I) Introdução:
A lei 10.406 de 10 de janeiro de 2003, o novo Código Civil, trouxe substanciais mudanças no âmbito do Direito de Família, bem como no Direto Sucessório.
Em breves e despretensiosas linhas, o objetivo deste artigo será apontar as alterações advindas da nova lei, bem como sugerir aos registradores de títulos e documentos que, ao registrarem contratos de convivência, alertem os companheiros da clareza do privilégio legal existente entre a família constituída pelo matrimônio, em detrimento da família adveniente da união estável, para que estes possam, conscientemente, escolher entre um ou outro instituto.
Por óbvio, não se está a afirmar que o contrato formalizado previamente ou durante a união (última hipótese com sustentabilidade nos argumentos de Francisco José Cahali, in Contrato de Convivência na União Estável, ed. Saraiva), por si-só, caracterize o início da situação jurídica protegida. Muito pelo contrário, a eficácia do avença ficará condicionada ao evento posterior consistente na efetiva existência da união estável, ou seja, o decurso do tempo e o implemento dos requisitos legais.
Também não estou a sustentar a necessidade do registro do contrato de convivência, pois a legislação prevê, apenas, contrato escrito, com expressa manifestação de vontade dos companheiros, não sendo essencial nenhum ato ou outra formalidade. Ocorre que o Registro de Títulos e Documentos produz, quanto aos seus assentamentos, efeito de cognoscibilidade por terceiros, podendo, por isso, ser oposto a todos; ademais, conserva e autentica a data da documentação. Por esse motivo, muitos dos conviventes optam por efetivarem o dito registro e é justamente, neste momento, que o Registrador, o qual possui fé pública, deverá esclarecer às partes das nuanças e emaranhados da legislação vigente.
II) Da união estável:
A Carta Política de 1988 elevou a união estável à condição de entidade familiar, conforme se depreende da leitura do art. 226, § 3º, cujas disposições foram regulamentadas pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96.
O novo Código incorporou muitas situações da lei de 1996, entre elas, o conceito de união estável. Claro é que definir o instituto da união estável, em poucas palavras, não é uma tarefa simples, mas os elementos objetivos e subjetivos legais são esclarecedores para a caracterização do tão tormentoso tema. O art. 1723 do novo código assim dispôs:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher, configurada na convivência pública contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Portanto, ao que se verifica, não foi estabelecido tempo rígido para a caracterização da união, como dispunha a Lei 8.971/94; a divergência existente entre a revogação ou não do art. 1º da Lei 9.278/96 também ficou sepultada, tendo em vista que o § 1º do art. 1723 reconheceu, expressamente, a possibilidade de pessoa casada separada de fato ou judicialmente viver em união estável.
Assim, como asseverou Rodrigo da Cunha Pereira no Livro de Direito de Família e o Novo Código Civil e nos Comentários ao Novo Código, o novo código abandonou conceito mais tipificado e fechado, estabelecido nas leis vigentes, optando por definições abertas, proporcionando uma hermenêutica mais contemporânea, tendo em vista que o Direito deve proteger a essência, muito mais do que a forma e a formalidade.
Por outro lado, claro está que não se caracterizará a união estável quando estiverem presentes os impedimentos matrimoniais do art. 1521:
‘Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou o civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem foi cônjuge do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.’
(Observar o Decreto-Lei 3.200/1941 tocante ao parentesco até o terceiro grau, inclusive – mesmo para a configuração da união estável).
Diferentemente do acima alegado, as causas suspensivas constantes no art. 1523, não serão óbice algum para a caracterização do instituto, apenas, trarão conseqüências de natureza patrimonial, pois os conviventes, que se encontrarem em qualquer situação prevista pela norma, deverão, por analogia ao art. 1641, inciso I do CC, obedecer, durante a convivência, o regime de separação obrigatória de bens, observada a súmula 377 do STF.
Assim, delimitado resumidamente o regulamento da união estável, necessária se faz a caracterização das conseqüências da relação.
a – Efeitos patrimoniais
Na ausência de estipulação em contrário, no contrato, vigorará entre os companheiros, no que couber, o regime da comunhão parcial, conforme o preceituado no art. 1725.
Assim, comunicar-se-ão os bens adquiridos por um ou ambos os conviventes, na constância da união e a título oneroso, bem como os descritos no art. 1.660. Excluir-se-ão os demais, conforme o regulamento do art. 1659, do regime da comunhão parcial de bens no casamento.
b – Da conversão em casamento
A conversão da união estável em casamento vem expressamente regulada no art. 226, § 3º da CF e no art. 1.726 do CCB o qual assim dispõe:
“A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.”
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul visando regular o sistema de conversão estabeleceu texto normativo através do Provimento nº 027/03 da Corregedoria Geral, acrescentando os seguintes artigos à Consolidação Normativa Judicial:
“ART. 1006 – (…)
TÍTULO III – NORMATIZAÇÃO ESPARSA:
CAPÍTULO V – DA TRANSFORMAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO
ART. 1.006A – A TRANSFORMAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO SERÁ PROCEDIDA MEDIANTE PEDIDO AO JUIZ, QUE DESIGNARÁ AUDIÊNCIA PARA OUVIR OS REQUERENTES E DUAS TESTEMUNHAS – NÃO IMPEDIDAS OU SUSPEITAS.
ART.1.006B – O JUIZ INDAGARÁ SOBRE OS REQUISITOS DO CAPUT DO ART. 1.723 DO CC/2002 E AINDA SOBRE OS IMPEDIMENTOS REFERIDOS NO § 3º DO MESMO DISPOSITIVO.
ART. 1.006C – A AUDIÊNCIA ORAL PODERÁ SER DISPENSADA DESDE QUE OS REQUERENTES COMPROVEM A UNIÃO ESTÁVEL MEDIANTE DOCUMENTOS E DECLAREM DE PRÓPRIO PUNHO, COM FIRMA RECONHECIDA POR AUTENTICIDADE, A INEXISTÊNCIA DOS IMPEDIMENTOS ANTES MENCIONADOS.
ART. 1.006D – A PETIÇÃO INICIAL SERÁ INSTRUÍDA COM A CERTIDÃO DE NASCIMENTO OU DOCUMENTO EQUIVALENTE (ART. 1.525, I) E SE FOR O CASO COM O DOCUMENTO REFERIDO NO ART. 1.525, II. DEVERÁ CONSTAR A OPÇÃO QUANTO AO REGIME DE BENS E REFERÊNCIA AO SOBRENOME.
ART. 1.006E – O JUIZ, A PEDIDO DOS REQUERENTES, PODERÁ FIXAR O PRAZO A PARTIR DO QUAL A UNIÃO ESTÁVEL RESTOU CARACTERIZADA.
ART. 1.007F – O MINISTÉRIO PÚBLICO SERÁ OBRIGATORIAMENTE INTIMADO, SOB PENA DE NULIDADE ABSOLUTA.
ART. 1.006G – É FACULTADA A INTERVENÇÃO NO PROCESSO A QUEM CONHECER ALGUM DOS IMPEDIMENTOS ELENCADOS NO ART. 1.521, COM EXCEÇÃO DO INCISO IV (ART. 1.723, §1 º, DO CC/2002).
ART. 1.006H – OS PROCLAMAS E OS EDITAIS FICAM DISPENSADOS.
ART. 1.006I – HOMOLOGADA A CONVERSÃO (ART. 1.726 DO CC/2002), O JUIZ ORDENARÁ O REGISTRO PARA QUE O OFICIAL PROCEDA AO ASSENTO NO LIVRO B-AUXILIAR.”
Como se vê, não há facilitação alguma para a conversão da união estável em casamento. Na verdade, continua a ser mais simples casar diretamente, em vez de optar pela conversão.
Em claras palavras, o Des. Luis Felipe Brasil Santos, in A União Estável no Novo Código Civil, artigo publicado no site do IBDFAM, sintetizou a matéria: “Grave inconveniente, no entanto, está na determinação de que a conversão em casamento se dê mediante procedimento judicial. Descumpre aí o legislador, flagrantemente, o comando constitucional (art 226, p 3º, CF) no sentido de que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. Ocorre que o procedimento em juízo tornará, sem dúvida, mais morosa e onerosa a conversão. Assim, melhor será aos companheiros celebrar um casamento comum, que será seguramente mais rápido, além de menos oneroso.”
Também Giselda Hironaka, Direito Civil: estudos, Del Rey, 2000, rispidamente se manifestou: “esta é a mais inútil de todas as inutilidades”.
c – Da sucessão:
Esse é um tema bastante tormentoso, merecedor de profundo lamento, uma vez que recebeu discriminado tratamento em relação à sucessão dos cônjuges, nas palavras do Desembargador anteriormente citado, em outro artigo publicado, A Sucessão dos companheiros no Novo Código Civil, no site do IBDFAM – RS.
O novo código melhorou substancialmente a posição do cônjuge supérstite na sucessão legítima, considerando-o herdeiro necessário conforme art. 1845:
A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória;ou se no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes , em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Claro que somente se reconhecerá direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato a mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que esta convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente, art. 1830.
Diferentemente, os companheiros, herdeiros facultativos, participarão da sucessão do outro somente quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável, nas seguintes condições, art. 1790:
‘I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho.
II – ser concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles.
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um terço) da herança.
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Como se vislumbra, o panorama legal foi modificado radicalmente. O novo Código promoveu um recuo facilmente notável em relação aos direitos já adquiridos pelos companheiros, através das leis 8.971/94 e 9.278/96.
De se notar, a sucessão do companheiro somente se limitará aos bens adquiridos na vigência da união estável, à exceção do inciso IV do artigo supracitado. Claro que não se confundirá meação com direito hereditário. Se os bens são comuns o companheiro terá direito à meação, sendo o objeto da sucessão a meação do companheiro falecido bem como outros bens, de propriedade exclusiva deste, adquiridos na constância da união.
Cabe trazer à colação parte do artigo escrito por Zeno Veloso, sobre o tema, in Direito de Família e o Novo Código Civil: ‘Restringir os bens adquiridos pelo de cujos na vigência da união estável não tem nenhuma razão, não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema, podendo gerar conseqüências extremamente injustas; a companheira de muitos anos de um homem rico, que possua vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro se este não adquiriu outros bens durante o tempo da convivência. Ficará esta mulher – se for pobre – literalmente desamparada, mormente quando o falecido não cuidou de beneficiá-la em testamento.’
Como antes mencionado, se o companheiro for o único herdeiro, conforme art. 1790, inciso IV, receberá, somente nesse caso, a totalidade da herança, não apenas os bens adquiridos na constância da união estável.
Observada a limitação quanto aos bens objeto da sucessão, sem obscuridade, pode-se observar que o companheiro sobrevivente, quando concorrer com os filhos comuns, receberá quota equivalente. Então, v.g., se o autor da herança adquiriu, na constância da união estável, juntamente com a companheira, um apartamento de R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais), R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) serão deduzidos, porque meação, o resto será partilhado entre os filhos e a companheira.
Já se o companheiro sobrevivente concorrer com filhos do autor da herança, receberá, apenas, a metade do que couber a cada um daqueles. Assim, utilizando o mesmo exemplo, após deduzida a meação, o restante, ou seja, R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) serão divididos em partes diferenciadas entre os herdeiros, sendo uma quota parte para cada filho e ½ da quota para a companheira.
Se concorrer com outros parentes sucessíveis (ascendentes ou colaterais) receberá 1/3 da herança. O Desembargador, no mesmo artigo anteriormente referido, assim se manifestou: ‘A regra constante no inciso III consagra injustiça. Concorrendo com parentes colaterais, o companheiro receberá apenas um terço da herança. E, destaque-se, um terço dos bens adquiridos durante a relação, pois quanto aos demais, tocarão somente ao colateral, Assim, um colateral de quarto grau (um único “primo irmão”) poderá receber o dobro do que for atribuído ao companheiro de vários anos, se considerados apenas os bens adquiridos durante a relação, ou muito mais do que isso, se houver bens adquiridos em tempo anterior.’
Por fim, não havendo parentes sucessíveis, receberá a totalidade da herança.
Uma diferença marcante entre a sucessão do companheiro e do cônjuge e que cabe aqui salientar diz com a reserva da quarta parte da herança contida no art 1.823. Nesse caso, quando o cônjuge concorrer com filhos comuns terá reservado para si, no mínimo, uma quarta parte da herança, ou seja, 25% (vinte e cinco por cento). Quer dizer que se o cônjuge sobrevivente possuir 10 (dez) filhos comuns, receberá 25% da herança e o restante 75% será partido entre os outros dez herdeiros, direito esse não reconhecido ao companheiro.
Também não terá o companheiro sobrevivente o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, previsto no art. 1831, uma vez que direito previsto expressamente ao cônjuge sobrevivente.
Por fim, enfatizo, a situação privilegiada do cônjuge no Novo Código, em relação ao companheiro, no concernente ao reconhecimento daquele como herdeiro necessário e este, apenas, como herdeiro facultativo.
d – Conclusão:
Assim, verificada a discrepância do tratamento dado ao cônjuge e ao companheiro, pelo novo Código, necessária se faz a alerta dos Registradores, operadores do Direito, às partes interessadas, a fim de que possam, bem informadas, optar entre um ou outro instituto para a constituição da família, porque, como visto, as conseqüências são objetivamente muito distintas.
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