Uma visão crítica do direito penal do inimigo

INTRODUÇÃO

Como bem sabemos, o homem é fruto de seu tempo e, como tal, produz seu pensamento embebido pelas necessidades e formatações de sua era. Dessa maneira, a tão admirada filosofia aristotélica não deixou de ter seu nódulo ao tentar justificar a necessidade da escravidão, tampouco Montesquieau escapou de se contaminar de uma concepção discriminatória do homem por meio da raça.   

O que se evidencia na vida são as constantes modificações, das quais não se furtam as relações humanas e, portanto, as normas que as regulam. Também se observa sem esforço, que existe uma aceleração nessas mudanças, retirando, em poucos séculos, o caráter dogmático conferido às conquistas daquilo que parecia universal e eterno.

Assim, as certezas dos séculos medievais em que a Igreja ditava a ordem das coisas deixaram de ecoar entre os humanistas e renascentistas que firmaram outros valores. Pelo racionalismo o certo se tornou duvidoso, contestado desde a origem por Descartes.

A efemeridade das concepções teria abarcado os axiomas humanitários, considerados intocáveis pela doutrina mais elevada, sendo que os direitos e garantias selados na fase iluminista, estendidos e decantados no curso do século XX, são agora colocados em xeque por doutrina que tenta estruturar um direito penal apto a enfrentar a criminalidade na era daquilo que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama de modernidade reflexiva.        

O caráter evolucionista e a importância dos direitos perpetrados nos ordenamentos jurídicos das nações ocidentais são reconhecidos mesmo por aqueles que escrevem e rezam na cartilha que segrega as espécies humanas em cidadãos e inimigos.        

A crise aponta para a necessidade de se estabelecer que bens jurídicos devem ser erigidos ao patamar da tutela penal, se há obrigatoriedade de se verificar uma efetiva ofensa a esse bem ou se mera ameaça é suficiente e, ainda, se a antecipação da tutela é válida, além de outras questões seguras por essas vigas de sustentação.

Trata-se de uma equação com muitas incógnitas, sendo que as políticas criminais adotadas nas diversas nações não são propriamente políticas, mas legislações divorciadas de um sistema harmônico gerando disparidades e incongruências, sobretudo em face da Carta Maior.

Ou seja, as supostas soluções vêm “a toque de caixa” e, não raramente, se revelam refratárias dos anseios governamentais de dar uma resposta a uma situação midiática, sem, contudo, implicar medida deveras necessária ou acertada.

Dessarte, já teria havido nos ordenamentos jurídicos a contaminação de políticas criminais que reduzem os direitos substantivos e formais concebendo um direito penal para cada situação e desvirtuando os ideais iluministas que serviram de farol a tantas legislações.  

A segurança pública em troca da redução das garantias, bem como o papel das penas constituem a polêmica que o Direito Penal se encontra nesse início de  século.  Aguarda-se das políticas criminais dos Estados, a tomada de um rumo mais definido, incluindo a possível visão de Günter Jakobs pela cisão do Direito Penal em dois: do cidadão e do inimigo.  

1 – SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL

A Revolução Industrial deu nova feição ao mundo, o trabalho deixou de ser artesanal, perdendo o caráter eminentemente de sobrevivência para se tornar parte de uma linha de produção, gerando um grande acúmulo de capital nas mãos de poucos que passam a trabalhar com a perspectiva de alcançar lucros cada vez maiores.

Nesse cenário, as relações sociais se intensificaram e o papel do Estado seria redesenhado no século XX pela política social do welfare state que tentou sem muito êxito compensar as mazelas sociais resultantes do próprio sistema capitalista.

Após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento tecnológico, as descobertas sucessivas e a expansão dos meios de consumo nos levaram a um novo mundo, caracterizado pelo maçante uso dos meios naturais para suprir as demandas de mercados cada vez maiores, que por sua vez exigiram dos países centrais uma movimentação em busca de novos mercados.

Por fim, a tecnologia aplicada na rede mundial de computadores corroborou no sentido de encurtar as veredas da informação facilitando a comunicação nas mais diversas formas.  

Ulrich Beck apresenta uma visão bastante realista dos séculos mais recentes das sociedades européias classificando-as em dois momentos: a primeira modernidade e a segunda modernidade.

A primeira, o sociólogo classifica como uma sociedade estatal e nacional, estruturas coletivas, pleno emprego, rápida industrialização, exploração da natureza visível.[1]

A segunda é chamada de modernidade reflexiva, em que valores são colocados em contraposição. Diz o sociólogo:

“A modernidade iluminista deve enfrentar o desafio de cinco processos: a globalização, a individualização, o desemprego, o subemprego, a revolução dos gêneros e, last but not least, os riscos globais da crise ecológica e da turbulência dos mercados financeiros”[2]

Na sociedade de riscos algumas condutas são toleradas, como as lesões ocorridas durante a prática de esportes, no entanto, outras, devem, respeitado o princípio da fragmentariedade, ser tutelados pelo direito penal, como crime organizado, terrorismo, destruição do meio ambiente, etc.

Assim, um dos impasses da atualidade está em se definir até que ponto cabe ao Direito Penal o papel em defesa do coletivo, fazendo uso de institutos como o perigo abstrato e o tipo aberto, contrariando princípios como o da intervenção mínima e antecipando a tutela penal.

Para Silva Sanchez, o Direito Penal possui, hodiernamente, três velocidades: a primeira é a clássica em que as garantias iluministas estão presentes bem como as sanções mais rígidas do sistema; a segunda é pautada pela flexibilização das garantias penais e processuais em troca de um afrouxamento na busca da verdade real, possibilitando a resolução por meio de acordo e; a terceira, à qual abordaremos neste artigo, é a defendida por Jakobs, permitindo a redução ou eliminação das garantias em determinados casos, sem, contudo, redução das punições mais severas.

As vertentes estão colocadas, a sociedade aguarda por um norte seguro com uma legislação atualizada e que corresponda às mazelas causadas pelos avanços tecnológicos, globalização, etc; que parecem potencializar a fragilidade dos sistemas e majorar os riscos imanentes à contemporaneidade.

2 – O “INIMIGO” PARA OS CONTRATUALISTAS

O pensamento do doutrinador alemão não é uma criação totalmente original, podendo ser encontrados no campo filosófico, rastros de suas ideias. 

Gomes explica os fundamentos filosóficos para o inimigo da seguinte forma:

“i) o inimigo ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); ii) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); iii) em casos de alta traição contra o Estado, o criminosos não deves ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); iv) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o ‘estado comunitário-legal’, deve ser tratado como inimigo” (Kant)[3]

Para o controvertido jurista, as legislações penais já se encontram contaminadas por dispositivos dissonantes com o Direito Penal de modelo clássico-liberal, em razão das necessidades de se combater a moderna criminalidade, que se caracteriza por uma atuação complexa e enraizada nos sistemas.

Dessa maneira, o penalista alemão propõe a separação do Direito Penal clássico de um novo modelo apropriado para uma espécie de guerra, em especial contra o criminoso inserido em uma organização, grupos terroristas e de narcotráfico.

Suas ideias por tanto convergem para “salvar” o criminoso comum do enrijecimento do sistema penal, em que as garantias estão sendo reduzidas e, em seu pensamento, assim deve prosseguir a fim de que se possa combater os delinquentes que reiteradamente se põem de forma contrária às normas.

Nessa separação, passaria a existir o cidadão e o inimigo, àquele aplicar-se-ia o Direito Penal com suas garantias de índole iluminista, ao inimigo, seria aplicada a legislação sem as tradicionais garantias penais e processuais; afinal para o doutrinador, inimigo sequer é pessoa.        Jakobs na obra “Direito Penal do Inimigo” cita de forma expressa filósofos que já haviam, ainda que de outra maneira, tratado da figura de um inimigo em sociedade.

Tal pensamento costumava advir dos contratualistas, em especial Rousseau e Hobbes. Para o primeiro, inimigo era qualquer delinquente, qualquer um que se colocasse de forma contrária ao que ele chamava de vontade geral. Já Hobbes possuía um pensamento mais próximo à concepção desenvolvida por Jakobs, uma vez que apenas considerava inimigo aquele que praticasse atos de alta traição.

Para o doutrinador alemão o criminoso comum deve ser mantido no sistema de normas do Direito Penal, ao contrário do que defendia o filósofo genebrês Rousseau, que apregoava a retirada do Direito para qualquer praticante de delito, considerado inimigo.     

3 – A TEORIA SISTÊMICA

Ainda com relação às ideias que inspiraram Jakobs, estão as desenvolvidas pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, que defendia ser a sociedade formada por diversos sistemas autopoiéticos, isto é, que possuem a capacidade de se autoprocriar.

Dessa maneira, o direito deve ser visto como um sistema fechado, que sofre influência de outros, mas não é controlado, tampouco consegue interferir de forma direta em outros sistemas. Tal concepção parece direcionar para a necessidade de se rever a função do direito, limitando-o a dar vigência à própria norma.       

Comentando a teoria luhmanniana, Alexandre Rocha Almeida de Moraes diz:

“Luhmann entende, portanto, que o direito não pode ter a pretensão de fazer uma reengenharia social, diante da interação constante com outros sistemas. Assim, agindo, estaria trabalhando com códigos diversos de ‘lícitos/ilícitos’, perdendo o horizonte dos seus limites operativos e gerando inevitáveis frustrações”[4]

Portanto, com essa teoria parece que se quer aclarar qual o papel do Direito, sobretudo porque tende-se a atribuir-lhe papéis fora de seu âmbito de alcance, o que acaba por gerar frustrações.

Jakobs, a partir dessas idéias, constrói sua teoria para dizer que a preocupação do Direito Penal é a norma em si, essa deve ser protegida e sua vigência reafirmada toda vez que houver seu descumprimento.

A sociedade se revela por demais complexa, havendo inúmeras maneiras de se combater os problemas. Com a separação em sistemas, as dimensões de cada área tornam-se mais objetivas, evitando-se a geração de expectativas, porquanto estariam assentadas em pressupostos errôneos quanto ao papel de cada sistema. 

Como bem assinala Francisco Munõz Conde:

“(…) Em última instância, a teoria sistêmica conduz para substituição do conceito de bem jurídico pelo de ‘funcionalidade sistêmica social’ perdendo a ciência do direito penal o último ponto de apoio que existe para a crítica do direito penal positivo”.[5]

4 – O PAPEL DAS TEORIAS DA PENA

Creio não haver dúvida que nas mais remotas aplicações de pena o intuito era o de satisfação por aquilo que se podia chamar de vingança. Ou seria justiça? Para Nietzsche sacraliza-se a vingança sobre o nome de justiça.[6]

Hodiernamente atribuem-se várias funções à pena, pode-se classificá-la em: absolutas; pune-se porque pecou; relativas ou utilitárias; pune-se para que não peque e; mistas; pune-se porque pecou e para que não peque[7].          

A teoria absoluta é também conhecida como retributiva, porquanto visa unicamente aplicar ao criminoso o castigo, sendo eventuais outros efeitos como da intimidação aos demais cidadãos mero efeito secundário. 

A pena é necessária para a afirmação do Direito, para Luiz Flávio Gomes a punibilidade abstrata integra o conceito de crime, ou seja, mesmo que não haja punição por qualquer razão como o enquadramento em uma causa de extinção, a previsão de punição deve compor os elementos que integram o crime.

Na teoria relativa é atribuída à pena função utilitarista, servindo como instrumento de prevenção, não encerrando um fim em si própria.

Ferrajoli entende ser possível a configuração de duas espécies dentro da corrente utilitarista da pena: as de prevenção geral e as de prevenção especial. As primeiras fazem referência aos cidadãos em geral, as segundas visam especificamente ao delinquente.

Referidas doutrinas podem ser combinadas resultando em quatro sub-espécies. Assim, temos:

“i) doutrinas da prevenção especial positiva – conferem à pena a função positiva de corrigir o réu;

ii) doutrinas da prevenção especial negativa – dão à pena a função de eliminar ou, pelo menos, neutralizar o réu;

iii) doutrinas da prevenção geral positiva – atribuem à pena a função positiva de reforçar a fidelidade dos cidadãos à ordem constituída;

iv) doutrinas da prevenção geral negativa –  que conferem à pena a função de dissuadir os cidadãos por meio do exemplo ou da ameaça que ela possui.”[8]

As doutrinas de prevenção especial, por focar o indivíduo, atribuem ao Direito Penal uma responsabilidade que nem sempre, ou, em casos em que as políticas públicas não são adequadas, quase nunca, se consegue lograr êxito. 

Ao passo que as doutrinas de prevenção geral, a preocupação está na potencialidade do cometimento de novos delitos, servindo a pena como exemplo às demais.

Surgiram, ainda, correntes mistas, o que é muito natural, sobretudo, ao se verificar que a pena efetivamente gera uma série de implicações não somente a quem se submete a ela.

Jakobs afilia-se à corrente da prevenção geral positiva, acreditando que a pena tem como função a confirmação da norma e de sua vigência, não cabendo à pena a defesa de bens jurídicos.

Cabe a ressalva de que se os garantistas são contrários à crescente punição por mera colocação em perigo de determinado bem, não parece coerente que defendam a função da pena como ressocializadora. Isso porque, aquele que pratica ato colocando um bem jurídico tutelado pelo direito penal em risco precisaria ser reeducado. Sendo que a punição apenas quando efetivamente o bem é lesionado não altera substancialmente a necessidade de se reeducar, mas apenas revela a verdadeira intenção de se usar a pena como retribuição ao mal praticado.

5 – CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Em 1985 Jakobs falava a respeito de um Direito Penal do Inimigo mais no sentido de constatar uma realidade existente de afrouxamento das garantias e a criação de normas preocupadas em se antecipar ao crime, combatendo atividades de perigo.

 Para o penalista: “…o inimigo que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade”[9].

Observa Luiz Flávio Gomes que na obra de Jakobs “Direito Penal do Inimigo” fica evidenciado que a referida postura descritiva já havia sido abandonada. O que teria ocorrido desde 1999.[10]

O Direito Penal do inimigo parece ser uma resposta quase que automática à sociedade de riscos, dada a necessidade que temos de manter as condutas gerando o menor número de riscos à coletividade.

Decorre como sintoma de um direito penal expansivo que tenta acastelar os mais diversificados ramos de atuação, sobretudo, quando envolvem a tutela de direitos difusos e coletivos como o direito consumerista e ambiental.  

O crescimento da tutela penal de forma desordenada tem levado a desproporcionalidade das penas que, não raramente, são maiores para atos de mera antecipação penal do que para crimes de efetiva lesão a bens relevantes de dano individual.

Em sua teoria defende-se que o inimigo não é pessoa e, portanto, não goza das garantias de cidadãos.

“… um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa…”[11]

O inimigo são os terroristas, criminosos econômicos e todos os que se mostrarem contrários de forma permanente ao ordenamento jurídico sem dar garantias de que se submeterão aos dizeres normativos.

A eles, Jakobs, no âmbito processual, defende a retirada de garantias como a comunicação do preso com seu advogado. E alerta que o Direito Penal do Inimigo é uma realidade que deixa fragmentos nas diversas legislações. Assevera, ainda, que há muito tempo que o legislador tem optado por um Direito Penal que se antecipa à ofensa a um bem jurídico, dizendo:

“Em 1943 (!) se agravou o preceito (entre outros aspectos) vinculando a pena ao fato planejado. Deste modo, o delito contra a segurança pública se converteu em uma verdadeira punição de atos preparatórios, e esta modificação não foi revogada até os dias de hoje. Portanto, o ponto de partida ao qual se ata a regulação é a conduta não realizada, mas só planejada…”[12]     

Observa-se que, no Direito Penal do Inimigo destacam-se as seguintes características: i) antecipação da tutela penal; ii) aumento desproporcional de pena; iii) descrição vaga dos delitos e das penas; iv) aplicação de medida de segurança ao inimigo ao invés de pena; v) visão prospectiva, ou seja, maior preocupação com o que o inimigo possa vir a fazer do que com o que ele fez; vi) a punição é de acordo com a periculosidade do inimigo e não com sua culpabilidade; vii) uso e abuso de medidas preventivas como a interceptação telefônica sem justa causa, dentre outras.

Jakobs, assim como Roxin, entende que o Direito Penal deve ser direcionado por sua função, desprendendo-se de dados como ação e causalidade. Contudo divergem de forma veemente quanto à função do Direito Penal. Para o defensor do Direito Penal do Inimigo, a função deve ser a de reafirmar o próprio direito, protegendo a vigência da norma; para Roxin, o de defender certos valores consagrados pela humanidade.

6 – CRÍTICAS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO

O fato é que o tipo, sob o ponto de vista meramente formal de análise de uma relação causal e observação da finalidade do ato praticado, tem sido superado nos julgados que abrem espaço para uma política criminal aplicada pelo próprio Poder Judiciário, o que se vê em julgamentos que deixam de condenar pelo crime de furto em face do ínfimo valor do bem, citando a aplicação do princípio da insignificância.

Portanto, a tendência é considerar o tipo não apenas em seu aspecto formal, mas também material, de efetiva ofensa a um bem jurídico. Essa concepção é defendida por Roxin, para quem sem a ofensividade e lesividade a um bem jurídico, não há que se falar em aplicação do Direito Penal, que deve ser visto como última instância dentro do Direito na resolução de problemas.

Na contramão dessa visão, que tem o bem jurídico como parâmetro, está a doutrina de Jakobs, que defende a norma em si sem análise de um valor material, mas tão somente preocupado em mostrar sua vigência.

Tal ideia é criticada por servir a um Estado de feições totalitárias. Kelsen, que explicou o direito de forma racional para ganhar a admiração dos pensadores do chamado Círculo de Viena, foi alvo de duras críticas por defender um Direito, cuja validade de normas era verificada, exclusivamente, sob o ponto de vista formal, sem análise de seu conteúdo substantivo, o que serviu até mesmo para encaixe de uma doutrina de ideais do partido nacional socialista na Alemanha hitlerista.

A concepção de Jakobs quer restringir o âmbito do Direito Penal, que cabe reafirmar a vigência da norma, sendo questão de outros sistemas a análise de qual política criminal melhor estaria adequada àquela realidade.     

Não é à toa que o doutrinador alemão foi buscar a expressão usada por filósofos; “inimigo” para a defesa de um Estado com características nitidamente totalitárias. Assim, o sistema idealizado por Rousseau em “O Contrato Social” não deixava margem para a discussão das vontades da minoria ou mesmo não permitia uma discussão a respeito de uma vontade geral, uma vez institucionalizada. Hobbes, então, era o próprio defensor de um Estado totalitário.

Percebe-se que esse tipo de estrutura estatal costuma aparecer quando determinada sociedade encontra-se em situação caótica, então, o Estado totalitário com fórmulas mágicas e maniqueístas, separando o certo do errado, surge como solução aos problemas.

Como é cediço, no Brasil a ditadura militar em sua fase incipiente foi bem-vista por muitos que depois passaram a criticá-la. Isso porque, num primeiro instante pôs ordem num Estado que gerava insegurança a todos. No entanto, mais tarde o preço foi cobrado gerando insegurança a classes específicas, como, por exemplo, a de professores universitários, que tinham que lecionar preocupados se o conteúdo da aula tangenciava comentários sobre um regime socialista ou de crítica ao então vigente.

Assim, seguir a cartilha jakobsiana de criar categorias de seres humanos e dar poderes discricionários nas mãos do Estado para combatê-los, certamente levará o Estado a uma situação sem controle gerando constantes injustiças e inseguranças. 

É abrir senda para o desconhecido, ou melhor, para um Estado que praticará arbitrariedades respaldado por uma legislação aberta, que não permitirá ser questionada, uma vez que se terá abandonado os ideais liberais e toda as conquistas de garantias. Seria um verdadeiro retrocesso sob a bandeira de que se estaria combatendo um inimigo.

A criação de um Direito Penal paralelo para combate dessas categorias que ameaçam a própria existência do Estado, na concepção de Jakobs, certamente não traria segurança aos não-inimigos, até porque a eleição do inimigo pode ser alterada durante a vigência desse Estado, que admite o desrespeito à dignidade humana.   

Cancio Meliá alerta para a impossibilidade de se ter dois setores do Direito Penal num mesmo ordenamento jurídico. Segundo o jurista, tal concepção é ilusória. As normas destas características tendem a contaminar outros âmbitos de incriminação[13].

Diz ainda, que os fenômenos aos quais o Direito Penal do Inimigo reage não possuem a periculosidade terminal que querem parecer[14]. Observa que se tratam de delitos que colocariam em xeque elementos essenciais da sociedade o próprio funcionamento do Estado[15].

O jurista espanhol entende que atribuir uma situação de excepcionalidade ao combate a esses tipos de criminosos não traz vantagens, devendo-se agir com normalidade, de acordo com critérios proporcionais[16].

O Direito Penal do Inimigo é, antes de mais nada, um direito penal do autor, em que o centro das discussões não é um fato criminoso praticado, mas quem está sendo acusado. Dessa maneira, elegem-se aqueles sobre os quais não vigorarão as garantias penais e sobre os quais poderá recair as arbitrariedades legitimadas por um Estado que discrimina.

Para Zaffaroni, o Direito penal do autor não pune a pessoa em razão do ato praticado, esse apenas revelaria uma forma de ser do autor. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade[17].

 

Com essas ideias, as margens de decisão do magistrado seriam reduzidas, transferindo-as a outro sistema, da política que decidirá, por exemplo, discricionariamente, quem é o inimigo. Quem sabe por meio de norma penal em branco heterônoma a ser completada por meio de resolução, consagrando um verdadeiro Estado totalitário! 

O bem jurídico como parâmetro dá um rumo à sociedade que, inexoravelmente, trabalha assentada em valores. Ainda, que se possa admitir um Direito Penal que antecipe a lesão ao bem jurídico em determinados casos, isso não retira a importância do Direito Penal existir para a tutela de determinados bens, pois caso contrário estará sendo aberto caminho para que o Estado faça uso do Direito Penal para fins de interesse dos governantes.

Como bem destaca Meliá: “… qualquer concepção teórica pode ser corrompida ou usada para fins ilegítimos;”[18]

Tanto é verdade que, com base nas ideias difundidas por Cristo, a Igreja Medieval montou a Inquisição e praticou atos que ela própria reconhece, hoje, como equivocados. Sob a bandeira dos ideais de Rousseau, os liberais capitalistas hastearam bandeiras, bem como Karl Marx assinava em baixo nas suas críticas ao instituto da propriedade.            

CONCLUSÃO

A criminalidade atual não é de fato a mesma de algumas décadas atrás, muito menos a do período iluminista. No entanto, esse apelo à criação de um Estado paralelo com viés notadamente totalitário poderá trazer muitos efeitos colaterais.

A história está aí para se verificar quantas vezes as nações saíram de um regime democrárico para entrar num ditatorial e depois enfrentaram o Estado para retomar a democracia.

Poderá se dizer, mas Jakobs não está propondo um Estado totalitário. Ora o fato é que os Estados totalitários também surgem a partir de pequenas mudanças, essas sempre começam com a retirada de direitos de alguma classe eleita inimiga, então temos o Estado Leviatã, monstro incontrolável com tentáculos alcançando as mais diversas áreas.  

Aliás, o que o penalista propõe nem mesmo ele parece conhecer os limites, uma vez que as margens que separariam as duas estruturas do Direito não foram bem traçadas, ficando a cargo de cada Estado definir as suas necessidades.

É sabido que o Direito Penal em si não tem como resolver os problemas como muitos leigos acreditam. Os crimes nunca deixarão de existir nem mesmo a redução drástica deles estaria a cargo do Direito Penal, já que esse age muitas vezes em fase ulterior ao acontecimento e seu caráter inibidor não é suficiente para tanto.

Todavia, a preocupação de enxergar o direto com a limitação baseada na teoria sistêmica parece por demais radical, isso porque o esvaziamento do sistema do direito de operações além de “lícito/ilícito” poderá implicar a robotização de juízes, o que também parece nos reportar a validade da norma tão somente pelo ponto de vista formal, uma visão kelseniana que serviu aos interesses nazistas.

Aliás, a associação do Direito Penal do Inimigo a um Direito nazista não é exercício de grande esforço. Isso porque, ambos são calcados numa mera valorização da norma em si, possibilitando a troca de valores e legitimando um sistema fundado em desrespeito à condição humana.     

Da mesma forma, está o perigo das ideias de Jakobs, porquanto ele acaba por propor um Estado policialesco que com o escopo de garantir segurança acabará por retirá-la dos cidadãos. Afinal, quem garantirá quem será quem? Em outras palavras quem será cidadão e quem será inimigo? Uma vez inseridos esses conceitos no sistema jurídico, caberá à política criminal preenchê-los conforme o interesse vigente.

O que se observa é que o Estado sempre que falha em seus papéis básicos, como o de dar segurança pública, quer se socorrer em políticas que buscam atalhos para a solução das mazelas, causando mais estragos e fugindo de um enfrentamento real do problema.

A realidade das penitenciárias no Brasil, por exemplo, é que estão em total desacordo com a previsão legislativa de 26 anos atrás, ou seja, não se pode dizer que determinado sistema não funciona ou o quão falho ele se revela se nunca saiu do papel.

Se presos usam celular de dentro das cadeias para controlar ações criminosas do lado de fora, o problema não são as visitas ou o direito de falar com seu advogado, mas a corrupção no sistema e falta de controle interno somadas à ociosidade.

Portanto, o enfrentamento dessa nova criminalidade deve ser feito de maneira eficiente com o uso de tecnologia para controlar os deslocamentos do acusado, para controlar as atividades dos presos, deve ser feita com penas aplicadas em tempo razoável e com o rigor necessário, quando transitada a condenação, sem que isso, implique a eleição de métodos arbitrários por parte do Estado que deve permanecer sob o crivo de um Estado de Direito, sem características terroristas.        

  

Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto.Tratado de direito penal. parte geral I: São Paulo, Saraiva, 14 ed, 2009.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
GOMES, Luiz Flavio. Direito penal. parte geral: teoria constitucionalista do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.v.3.
_______Direito penal do inimigo (ou inimigos do direito penal). Disponível em: http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf. Acesso em 10.01.2009.
JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
MORAES, Alexandre Almeida Rocha de. Direito penal do inimigo: a terceira velocidade do direito penal. 1.ed. Curitiba: Juruá, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
TRINDADE, André. Para entender luhmann. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral.5.ed. Revista dos Tribunais, 2004.
Notas:
[1] http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm Acessado em 15 de janeiro de 2009
[2] http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm Acessado em 15 de janeiro de 2009
[3] GOMES, Luiz Flávio. Direito penal do inimigo (ou inimigos do direito penal). Disponível em: http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf. Acesso em 10.01.2009, p.1-2.
[4] MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito penal do inimigo. 1.ed. Curitiba: Juruá, 2008, p.92.
[5] MUNÕZ apud MORAES. Ibidem. p.103.
[6] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.62.
[7] MORAES. Op. cit. p.142.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. p.245
[9] JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.37.
[10]GOMES, Luiz Flávio. Direito penal do inimigo (ou inimigos do direito penal). Disponível em: http://www.revistajuridicaunicoc.com.br/midia/arquivos/ArquivoID_47.pdf. Acesso em 10.01.2009.
[11] JAKOBS, op. cit. p.36.
[12] ibidem. p.44.
[13] Ibidem. p.73
[14] Ibidem p.76
[15] Ibidem p.77
[16] Ibidem p.78.
[17] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral.5.ed. Revista dos Tribunais, 2004, p.115.
[18] JAKOBS. Op. cit. p.75.

Informações Sobre o Autor

Wendel Golfetto

Procurador Federal, Mestre em Direito Penal pela PUC/SP, Especialista em Ciências Criminais pela UNAMA/LFG, Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP


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