Uma análise contemporânea da Constituição Sociológica de Lassalle

Resumo: Este artigo teve por escopo analisar os principais aspectos encontrados na Constituição Sociológica de Ferdinand Lassalle, e sua aplicabilidade nos dias atuais. Dentro deste contexto, optou-se pelo estudo das teorias que abordam o contraponto entre o que se compreende por Constituição “real” (conjunto de “fatores reais de poder” que regem o país) e Constituiçãofolha de papel” (constituição formal), argumentando-se sobre o valor e durabilidade da Constituição escrita. O resultado dessa abordagem revelou que é preciso atentar para o fato de que reformas constitucionais precipitadas, que busquem acompanhar os fatores reais do poder, podem resultar em verdadeiro atentado à supremacia constitucional. Todavia, o estudo demonstra serem plausíveis mudanças nas relações sociais que impliquem em mutação na interpretação dos textos constitucionais, de forma a readaptá-los sem a necessidade de se modificar a sua configuração literal.


Palavras-chave: Ferdinand Lassalle, Constituição; Constituição Sociológica; essência.


Sumário: 1. Introdução. 2. A essência da Constituição para Ferdinand  Lassale. 3. A Constituição Sociológica de Lassale sob uma perspectiva recente. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. Introdução


Este breve estudo trata dos principais aspectos encontrados na Constituição sociológica de Ferdinand Lassalle, e sua aplicabilidade nos dias atuais.


Lassalle introduziu no estudo constitucional teorias que abordam o contraponto entre o que se compreende por Constituição “real” – conjunto de “fatores reais de poder” que regem o país – e Constituição “folha de papel” – constituição formal.


Segundo esse autor, o valor e a durabilidade da Constituição escrita dependem da sua coerência com os fatores sociais existentes, isto é, da Constituição real. Do contrário, esta fará fraquejar aquela, resultando no seu descumprimento.


Tal concepção, entretanto, vai contra o movimento através do qual as constituições surgiram na modernidade, ou seja, aquele em que as constituições nascem com a promessa de serem documentos transformadores de uma nova era.


Com efeito, torna-se oportuno problematizar a teoria de Ferdinand Lassalle com os pensamentos mais recentes, de forma a cristalizar a essência de uma Constituição na sociedade hodierna.


2. A essência da Constituição para Ferdinand Lassalle


No ano de 1862, Ferdinand Lassalle foi convidado para uma conferência em Berlim, capital e importante centro cultural e industrial da Prússia, onde ministrou uma palestra cujo tema foi a essência da Constituição.


A primeira indagação feita por Lassalle, ao iniciar sua exposição, foi: o “que é uma Constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?” (2001, p.05)


Para responder a essa questão, o autor discorreu sobre a Constituição como uma lei fundamental e que para tanto deveria apresentar as seguintes características: (1) ser uma lei básica, porém mais sagrada e firme do que as leis comuns; (2) constituir o verdadeiro fundamento das outras leis, devendo atuar e irradiar-se através das leis comuns dela originada e; (3) existir porque necessariamente deve existir, e ter força de eficácia para que seu conteúdo seja assim. (2001 p.09-10)


De acordo com esse pensamento, a Constituição é uma lei, porém é uma lei mais estável e imóvel que uma lei ordinária, e que proporciona as diretrizes para o funcionamento desta. Em suma, a Constituição é a lei principal de uma nação.


Lassalle acrescenta, ainda, que tal lei vigora e é respeitada devido ao fato de haver uma coação geradora da noção de obrigatoriedade. Esta coação é impulsionada por forças denominadas por ele de “fatores reais do poder,” fatores estes que ao atuar no seio de cada sociedade são a “força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser em substância, a não ser tal como elas são”. (2001 p.10)


O autor e conferencista explica que as constituições são feitas “em” e “para” certa sociedade. Sociedade esta que já existe e que conta com determinado número de indivíduos; que é dotada de certa organização econômica e política, de distribuição de riqueza e poder. Dessa forma, a Constituição espelha o contexto em que ela é inserida, o que significa dizer que ela ratifica uma situação de distribuição de riqueza e de poder que já existe.


De maneira a ilustrar melhor sua posição, Lassalle, de forma extremamente didática e ilustrativa, convida seus ouvintes para um exercício constituinte que consiste na seguinte situação hipotética: estaria o legislador, completamente livre para elaborar a Constituição de acordo com o seu modo de pensar, caso um incêndio destruísse todos os arquivos, depósitos e bibliotecas públicas, e todos os originais e cópias impressas de todas as leis de um país?


Para Lassalle a resposta negativa se impõe, pois existem fatores reais de poder que influenciam de forma decisiva a implementação de uma Constituição. Isso significa que as relações de força não se alterariam ainda que o legislador elaborasse uma Constituição que dispusesse de forma diversa.


A essência de uma Constituição consiste, portanto, na soma entre os fatores reais do poder e o que vai ser escrito. “Colhem-se estes fatores reais de poder, registram-se em uma folha de papel, (…) e, a partir desse momento, incorporados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas que se erigiram em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei e será castigado” (2001 p17-18).


Para Lassalle, “todos os países possuem ou possuíram sempre e em todos os momentos da sua história uma Constituição real e verdadeira” (2001 p.27), que foi resultado dos fatores reais do poder que regiam em cada país. A Constituição escrita é somente um produto da luta das forças econômicas resultante da estrutura do Estado.


Os fatores reais de poder, todavia, não aparecem de forma explícita na Constituição. A Lei Maior é redigida de forma a aparentar que beneficiará igualmente a todos os indivíduos, porém os interesses das classes mais favorecidas indiretamente são defendidos por órgãos como o exército e o Senado.


Logo, o que se escreve em uma folha de papel não terá nenhum valor se o seu conteúdo não se justificar pelos fatos reais e efetivos do poder.


Assim, de acordo com o pensamento de Lassalle, uma Constituição escrita somente será boa e duradoura quando corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores reais e efetivos do poder que regem o país. Onde a Constituição escrita não se submeter a essas condições, irrompe inevitavelmente um conflito, onde mais dia menos dia, a Constituição escrita, a “folha de papel”, sucumbirá necessariamente, perante as forças vigentes no país. Em outras palavras, a Constituição formal seria revogada pela Constituição real, pois, “de nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder” (2002, p.68).


A tese defendida por Lassalle afirma que os fatos têm mais peso que as normas. Para ele, as normas se apóiam nos fatos, enunciando-os como eles já são, e, por conseguinte, adquirem força de realidade. Quando as normas ignoram os fatos, estabelecendo uma situação ideal que ainda não existe, se tornam um documento ineficaz, apenas uma “folha de papel”, sem qualquer poder normativo. Acreditar que a Constituição pode mudar a realidade é um equívoco.


Desse modo, conclui-se que, de acordo com o autor, podem existir em um país dois tipos de Constituição: a real e efetiva, formada pela soma dos fatores reais que regem a sociedade, e a escrita, que ele chama de “folha de papel”. 


Lassalle com isso procura demonstrar que o poder de intervenção e transformação sobre uma sociedade não pode, de nenhuma maneira, ser conferido à Constituição, pois para ele “os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar” (2001 p.40).


Uma Constituição representa apenas uma norma, e normas, não mudam fatos. Apenas fatos mudam fatos. A constituição seria um documento impotente diante da realidade: ou a retrata como ela é, ou se torna mera “folha de papel”.


Neste sentido, a Constituição formal seria determinada pela Constituição real, resultante dos fatores reais do poder que imperaram na sociedade, em uma determinada época. Para Lassalle, portanto, as Constituições escritas não seriam dotadas de valor, nem seriam eficazes, se não expressassem fielmente os fatores reais do poder, determinantes da realidade social.


3. A Constituição Sociológica de Lassalle sob uma perspectiva recente


As Constituições norte-americana, francesa e inglesa, oriundas das revoluções burguesas, desejavam mudar a sociedade e seus costumes. Elas surgiram com a promessa de serem documentos transformadores, marcos de uma nova era.


Neste contexto, a constituição de Ferdinand Lassalle é impotente, pois a concepção de que apenas fatos mudam fatos se opõe ao movimento pelo qual as Constituições surgiram na modernidade.


De forma a solucionar esse impasse, Konrad Hesse, na obra que se baseia em sua aula inaugural na Universidade de Freiburg, em 1959, sugere que haja um condicionamento recíproco entre a realidade político-social e a Lei Fundamental.


 Segundo Hesse, “afigura-se justificada a negação do Direito Constitucional, e a conseqüente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a constituição jurídica expressa, efetivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição” (1991, p.11).


Para esse autor, a Constituição deve estar a serviço de uma ordem estatal justa, não lhe competindo somente a função de justificar as relações de poder dominantes. O pensamento de Lassalle, ao restringir o Direito Constitucional a circunstâncias momentâneas de poder, seria, portanto, limitado.


Segundo Hesse, freqüentes reformas constitucionais para atender a interesses momentâneos de quem está no poder, acarretam uma desvalorização da força normativa da Constituição e a estabilidade constitui condição fundamental de eficácia da Carta Magna. Essa disposição para a freqüente revisão constitucional, também deixa claro uma maior valorização das exigências de índole fática do que a ordem normativa vigente.


Konrad Hesse parte da premissa de que a norma constitucional possui existência independentemente da realidade. Para o autor, a eficácia das normas constitucionais não pode exceder as condições sociais históricas, e econômicas de seu tempo, no entanto, uma Constituição não deve se limitar aos “fatores reais do poder”, ela possui uma peculiar força normativa dirigida a ordenar e conformar a realidade político-social.


“Nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituição, pode alterar as condicionantes naturais. Tudo depende, portanto, que se conforme a Constituição a esses limites. Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranqüilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade” (1991, p. 24).


Deste modo, a Constituição não deve se limitar à expressão do “ser”, mas também do “dever ser.” A compreensão de Hesse, reconhece em Lassalle que “a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo.” (1991, p. 18). Por outro lado, sua força normativa não deriva unicamente de uma adaptação à realidade. A essência da Constituição reside na sua vigência, ou seja, na pretensão de ser concretizada na realidade. Há, portanto, a necessidade da vontade de Constituição, isto é, a vontade de cumpri-la e de moldá-la a realidade através das normas nela prescritas.


Para Hesse, a Constituição real e a Constituição jurídica condicionam-se mutuamente, porém, a Constituição jurídica adquire um significado próprio. A força normativa da Constituição não deriva exclusivamente de sua capacidade de refletir os fatores reais do poder, mas também, de que ela própria se transforme em uma força ativa, que logre realizar essa pretensão de eficácia.


Konrad Hesse, por fim, reconhece que a Constituição não pode, por si só, realizar nada, contudo, pode impor tarefas. A vontade de Constituição se baseia em três vertentes: (1) a compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio; (2) a compreensão de que esta ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos e, por fim, (3) a consciência de que essa ordem não será eficaz sem a presença da vontade humana.


Uma concepção mais recente e que vem a corroborar o pensamento de Hesse é fornecida por Mauro Cappelletti, segundo o qual “as Constituições modernas não se limitam na verdade, a dizer estaticamente o que é o direito, a ‘dar ordem’ para uma situação social consolidada, mas diversamente, das leis usuais, estabelecem e impõem, sobretudo diretrizes e programas dinâmicos de ação futura.  Elas contêm a indicação daqueles que são os supremos valores, as rationes, os Gründe da atividade futura do Estado e da sociedade” (1984).


Hesse ao relativizar e completar a concepção de Constituição de Lassalle, a traz para uma nova perspectiva, em que tem realçado o seu caráter normativo, tornando-a mais adequada a realidade.


O Direito Constitucional contemporâneo busca firmar-se como ciência. Ele não está condicionado, unicamente, pela realidade. Assim, em caso de eventual conflito entre a Constituição e os fatores reais de poder, a lei fundamental de um país não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca.


De acordo com Luís Roberto Barroso, “antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da constituição” (2005).


A Constituição hoje, portanto, é mais do que puramente os fatores reais do poder de Lassalle e pode sim, como defende Hesse, planejar o “dever-ser” programaticamente e ter vontade e caráter normativo.


Nesse aspecto, a interpretação da Constituição tem significado decisivo para a preservação da sua força normativa e sua solidificação. Pode-se citar como exemplo, a Constituição dos Estados Unidos da América que, após sofrer, em 1791, as emendas denominadas Bill of Rights, vem conservando o seu texto fundamental até hoje, através de constante evolução jurisprudencial.


Neste sentido, havendo mudanças nas relações fáticas, deve-se operar uma mudança na interpretação do texto constitucional e não mudança em seu conteúdo.


4. Conclusão


Vimos, resumidamente, que Ferdinand Lassalle, em sua palestra realizada na Berlim prussiana de 1862, entende que a Constituição de um país somente será efetiva se ela resultar dos fatores reais do poder que imperam na sociedade. Neste sentido, mudanças periódicas no texto constitucional que levem esse fator em consideração, aproximariam a constituição “real” e a “jurídica” ou escrita, dando maior efetividade à segunda.


Contudo, a Constituição a que se refere Lassalle, em 1862, não possui, exatamente, o mesmo sentido de Constituição que encontramos atualmente. Assim, em 1959, Konrad Hesse se posicionou de forma a complementar a obra desse autor. Segundo Hesse, quanto menos mudanças sofrer a Constituição maior será a sua efetividade. Para ele, a Constituição real e a Constituição jurídica condicionam-se mutuamente. A força normativa da Constituição não deriva somente de sua capacidade de refletir os fatores reais do poder, mas também da vontade de Constituição, isto é, da vontade de cumpri-la e de moldar a realidade com as normas nela prescritas.


De fato, a Constituição jurídica não pode ser reduzida a uma fotografia da realidade. A Constituição deve buscar corresponder e traduzir a constante mutação social, mas também deve alcançar um mínimo de estabilidade e segurança jurídicas.


É preciso atentar para o fato de que reformas constitucionais precipitadas, que busquem acompanhar os fatores reais do poder, podem resultar em verdadeiro atentado à supremacia constitucional. Todavia, é plausível que mudanças nas relações sociais impliquem em mutação na interpretação dos textos constitucionais, de forma a readaptá-los sem a necessidade de se modificar a sua configuração literal.


A Constituição de um país deve servir de alicerce para toda a ordem jurídica vigente, deve ser considerada uma fonte criadora do Estado de Direito. Entendida desta maneira, a Constituição deixa de ser mera folha de papel, para se transformar também em um fator real de poder.


 


Referências bibliográficas:

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547. Acesso em 08.07.2009

CAPELETTI, Mauro. O Controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1991.

LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ªed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001.

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição; trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2002.

Informações Sobre o Autor

Lívia Paula de Almeida Lamas

Advogada. Licenciada em Letras. Estudante regular do Curso Intensivo de Doutorado – UBA. Professora Universitária. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Especialista em Direito Público


Equipe Âmbito Jurídico

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