Uma genealogia civil-constitucional da pertença e do pertencimento. O domínio e as titularidades entre a razão e a fé.

Sumário: 1. Atribuindo e Restringindo Fronteiras ao Intramuros do Potestas. 2. Existencialidade e Patrimônio Burguês na Genealogia da Propriedade Privada. 3. Direitos Fundamentais sem ‘Clausuras’. 4. Atual Arquitetura Constitucional Proprietária. 5. Brevíssimo Tópico em Torno da Tópica Proprietária.

1. Atribuindo e Restringindo Fronteiras ao Intramuros do Potestas.

Um dos componentes mais importantes na construção de um Estado Social e Democrático de Direito, como o edificado no arcabouço constitucional soerguido em 1988 no Brasil, é a estrutura atribuída ao direito de propriedade que lhe subsiste.

Seus ancestrais modernos, mais à destra ou à sinistra, qual respectivamente se colhe de Locke e Hobbes à Marx e Bakunin, de Hitler à Stalin ou de Washington à Zapata, não descuraram seu tratamento; cujo asfalto sedimenta largamente o percurso do novo paradigma de Estado a desenvolver-se no Século XX e cuja história, no milênio que desperta, ainda está por ser cartografada.

Estas lições foram colhidas pela norma constitucional e vêm sendo digeridas pela jurisprudência escorreita que a reescreve, sedimenta, revigora e alimenta. Não sem sístoles ou diástoles. Endógenas ou exógenas. Não sem inscreverem-se enquanto significante no discurso proprietário, para ganharem significado na concretização hermenêutico-constitucional dos valores sociais e democráticos que sedimentam a jurisprudência na Pós-Modernidade líquida. Por vezes de modo visível e consciente. Por vezes não.

Remontar a história da propriedade privada, consoante concebe o Diploma Constitucional, desde os direitos fundamentais como artérias de todo o Sistema de Direito a regular a nação brasileira, até a Ordem Econômica, enquanto coluna vertebral de uma complexa Sociedade de Mercado que se recusa a perceber o capital enquanto fundamento; em coerência aos princípios que se diluem a partir do art. 1º, resulta uma genealogia, no sentido atribuído por Foucault ou Delleuze, da própria Sociedade Complexa. Paradoxalmente multi temporal, geográfica e étnica.

A migração da função social da propriedade para estribo do art. 5º, importou em bem mais do que uma rearticulação voluntarista ou semântica, como alguns (des)caminhos exegéticos possam dar a entender ao pregar um Estado Mínimo, somente real no discurso que busca lhe eternizar. Virtualizado pelo Estado vigente, é  condicionado constitucionalmente e, assim, vocacionado à tutela dos direitos fundamentais.

Na ante-sala privilegiada das titularidades de apropriação, cuja regulação é atribuída ao Direito no compromisso que abre, já não se admite a passividade judiciária no silêncio da regra não obstante a luz dos princípios e valores magnamente positivados e conducentes à eficácia e otimização dos Direitos Fundamentais, na esteira das consagradas lições de Canotilho, Hesse e Alexy e entre a doutrina brasileira arejada por Paulo Bonavides e Ingo Wolfgang Sarlet.

Não se pode assistir o arrostar de uma massa expropriada pelos interesses do mercado em detrimento da pessoa humana enquanto razão e fundamento de todo o Direito. Mormente o patrimônio, originalmente fim e condição do Direito, para realização da felicidade do homem moderno, passa à condição de meio diante do atual sistema jurídico. Tal opção se inscreve nos valores preambulares diluídos no núcleo duro da Constituição.

Nesta esfera específica, a propriedade se reconstruiu; impossibilitando condicionar como externalidade os interesses não proprietários do bojo das titularidades reguladoras da pertença. Tanto o interesse público como o interesse social passam ao concurso axiológico (de legitimação ético-comunicativa e não mais instrumental-formal) na órbita da propriedade privada, em conjunto com seu titular ou domus.

Fibrila o instituto proprietário tradicionalmente concebido; hipertrofiado na modernidade oitocentista e insuficientemente regulado e compreendido ao início da pós-modernidade líquida, descoberta nas praias sangrentas da Normandia.

Contemporaneamente, o bem público resta afetado pelo interesse público, vinculante ao administrador e municiado pelo rico diploma da Lei de Improbidade Administrativa. O bem individual ou coletivo, de natureza privada, é afetado pelo princípio da função social da propriedade, também aparelhado de eficácia horizontal e extenso instrumental legislativo densificador.

Daí seu replicar na Ordem Econômica, em muitos espectros e aspectos, mas em especial a partir do art. 170 da Constituição. Os Direitos Fundamentais imantam o cenário normativo, na justa medida em que o papel do ordenamento jurídico se reporta à realização do Estado Social de Direito, cujas normas espelham fractalmente de suas posições e concretizações funcionais. Nisso repousa a condição atratora que molda os fractais da jurisprudência brasileira. Imantando o próprio discurso jurídico.

Enquanto os Direitos Fundamentais estribam sua legitimação no esclarecimento deste núcleo duro que constitui a base axiológica constitutiva do ordenamento, projetado normativamente à partir do princípio estruturante do Estado Social e Democrático de Direito, revelam àquilo que pode intersubjetivamente perceber-se como mínimo social; elemento também relevante na aplicação concreta dos institutos proprietários.

Deve importar isso em reflexo perceptível por toda a malha jurídica. Toda realização do Direito deve ser a realização do Estado Social e Democrático de Direito, revelado a partir dos Direitos Fundamentais, concretizando a função social na fractal proporção em que realiza a garantia da propriedade privada dos bens passíveis de apropriação individual ou coletiva. Atratores.

No todo e na parte. Hologramaticamente vinculantes. Para além do sistema jurídico; para os sistemas vazantes, como o social e o econômico. Na sua complexidade que refuta reducionismos cartesianos insuflados do fetiche da neutralidade. Mitemas quais completude e certeza.

Decorre assim, não se poder tratar seriamente o tema, como esta obra o exige, sem apriores não raro ignorados pela doutrina privatista; quando não ocultados.

2. Existencialidade e Patrimônio Burguês na Genealogia da Propriedade Privada.

O continuum histórico é implacável no desenho e redesenho constante – como   se a vida não passasse de um esboço de si mesma – dos centros e periferias das muitas geografias da verdade humana.

Não obstante o desalinho da não-linearidade histórica pode tomar-se por meridiano a propriedade, como um fio-condutor autobiográfico, justamente na atenção da incerteza (Heisenberg) como princípio atuante nos mais diversos recônditos da Ciência, mormente reveladores do Caos que lhe é inerente e atribui padrão. Em novo sentido, Razão.

A propriedade fundante do capitalismo de mercado, atribuiu-se um recorte exato e sem sobras. Absoluta como razão e conseqüência. Matematicamente resultado de uma operação de divisão. Meridional, portanto. Social, paradoxalmente, quando refere privada. Entre os que têm e os que não têm. Possuidores e “despossuídos”. Titulares e desterrados da pertença. Confortavelmente invisíveis aos olhos de igualdade formal da Modernidade liberal-econômica. Um meridiano de muitas faces no tempo e no espaço. Um corte, dito descritivo, porém constitutivo. De uma nova coorte.

Se é certa a socialidade do Homem, não menos certo é que os moldes  impressos às sociedades que co ou sucessivamente edificou, tiveram em seu DNA as matrizes da terra em que se instalaram. Antes mesmo disso, na estrutura de sua complexidade ainda ausente, percebe-se dentre os povos primitivos, então itinerantes, onde a condição de migração constante equivalia à condição de sobrevivência, carecer de sentido a “civilística distinção” entre posse e propriedade. Ao cabo Nietzsche.

A propriedade não é um dado. É um constructo. (Apolíneo ou dionísico ?) Da autorictas romana[1], à razão iluminista ainda presente. Porém sua força está em  fazer-se parecer um dado. Autoridade enquanto verdade. Em uma camuflagem axiomática. Continuamente constituída e revestida pela mecânica do biopoder, na condição de carapaça. Do saber, verdade e paradigma. Da certeza que amanhã tudo estará lá. Como deixado ontem. Ciência torna-se Oráculo. Indução com vestes analíticas.

O Direito entra para o restrito e disciplinar rótulo de Ciência, na condição  dada por Okhan, quando para além da possibilidade de descrição, mostra-se possível de predição. Por isso Direito é uma forma de hermenêutica e o jurisconsulto torna-se uma pitonisa da modernidade. Para a segurança iluminista, Montesquieu percebe o juiz como um sacerdote. Da Lei, modernamente identificada ao próprio Direito; no nó górdio do Dogma da Completude. Mas a mística antiga era costurada por crenças bem menos sutis.

A propriedade capacita-se a recriar esta jornada, escrita com sonhos e pesadelos pela sociedade ocidental que trouxe este legado para as praias do Novo Mundo.

Afetado o homem à terra, para além do coletor-caçador, dependente da semeadura, passa a percebê-la Gaya. O ventre. A mãe. Incorpora, assim, àquela sacralidade retomada no Renascimento. Por isso, da Pré-História à Antigüidade, as sociedades têm no sacerdote seu juiz. A boca de Deus é um dos dilemas intrínsecos à Reforma. Em forma de conhecimento e hermenêutica, o tema é controverso até a Pós-Modernidade.

Na antiguidade remota, o verdadeiro deus é um ventre que alimenta a humanidade inteira, por ele criada e dele dependente. O amanhã pertence a Ele. O juiz  final. A instância final. Inicialmente apenas terra. Sobrevivência.

Isso edifica um verdadeiro culto, com assento na Eurásia ou nas Américas, de papel político, identificando uma raça à uma terra e percebendo na reciprocidade do solo a reciprocidade divina. Posteriormente essa mesma reciprocidade far-se-á presente na guerra territorial da antigüidade, onde a proteção divina e a conquista do território são claramente tangíveis, seja em Ricardo, Saladino, Constantino, Aníbal, Alexandre, Daví ou Ramsés. Estará presente, ainda, em todo o impasse em torno de Jerusalém desde o Século VII até a contemporaneidade que não mais nomina cruzados ou sarracenos quando divulga suas guerras globalizadas.

O instituto proprietário possui marcas profundas em muitos tempos e espaços culturais. É percebido no mito apocalíptico do final dos tempos, marcado pelo retorno dos escolhidos para a Terra Prometida. É identificado pelo início do “saber” na humanidade, quando Adão prova do fruto da Árvore do Conhecimento e é expulso do território da plenitude, representado por muros, guardiães e portões, identificado como Paraíso.[2] É o destino final da jornada desenhada por Dante na Divina Comédia.

Também a propriedade, no sentido patrimonial burguês, é o destino de chegada da iluminista Comédia Humana de Balzac; prosaica por retratar a sociedade moderna, cega no determinista ensaio de razão que arrogantemente rastejava em pé. Em busca de pertença. Capital. Propriedade privada.

Agora, com os pés sobre o espaço da pós-modernidade, é dela que voltamos a tratar diante de outras verdades, discursos e olhares. Diante de um novo paradigma, sem absolutos ou inteiros. Sem simplificações tangentes ou verdades superficiais. Existencialista na carne e indeterminista no espírito.

As verdades do Estado Social de Direito deixam de conter-se nas gavetas disciplinares da Modernidade Liberal. Concebida em uma geometria da incerteza que radiografa uma sociedade líquida, cujas questões irresolvidas lhe precedem em tempo e espaço. Com propriedade; em qualquer sentido que se atribua ao termo, ora sem condições de “termo”. Não conceituável, como decorrência lógica. Porém de identificáveis contornos. Com arquitetura, portanto, não obstante sua textura dinâmica.

Em Roma, a territorialidade identifica o patrício. Pressuposto para a condição de pater familias, ser patrício edificaria àquilo tradicionalmente concebido como requisito para ser sujeito de direito à luz do Jus Civile.

O sentido de domus, descendência dos herdeiros de Enéas, não consegue fechar-se no direito das coisas impresso nas codificações do Século XIX. Atuante na compreensão do próprio pater potestas, a gen romana – para bem além da consangüinidade – incluía a esposa, filhos, noras, concubinas, acrescidos familiares, empregados, clientes (forma vassalar da época do clientelismo), escravos e certas áreas de terra em solo itálico identificáveis com a própria historicidade daquela família e sua vinculação com a fundação de Roma.

Não se poderia conceber legitimamente o instituto romano como uma propriedade exclusiva, individual e absoluta no sentido que a modernidade lhe atribuiu. Sequer é “propriamente” privada no sentido especificamente jurídico. Seu caráter privado está na esfera de religiosidade (fas) da família romana. Esta possuía uma religião privada em contraponto à religião pública. De Roma; cujos cultos voltavam-se ora a certas divindades, ora à outras. Por outro lado, as famílias romanas tradicionais, adoravam seus antepassados identificados ao solo da genDomus.[3] Não se cogita de um patrício sem correspondência com uma gleba itálica específica, até o fim do período clássico.

Do Principado ao período das legis actiones (procedimentos por lei), já no curso da República, perdurou esta arquitetura dominial. Com a necessidade de intervenção da civitas, pela restrição da autotutela de pretensões litigiosas, desenvolve-se a noção de proprietas para instrumentalizar o vetusto dominium com um dever de abstenção passível de tutela pleiteada ao praetor. Destaca-se a relatividade proprietária romana, agudizada ainda mais no curso do Império, para o desagrado dos nobres patrícios.

No Feudalismo, o domínio bicéfalo traduzido em útil e direto (perceptível ainda na estrutura enfiteutica), compõe o Estado apropriado pela força da barbárie e guerra. A oponibilidade do título se inutiliza na ausência completa de poder jurisdicional para moderar às pretensões proprietárias, agora identificadas ao próprio Estado. O servo da gleba resta vinculado ao Senhor Feudal pelas estruturas dominiais, então hipertrofiadas de poder político.

A propriedade, identificada ao poder na sua maior intensidade, resulta absoluta e compreendida como domínio, desdobrado em Útil e Direto, inovando totalmente o Direito Antigo sem quaisquer pudores, como natural à Glosa. O Direito se assentava em novas verdades, guerras e Senhores da Guerra na Europa Medieval que contaria a história da América Moderna.

No domínio útil (vestido de posse, uso, fruição e disposição) ainda percebe-se caberem figuras contemporâneas como o enfiteuta ou superficiário, não obstante, o domínio chamado direto atribuía imoderáveis poderes ao Senhor Feudal. Convocar à luta, tributar, legislar, julgar, comandar, às primeiras núpcias das jovens nubentes, atribuir e destituir cargos e funções ou quaisquer outras faculdades que lhe fossem úteis ou agradáveis.

Os domínios eminentes conjuram os esforços absolutistas de concentração de poder dos Reis, em detrimento da nobreza revoltosa e decadente da Baixa Idade Média. Servem de parâmetro de organização das escalas de vassalagem e distribuição territorial, sem deixar de vincular o homem à terra, como marca inerente desde os ancestrais primitivos. Marcaram o fim do Feudalismo, nos recantos em que implantaram-se, despertando o nacionalismo como um sentimento nascente, preparando as tintas que colorirão a Modernidade vindoura.

Mesmo com os ventos da Reforma, alentadores do Direito Natural emergente do Humanismo que precipita a Renascença, a terra tem papel destacado nessa genealogia. Tomado o homem como medida do mundo, pela Ciência, pelas Letras e pela Arte, a propriedade tem suas verdades renovadas sem que perca seu estatuto de importância.

O novo homem, que passa a ler a palavra de Deus em sua própria língua, percebe a noção de igualdade substancializada pelo Criador que o fez sua imagem e semelhança. Na medida em que descabe tire o homem àquilo que Deus deu, a vida traduz um direito natural dele. O mesmo dar-se-ia com a propriedade.

O Paraíso, feito para o Homem apropriar-se em sua superioridade divinamente justificada diante das demais criaturas, importaria no direito natural à propriedade privada, não só para sobrevivência, mas pelo próprio reconhecimento da condição de descendente de Adão.[4] A Era das Luzes vincularia esta propriedade à própria condição humana. Liberdade e dignidade burguesa a alcançarem os mais diversos discursos, como Hegel e Robespierre.

A régua parece ser o instrumento mais representativo do Iluminismo. O Jusracionalismo que legou no Ocidente, entranhou-se nas culturas que teria de regular, ao desbordar das instituições e sistemas jurídicos que passa à edificar sobre novos pressupostos. O pensamento científico, agora disciplinar, ancorado nas Ciências da Natureza e nas Matemáticas influencia o paradigma mecanicista, principalmente a partir de Newton, derivando no Juspositivismo e seus pressupostos de universalidade, clareza e completude.

Com a Revolução Francesa, cristalizam-se os ideais da Modernidade e tem início o projeto determinista de História, Sociedade, Estado, Economia e Direito. É neste momento que a propriedade veste as roupas com que vem sendo apresentada nos últimos séculos.

A Europa inicia uma progressiva codificação do Direito Civil, que resultará esclerosada em um século. A propriedade privada passa a ser sistematizada como um direito individual, exclusivo e ilimitado e a centralizar os olhares da comunidade burguesa, já ao início da Era do Capital, inicialmente tutelada pelo Estado Mínimo e seu compromisso policialesco com o status quo.

O primeiro golpe nesse projeto de imortalidade, chega pelo punho do Estado Intervencionista. Ainda munido do paradigma positivista para intervenção, a febre legislativa golpeia incansavelmente as muralhas da codificação liberal, arrancando temas e institutos de seus meandros regulatórios, em prol de um dirigismo ou socialização. A Era dos Estatutos, dos Microssistemas, ou da Descodificação, decreta o final do privilégio monocórdio do Código Civil no Direito Privado.

O Estado Social e Democrático de Direito resenha uma opção da Humanidade diante dos fracassos das diversas tentativas modernas de domesticar e enjaular o Leviatã que ela criou. Liberalismo, Anarquismo, Intervencionismo, Totalitarismo, Fascismo, Comunismo, Corporativismo, Populismo, Paternalismo, Nazismo ou Socialismo, em suas plúrimas vertentes. Quaisquer destes significantes modernos teve implantado o antinatural vírus do determinismo em seus significados mais profundos. Mais que estados de segurança, são estados de certeza. Ilusões apenas. Desilusões, portanto. Os direitos fundamentais são reveladores desta travessia.

3. Direitos Fundamentais sem ‘Clausuras’.

Sem dúvida o que mais evidentemente emerge do pântano da história, é a temporariedade das verdades fundantes da condição proprietária. A propriedade privada atende um paradigma histórica e geograficamente edificado. Tal qual os direitos fundamentais que lhe instrumentalizam.

A frígida adaptação de conceitos, realizada na jovem constituição da modernidade do Direito derivando sentidos para instituições da Antigüidade, que jamais poderiam ter[5], é reveladora do discurso dogmático que moldou a propriedade privada do Código Civil. Compromissada com o Liberalismo Econômico Clássico, foi estandarte iluminista do discurso revolucionário ao discurso napoleônico (seja do Cônsul ou do Imperador), que acabou por trazer, em 1808, a Europa ao Brasil.

Esse falso encravamento romano do Direito Privado, contraponto do Direito do Estado, dá uma austeridade metafísica aos que o postulam, como reflexo natural da Renascença legatária do Direito Natural (Cosmológico, Teológico ou Racionalista), que parece legitimar a filosofia que lhe é subjacente, qual Aristóteles serve de rede para repousar o discurso de São Tomás. O Jusracionalismo e o Juspositivismo guardam essa familiaridade perniciosa.

Nesse estribo marcharam as teorias modernas que edificaram as codificações. As teorias Realista, Personalista ou Eclética estavam compromissadas com o ideal da propriedade absoluta justificadora do Estado Mínimo e realizadora do fundamento da liberdade burguesa. Como lembra sabiamente Luiz Edson Fachin, “as respostas estavam formuladas antes mesmo de qualquer pergunta”.

A Era das Luzes teve o Estado Mínimo como sharia e fez do Código seu Corão. O Direito Privado da Modernidade emergente é fundamentalista por natureza. Vinculado aos ideais do Mercado, discursa neutralidade e semeia uma razão inumana (Pura), desprovida de valores.

A propriedade torna-se um fim. Não mais a possuímos. Por eras ainda seremos possuídos por ela. Mal estigmatizante da miséria e multiplicador da desigualdade, potencializado contemporaneamente na sociedade de mercado e espetáculo que enclausuram o devir. A Constituição, aqui em comento, é dirigente em sentido oposto.

Funcionalizada no Estado Social edificado em 1988, a “propriedade-meio” importa um input no sistema social, de consumo e de mercado no sentido da sua humanização. Dignidade humana edifica uma nova igualdade que reescreve o sentido da titularidade privada dos bens. Vibrando por todas as branas sensíveis ao respectivo ambiente. Nas ondas e partículas dos sistemas vazantes.

Coerente ao novo paradigma de sistema jurídico aberto (normativamente), dinâmico, sensível, complexo, axiológico e caótico, de compromissos não meramente formais e sim materiais, no limite de seus valores, qualquer dogmática tentada haverá de guardar a percepção de fluidez necessária a refutar quaisquer lastros conceitualistas.

A modelagem de sistemas é a maneira adequada para traduzir a indeterminista arquitetura fractal, que a rede jurídica em repouso possa atribuir para propriedade privada e os princípios que passam a lhe reger. Os constantes atratores normativos capazes de atribuir-lhe um padrão, intersubjetivamente considerado.

Tal padrão revela-se na jurisprudência desveladora do sistema jurídico em sua dinâmica interpretativa conducente às hierarquizações axiológicas, particulares[6], verificáveis no discurso que necessariamente o conformará.

É, fundamentalmente, uma potencialidade. Uma função de onda cuja partícula deve-se conter, mas que até sua solução final oscila dentre tais possibilidades, informada pelo princípio da incerteza, qual a sombra informa à luz. Fora destas possibilidades, o percurso (fundamento ou razões) decisório, submete-se a crescente tendência de reforma recursal.

4. Atual Arquitetura Constitucional Proprietária

Inicialmente perceba-se a arquitetura atribuída à propriedade privada latu sensu. Perfaz um direito subjetivo, ostentado individual ou coletivamente por pessoas físicas ou jurídicas, de Direito Público[7] ou Privado. É passível de tutela pelo Estado, sempre que revelado interesse de seu titular e, até certa medida, garantida contra intervenção de interesses alheios aos dele, nos limites do Direito.

Tais limites, abrem-se na Constituição de modo vinculante à estrutura do ordenamento jurídico e de sua interpretação. Em especial nos direitos fundamentais, vinculantes até ao poder reformador ou conformador do Legislativo, aplicador do Executivo e revelador do Judiciário. Na medida dada por Maurice Hariou, alinhando o compromisso constitucional imantado na Carta, ao Estado e à Sociedade Civil. Um compromisso necessariamente transformador.

Compreender essa transformação na esfera proprietária, exige uma clivagem ampla nos conhecimentos tradicionais. Inicia-se por ter presente o conteúdo do § 1º do art. 5º da Constituição, que expressa de modo iniludível a eficácia direta dos direitos fundamentais formais, elencados ao logo dos incisos. Dentre esses, a garantia à propriedade privada e sua afetação à função social, emergem para análise em relevância.

Perceba-se os extremos conducentes destes atratores normativos do sistema, que oscilam entre a tutela absoluta do interesse privado e sua desafetação completa em prol dos interesses não titulares. A propriedade oscila, não linearmente, entre esses extremos, sem tocar-lhes nunca. Nas suas funções de onda. Diferente do que possa parecer, essa disposição transcende em muito qualquer aparente contradição.

Traduz a maleabilidade do sistema, cuja racionalidade intersubjetiva revela a impossibilidade de supressão da propriedade privada, bem como a impossibilidade dela perceber-se absoluta, descartando, por conseguinte, a bem da eficácia dos direitos fundamentais, as teorias civilistas tradicionais oriundas da modernidade e recebidas no   corpo das codificações que produziu e segue a produzir, não obstante o menor vigor.

Assim, para possibilitar transcender a análise estrutural do direito subjetivo proprietário, necessita-se agudizar o rigor de análise para tocar as teorias que lhe são subjacentes.

De modo sintético, pode-se apontar quatro teorias que buscaram sua tradução, com âncoras metodológicas distintas, não obstante revelarem sua inaptidão à contemporaneidade brasileira à primeira vista.

As teorias civilistas, nominadas realista, personalista e eclética, ainda biografárias do direito das coisas nos manuais acadêmicos, suportam um direito subjetivo de natureza absoluta, consoante o compromisso liberal que servia de lente aos seus olhares.

Os realistas, de corrente racionalista histórica, fundados em um argumento de natureza histórica, idealizaram uma propriedade absoluta com assento romano, identificada aos jura in re, importando em uma relação absoluta por traduzir-se apenas entre o titular e o bem.

De outra banda, personalistas, em seu racionalismo eivado da nova metafísica kantiana, encontram o caráter absoluto da propriedade privada em sua oponibilidade erga omnes que importa na sujeição de tudo e de todos.

O positivismo fundiu essas percepções na teoria mista ou eclética, esposada em ambos códigos civis nacionais, onde a absolutividade é revelada nos dois aspectos atribuídos à propriedade. No interno ou econômico, estaria a relação do titular com o bem. No aspecto externo ou jurídico, o dever de abstenção universal que a propriedade faria derivar.

As oposições formais à essas percepções são diversas, porém superadas pela oposição material que o Direito vigente, mormente de índole constitucional, perfectibilizam. A funcionalização imposta à propriedade na esfera dos direitos fundamentais enquanto medida ao exercício proprietário, edificando limites internos ao próprio direito subjetivo de propriedade. Jamais se poderá compreendê-la absoluta. É relativa por fundamento. Esse é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal, já na primeira metade dos anos noventa do Século XX.

A quarta teoria que o sistema descarta pelas opções normativas que possui, é a de León Dugüit, que percebe a propriedade como uma função e não como um direito subjetivo.

Tal escola não transita no ordenamento jurídico nacional pois sua adoção importaria em verdadeira supressão do direito de propriedade (em geral), também possuindo óbice material nos direitos fundamentais, para além dos formais derivados da incapacidade de sua articulação processual.

A teoria da autonomia, ao emancipar o domínio, enquanto conjunto de faculdade reais subjetivas, da propriedade, enquanto titularidade instrumentalizadora dos respectivos vínculos reais subjacentes, da qual derivam deveres bilaterais aos titulares e não titulares, estrutura uma teoria dúctil o suficiente para apropriar-se do instrumental clássico do Direito Privado e reescrevê-lo diante dos compromissos constitucionais atuais, sem as anteriores contradições ou simplificações.

Em sentido específico, mais próximo do direito das coisas e do direito notarial, propriedade migra para a condição de espécie de um gênero maior: as titularidades. Estas possuem um caráter intersubjetivo e necessariamente relativo. Enquanto relação, podem até ter origem registral, mas que resultam em vínculo entre titulares e não titulares e alcançam toda espécie de patrimônio passível de apropriação; material ou intelectual, real ou virtual.

Vertem assim, para dentro das titularidades, interesses que transcendem ao interesse privado, para alcançar o interesse público e o interesse social em concurso mediado pelos direitos fundamentais, irredutíveis pela legislação infraconstitucional.

Todas as titularidades, sejam instrumentalizadoras de direitos reais sobre coisa própria (propriedade singular, horizontal, flat, shopping center, ou multipropriedade), alheia (enfiteuse, superfície, uso, usufruto, habitação, direito real de aquisição, leasing, alienação fiduciária, hipoteca, penhor ou anticrese), ou vínculos inter res (caso das servidões prediais – em contraponto às servidões administrativas de ordem pessoal), são afetadas pela nova arquitetura dada pelo direito positivo e os valores que se lhe agregaram.

Traduzir esse conteúdo na dinâmica da aplicação do Direito, importa retomar a Teoria Geral das Normas, pois o sistema jurídico, ao migrar constitucionalmente, trouxe um novo paradigma consigo. O Estado Social e Democrático de Direito.

Se é certo que os direitos fundamentais integram o núcleo da constituição, também é certo não serem sinônimos de princípios fundamentais. Esses são as normas densificadoras do princípio estruturante da tessitura regulatória. Por ser um sistema material, necessariamente axiológico, sua estrutura complexa desafia a de seus antecessores formais, que desfilaram na era positivista encerrada com sangue em Nuremberg.

As normas não se fundam nelas mesmas, carecendo de valores para dar-lhes sentido. Por certo os valores também precisarão de valoração em concreto para fazerem sentido, porém ao serem incorporados pelo sistema jurídico (perceba-se em expresso no preâmbulo da constituição) traduzem limites ao intérprete nos conteúdos possíveis do sistema, que se objetivam nas escolhas normativas que o conformam.

O sistema abre-se, pois, dos valores para as respectivas camadas normativas às quais analisar-se-á em seguida, para então voltar-se, talvez na trajetória contrária da Fenomenologia de Husserl, “aos valores neles mesmos”. Destaque-se que deles deriva a orientação teleológica que é impressa à rede normativa.

Não obstante sua força vinculante, ao integrar o ordenamento, diversamente do que é possível de perceber em Alexy, valores não são normas e não obstante conter-se nelas, delas também destacam-se para poderem oferecer sentido. Ressignificar a cada vez que chamados à aplicação. Em que chamados a dar sentido. Telos. A cada vez que se retoma os valores, deve-se buscar legitimar toda a ordem jurídica, no sentido da nova aporese que aporta.

O conjunto desses valores afetados ao ordenamento, é integrado à norma que centra as demais normas. A mais abstrata delas, onde todas as demais devem fazer sentido. O princípio estruturante. A viga mestra das normas de um sistema. A Constituição deriva o princípio do Estado Social e Democrático como princípio estruturante.

Os princípios fundamentais são todos àqueles que decorrem do estruturante, denotando escolhas de concretização do que lhe antecede e sendo densificados por todos os princípios gerais de direito que devem lhe concretizar.

Os princípio gerais se concretizam pelos princípios especiais de direito e estes pelos especialíssimos, que guardam quase a concretude das regras aos quais precedem.

Para além das regras, encontrar-se-á tão somente as normas individuais, cuja densidade é tão elevada, que vinculam apenas sujeitos determinados.

Enquanto a garantia da propriedade privada é um princípio especial que concretiza o princípio geral da liberdade, a função social da propriedade privada é densificador do princípio da igualdade.

Igualdade e liberdade possuem um sentido refundido daquele que emergia das constituições liberais. Concretizam o princípio da dignidade humana como princípio fundamental que liga-se diretamente ao do Estado Social e Democrático de Direito.

Quando se percebe a contemporaneidade afirmar a condição de meio para a propriedade privada, é uma decorrência da condição relativa da atual estrutura de titularidades, onde concorrem interesses diversos e complexos no seu bojo, legitimados pela incidência do princípio da função social. Com tal cerne afirma-se a despatrimonialização do Direito Privado, mediante sua repersonalização.

A porosidade dos princípios, garantida pela presencialidade dos valores para a respectiva aplicação, garante a mobilidade suficiente para o sistema jurídico adequar-se à dinâmica e sinuosidade da sociedade pós-moderna com suas fraturas e rupturas. Em especial com seus contrastes, sendo garantido o pluralismo como opção de igualdade sem uniformidade.

Esta mesma abertura do sistema jurídico garantida pelos princípios, que prescindem das regras e de uma antecipação visionária dos fatos e fenômenos sociais pelo legislador, também servem de limite a esta mesma indeterminação que promove.

Não se admite anomia, ou seja, quaisquer lacunas de valores no sistema. Deste modo o intérprete não pode integrar o Direito com valores que o Direito não receba em seu interior. A abertura existente, tem natureza axiológica, porém é apenas normativa para afastar a subjetivação já visível ao fim positivismo. Também a objetivação resta sepultada, em prol da racionalidade intersubjetiva inerente à operação axiológica dos princípios.

5. Brevíssimo Tópico em Torno da Tópica Proprietária

À cada interpretação normativa, todo o sistema está sendo interpretado, importando em um processo de re-legitimação em concreto do Direito, sempre que incida.

Isso ocorre, pois a cada vez que incide o Direito guarda um significado diferente. Quando este novo significado é deixado sem revelar, importa em uma negativa de jurisdição, pois anti-natural e inseguro seria que um direito ao longo dos anos, em uma sociedade em constante mutação, permanecesse intocavelmente igual.

A propriedade não se distancia das demais instituições neste ponto, sem prejuízo dos diversos mitos econômicos em sentido que possa querer se fazer contrário. O sentido que o sistema econômico possa querer atribuir às titularidades de apropriação, passa pela mediação do sistema jurídico para ganhar sentido, ou no mínimo cogência.

A função social, mesmo que insistam alguns em chamar de cláusula geral, se abebera diretamente do núcleo constitucional para ganhar sentido e mesmo para dar sentido ao conteúdo econômico que a Constituição imante aos bens privados ou de mercado.

A própria economia, no Estado Social, para além do decantado discurso de eficiência, deve se abeberar dos direitos fundamentais para ganhar sentido e resultar em um mercado includente que contribua na redução das desigualdades. Jamais dará sentido aos direitos fundamentais, para desnaturá-los e monetarizá-los, com seu falso determinismo utilitarista. Ao contrário.

Deve retirar deles o seu sentido; pois algo que fundamenta à si mesmo, autobiografa-se fundamentalista. Para a economia, quando fechada em seu sistema, o último fundamento (grund) afigurar-se-á abismo (abgrund) de um não-fundamento. Simplesmente por sua incapacidade de fundamentar. No Estado Social e Democrático de Direito, não se tratará de uma opção de eficiência o existencialismo humanista que lhe é inerente.

 

Notas:
[1]. Vespasiano é o primeiro Imperador nascido fora das fronteiras itálicas, vindo a ser patrício por adoptio.
[2]. Destaque interessante para o Zohar. Nele, Deus é que expulso do Paraíso pelos homens.
[3]. Desde a Grécia o termo carregava a designação de teto (abrigo ou casa) como também sepultura (em largo sentido, também, morada). Também a propriedade serve de ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos. Da família (enquanto possível esfera do privado) aos ancestrais, retornando, assim, para a polis (enquanto possível esfera do público). Em diversas civilizações.
[4]. Mais tarde diria o Rei de França ao Papa, contestando o Tratado de Tordesilhas que protegia interesses ibéricos nas américas, não conhecer cláusula alguma no testamento de Adão que legasse àquele recanto do mundo às coroas de Portugal e Espanha.
[5]. Destaque-se a impossibilidade de uma teoria dos direitos subjetivos para o Direito Romano, inconsciente até da própria noção de direito subjetivo para teorizar. No mesmo sentido, é condição de possibilidade uma mínima teoria dos direitos subjetivos, para pensar-se os respectivos direitos qual formulados nessa mesma modernidade criadora do Direito Civil nos moldes em que conhecemos.
[6]. Termo intencionalmente ligado ao sentido de partícula, relativo ao caso concreto topicamente vertente da unidade axiológica do sistema em contraponto à jurisprudência; esta reveladora das potencialidades daquela partícula; suas possibilidades abstratas identificadas à condição de onda. A matéria jurídica, até sua solução, atende a esta dualidade onda/partícula, revelada por Einstein ao início do Século XX, na ruptura com o paradigma anterior (iluminista), dado por Newton e adotado pelo ainda influente positivismo jurídico, desde o seu início.
[7]. Destaque-se que nem toda a propriedade no Direito Administrativo é Propriedade Pública. Nesse sentido o patrimônio da Sociedade de Economia Mista tem natureza privada, sendo de natureza pública apenas o seu controle acionário.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ricardo Aronne

 

Professor Titular e Orientador nos Programas de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado da PUCRS, Advogado e Consultor Jurídico no RS, Doutor em Direito Civil e Sociedade, Mestre em Direito do Estado. Desde 1997, ininterruptamente, coordenador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PUCRS/CNPq).

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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