, segundo a hipótese aqui formulada, é um instrumento de interpretação do Direito Natural, que sobrevive no meio de um Direito visto como estudo de legislação estatal.


Mesmo a História do Direito tendo diminuído a partir do século XIX e XX, ela ainda permanece nos manuais como uma introdução, em que a história é encarada de modo literário ou mesmo como uma crônica, em que alguns fatos são destacados, dependendo a visão do autor frente ao Direito. É nesse sentido que Hespanha faz um balanço dos manuais e da História do Direito:


“Seja como for, a crise da história do direito como disciplina jurídica era iniludível. A justificação técnica – mais tarde, tecnocrática – do direito em vigor sobrelevava continuamente a justificação histórica. O positivismo oitocentista, com o seu intento de encontrar um modelo explicativo da realidade social (com as suas seqüelas jurídicas – o realismo e o institucionalismo), fornece, é certo, alguns argumentos aos historiadores. Entre nós, por exemplo, as páginas introdutórias dos manuais universitários em que se justifica o interesse da disciplina no deixavam de referir-se, geralmente, em lugar de relevo – a importância da história do direito na explicação da gênese das instituições jurídicas e sociais. Não se tratava, no entanto, de uma intenção conseqüente, capaz de justificar a existência da disciplina e o lugar que lhe era conferido no ensino universitário. Nem mos juristas, na sua atividade quotidiana, sentiam poder retirar da história do direito um proveito mais largo do que o da cultura geral, nem o tom literário da sociologia contemporânea permitia uma utilização eficaz dos dados fornecidos pelos historiadores, em termos de, a partir daí, poder construir um modelo explicativo da sociedade”[3].


Hespanha entende que essa modificação na História do Direito decorre de não encarar o direito em uma perspectiva da história do materialismo histórico. Porém, essa perspectiva parece não ser a melhor, uma vez que ela restringe a explicação ao plano do econômico e como uma explicação marxista, entende o direito como superestrutura social e dá uma importância vital à função do Direito.


A hipótese formulada de que a História do Direito nos manuais permanece como um resquício da Escola Histórica do Direito, no paradigma do positivismo jurídico. A hipótese aqui formulada parece razoável uma vez que na disputa para o estabelecimento do paradigma atual do Direito como ciência baseada na interpretação de legislação estatal, estava o paradigma do Direito entendido como História. Essa era a posição adotada pela Escola Histórica do Direito, que teve como principal autor, Friedrich Karl von Savigny. Mas é possível encontrar a utilização do ‘histórico’ antes mesmo de Savigny, e é o próprio Savigny que aponta essa tendência no manual de Jacob Gothofred de 1585. Diz Savigny que o Manuale juris tinha três divisões e a primeira estava ainda dividida em quatro partes, sendo que a primeira delas era “História do direito em geral, mas não em detalhe” [4].


Savigny vê na elaboração da História do Direito uma maneira de se fazer ciência, pois é a partir da História que ele sistematiza o estudo do Direito, que possibilita a criação de um método de interpretação. Savigny não somente propõe uma metodologia jurídica nesses moldes, como também escreve um dos principais compêndios de Direito Romano: Sistema de Direito Romano atual. Esse é um livro de sistematização de institutos jurídicos romanos que são utilizados no Direito alemão da época do autor. Por isso não é propriamente um livro de História do Direito, mas sim de institutos de direito. Em um contexto em que o Direito não estava nos Códigos modernos, mas em códices que se remetiam ao direito romano antigo, a compilações medievais, leis esparsas e comentários de diversos doutrinadores, era importante a identificação dos institutos na história, para se entender porque foram criados e que papéis eles desempenhavam[5].


A codificação da legislação ainda era discutida nos tempos de Savigny, que não era a favor dessa sistematização do Direito, por entender que o estudo da História do Direito era melhor. Enquanto o código perpetuava as regras tornando-as rígidas em um documento, o direito comum continuava vivo e poderia ser estudado por um estudo que sistematizasse o Direito e o entendesse em uma perspectiva da história. A questão de apontar para um sistema de direito é fundamental para o entendimento do porque a concepção de Savigny da História como um método pode ter permanecido, mesmo frente ao positivismo.


Para Savigny não se pode pensar em um direito sem a história, isso porque o direito expressa o “espírito do povo” que somente pode ser apreendido quando se estuda a história daquele povo e naquela época. Não há, portanto, para Savigny autonomia do Direito. A ‘Escola histórica do Direito’ iniciada por Savigny foi desenvolvida posteriormente também por Jhering e outros estudiosos do Direito romano no século XIX.


É possível que a insistência de se estudar a história do Direito, em especial aqui a do Direito do trabalho, de uma forma compilatória, venha de influência dessa escola, pelo menos indiretamente. Essa influência já foi detectada no Direito comum, como destaca Patrícia Correa:


“A influência do historicismo jurídico no Brasil será notável na obra de diversos juristas. Observa–se que a vertente germanista do historicismo inicialmente melhor se adaptou à ideologia francamente positivista que grassava em nossos meios acadêmicos no século XIX, pois conviveu harmoniosamente com o sentimento de que aqui lutávamos por um direito novo, evoluído, sem os ranços das escolas ibéricas, que eram abertamente acusadas de prenderem–se a um passado mítico, clerical e, sobretudo, irracional. Sob a influência do historicismo germanista de Ihering seriam escritos os primeiros trabalhos específicos e sistemáticos sobre história do direito no Brasil, ambos de Isidoro Martins Júnior (1860–1904). Apesar deste êxito inicial, a corrente germanista parece ter sucumbido aos romanistas que muito mais se afeiçoavam ao canonismo intrínseco de nossa formação jurídica ancestralmente ligada às escolas ibéricas”[6].


Savigny e Jhering apesar de tratarem de história do direito romano têm pontos de vista diferentes, como o próprio Jhering ressalta por diversas vezes, em sua obra Espírito do Direito romano[7]. A despeito da diferença dos autores, o que fica evidente é a utilização da forma de tratado para apresentar a história do Direito romano, nos dois autores. O tratado tem por característica essencial a generalidade, diferente da monografia. Savigny explicita a forma adotada:


“Conforme ao objeto que me proponho, adotei a forma de tratado, mas como nem todo mundo está de acordo sobre as condições que deve ter um tratado sistemático, devo entrar aqui em alguns detalhes. No meu entender, a condição essencial de uma obra desse tipo, é de penetrar e deixar claro o laço íntimo, das afinidades que existem entre todas as noções de direito, constituindo uma unidade”[8].


Esse é um ponto essencial que destaca os trabalhos produzidos atualmente em história e os manuais dos juristas do trabalho que trazem considerações sobre o direito. Isso porque é diferente a forma que estes dois grupos de estudiosos se utilizam, monografia e manuais/tratado. Savigny para elaborar um estudo sobre o sistema de direito romano, muitas vezes utiliza-se de generalizações de algumas visões ao longo do tempo. Isso porque o que ele pretende estudar em maior profundidade é uma história interna do direito, e não propriamente fazer um tratado da história de Roma. O próprio Savigny entende que essa diferenciação não pode ser estrita, pois o estudo da história interna do direito irá também apresentar a história externa. Savigny distingue essas duas histórias:


“Desde muito cedo, fez-se uma distinção entre a história interna e externa. Da história externa do direito, deveriam constar todos os fatos que não contivessem princípios jurídicos em si. A história interna do direito (antiquitates) deveria conter todo o aspecto histórico dos mesmos princípios jurídicos, ou seja, a evolução do sistema. Nos últimos tempos, os autores afastaram-se, e com razão, desta separação, que tem algo de incômodo e arbitrário”[9].


Essa diferenciação entre história interna e externa tem sua base em Leibniz em seu livro Nova Methodus discendae docendaeque Jurisprudentiae, como relata Campos Batalha[10]. Essa diferenciação apartava o direito de todo seu conteúdo político, social e histórico, tornando o direito algo não-histórico. Essa posição vem sendo combatida pela historiografia moderna que entende o direito como fruto/produto da sociedade.


Porém, a divisão proposta por Leibniz e difundida pelos estudos da escola histórica de Savigny ainda estão presentes nos estudos de direito que incorporam a história, em especial nos manuais de direito. Assim, o paradigma dos modernos estudos de história e dos tratados de direito que tem uma parte de história, são absolutamente diferentes. Essa diferenciação parece que se perdeu no tempo, devido à prevalência do positivismo jurídico nos manuais. Hoje os juristas que escrevem manuais parecem estar incomodados com a parte histórica de seus trabalhos e muitos tratam dela de forma rápida e sem grandes inovações. Isso leva a alguns juristas a se colocarem no lugar de historiadores, tentando formular bases metodológicas para o que estão fazendo. Isso pode ser visto no seguinte trecho de Ives Granda Martins Filho:


Por que escrever sobre História? Qual o interesse em se estudar a História da Justiça do Trabalho? São perguntas que surgem naturalmente diante de um estudo como este. Será mero saudosismo ou diletantismo? Podemos responder que não, porque a História tem um serviço fundamental a nos prestar: traze-nos a experiência do passado, para melhor enfrentarmos o futuro. Percorrendo a História da Justiça do Trabalho, poderemos ver as várias tentativas de se estruturar um aparelhamento estatal de solução de conflitos trabalhistas, compreendendo melhor por que determinados modelos foram consagrados e por que outros não devem ser adotados, já que demonstraram sua ineficácia ou deficiências no passado.


Assim, vemos que o presente somente se compreende a luz do passado. Daí a necessidade de um conhecimento histórico para a perfeita compreensão do mundo atual, com suas instituições e sistemas sociais, econômicos e políticos. Ademais, o passado, de certa forma, ‘condiciona’ o futuro. A ação recebe a carga do passado e prepara a rota do futuro. As ações feitas no passado em relação às possibilidades existentes condicionam as escolhas futuras. O presente são as possibilidades reais herdadas do passado. Assim, o passado oferece as possibilidades do futuro, sem no entanto, determinar sua evolução posterior, já que característica do ser humano é a liberdade de escolha.


Captada a importância do estudo histórico, podemos passar a uma segunda questão de relevância: Quem é o sujeito da História? Quem faz a História: os homens ou as estruturas? A importância da questão se coloca no momento em que determinadas concepções ideológicas buscaram despersonalizar a Historia, reduzindo-a à alternância de estruturas de poder. Na verdade, não há um sujeito coletivo da História, mas são as pessoas concretas que, no seu agir, vão construindo e dando vida às instituições. É, portanto, o homem em sociedade, com um fim comum, que faz a História.


Nesse sentido, a narração histórica é narração de ações humanas, com personagens concretos que as realizaram. Os modelos estruturais vivenciados foram, antes de mais nada, concebidos por mentes que tem nome e sobrenome, ainda que muitas vezes, seja impossível detectar a causalidade específica que cada indivíduo ou grupo exerceu. Se por um lado, no presente estudo, buscamos descrever as participações destacadas que tiveram alguns homens na conformação da atual estrutura da Justiça do Trabalho, por outro, os atores desconhecidos são, muitas vezes, os que mais contribuíram para a efetivação do modelo atual. Só deus poderá avaliar a contribuição de cada um. Daí a impossibilidade de mencionar todos os que tiveram essa influência decisiva nas várias etapas do processo histórico de desenvolvimento da Justiça do Trabalho.


Outra questão propedêutica que se coloca, mormente diante do tema da Justiça Social é do seu sentido e direção como concretização histórica: Qual o sentido da História? Terá a evolução histórica que procuraremos descrever no presente estudo uma direção concreta? Em termos mais amplos, podemos referir as principais cosmovisões da História, que procuraram encontrar um sentido ou direção para o suceder dos acontecimentos: a) gregos- concepção cíclica (…), b) idealismo e marxismo (…), c) positivismo e materialismo (…), d) existencialismo (…) e e) cristianismo (…).


De todas essas várias concepções, partimos de uma visão cristã da História, em que a busca de Justiça Social não é apenas a construção de um paraíso terreno, como fruto da composição da luta dialética de classes, mas a condição básica para a promoção humana em todas as suas dimensões”[11].


O autor aponta alguns parâmetros para a elaboração da história. Isso porque talvez a tradição dos tratados e sua construção metodológica, tenha se perdido, ou não seja evidente atualmente. Para o autor isso é ainda mais presente, pois não está escrevendo para um manual de direito, mas sim para um livro específico de história do Direito. Além de tentar definir uma abordagem de história que irá adotar, o autor tem uma preocupação com as fontes, que não está presente nos tratados/manuais. Utilizando-se do referencial do historiador Eric Hobsbawm, presentes no texto: “O presente como história: escrever a História de seu próprio tempo”, publicada na Revista Novos Estudos do Cebrab, n. 42, 1995, p. 103-112, o autor tece as seguintes considerações sobre a necessidade das fontes:


“Outra questão preliminar que se coloca é esta: Com que se faz a história? E a resposta é simples: com documentos. São o combustível da Historia, sem o qual não se vai longe. No conceito amplo de ‘documentos’ entram tanto a tradição oral, quanto a escrita e monumental: Tudo o que possa dar notícia do passado. Procuramos, pois basear nossa narrativa nos depoimentos deixados por escrito por aqueles que foram protagonistas e testemunhas diretas dos fatos. Sintetizamos o que a Revista LTr, desde 1936, recolheu como fatos mais destacados da evolução da Justiça do Trabalho e de sua atuação na composição dos conflitos sociais. Em relação aos anos mais recentes, a própria seleção e menção dos fatos deveu-se à nossa própria experiência pessoal”[12].


Ives Granda não sendo historiador de profissão, mas jurista, questiona-se sobre o papel do historiador. O autor adota uma visão do papel do historiador, a do historiador positivista (no sentido comteano e não jurídico do termo), como se pode ver no seguinte trecho:


Nesse sentido, cabe formular uma última pergunta propedêutica: Qual o papel do historiador? A importância da questão decorre da necessidade de se verificar o caráter de objetividade que tem o estudo histórico. A função básica do historiador é a de descobrir e selecionar os fatos, com base nos documentos e vestígios deixados pelos mesmos. Diante da quantidade enorme de dados existentes, não deixará de ser influenciada pela visão do historiador. Para Benedetto Croce, a História seria inseparável do historiador. O historiador pode se deixar levar por seus preconceitos e cosmovisão pessoal para escrever a História: tanto pelo desejo de que seja uma forma, como a critica por ser de outra forma (Paul Ricoeur), estando a História ligada à memória cultural do historiador (Hans Georg Gadamer).


Nesse sentido, não estamos isentos dessas contingências ao tentar relatar a evolução histórica da Justiça do Trabalho, supervalorizando determinados acontecimentos ou silenciando sobre outros. As falhas humanas nesse campo, esperamos, sejam relevadas, uma vez que se buscou, sinceramente, retratar a forma mais objetiva e sintética possível os principais acontecimentos que marcaram a conformação histórica da Justiça do Trabalho.


Só intentamos realizar essa tarefa investigatória e descritiva por acreditamos que o conhecimento histórico é verdadeiro, no sentido de uma aproximação do ocorrido, que sempre pode crescer. Mais do que um afastamento do erro (critério de falseabilidade de Karl Popper), a explicação histórica dos fatos é uma aproximação da verdade. Essa verdade histórica é que procuramos perseguir, ao tentar reconstituir, em suas linhas mais gerais, detectando causas e conseqüências, a evolução histórica da Justiça do Trabalho”[13].


A preocupação do autor não o livra de seguir o exemplo de muitos juristas que fazem da história uma introdução, isso devido não propriamente ao descuido do autor, mas sim da limitação do espaço que tem para escrever sobre um tema amplo: a História da Justiça do Trabalho no Brasil. Somente o tratado pode promover a síntese da história do Direito do trabalho e o tratado não tem os mesmos paradigmas que as modernas monografias de história.


Os manuais ainda têm uma importante particularidade quanto às fontes. Por serem obras de compilação é comum a utilização de outros autores que já estudaram o tema. Assim, predominam as fontes de segunda, terceira mão, sendo raras as fontes documentais. Deste modo, é comum que manuais apresentem compilações de outros manuais, em especial os mais antigos que já não são mais publicados e são de difícil acesso ao público geral. Quando o assunto é a História do Direito, alguns manuais modernos estão simplesmente copiando diversos trechos de outros manuais mais antigos.


Os manuais de direito do trabalho sofrem uma constante atualização, devido à mudança de leis constante. Quando o autor não atualiza seu livro, muitas vezes devido à sua morte, eles param de ser vendidos nas livrarias. Estes livros ficam então restritos a algumas bibliotecas de faculdades mais antigas de Direito, dificultando o acesso aos alunos e estudiosos sobre o tema tratado, em especial da História do Direito. Assim, reescrever o que está em um livro antigo de Direito do trabalho (e essa antiguidade pode ser coisa de apenas alguns anos) é uma maneira de manter aquela história do Direito dentro das faculdades de Direito. A manutenção é possível uma vez que não se critica ou se reescreve com nova visão o que já foi escrito sobre História do Direito do Trabalho. Isso ainda é mais forte, pois não há uma pesquisa de peso sendo desenvolvida nas Faculdades de Direito sobre o tema. A história do Direito aparece como um anexo inicial a principal coisa que é a análise da legislação atual.


Há também a visão de que a história é importante nos manuais de Direito do Trabalho, para servir de exemplo para o futuro. A idéia de que o estudo da história funcionaria como um remédio para não levar as pessoas a cometer os mesmos erros, está presente no manual de Sérgio Pinto Martins, como se pode ver no seguinte trecho:


O direito tem uma realidade histórico-cultural, não admitindo o estudo de quaisquer de seus ramos sem que se tenha noção de seu desenvolvimento dinâmico no transcurso do tempo. À luz da história, podemos compreender com mais acuidade os problemas atuais. A concepção histórica mostra como foi o desenvolvimento de certa disciplina, além das projeções que podem ser alinhadas com base no que se fez no passado, inclusive no que diz respeito à compreensão dos problemas atuais. Não se pode, portanto prescindir de seu exame. É impossível ser exato no conhecimento de um instituto jurídico sem se proceder a seu exame histórico, pois se verifica suas origens, sua evolução, seus aspectos políticos ou econômicos que o influenciaram.


Ao analisar o que pode acontecer no futuro, é preciso estudar e compreender o passado, estudando o que ocorreu no curso do tempo. Heráclito já dizia: o homem que volta a banhar-se no mesmo rio, nem o rio é o mesmo rio nem o homem é o mesmo homem. Isso ocorre por que o tempo passa e as coisas não são exatamente iguais como eram, mas precisam ser estudadas para se compreender o futuro. Para fazer um estudo sobre o que pode acontecer no futuro é necessário não se perder de vista o passado. Não se pode romper com o passado, desprezando-o.


É impossível compreender o Direito do Trabalho sem conhecer seu passado. Esse ramo do Direito é muito dinâmico, mudando as condições de trabalho com muita freqüência, pois é intimamente relacionado com as questões econômicas.


Será verificada a evolução do Direito do Trabalho, analisando-se sob o ângulo mundial e no Brasil”[14].


A história tem para o autor um telos profilático. Porém, não se discute aqui o que são os tais “erros”, somente se sabe que por essa visão, eles decorrem do não conhecimento dos fatos. Segundo esta visão, a história também possibilita fazer prognósticos, projeções, podendo prever os acontecimentos. Essa idéia de possibilidade de previsão dos fatos é algo muito forte no direito moderno, que visa minimizar os riscos, com um cálculo racional de previsibilidade. Há uma imensa busca pela previsibilidade e, quando é quebrada, diz-se que foi afetada a segurança jurídica, que tem como base a previsibilidade das decisões. Porém, essas são construções jurídicas que fazem parte de uma cultura da racionalidade presente nos estudos modernos de Direito. A previsibilidade das ações humanas não é possível nem no Direito, nem na História, porque nem sempre as pessoas se utilizam do cálculo racional, como os estudiosos prevêem.


O autor não deixa de lado a idéia da escola histórica do Direito de que somente se pode estudar os “institutos jurídicos” e conhecê-los bem, quando se estuda a sua origem, sua história. Apesar de apresentar essa posição, esse e outros autores que também a defendem, dificilmente irão fazer uma análise dos fatos políticos, sociais e econômicos diante da análise de um ‘instituto jurídico’ moderno. Quando há um novo ‘instituto jurídico’ a ser analisado não é dada muita importância a parte histórica, mas sim a análise da letra da lei.


Pode-se concluir, afirmando que a História do Direito do Trabalho enfrenta o desafio de produzir uma “história como a dos historiadores”, com um cuidado com as fontes, especialmente as fontes primárias, com uma metodologia e com uma explicitação da escolha ideológica do autor. Isso porque a “história dos juristas” nos livros de direito sofrem imensas críticas na atualidade. Porém, os manuais mais antigos que utilizavam da história como um recurso retórico de introdução ao texto, não tinham pretensão de escrever livros de história, nem de se aproximar no que tange aos métodos dos historiadores. Os novos manuais utilizam-se dos históricos com certo desconforto, ora justificando a tarefa incompleta, ora buscando aproximação com a “história dos historiadores” por via de uma literatura por eles produzida. Não há como negar que há um desconforto e isso pode decorrer de uma mudança nos próprios estudos de Direito, que tem seus reflexos na História do Direito. A chave do desconforto parece estar na alteração do conceito de Direito.


O que segue é uma análise de alguns manuais de Direito do Trabalho que tem referências à História do Direito, para tentar entender como a História é entendida pelos autores desses manuais. O que se busca aqui é detectar na História do Direito do Trabalho conceitos de Direito diferentes, que serão fundamentais para começar a pensar em uma História do Direito que tenha um novo conceito de Direito, qual seja, o Direito como instituição imaginária social, e que possa levar ao reconhecimento de outros sujeitos da História do Direito.


3.   Breve análise da História do Direito do Trabalho no Brasil em alguns manuais


A História do Direito é vista pelos manuais de Direito do Trabalho no Brasil com um papel muito importante para o estudo dessa área do Direito. Grande parte dos manuais fornece um ou dois capítulos sobre o tema, antes de entrarem no estudo da legislação atual. Há uma quase unanimidade entre os juristas do trabalho de que o Direito do Trabalho propriamente dito começa a partir da década de 30, em especial com a criação da Justiça do Trabalho e com a criação da CLT. As fases anteriores são descritas como de pouca produtividade legislativa.


Essa afirmação de grande parte dos novos manuais de Direito do Trabalho gera espanto ao historiador que estuda a Primeira República, pois há uma grande discussão no legislativo e também entre a população civil sobre as leis que regulavam o mundo do trabalho. Não se pode falar do desconhecimento dos juristas desses fatos, uma vez que muitos o citam. Porém, o que se supõe é que os manuais de Direito recorrem ao “mito da outorga” do Direito do Trabalho, ocultando um passado de lutas sociais por direitos trabalhistas. Isso é mais forte nos manuais de direito das últimas décadas, se comparado aos manuais mais antigos do começo do século XX, em que as lutas eram retratadas em minúcia. O direito do Trabalho ainda é um direito que não está totalmente implantado na realidade social brasileira, existindo muitas burlas ao que está positivado, sem que haja fiscalização e sanções para aqueles que o descumprem. A legislação trabalhista brasileira ainda tem como grande foco a CLT e isso é acentuado pelos manuais[15].


O que interessa a esse segmento do trabalho é entender a visão dos juristas do Trabalho sobre o direito anterior a década de 30. Há um porque dessa ocultação de uma atividade legislativa intensa e das lutas sociais e isso pode estar na concepção de Direito adotada por esses juristas, que é a do Direito como legislação, o que coloca os projetos de lei e visões populares sobre o Direito do Trabalho, como um “não-direito”. Esse pode ser um dos motivos dos juristas não olharem para o período anterior a década de 30 e os historiadores olharem, uma vez que estes geralmente entendem o direito como um fenômeno social e não adotam estritamente o Direito como lei.


Entre os manuais atuais e os antigos há uma grande diferença na importância dada à CLT e também no comentário da matéria, que antes não ficava tão preso à análise estrita da lei, que poderia ser permeada por fatos históricos e comentários. Os novos manuais de Direito do Trabalho que cuidam de fazer um “histórico”, em geral, citam livros antigos, dificilmente apresentando algo novo e dificilmente trazem comentários do próprio autor para a parte histórica. Desse ponto de vista, os manuais anteriores à CLT (1943) apresentam em sua maioria, um livro mais dinâmico, pois não se focam no exame da legislação, parágrafo por parágrafo. Por isso, foram analisados os manuais de diferentes períodos do século XX e início do XXI. Alguns livros específicos de História do Direito do Trabalho também foram analisados, porém esses são em número muito reduzido, se comparado aos manuais e sua elaboração não é muito diferente daqueles.


Os manuais aqui analisados não perfazem todos os manuais de Direito do Trabalho editados entre período de 1905 a 2010. A data de 1905 é a que marca a primeira publicação especial sobre o tema. A própria denominação não estava estabelecida no início do século XX, sendo possível encontrar o que hoje se conhece como Direito do Trabalho, em manuais com o nome de: Direito industrial, direito operário, direito social, etc.. Apesar de existir uma diferenciação entre esses tipos de direito na atualidade, isso não acontecia no início do século XX e, pelo conteúdo, pode-se reunir esses manuais em torno do tema Direito do Trabalho.


Destacam-se algumas significações imaginárias presentes em diversos manuais analisados, que datam do início do século XX até o início do século XXI. Foram analisados 27 manuais, 2 livros específicos de História do Direito e 2 trabalhos acadêmicos e uma compilação legislativa com ‘introdução histórica’ Há uma centena de outras obras que tratam de alguma forma de história do Direito do Trabalho, que não foram aqui citadas. Essas obras foram encontradas na biblioteca de Direito da Universidade de São Paulo, em especial as que os autores já faleceram e não são reeditadas há muito tempo. Algumas dessas obras mais antigas foram analisadas e as doutrinas mais utilizadas também. Não foram apontadas as teses e dissertações, em especial da década de 80 para frente, pois quase todas elas têm como praxe apresentar uma ‘introdução histórica’, que costuma ser uma compilação de manuais consagrados, que foram aqui analisados. 


a) O mito do Não-Direito do Trabalho antes da década de 30 nos manuais de Direito do Trabalho


Muitos são os manuais que entendem que o Direito do trabalho somente começa a partir de 1930, quando surge a grande parte da legislação trabalhista. Estes juristas estabelecem uma periodização, que leva em consideração a existência das normas estatais positivadas. Geralmente essa periodização leva em conta a quantidade das normas estatais positivadas.


Cesarino Júnior é um dos autores mais consultados em direito do trabalho quanto à parte histórica e apresenta uma periodização interessante, tomando como critério a qualidade e a quantidade das legislações. Segundo Cesarino, a história do direito social brasileiro pode ser dividida em: a) pré-histórico (1500 a 1888), b) capitalista (1888-1930), c) socialista (1930-1934), d) social-democrático (1934-1937), e) corporativo (1937-1946), f) progressista (1946-1964) e g) revisionista (1964- até a data do livro [l970] [16].


A mesma nomenclatura de pré-histórico é utilizada no texto de Russomano, sem que isso faça referência a uma sociedade sem história e sem escrita. É interessante que esses autores fazem a relação entre início da história e início do Direito estatal positivado, e com isso chamam o período de pré-histórico. Russomano divide a história do Direito do Trabalho brasileiro em períodos: “a) do descobrimento à abolição, b) da República à campanha política da Aliança liberal, c) da Revolução de 1930 em diante” [17]. O primeiro período é entendido pelo autor como pré-história do Direito do Trabalho. O segundo período é visto pelo autor como início da história do Direito do Trabalho[18]. O autor ao tratar desse período cita as poucas leis aprovadas nesse período, não tratando do contexto histórico das leis ou mesmo do contexto político e social.


Visão semelhante também pode ser vista no manual Compêndio de Direito do Trabalho de Barata Silva:


“Na evolução da legislação do trabalho no Brasil, podemos distinguir dois grandes períodos: o primeiro compreendendo o Império e parte do período republicano, até 1930; e o segundo de 1930 até os nossos dias. Se no primeiro podemos ainda fazer uma subdivisão, separando o período Imperial do Republicano, também no segundo encontramos duas subdivisões bem distintas: uma até o aparecimento da Consolidação das Leis do Trabalho e outra daquela data até os nossos dias. Divisão feita tão somente sob o critério cronológico, contudo, representa, de fato, os períodos assinalados de maior ou menor atividade legislativa em matéria de trabalho, em sintonia, até com as alterações havidas na estrutura política da nação”[19].


Os juristas também discutem quando se pode falar em direito do trabalho e, portanto, a partir de quando se pode dizer que há uma história do Direito do trabalho. Esse aspecto também leva em consideração a questão do que se considera como Direito do Trabalho. Grande parte dos juristas atualmente afirma que o início do Direito do Trabalho se dá com a positivação das leis trabalhistas:


Mas, de que qualquer maneira, foi a fase que se iniciou em 1930, a do grande desenvolvimento da legislação do trabalho. Foi nessa fase que o Direito tomou corpo, iniciou, por assim dizer, sua longa caminhada em marcha acelerada para a meta final.


Não pretendemos, é claro, fixar aquela data politicamente, como um divisor de orientações ou de tendências. O que achamos necessário registrar é que, de 1930 para cá, se notou a preocupação acentuada de o legislador pátrio por em prática o direito que já se vinha tornando necessário de há muito e, mais ainda, dar ao mesmo um sentido doutrinário, muito embora ainda não seja científico.


Com efeito, a partir de 1930 teve início, em nosso país, uma verdadeira ‘fúria legiferante’ em matéria de Direito do Trabalho. Mas, de qualquer forma, produziu-se no Brasil, a partir daquela data e, conseqüentemente, num período relativamente curto da vida nacional, uma legislação social com algum sentido de dignificação do trabalho humano, legislação que, indiscutivelmente, honra a cultura jurídica de um povo”[20].


Cesarino Júnior entende que o Direito do trabalho se inicia a partir da Revolução de 30: “legislação social no Brasil começou decididamente após a revolução de 1930”[21]. Cesarino distingue a existência de leis sobre o trabalho e a presença da legislação social, afirmando que anteriormente a 1930 existiam leis sobre trabalho, mas não Direito social. Assim, diz Cesarino:


“Isto não significa que antes, mesmo no tempo do Império, não tivemos leis sobre o trabalho, porém, não era ainda ‘legislação social’, mas sim apenas disposições legislativas fragmentárias e animadas ainda do espírito que tratadistas como Paul Pic chamam de ‘capitalista’”[22].


Interessante ressaltar que em dois livros da década de 30, o marco não é propriamente a Revolução de 1930, mas sim as resoluções do Tratado de Versalhes de 1919. Esse marco, porém, caiu em desuso, uma vez que os juristas mais recentes não o adotam como marco para o início do Direito do Trabalho.


Quem utiliza o Tratado de Versalhes para marco do início da História do Direito do Trabalho é Bittercourt. Esse jurista adota a seguinte divisão da História do Direito do Trabalho: Brasil colônia, Brasil Império, Brasil República. Para o autor o Direito do Trabalho no Brasil inicia-se com a assinatura do tratado, porém somente após a Revolução de 30 é que as normas começaram a ser cumpridas:


Tendo tomado parte na Conflagração Européia ao lado dos aliados, o Brasil também participou da Conferência de paz, sendo, pois um dos signatários do Tratado de Versalhes, firmado em 28 de junho de 1919.


Comprometeu-se assim, a por em execução os princípios emanados da Parte XIII desse tratado, verdadeira ‘Carta Internacional do trabalho’.


Por outro lado, nosso país esteve representado, também, em várias Conferências internacionais do Trabalho, tendo votado e assinado um bom número de projetos de convenções.


No entanto, dado a efervescência da luta política interna, nada se fez de positivo até a criação do Ministério do Trabalho.


O que caracteriza, indelével e singularmente, a legislação posterior a 1930, nesse terreno, com um cristianíssimo sentido social e humano, é a circunstância de seu absoluto cumprimento – sem reacionarismos, sem carrancísmos, mas conscientemente- por parte da quase totalidade dos empregadores e demais interessados, sendo, pois, integralmente respeitada a dignidade do trabalho humano.[23]


Luis Gurgel do Amaral também aponta, logo na introdução de seu livro, a importância do Tratado de Versalhes como marco para a legislação nacional sobre o tema:


Anos passados, causou-nos vexames a exibição, que nos foi feita no palácio da sociedade das Nações, em Genebra, dos mapas, onde se inscrevem as convenções e recomendações adotadas pela Organização Internacional do Trabalho, e que os países membros se comprometem a ratificar. Horizontalmente, indicam-se as convenções e recomendações; verticalmente, os países-membros. No encontro das linhas, um SIM ou um NÃO, conforme esses países vão ratificando, ou não, aquelas convenções e recomendações.


Quanto a todas elas, a linha correspondente ao Brasil recebia o mesmo NÃO invariável e constrangedor. Ou não ratificara, ou não comunicara a ratificação.


Hoje a coisa é bem diferente. A legislação social brasileira é abundante, reiterada e solícita. Estamos rigorosamente dentro dos lineamentos ditados pela OIT.


Essa atividade, por parte do Poder público, despertou o interesse geral pelas questões sociais. De resto, os milhares de funcionários e diretores de institutos e caixas, e de lideres classistas, necessitam imprescindivelmente conhecer a correlação entre as questões sociais presentes e as que lhes deram origem. Mais: a entrosagem da legislação social brasileira com a geral, dirigida pela OIT. Alguns críticos precisam saber que certas leis nacionais, contra as quais debateram, resultam de compromissos assumidos nas Conferências do Trabalho e correspondem à orientação internacional, adotada de modo generalizado”[24].


José Martins Catharino é um dos juristas que explicitamente se recusa a utilizar como marco da História do Direito a positivação estatal da década de 30, em seu manual da década de 80. Diz o autor:


O Direito do Trabalho é produto ocidental, iniciado sob a forma de leis esparsas e de restrito alcance. Fatos e idéias, interdependentes e específicos, deram-lhe vida. O brocardo romano ex facto ius oritur (o direito – a lei- nasce do fato) é, apenas parcialmente certo, pois o direito integralmente considerado, não é mero produto reflexo e automático da realidade. É, também, fruto de aspirações justiceiras e de pensamentos humanos. Da razão e do sentimento. No curso histórico, fatos podem ser a causa principal de idéias, sendo a recíproca verdadeira.


Poucos opressores e muitos oprimidos sempre houve. O Homo sapiens ainda não deixou de ser, mais ou menos, animal de presa, e como tal, existindo nas selvas naturais e nas artificiais, por si mesmo construídas. O tipo e o grau de opressão é que são variáveis, no tempo e no espaço, em função, da civilização e da cultura.


Dizer, simplesmente, que o Direito do Trabalho começou a se formas com a (e na) Questão Social é pouco. Insuficiente e impreciso.


A formação do direito do trabalho pode ser considerada como um capítulo da liberdade humana (…)”[25].


A periodização de uma História do Direito do Trabalho, bem como o estabelecimento de seu início, tem foco na legislação estatal positivada. Porém, entender que o Direito é sinônimo de legislação positivada é reproduzir um modelo de ciência do Direito, que entende que Direito é norma. Esse modelo ficou conhecido como modelo kelseniano, graças à grande difusão das idéias de Hans Kelsen, porém ele engloba muitos juristas defensores de diversos tipos de positivismo jurídico. É muito raro os juristas do Direito do Trabalho adotarem posicionamento diferente do modelo positivista, e isso faz com que a história do Direito do trabalho se limite a ser a história da legislação estatal sobre essa matéria.


Brígido Tinoco em seu livro “Fundamentos históricos do movimento social” não adota o marco da Revolução de 30, como início do Direito do Trabalho, destacando todo um direito do trabalho anterior, englobando o período colonial do Brasil[26]. Esta monografia de Tinoco diferencia-se também por não ser um manual e por não adotar a legislação como sinônimo de direito.


Uma das raras exceções modernas é Amauri Mascaro do Nascimento, em seu curso Direito do Trabalho, que se posiciona no sentido de entender o direito, segundo o conceito de tridimensional de Miguel Reale, ou seja, que o direito vai além da norma, englobando o fato e o valor. O entendimento de que o direito seja fato, valor e norma, leva o autor a ver a história do Direito com uma maior importância, uma vez que ela pode ser encarada como o fato, nesse tridimensionalismo.


Porém, a concepção de que o direito é norma e o direito do trabalho é a análise das normas estatais do direito do trabalho, não era a concepção dominante antes da década de 30. Assim, os manuais de direito do trabalho dessa época, não adotam uma análise da legislação, mas sim de problemas relativos ao mundo do trabalho, muitos deles até então, sem legislação específica. Essa postura dos manuais antigos decorre da pouca legislação estatal sobre o trabalho até aquela data e também por uma visão do Direito como Direito Natural. Há diferentes posturas entre os jusnaturalistas, porém todas elas se opõem a concepção de que o direito se reduz às normas estatais.


Há autores que estabelecem uma periodização maior da História do Direito do Trabalho e entre eles é comum a confusão de História do Trabalho e História do Direito do Trabalho. Muitos desses autores iniciam o capítulo inicial do livro de Direito do Trabalho fazendo um histórico do Trabalho, com afirmações gerais de como era o trabalho da pré-história, na Grécia ática, na Revolução Industrial inglesa, etc..


Este é o caso do manual de Alice Monteiro de Barros, que tem seu primeiro capítulo intitulado “Fundamentos e formação histórica do Direito do Trabalho, tendências atuais do Direito do Trabalho e flexibilização e garantias mínimas”. Esse capítulo busca tratar de questões relativas ao Direito do Trabalho antigas e atualíssimas, podendo ser divididas em dois blocos: “O trabalho na antiguidade, na Idade Média, O regime liberal, Conseqüências da revolução Industrial responsáveis pelo aparecimento do Direito do Trabalho” e “Evolução histórica do Direito do trabalho no Brasil e tendências atuais do Direito do Trabalho”. O primeiro bloco tem como foco principal a História do Trabalho e o segundo tem como foco a História do Direito do Trabalho no Brasil. Há uma diferença entre essas histórias quanto ao seu objeto, mas que não é apresentada claramente.


Há um outro tipo de periodização da História do Direito, que não é utilizada para tratar do direito no Brasil, mas no exterior. A classificação é apresentada por Délio Maranhão, em seu livro Direito do Trabalho e é atribuída à Granizo-Rothvoss, do livro “Derecho social de 1935” [27]. Assim é retratada o “processo de evolução histórica do direito do trabalho em quatro períodos: primeiro: até 1848, segundo: de 1848 a 1890, terceiro: de 1890 a 1919 e quarto: de 1919 até hoje[28]. Interessante notar que essa classificação aparecem em juristas posteriores, que muito provavelmente leram a obra do autor, pois era a doutrina mais atualizada na época de seus estudos (como parece ser o caso de Alice Monteiro de Barros).


A dificuldade de periodizar a História do Direito do trabalho é evidente em muitos manuais, que preferem uma periodização em poucos períodos, marcando no Brasil a importância da Revolução de 30 para o crescimento da legislação positivada. Há periodização tem muita relação com a questão de se fazer um histórico e não propriamente apresentar uma História do Direito do Trabalho. Esse desconforto pode ser visto nas preocupações de Nogueira Júnior, no livro Prática da legislação trabalhista, em que aponta que não poderá escrever uma História do Trabalho em maiores detalhes, pois isso foge ao propósito de seus estudos:


Uma história do trabalho, talvez comportasse uma grande divisão em períodos, subdividindo esses, de acordo com os diversos aspectos da matéria. Essas etapas poderiam ser indicadas, mais ou menos com os títulos seguintes: a) tempo em que todos os homens seriam livres, cada qual procurando, por si mesmo o alimento e organizando a sua própria defesa contra os animais bravios e a própria natureza; b) época em que, por causas diversas tiveram início as guerras, após as quais os prisioneiros eram exterminados e abandonados, ou serviram de alimento aos vencedores, c) período de maior progresso, no qual os vencidos se tornaram escravos dos vencedores; d) época em que o e escravo foi, progressivamente, ganhando liberdade, a princípio de restrições, convertendo-se de escravo a cervo da gleba ou de pequena manufatura; e) etapa em que, decadente o regime servil, começam a aparecer os rendeiros e os artesãos, presos, ainda a certos poderes superiores; f) época do trabalho organizado em corporações, através das quais toda a Idade Média, nas cidades e nos campos, pequeno proprietário; g) advento do liberalismo econômico e supressão do regime corporativo medieval; h) reação contra a má sorte dos obreiros, frente ao regime, absoluto da oferta e procura; i) concatenação da doutrina protetora, corporificada do Tratado de paz de 1919; j) aplicação dos preceitos recomendados ao mesmo pacto, alcançando até os nossos dias.


Não vamos, porém, escrever uma história do trabalho, nem teríamos a pretensão de fazê-lo. Queremos, tão somente, numa síntese, apenas objetiva, dar uma idéia, aos que por ventura não a tenham, do que foi o movimento trabalhista, desde os tempos em que já encontrávamos os povos organizados politicamente e, quiçá, também economicamente.


O direito social, na judiciosa expressão de Millerand, o novo direito, teve início, como preocupação governamental, a partir da segunda metade do século passado.


No tocante ao assunto, podemos, tão somente com o fim de separar as etapas desse movimento, distinguir, em largos traços, as idades: antiga, média, moderna e contemporânea, caracterizadas, respectivamente, pela escravidão, trabalho organizado em corporações, liberdade plena de contratar, e intervenção do Estado, submetendo o trabalho a leis positivas”[29].


O autor parece deixar claro que o trabalho do jurista nesses textos não se confunde com o historiador, que é retratado como um estudo mais detalhado. Porém, mais uma vez é possível ver a confusão entre fazer uma historia do Trabalho e uma história do Direito do Trabalho.


A mesma preocupação esta presente no texto de Segadas Vianna para o livro coletivo Instituições de Direito do Trabalho. O autor começa o primeiro capítulo, denominado de ‘Antecedentes Históricos’, apresentando em rápidas pinceladas alguns aspectos do mundo do trabalho, utilizando-se da divisão de história em grandes saltos (trabalho na Grécia antiga, nos tempos medievais, na Idade Moderna e após a Revolução Francesa). Cada item não é tratado por mais do que um ou dois pequenos parágrafos e não há referência das fontes consultadas para esses dados gerais[30]. Isso porque como o próprio autor afirma, essas são ‘considerações preliminares’[31] e justifica porque não se alonga:


Feito esse rápido bosquejo, compre ressaltar que não caberia, num trabalho como o nosso, o estudo de todos os fatos, de todos os atos jurídicos, de todas as classes de leis, que direta ou indiretamente, se relacionassem com o trabalho. Se, inegavelmente, isso nos levaria às fontes mais primitivas do Direito do Trabalho, impediria, por outro lado, de deter mais cuidadosamente no exame dos reais antecedentes, isto é, daqueles que, pela sua influência, verdadeiramente, vieram a dar um sentido social e humano e finalmente jurídico na conceituação e valorização do trabalho.


Teríamos de afundar na pesquisa de elementos que disseram respeito ao trabalho da construção das pirâmides do Egito e mesmo mais recentemente, nas palavras de Aristóteles ou então na doutrina de Cristo, pegando a dignidade do trabalho mais humilde. Iríamos examinar o Direito Romano, nos princípios existentes no ‘jus civile’, fixando a ‘locatio conductio operis’ e a ‘locatio conductio operarum’, verificando que ainda estes estavam muito distanciados do sentido com que encaramos a existência de um Direito do Trabalho.


Fosse este estudo especializado sobre a história do problema social e de suas soluções legais e então poderíamos nos deter nos códigos dos últimos tempos da Idade Média e do começo da Idade Moderna. Estudaríamos o ‘Fuero Viejo’ e as ‘Partidas’ etc. referidos por Botija notando que o primeiro suprimia o trabalho nos domingos e dias de festa (Lei. 6, titulo 9, livro XII) e que o que é mais curioso na ‘Novíssima Recomplilacion’, a ordenança de Enrique ii, de Burgos, estabelecia garantias sobre o pagamento de salários e fixava sua variação em relação ao custo de alimentos.


Nada disso era, entretanto, realmente Direito do Trabalho, porque a fermentação que daria razão de ser para seu aparecimento só se começaria a sentir no final do século XVIII, com a revolução política e a revolução industrial ou técnico-econômica. Com aquela, o homem tornava-se livre, criava ‘o cidadão como categoria racional na ordenação política da sociedade’; na outra, transformava-se a liberdade em mera abstração, com a concentração das massas operárias sob o jugo do capital empregado nas grandes explorações como unidade de comando”[32].


Segadas Viana busca fazer uma história do trabalho em poucas páginas, como introdução a um livro de Direito do Trabalho, não tratando propriamente de uma história do Direito do trabalho “no mundo” ou mesmo “não brasileira”, para se contrapor ao capítulo seguinte sobre o Direito do Trabalho no Brasil. A tarefa de Segadas Viana como ele próprio afirma não pode ser realizada, pelo menos no que tange apresentar uma história do trabalho, mesmo assim, o autor apresenta idéias gerais sobre o tema. Essa preocupação de ligar os acontecimentos históricos com a legislação está presente nesse capítulo que fala do mundo do trabalho e também no que trata do direito do trabalho brasileiro.


Essa negação do direito do trabalho para a década de 10 do século XX tem encontrado ainda muito eco entre os manuais de direito. Porém, não é uma posição hegemônica entre os estudiosos, em especial alguns historiadores, que buscam apontar esse apagamento da história dos direitos operários, como faz Sérgio Pinheiro no seguinte trecho:


“Já nos anos 1910, o Estado começara a fazer aberturas em relação à classe operária e nos anos 1920 se tornaram mais freqüentes os ensaios de legislação trabalhista. Ao contrário do que fez crer a visão idealizada da revolução de 1930, nem tudo nesse campo começou a partir dessa data”[33].


b) O mito da “outorga do Direito do Trabalho” nos manuais de Direito do Trabalho


Alguns manuais de direito do Trabalho ainda apresentam o “mito da outorga do Direito do Trabalho”, que afirma que a legislação trabalhista foi “dada” por Getúlio Vargas ao povo brasileiro na década de 30. Trata-se de uma significação imaginária, mas do que propriamente um mito, no sentido de uma fábula ou uma inverdade[34], uma vez que ela não visa apenas mascarar toda a luta dos trabalhadores no início do século XX até os anos 20, com as greves, propostas de legislação e as propostas anarquistas e socialistas para o mundo do trabalho, mas criar uma história em que Getúlio Vargas é o protagonista do Direito do trabalho e não os operários.  Este mito da “outorga” não está presente nos manuais de direito do trabalho/operário anteriores à década de 30, em que o movimento operário da Primeira República recebe pelos autores um tratamento diferente.


A repetição do mito da outorga em diversos manuais de Direito do Trabalho, com o escamoteamento do movimento operário na Primeira República, ocultou a luta por direitos dos operários e uma luta que não necessariamente passava pelo Estado e suas leis, uma vez que entre os anos 1917-1920 os operários de sua maioria anarquista, não viam no Estado um portador de legitimidade para obtenção de direitos. Essa posição dos manuais dificilmente é critica quanto ao “mito da outorga” do direito do trabalho. Um dos trabalhos que apresente postura crítica é o de Evaristo Morais Filho. O mito da outorga do Direito do Trabalho, segundo Evaristo de Morais Filho, foi elaborado na década de 30 e teve como primeiro questionador, o próprio Evaristo, que afirma:


“(…) diz respeito ao mito da outorga da legislação do trabalho, mito este construído e cultivado pelos revolucionários de 30 e principalmente a partir de 37, com o Estado Nacional. Chegou-se às raias do delírio, com arregimentação de políticos, ministros, agentes de propaganda e professores. Não podemos silenciar que nos coube a honra de haver iniciado essa derrubada. O nosso O problema do Sindicato Único no Brasil, aparecido em princípios de 1952, leva por motivação justamente o combate ao mito”[35].


No livro “O roubo da fala”, Adalberto Paranhos faz um estudo da construção do mito da outorga, apontando como esse mito desencadeou uma série de outros mitos em torno da figura de Vargas. No entender de Paranhos o “mito da outorga” visa mascarar a existência da luta operária por direitos e colocar em seu lugar o herói criador da legislação[36]. O objetivo do trabalho não é analisar o mito da outorga que é construído depois do período delimitado da pesquisa. A construção desse mito foi estudada em detalhe por Adalberto Paranhos, conforme livro já citado. O que importa aqui é apontar como esse mito impregnou os manuais de direito e como a transmissão de um conhecimento do direito operário é influenciada hoje por esse mito da outorga.


O “mito da outorga” está presente nos manuais, como no texto de Segadas Vianna no livro coletivo “Instituições do Direito do Trabalho”, que afirma que a legislação trabalhista brasileira tem como caráter ser dada ao povo e não conquistada. Porém, Segadas Vianna aponta para a importância de outras figuras, além de Vargas para a formação do Direito do Trabalho, como Lindolfo Collor e outras pessoas que formaram seu ministério.


Curioso é de se notar, entretanto, que a Revolução de 1930, se trouxe no seu bojo uma série de reformas sócias, se o programa de seu chefe registrava um vasto programa de benefício aos trabalhadores foi deflagrada por motivos eleitorais (…) Vencedora a Revolução, logo após foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, entregue à inteligência lúcida de Lindolfo Collor. Estudioso e conhecedor do problema social, Collor tinha a mesma orientação política de Getúlio Vargas e se apresentou a por em execução uma série de medidas legais destinadas a colocar a nossa legislação trabalhista vigente nos países em que o proletariado era mais beneficiado.


Não se deve esquecer que para essa esplêndida obra de criação legislativa, Collor contou com a direta participação de Evaristo de Moraes, Joaquim Pimenta, Agripino Nazareth e Deodato Maia”[37].


Orlando Gomes em seu manual Direito do Trabalho afirma o “mito da outorga” do Direito do Trabalho, mas faz algumas reservas. A lei trabalhista é entendida como uma lei dada ao povo, em suas palavras: “dádiva da lei”. Porém, o autor, não nega a existência de movimentos de luta por direitos, como, por exemplo, os grevistas, que se pressupõe que sejam o das greves de ocorridas entre 1917 a 20, como se pode ver no seguinte trecho:


“No Brasil, a história do Direito do Trabalho não apresenta as mesmas características. País de imensa área territorial e em grande parte situado entre as áreas subdesenvolvidas do mundo, e em parte de médio desenvolvimento, não teve tempo histórico, ainda para preparar e enfrentar os grandes problemas que alhures surgiram com a Revolução Industrial. A rarefação de sua população relativa, a escassez de seus centros habitacionais, os resíduos do tradicional sistema colonial, a lenta formação de um mercado interno auto-suficiente, a persistente dependência de um comércio exterior de base colonial, uma infra-estrutura industrial e profissional rarefeita e ganglionar não tem permitido ao nosso país criar um Direito do Trabalho com as mesmas características dos povos europeus e alguns americanos. Já se disse, não sem certa razão, que o nosso Direito do Trabalho tem sido uma dádiva da lei, uma criação de cima para baixo, em sentido vertical. Em muitos casos tem sido assim realmente. Todavia, não se devem olvidar que em muitos outros, mesmo antes da Revolução de 1930, o nosso incipiente Direito do trabalho conheceu sua fase de auto-afirmação, numa inequívoca demonstração histórica de uma consciência de classe, que se delineava, desde o início do século. Ainda aqui temos a confirmação da prioridade cronológica do direito coletivo sobre o individual do trabalho. As greves que se deflagraram no Rio, na Bahia, em São Paulo e outros pontos do território nacional, desde o início do século, são bem a confirmação disso”[38].


Evaristo de Morais Filho é um dos que afirmam explicitamente entre os juristas a criação desse mito e apesar de criado na década de 30, ainda continua vivo em muitos manuais. Essa continuação implícita do mito pode ser vista pela desconsideração do período anterior aos anos 30 de muitos manuais de Direito do Trabalho:


“Por este rapidíssimo escorço histórico dos nossos movimentos sociais proletários antes da Primeira Grande Guerra e das leis trabalhistas que foram então promulgadas, já se pode ver que constitui exagero e grave ofensa aos trabalhadores brasileiros a constante afirmativa de que nada existiu antes de 1930, que toda a legislação a favor dos operários lhes fora graciosamente outorgada, sem nenhuma luta nem manifestação expressa dos mesmos de que a desejavam. Justiça seja feita aos grandes idealistas, intelectuais e juristas, que tomaram o partido dos operários; justiça se faça àquelas massas anônimas, que, mesmo sem imposto sindical, sem proteções ministerialistas, sem falsos líderes sindicais, presos ao Ministério do Trabalho, sem o menor espírito de iniciativa. Se movimento sindical houve no Brasil, à maneira da história da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, esse movimento se deu exatamente nesses primeiros anos adversos. A classe operária e seus líderes sabiam bem o que queriam”[39].


O que Evaristo de Morais Filho denuncia nesse trecho é justamente o apagamento e a construção de outra história por parte dos vencedores, que ficará marcada nos manuais de Direito do Trabalho. Esse mito da outorga permanece ainda hoje em alguns manuais, direta ou indiretamente, auxiliado também pela forma que esses manuais constroem aquilo que chamam de uma História do Direito do Trabalho, que dificilmente é crítica, dificilmente é baseada em fontes primárias e que repete o que outros manuais mais antigos apresentavam. A tradição jurídica auxilia que o mito da outorga ainda seja ensinado em muitos manuais.


O “mito da outorga” não está somente presente nos manuais, mas também na fala dos juristas em entrevistas, palestras e artigos. Sussekind, um dos juristas que participa da compilação que leva à CLT, chega a repetir o discurso de formação do direito do trabalho como um direito heterônomo, ou seja, não criado pelos próprios trabalhadores, mas sim idealizado por Getúlio Vargas. Sussekind desconsidera toda a luta operária da primeira República, desconsidera os projetos de lei na luta por direitos, e também desconsidera a legislação existente no período, como as leis estaduais que regulavam a proteção ao operário. Olhando apenas para uma legislação federal, que a época não tratava de trabalho por não ser de sua competência, Sussekind pode escrever uma história que o coloca como escritor de uma legislação idealizada por uma espécie de herói. Seu discurso é importante, pois não é somente dele, é de grande parte dos juristas que lidam com o direito do trabalho. Assim diz Sussekind:


“Há posições por aí muito radicais sobre a legislação pretérita: uns dizem que não existia nada, outros dizem que já existia muita coisa. Não. Existia pouca coisa. Afonso Pena, por exemplo, em 1907 fez uma lei sindical muito boa, só que não pegou, porque sob o prisma sócio-econômico não havia condições para a sindicalização. Éramos um Brasil enorme, de território continental, com núcleos isolados de operários. E sabido que a sindicalização depende muito do espírito sindical, que por sua vez depende da concentração operária, que depende da indústria. Não havia indústria em 1907. Então, realmente, surgiram sindicatos, mas muito poucos, não uma organização sindical. Nós tivemos a Lei Elói Chaves, de 1923, criando as caixas de aposentadorias e pensões dos ferroviários, que foram o inicio da Previdência Social no país. Essa é uma lei importante, não pela extensão, que alcançava só os ferroviários, mas por ser o primeiro passo de um sistema. Em 1927, a Lei 5.109 criou as caixas dos marítimos e portuários, estendendo um pouco a Previdência. Essa e duas leis deram estabilidade de dez anos ao pessoal segurado das caixas. E tivemos só mais uma lei, acho que de 1927, do Artur Bernardes, sobre férias, mas era uma lei que também não foi aplicada, porque não havia nem Ministério do Trabalho para fiscalizar, nem tribunal para reclamar. De maneira que concediam férias os que queriam. Quem mais legislou foi realmente Getúlio. Não foi uma legislação conquistada de baixo para cima. Ela veio de cima para baixo, foi o que se chamou de outorga da legislação. E isso foi feito com uma dupla intenção. A primeira era mesmo evitar que lutas sangrentas viessem a ser travadas para conquistar leis. Nós tínhamos o exemplo de algumas greves importantes de anarquistas, sobretudo em São Paulo, mas também no Rio, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, decorrentes de uniões fabris criadas por influência de imigrantes italianos e espanhóis. Getúlio temia os movimentos violentos,como os que ocorreram na Europa e em alguns países como o México e a Argentina. A segunda preocupação dele era criar um clima favorável à industrialização do país. Esses foram dois pontos que ele sempre pretendeu atingir.”[40]


 Entende-se que o mito serviu como um instrumento fortalecedor da figura de Vargas, e que ainda hoje é utilizado para o‘apagamento’ das lutas e conflitos sociais. É nesse sentido a fala de J. D. French:


De fato, no discurso mítico do trabalhismo o mito da doação ocupou lugar central. Getúlio Vargas, o líder populista de maior prestígio que o Brasil já conheceu, teve sua trajetória política particularmente associada à ‘outorga’ das leis ‘protetoras’ do trabalho, ponto de honra na imagem popular que dele se projetou. O mito da doação se propagou com a maior intensidade, principalmente a partir do ‘Estado Novo”, e pela sua difusão se tentou crer que a legislação social não passaria de uma dádiva caída dos céus getulistas sobre a cabeça dos trabalhadores brasileiros. (….)


Mas, convém frisar, a ideologia do trabalhismo não operou no vazio. Sua força, historicamente, adveio da ‘concessão’ de direitos, ou melhor do atendimento de interesses mais ou menos imediatos ou a certas aspirações das classes trabalhadoras, mesmo que esse atendimento fosse parcial e integrando a uma estratégia geral que fugia aos propósitos de amplos setores do movimento operário.


Vista desse ângulo, a ideologia do trabalhismo não representa tão-somente uma mistificação ideológica, nem se reduz a uma criação artificial gerada pela mera demagogia (….)


De toda maneira, é inegável que a ‘concessão’ dos direitos sociais, propagandeada como obra da ‘generosidade’ e da ‘capacidade de antevisão’ de Vargas, cumpriu entre outras, a função de amortecedor do impacto das lutas de classes. Por outras palavras, reforçou a estratégia de tentar apagar da memória política dos trabalhadores as lutas que, desde o século passado, vinham desenvolvendo pelo reconhecimento de seus direitos, lutas essas que assinalaram, mais ou menos profundamente, a ação do proletariado urbano durante toda a Primeira República até meados da década de 30. Nesse sentido, ao promover a glorificação do Estado – e de Vargas, sua personificação- como o agente que zela e vela pelos interesses dos trabalhadores, a ideologia do trabalhismo alimentou a reafirmação da incapacidade política das classes trabalhadoras”[41].


A construção desse mito da outorga não tem respaldo na época estudada, em que o Estado não tem uma política de legislação protetiva do direito dos operários e dos trabalhadores, em sentido amplo. Esse mito foi construído depois, durante o governo Vargas, porém os livros de Direito do Trabalho recente tem adotado sem muitas restrições. Uma das pessoas que ajuda a elaborar esse mito é Oliveira Vianna, como aponta French:


“Os arquitetos e os ideólogos do regime, tais como Oliveira Vianna em 1939, repetiram com insistência a proposição de que a legislação social e trabalhista depois de 1930 era “uma iniciativa do Estado uma outorga generosa dos dirigentes políticos – e não uma conquista realizada pelas nossas massas trabalhadoras”. O Brasil podia afirmar com orgulho, insistia a propaganda  do governo, que era um país “onde os operários conquistaram tudo sem um só ato de violência (e) sem ir às barricadas” por conseqüência de uma “concessão espontânea do Estado”. E tais opiniões não se limitavam aos agentes pagos do governo; observadores favoráveis a Vargas, nos anos 30 e mais tarde, também com concordaram que essas iniciativas tinham sido outorgadas sem que houvesse demanda por parte dos operários”[42]


Oliveira Vianna não credita ao movimento operário da Primeira República um papel de relevância para a conquista de direitos, uma vez que entende o direito como legislação e esta como construção de grandes líderes e não uma construção coletiva. O mito da outorga, que se propagou nos manuais de direito, tem uma de suas inspirações no seguinte pensamento de Oliveira Vianna:


“Com sua visão realista e pragmática, ele soube colocar a questão social dentro do quadro das nossas realidades. Com o seu claro senso das possibilidades brasileiras, deu ao tremendo problema da reorganização e reabilitação das massas trabalhadoras a solução mais harmoniosa, mais sensata, mais justa, mais consentânea, não só com a nossa estrutura econômica e social, como com a nossa própria índole nacional – com as condições específicas da nossa própria psicologia coletiva. O historiador futuro, ao estudar este período agitado da nossa história, não poderá negar ao Presidente Vargas esta glória, nem esta benemerência: a obra social da Revolução, das mais belas que se tem realizado em nosso povo é dele: reflete – na sua moderação no seu bom senso, no seu equilíbrio, no seu extraordinário alcance humano – a índole do homem que a presidiu e a inspirou, calma, prudente, imparcial, generosa e justa.”[43]


Reconstruir a história do movimento operário anterior aos anos 30 é uma forma de trazer à tona as lutas políticas pelos direitos dos operários e de reescrever a história do direito do trabalho, relativizando o mito da outorga das leis trabalhistas. É uma forma também de dar legitimidade aos operários como construtores de seu próprio direito, uma vez que grande parte dos direitos reivindicados durante os anos de 1917-1920 e os projetos de lei feitos nesse período, parece servir de inspiração para as leis posteriores. Desconstruir o mito da outorga é dar voz àqueles que perderam sua voz, como defende  Adalberto Paranhos em seu livro “O roubo da fala”. Esse autor ressalta como o mito da outorga foi utilizado inclusive para diminuir o papel da luta política:


“De fato, no discurso mítico do trabalhismo o mito da doação ocupou lugar central. Getúlio Vargas, o líder populista de maior prestígio que o Brasil já conheceu, teve sua trajetória política particularmente associada à ‘outorga’ das leis ‘protetoras’ do trabalho, ponto de honra na imagem popular que dele se projetou. O mito da doação se propagou com a maior intensidade, principalmente a partir do ‘Estado Novo’, e pela sua difusão se tentou crer que a legislação social não passaria de uma dádiva caída dos céus getulistas sobre a cabeça dos trabalhadores brasileiros. (…) Mas, convém frisar, a ideologia do trabalhismo não operou no vazio. Sua força, historicamente, adveio da ‘concessão’ de direitos, ou melhor do atendimento de interesses mais ou menos imediatos ou a certas aspirações das classes trabalhadoras, mesmo que esse atendimento fosse parcial e integrando a uma estratégia geral que fugia aos propósitos de amplos setores do movimento operário. Vista desse ângulo, a ideologia do trabalhismo não representa tão-somente uma mistificação ideológica, nem se reduz a uma criação artificial gerada pela mera demagogia (….) De toda maneira, é inegável que a ‘concessão’ dos direitos sociais, propagandeada como obra da ‘generosidade’ e da ‘capacidade de antevisão’ de Vargas, cumpriu entre outras, a função de amortecedor do impacto das lutas de classes. Por outras palavras, reforçou a estratégia de tentar apagar da memória política dos trabalhadores as lutas que, desde o século passado, vinham desenvolvendo pelo reconhecimento de seus direitos, lutas essas que assinalaram, mais ou menos profundamente, a ação do proletariado urbano durante toda a Primeira República até meados da década de 30. Nesse sentido, ao promover a glorificação do Estado – e de Vargas, sua personificação- como o agente que zela e vela pelos interesses dos trabalhadores, a ideologia do trabalhismo alimentou a reafirmação da incapacidade política das classes trabalhadoras”[44].


c) O mito do homem cordial e a paz social nos manuais de Direito do Trabalho


O “homem cordial” é repetido por diversos manuais de direito do trabalho. A idéia de que o brasileiro não é um povo de lutas, nem de luta de classes, está presente nos manuais de direito, mas também já se encontrava nas em discussões dos jornais da época da Revolução de 1917. O homem cordial é encontrado na obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Nessa obra o homem cordial, não quer dizer homem cordato, mas sim homem que é guiado pelas emoções, pelo coração (core). A expressão empregada pelo autor foi formulada por Roberto Couto[45] e depois utilizada por muitos estudiosos. Sérgio Buarque de Holanda sintetiza o homem cordial nas seguintes palavras:


“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças (…). Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência- e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula”[46].


A idéia presente em um dos principais manuais de Direito do Trabalho, ‘Instituições de Direito do Trabalho’, cuja parte histórica foi escrita por Segadas Viana apresenta a concepção do homem brasileiro como avesso a lutas para implantação do Direito do Trabalho. Segadas Viana entende que os direitos trabalhistas são conquistados de duas formas diferentes, uma por um movimento ascendente e outra de movimentos descendentes. Os primeiros são aqueles movimentos como luta, violência no mundo do trabalho, que se caracterizam:


“(…) pela coexistência com uma história social marcada pela luta de classes, com trabalhadores fortemente apoiados por suas organizações profissionais, com espírito de classe bem nítido e com existência de indústrias ou atividades produtivas arregimentando grandes massas de trabalhadores”[47].


Para Segadas o Brasil é um país de leis trabalhistas de movimento descendentes, que tem por características:


“a) inexistência de luta, sem que por isso indique a ausência de uma questão social, embora latente; b) falta de associações profissionais de expressiva representatividade, c) os grupos sociais são ainda inorgânicos; d) não há atividades econômicas que exijam massas proletárias densas”[48].


E fundamenta sua posição com os seguintes “fatos históricos”:


No tempo do Império essas eram as condições de nosso país: as atividades agrícolas eram realizadas pelos escravos e estes nem ao menos se sentiam capazes de ser possuidores de qualquer direito; os casos registrados de rebelião, de fuga, de organização de confraria de pretos forros, tudo isso tinha como causa apenas o desejo de libertarem-se de alguns raros senhores violentos, mas nunca o anseio de uma igualdade jurídica, de obtenção de direitos e regalias, de que os escravos jamais tinham ouvido falar. Não existiam indústrias desenvolvidas e, salvo algumas, de instalações e métodos primitivos de cerâmica e de madeira, tudo se fazia com um artesanato ainda incapaz de ser organizar.


O próprio problema da escravidão foi agitado e debatido por uma elite intelectual, focalizando o seu aspecto desumano e a posição de inferioridade em que essa mancha colocava nosso país diante dos outros povos civilizados. Mas suas raízes vinham de 1823, com a proposição de José Bonifácio à Constituinte nacional. E a abolição da escravatura não teve, salvo na economia de senhores de escravos, uma repercussão nacional de caráter político ou social. Ato de generosidade da Princesa Isabel resultou mais de seu coração humanitário e da ação de alguns oradores e escritores, do que uma pressão da opinião pública, que não chegou a se contaminar pela campanha abolicionista.


Nos primeiros tempos da República, também os debates sobre o problema social significavam mais o reflexo das leituras sobre o mundo europeu do que a observação de fatos verificados no país. E, se eles aconteciam, suas proporções eram tão pequenas que não justificavam afirmar-se existir ‘problema social’.


Com o desenvolvimento industrial, mesmo na sua fase inicial, começava a se fazer sentir o desajustamento entre as condições normais de vida do trabalhador e aquelas a que se deveria ter direito. Inexistia, entretanto, o espírito de classes e ainda não se haviam formado as concentrações de população operária; as reivindicações que se apresentavam, num e noutro ponto do país, eram atribuídas a agitações de anarquistas. Os acontecimentos dramáticos de Pernambuco, nos quais teve heróica atual o Professor Joaquim Pimenta defendendo os trabalhadores, não chegaram a emocionar o proletariado do resto do Brasil. Nem as greves do Distrito Federal e de São Paulo tiveram o efeito de se transformar em ‘movimento ascendente’, capaz de provocar o aparecimento de leis, não obstante todos esses acontecimentos se terem verificado depois da primeira grande guerra mundial.[49]


Segadas Viana defende a idéia de que o povo brasileiro não teve participação efetiva na elaboração das leis, assim como ocorreu em outros países, como, por exemplo, a Inglaterra, que se caracteriza por ser um país “movimento ascendente”. Assim, o Direito do trabalho brasileiro soa para o autor como uma idéia importada, uma vez que aqui não existiam os mesmos problemas, nem o espírito de luta no mundo do trabalho. Não é somente o movimento do mundo do trabalho que é descaracterizado em sua luta, uma vez que o autor traça o mesmo paralelo para o movimento de insurreição dos escravos e para o movimento abolicionista. As mudanças que aconteceram na legislação aparecem como obras de uma elite esclarecida, benevolente e preocupada com o atraso do Brasil frente a outros países.


Postura semelhante é encontrada também na posição de Oliveira Vianna, que foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e comércio. No prefácio do livro de Niemeyer, um técnico de seu ministério, Curso de Legislação Brasileira do Trabalho de 1936, defende que no Brasil não há luta de classes, logo o Direito do Trabalho não pode ser entendido como na Europa. Diz Oliveira Vianna:


“O problema social é o problema fundamental desta civilização, a que estamos incorporados, como uma grande nação, que somos, pela extensão de seu território, pela grandeza da sua riqueza e da sua cultura. Problema fundamental da civilização, a que pertencemos, não pode deixar de ser também nosso. Temos, justamente por isto, que resolvê-lo. Simplesmente, a solução que lhe devemos dar não pode ser idêntica à que lhe estão dando os outros povos, de condições geográficas, econômicas e sociais diferentes das nossas. Não tendo nós, como eles nenhuma tradição de luta de classes, é claro que não podemos colocara o nosso problema social em termos de luta de classes, com o objetivo final da eliminação de uma delas”[50].


Em alguns manuais mais antigos de Direito do Trabalho há a defesa de que as leis trabalhistas é que provocaram as lutas sociais no Brasil. Esse manual é o ‘A indústria em face das leis do trabalho’ de 1935 de Pupo Nogueira, secretário geral da federação das indústrias do Estado de São Paulo e do sindicato patronal das indústrias têxteis do Estado de São Paulo. O autor também defende a idéia de que as lutas fazem parte de uma influência dos estrangeiros que aportaram no Brasil nos fins do século XIX e início do XX:


“(…) a nossa legislação social tem o caráter de ousada e inábil enxertia e ela foi o verdadeiro nascedouro de lutas de classe que se agravam à proporção que as leis se avolumam.


Escrevendo sobre matéria apaixonante como é a legislação social trabalhista em país novo, em plena fase de industrialização, com a sua formação étnica agravada pela persistência de correntes imigratórias que arrastam para os nossos portos as raças mais díspares do mundo, não poderia resistir ao desejo de evocar em largo esboço como surgiram as lutas de classe e quais as suas conseqüências na sociedade moderna.”[51].


Há manuais de Direito do Trabalho que apresentam uma versão católica do direito do trabalho, com base nos ensinamentos da Rerum Novarum, afirmando que o Brasil não é um país com luta de classes. Esse é o caso do Péricles de Souza Manso “Um Direito Novo”. O autor desconsidera as lutas que ocorreram para a efetivação dos direitos dos trabalhadores, entre elas as greves gerais do início do século XX, os acalorados debates legislativos para implantação das leis do trabalho e da atuação dos anarquistas e socialistas em busca da melhora das condições de trabalho:


“No Brasil, as classes trabalhadoras não necessitaram do emprego da violência para realização dos seus justos direitos. Antes, dada a boa índole do povo brasileiro, a legislação social antecedeu, veio a vanguarda das suas solicitações”[52].


Essas idéias estão presentes em diversos manuais, seja explicitamente ou não. Há autores que não entram nessa discussão, em especial os modernos. As lutas sociais antigas não são muito discutidas, assim como as mais recentes, em especial no Brasil. Apesar da importância do movimento sindical da década de 80 em São Paulo, como um movimento de conquista de direitos dos trabalhadores, não se encontrou um manual que citasse esse movimento. São raros os manuais que se posicionam explicitamente contrários a noção de que os brasileiros não são um povo de lutas sociais. Dentre eles está Délio Maranhão, em seu livro “Direito do Trabalho”:


“No Brasil, não é certo, como se afirma constantemente, que o Direito do Trabalho não teve, na sua formação histórica, o impulso dos movimentos operários. Não é admissível, depois da notável obra de Evaristo, insistir-se em tal afirmação. O ano de 1919 foi de greves e agitações operárias em quase todos os grandes centros do país. De janeiro deste ano é o Decreto n. 3724 sobre acidentes do trabalho, e de 1923, a chamada Lei Elói Chaves, que instituiu as Caixas de aposentadoria e pensões dos Ferroviários. Em abril do mesmo ano foi criado o Conselho Nacional do Trabalho. E as férias de 15 dias resultaram de lei de 1925. Com a revolução de 1930, surge o Ministério do Trabalho e inauguram-se órgãos parajudiciais competentes para a apreciação dos dissídios trabalhistas (1932)”[53].


O livro “Sociologia econômica e jurídica do trabalho” de Joaquim Pimenta não é um manual de Direito do Trabalho, mas aponta para muitos mitos que serão utilizados por outros manuais. Pimenta aponta também para o mito do homem cordial que aceita a legislação trabalhista como uma dádiva que o povo esperava[54] e não via uma verdadeira luta de classes no Brasil, porém, não deixa de ressaltar o papel importante das greves e da mobilização social para a busca de direitos, como no texto abaixo:


“Não tínhamos, é verdade, uma “luta de classes”, com os seus aspectos e episódios sombrios, qual se desenrolava nos grandes centros industriais, com graves ameaças da ordem jurídica e das instituições a que serve aquela de elo vital; mas também não era de concórdia o ambiente das nossas fábricas e usinas; dissenções e atributos ali denunciavam o mesmo fenômeno universal, se bem que ainda em ensaios, de uma profunda desigualdade e conseqüente choque e interesses, do qual o Estado só tomava conhecimento quando explodia em greves, para reprimir, ou antes para mais o estimular e predispor, com o emprego da força, a novas e irrefreáveis explosões.”[55]


4. O movimento operário na Primeira República nos principais manuais e livros de Direito do Trabalho brasileiros


Apesar da importância do movimento operário da Primeira República para o direito do trabalho, nem todos os livros ou manuais de direito trazem referência a esse movimento que pela primeira vez apontou para a necessidade dos direitos dos operários. A atuação dos operários como autores de sua luta política e sujeitos de um direito autônomo, dificilmente é encontrada nos livros de direito, em que a história do direito do trabalho geralmente começa a ser contada a partir do grande fluxo de legislação na década de 30 e sua positivação em uma compilação em 43. As referências à greve de 1917 que é um símbolo da luta por direitos dos operários não são muitas, nem aparecem em todos os livros, em que é privilegiada a legislação, mas não o contexto social histórico que influenciou a criação dessas leis.


O texto de Amauri Mascaro do Nascimento para o livro “História do Trabalho, do direito do trabalho e da justiça do Trabalho” é um dos que apresenta explicitamente a greve de 1917 e comenta sobre os seus acontecimentos. Esse assunto é tratado na parte destinada à História do direito coletivo do trabalho. Isso tem uma importância especial, uma vez que o próprio direito coletivo é deixado de lado por muitos juristas, sendo que mesmo a greve é tratada no âmbito do direito individual do trabalho. Falar da greve no âmbito de um direito coletivo é dar uma importância maior ao tema, ou melhor, colocar a greve como um movimento de trabalhadores, levando a sério seus propósitos. Fazer uma história desse direito coletivo do trabalho não é algo comum entre os manuais. Um dos raros livros dedicado a estudar a história do direito coletivo do trabalho é de Azis Simão: “Sindicato e Estado” que trata das diversas greves ocorridas já no fim do século XIX e no início do XX. O autor deixa muito claro sua defesa dos direitos operários, que tem como algumas de suas fontes jornais anarquistas e socialistas do início do século XX no Brasil. Porém, o livro de Azis Simão, não é considerado um manual.


A parte que trata sobre a história do Direito coletivo do trabalho, traz referencia à greve de 1917. O autor fala das leis sindicais de 1903 e 1907, da influência do anarcosindicalismo, para depois partir para a fase maior do trabalho em que analisa a intervenção do Estado. Ao tratar da ação sindical antes de 1930, diz:


“Foi em 12 de julho de 1917, no entanto, que greve, de enorme repercussão, eclodiu em São Paulo. Iniciou-se no Cotonifício Rodolfo Crespi, no bairro da Mooca, quando os operários protestaram contra os salários e pararam o serviço. A fábrica fechou por tempo indeterminado. Os trabalhadores pretendiam 20% de aumento e tentaram acordo com a empresa, não o conseguindo. Diante disso, no dia 29 fizeram comício no centro da cidade. Aos dois mil grevistas juntaram-se, em solidariedade, mil trabalhadores das fábricas Jafet, que também passaram a reivindicar 20% de aumento de salário; em 11 de julho, o número de grevistas de várias empresas era de quinze mil; no dia 12, de vinte mil: os bondes, a luz, o comércio e as Indústrias de São Paulo ficaram paralisados. O movimento estendeu-se às empresas do interior e ao todo treze cidades foram atingidas. Os Jornalistas resolveram intermediar. No dia 15 de julho um acordo aceito para o aumento de 20% dos salários e garantia de que nenhum empregado seria despedido em razão da greve, e o governo pôs em liberdade operários presos com a condição de que todos voltassem ao serviço, reconhecendo o direito de reunião quando exercido dentro da lei e respeitando a ordem pública, além de se comprometer a providenciar o cumprimento de disposições legais sobre trabalho de menores nas fábricas, carestia de vida e proteção ao trabalhador”[56].


Amauri repete essas informações de seu livro Direito do trabalho, no qual se pode saber a fonte que utilizou para essas informações.  O autor utiliza como fontes para tratar das greves, em especial a de 1917, o livro República Velha de Edgar Carone.


“A ação dos anarquistas foi imensa, com reflexos no âmbito trabalhista, especialmente sobre o movimento sindical. No I Congresso Operário de 1906 predominou o pensamento anarquista, que preconizava a resistência do patronato, a oposição à beneficência, ao mutualismo ou ao cooperativismo, tidos como contrários aos interesses do operariado. Até 1920 os trabalhadores, em grande parte, eram influenciados pelos anarquistas, cuja preponderância é devida à origem dos imigrantes: Itália, Espanha, Portugal, etc. Os utópicos postulados anarquistas foram expostos no jornal A Plebe, publicado em São Paulo, durante algum tempo (…)”[57].


Essas informações serão repetidas em outros livros, muitas vezes não citando a fonte. Recorrentemente há informações que são retiradas de outros autores, que não são citações entre aspas, mas que parecem derivar de um resumo ou apropriação das idéias de outros autores. A referência à fonte não parece ser importante na construção desses “históricos”, em que as informações parecem ser dadas como sabidas por todos e o texto pretende uma rememoração. Trata-se de uma construção diferente da elaboração de uma pesquisa histórica.


Esse é o caso do trecho, sobre a greve de 1917 em São Paulo, presente no manual: Direito do Trabalho, de Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcanti, que é semelhante ao do Amauri Mascaro do Nascimento, que por sua vez cita Carrone, sobre esse mesmo assunto. Assim, diz Cavalcanti:


“Em 12/6/1917, na cidade de São Paulo, a eclosão de uma greve de grande repercussão, que se iniciou no Cotonifício Rodolfo Crespi, no bairro da Mooca, sendo que os operários protestavam contra os salários, paralisando os serviços. O movimento se alastrou, sendo que, aos dois mil grevistas do Contonifício, juntaram-se mil trabalhadores das fábricas Jafet. No dia 12 de julho, o número total de grevistas estava em torno de 20.000 trabalhadores, abrangendo várias atividades econômicas: os bondes, a luz, o comércio em torno das indústrias da capital paulista. O movimento chegou às cidades do interior, em torno de treze localidades. Houve o término da greve com a intermediação dos jornalistas com o aumento de 20% e a garantia de que nenhum trabalhador seria dispensado. Nos primórdios da República velha é inegável a influência dos imigrantes nos primeiros movimentos grevistas, dando-se origem ao movimento sindical”[58].


Outro autor que também faz menção aos acontecimentos da greve de 1917 é Otávio Bueno Magano, em seu Manual de Direito do Trabalho, em que trata das leis na década de 20 e ressalta as greves de 1917. O autor também cita historiadores que pesquisaram o período para construção de seu texto, fazendo a citação textual dos mesmos: Anarquistas e comunistas no Brasil de John Dulles (São Paulo: Nova Fronteira, 1973) e A classe operária no Brasil de Paulo Sérgio Pinheiro e Michael Hall (São Paulo: Alfa Omega, 1979). O autor faz menção à greve, no seguinte trecho:


As medidas legislativas, acima alinhadas, algumas das quais de cunho acentuadamente intervencionista, como a de acidentes do trabalho, de 1919, a de aposentadoria, de 1923, e a de férias, de 1925, foram se fazendo necessárias em virtude da crescente agitação social provocada principalmente pela atuação de imigrantes imbuídos de idéias anarquistas e socialistas.


O movimento em causa se exteriorizou de diversas maneiras, através da fundação de entidades representativas de trabalhadores, das quais a de maior relevo foi a COB (Confederação Operária Brasileira, de março de 1908); através da realização de congressos operários, merecendo especial menção o primeiro Congresso Operário Brasileiro, de 1906, o Congresso operário de 1912, realizado sob os auspícios de Mario Hermes da Fonseca, filho do então presidente da república e o Segundo Congresso operário Brasileiro de 1913; através da eclosão de inúmeras greves, particularmente as de 1917 e 1919; através da multiplicação das publicações operárias, como ‘Avante’, ‘A voz do trabalhador’, ‘A Plebe’ (…)”[59].


Outro autor que também cita a importância da greve de 1917 e dos projetos de lei nesse período é Jorge Souto Maior, em um capítulo denominado: Breves considerações sobre a história do Direito do Trabalho no Brasil, do livro Curso de Direito do Trabalho, organizado por Marcus Orione Gonçalves Correia. Neste breve artigo o autor busca contar uma Breve História do Direito do Trabalho, utilizando-se de historiadores e também de alguns manuais antigos e compilações de legislação. Um dos historiadores mais citados é Boris Fausto em História Concisa do Brasil e o manual mais citado é o de Dario Bittencourt e a compilação de João Louzada. Este texto diferencia-se dos manuais, por citar historiadores que estudaram o tema monotematicamente, como: Maria Decca, Maurício Godinho Delgado, Jacob Gorender. Diz o autor, sobre o movimento de 1917:


Por conta desse quadro, intensa onda de greves desenvoleu-se no Brasil, especialmente de 1917 a 1920. Devido ao quadro político acima apresentado, da oligarquia cafeeira, como decorrência das greves, algumas iniciativas legislativas de proteção ao trabalhador até foram tomadas, mas demonstraram-se ineficazes. Em tal período, chegou-se mesmo a ser apresentado no Congresso Nacional um projeto de código de Trabalho, prevendo, dentro outros direitos, jornada de oito horas, proteção do trabalho das mulheres e crianças, e licença para trabalhadoras grávidas. No entanto, o projeto foi bombardeado pelos industriais e pela maioria dos congressistas. Restou apenas a lei que regulava a indenização por acidentes do trabalho, aprovada em 1919.


Regiam as relações de trabalho os regulamentos internos, que se pautavam pelo desiderato de impor disciplina no âmbito das fábricas, chegando mesmo a impor multas e castigos físicos para pequenas falhas ou atos julgados condenáveis no interior do espaço fabril.


Vários foram, aliás, os projetos de criação de legislação trabalhista, no período compreendido entre 1893-1903, chamado por Dário Bittencourt, período de projetos (sic), que no entanto, também não foram adiante[60].


Apesar de terem posicionamentos muito diferentes quanto ao Direito do Trabalho, Magano, Amauri e Souto Maior apresentam uma preocupação em colher fontes em trabalhos monográficos produzidos por historiadores. Os três têm em comum também terem sido professores da Universidade de São Paulo, o que pode explicar em parte o cuidado com as referências, próprias da academia.


Um dos únicos juristas a se utilizar de fontes primárias para tratar da greve de 1917 é Segadas Viana, em sua obra Direito Coletivo do Trabalho. Nessa obra o autor traça uma história do movimento sindical e apresenta aspectos referentes à greve de 1917. Como aponta o seguinte trecho:


Deve, no entanto, ser ressaltada entre todas as que começaram em junho de 1917, no Cotonifício Crespi, em São Paulo, onde 2.000 trabalhadores exigiram aumento de 20% nos salários, obtendo a solidariedade de outras fábricas, de modo que a 12 de julho a paralisação atingia a 15.000 operários, subindo a 40.000 dois dias depois e se estendendo a Santos, Campinas e outra cidades.


Liderados por anarquistas e socialistas os grevistas, reunidos no ‘Centro Germinal’ criaram um ‘Comitê de defesa dos Proletários’ e lançaram um manifesto contendo as seguintes reivindicações:


“1)que sejam postas em liberdade todas as pessoas detidas por motivo de greve, 2) que seja respeitado de modo mais absoluto o direito de associação dos trabalhadores; 3) que nenhum operário seja dispensado por haver participado ativa e ostensivamente, 4)que seja abolida de fato a exploração do trabalho de menores de 14 anos, nas fábricas, oficinas, etc.; 5) que os trabalhadores, com menos de 18 anos não sejam ocupados em trabalhos noturnos, 6)que seja abolido o trabalho noturno das mulheres, 7) aumento de 35% dos salários inferiores a 5$000 e de 25% para os mais elevados, 8)que o pagamento dos salários seja efetuado pontualmente a cada 15 dias, o mais tardar, 5 dias após o vencimento; 9) que seja garantido aos operários trabalho permanente, 10) jornada de oito horas e semana inglesa, 11) aumento de 50 % em todo trabalho extraordinário.”[61]


Apresentar em um manual a existência de greves em 1917 não é um fato menor, diante de uma gama de manuais que entendem que o Direito do Trabalho somente tem início com a Revolução de 30. Ao citar as greves de 1917 os autores apontam para reivindicações de direito do trabalho anteriores a estruturação das leis trabalhistas da era Vargas e da efetivação do Ministério do Trabalho. Os autores ao citarem esse movimento grevista, também deixam entender, quando não explicitam propriamente, que as reivindicações desse movimento não foram atendidas, tendo ficado latentes durante décadas, até a efetivação da grande parte das leis trabalhistas.


Porém, os autores não entram em discussão do porque dessa ‘demora’ no atendimento de muitas das exigências dos grevistas de 1917. Amauri cita a presença dos anarquistas, mas não aponta o papel que tiveram na luta por direitos nessa época. Segadas Viana cita as reivindicações dos anarquistas, deixando explicita a atualidade de suas reivindicações, uma vez que muitas foram objetos de regulamentação legislativa. Apesar de poucas citações sobre a greve de 1917, elas expõem que havia reivindicações e luta por direitos do trabalho e que não é de todo verdade a inexistência de lutas sociais ou mesmo da outorga das leis trabalhistas, sem que elas fossem realmente exigidas.


A greve de 1917 é um dos raros momentos nos manuais de Direito do Trabalho, em que o operário/trabalhador aparece como reivindicador legitimado dos seus direitos. Esse fato não pode ser desconsiderado em um Direito, como o Direito do Trabalho, que foi e é ainda formado por lutas sociais. O conflito que leva a efetivação de direitos aparece no Brasil com a greve de 1917 e no exterior, a partir dos comentários sobre as condições de trabalho durante a Revolução Industrial. Tirando esses momentos, o direito aparece apenas como legislação, que deve ser analisada no conteúdo de sua norma, ou seja, artigo por artigo, palavra por palavra, mas que costuma desconsiderar o contexto social/político/histórico de sua criação.


Considerações Finais


Os manuais de direito a despeito da questão da generalidade e do caráter didático, apresentam uma série de “apagamentos” dos sujeitos de direito, em especial daqueles que estão ligados à movimentos sociais para a busca de direitos. O direito do trabalho é um dos que mais sofrem essas restrições, porém isso também ocorre na dificuldade de existir direitos ligados à sujeitos, como direitos da mulher, direitos dos negros, etc.. Esse apagamento é tão político, como as idéias expressas nos mitos do não-direito do trabalho antes de 1930, do mito do brasileiro como um homem cordial e principalmente, do mito da outorga do direito do trabalho. Manter esses mitos é perpetuar um direito que não tem foco nos sujeitos sociais que lutam por seus direitos.


Há um predomínio nos manuais de uma História do Direito que entende que o direito é legislação e desconsiderando as pessoas que fizeram e lutaram pelo direito, apresentam uma listagem cronológica das leis estatais. Esse recorte dos manuais decorre de uma escolha política das faculdades de direito, que tendem a ensinar o direito como técnica e de uma crescente “despolitização” do ensino de Direito, como se o direito não estivesse intimamente ligado à  sociedade em que ele está inserido.


A História do Direito sofre com todos esses problemas que são ainda mais acentuados pela dificuldade de trazer conhecimento de outras áreas das ciências humanas, em especial, da História para o ensino do Direito. O ensino do Direito se fecha em si mesmo em um hermetismo que só tem causado problemas ao ensino. A dificuldade ou mesmo a falta de diálogo entre profissionais presentes nas faculdades de direito, com outros profissionais, impede que muitos problemas como os encontrados na História do Direito sejam realmente debatidos e solucionados.


 


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Notas:

[1] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. p, 225.

[2] CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. p, 3

[3] HESPANHA, M. A história do Direito na História Social. p, 11-12

[4] SAVIGNY, F. Metodologia, p, 26

[5] Essa análise está no livro: Da vocação do nosso tempo para a legislação e a jurisprudência, capítulo V – Do Direito civil na Alemanha, de Savigny.

[6] CORRÊA, Ana Patrícia Thedin. Para uma história das metodologias em História do Direito.

[7] JHERING. O espírito do Direito Romano. p,13

[8] SAVIGNY. Sistema del Derecho Romano actual. P.13

[9] SAVIGNY. Metodologia jurídica. p, 72.

[10] CAMPOS BATALHA, Wilson. Introdução ao estudo do direito vol.1, p, 314.

[11] MARTINS FILHO, Ives Granda da Silva. Breve História da Justiça do Trabalho. In: História do Trabalho, do direito do trabalho e da justiça do Trabalho. p. 181-183

[12] MARTINS FILHO, Ives Granda da Silva. Breve História da Justiça do Trabalho.. In: História do Trabalho, do direito do trabalho e da justiça do Trabalho p. 184

[13] MARTINS FILHO, Ives Granda da Silva. Breve História da Justiça do Trabalho. In: História do Trabalho, do direito do trabalho e da justiça do Trabalho. p. 185

[14] MARTINS, Sérgio Pinto. Curso de Direito do Trabalho. p, 3

[15] As compilações de direito do trabalho anteriores à CLT em 1943, não englobam os projetos de lei trabalhista, nem mesmo pouca legislação existente como o Código Sanitário. Esse é o caso da compilação de Compilação legislativa do Departamento Nacional do trabalho (1910-1933) com prefácio de  LOUZADA, Alfredo João.

[16] CESARINO JÚNIOR. Direito social brasileiro. p. 79

[17] RUSSOMANO, Victor Mozart. Curso de Direito do Trabalho. p, 16

[18] RUSSOMANO, Victor Mozart. Curso de Direito do Trabalho. p, 17

[19] BARATA SILVA, Carlos Alberto. Compêndio de Direito do Trabalho. p, 51

[20] BARATA SILVA, Carlos Alberto. Compêndio de Direito do Trabalho. p, 53

[21] CESARINO JÚNIOR. Direito social brasileiro. p. 79

[22] CESARINO JÚNIOR. Direito social brasileiro. p. 79

[23] ­­BITTENCOURT, Dario. Das Ordenações Filipinas à criação do Ministério do Trabalho p. 27 e 28

[24] AMARAL, LUÍS C. Gurgel do. Direito Social. prefácio

[25] CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. p, 3-4.

[26] TINOCO, Brigido. Fundamentos históricos do movimento social, Cap. I,  p, 21

[27] MARANHÃO, Délio.  Direito do trabalho. p, 16

[28] MARANHÃO, Délio.  Direito do trabalho. p, 17

[29] NOGUEIRA JUNIOR, J.A. Prática da legislação trabalhista p.13-14

[30] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p, 27 a 29

[31] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 33

[32] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 33-34

[33] PINHEIRO, Sérgio. O proletariado Industrial na Primeira república. p.137

[34] Segundo Castoriadis o mito é “essencialmente um modo pelo qual a sociedade investe de significações o mundo e sua própria vida no mundo- um mundo e uma vida que, de outro modo, seriam evidentemente desprovidos de sentido”. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do Labirinto II: os domínios do homem. p, 243. Por isso, a opção de denominar diretamente de significações imaginárias sociais.

[35] MORAIS FILHO, Evaristo de. Prefácio de Burguesia e Trabalho de Ângela Maria Castro Gomes. p, 15

[36] PARANHOS, Adalberto.  O roubo da fala. p, 30

[37] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 62

[38] GOMES, Orlando. Curso de Direito do Trabalho. p. 9

[39] MORAIS FILHO, Evaristo de. Prefácio de Burguesia e Trabalho de Ângela Maria Castro Gomes. p, 15-16

[40] SUSSEKIND, Arnaldo. Entrevista. p, 115-116

[41] FRENCH, J.D. Afogados em leis. p, 24-25 (grifo meu)

[42] FRENCH, J.D. Afogados em leis. p, 83

[43] VIANNA, Oliveira. Direito do trabalho e democracia social. p, 64-65.

[44] PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala. p,.24-25

[45] CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 13

[46] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 146-147

[47] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 55

[48] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 55

[49] SEGADAS VIANA. Instituições de Direito do Trabalho. p. 55-56 (grifos da autora)

[50] VIANNA, Oliveira. Prefácio In: NIEMEYER, W. Curso de Legislação Brasileira do Trabalho. p VI

[51] NOGUEIRA, O. Pupo. A indústria em face das leis do trabalho. p, 3

[52] MANSO, Péricles de Souza. Um Direito Novo. 71.

[53] MARANHÃO, Délio.  Direito do trabalho. p, 18

[54] PIMENTA, Joaquim. Sociologia econômica e jurídica do trabalho p, 187

[55] PIMENTA, Joaquim. Sociologia econômica e jurídica do trabalho p, 184

[56] NASCIMENTO, Amauri. História do Direito do Trabalho no Brasil. In: História do Trabalho, do direito do trabalho e da justiça do Trabalho. p, 87

[57] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. p. 60

[58] JORGE NETO, CAVALCANTI. Direito do trabalho. p, 30

[59] MAGANO, Otávio Bueno. Manual de Direito do trabalho (parte geral). p, 42

[60] SOUTO MAIOR, Jorge Luis. Breves Considerações sobre a história do Direito do Trabalho no Brasil. p. 72-73.

[61] VIANA, Segadas. Direito Coletivo do Trabalho. p, 204

Informações Sobre o Autor

Gisele Mascarelli Salgado

Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056


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Equipe Âmbito Jurídico

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