Violência na família: Lei Maria da Penha

Resumo: Com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, o Brasil atende à recomendação da Comissão interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. A limitação da violência doméstica e familiar contra a mulher se dá em razão da própria gravidade do tema e de sua repercussão social.  Sendo a família a base da sociedade, sua desintegração passa a ser sentida na comunidade, em razão da própria projeção da violência doméstica à sociedade e recebe proteção especial do Estado. A Lei Maria da Penha tem finalidade que transcende seu próprio objeto, ou seja, o de contribuir para uma aplicação mais eficaz da lei em geral. Por inicio, serão feitos alguns comentários a partir da violência intra-familiar, enfatizando sua caracterização e motivos que levam a vítima a não denunciar o agressor. Num segundo momento, será feita explanação dos dispositivos da Lei Maria da Penha, com ressalvas às divergências quanto à abrangência da norma, argüidas pela doutrina.


Palavras-chave: Violência familiar, Proteção, Mulher.


Abstract: With the entry into force of Law Maria da Penha, Brazil meets the recommendations of the Inter-American Commission on Human Rights of the Organization of American States. The limitation of domestic violence against women occurs because of the severity of the issue and its social repercussions. Since the family is the foundation of society, its disintegration is being felt in the community, by reason of the projection of domestic violence to society and receives special protection of the state. The Maria da Penha Law is purpose that transcends its own object, namely to contribute to more effective enforcement of the law in general. In the beginning, some comments are made ​​from domestic violence, emphasizing its characterization and reasons why the victim not to report the offender. Subsequently, explanation will be made of the provisions of Law Maria da Penha, with caveats to disagreements on the scope of the rule, defendants by the doctrine.


Keywords: Family Violence, Protection, Women.
Sumário: 1. Introdução. 2. Violência de gênero e familiar. 2.1. Inovações trazidas com a Lei Maria da Penha. Considerações finais. Referências bibliográficas.


1. Introdução


A história da luta pelos direitos da mulher é árdua e nem sempre compensatória. Ainda hodiernamente, mesmo tendo como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e sendo o princípio da isonomia um direito fundamental e cláusula pétrea da mesma Constituição (art. 5º, I), para não mencionar outras normas protetivas, o preconceito de gênero priva as pessoas do sexo feminino da efetivação plena de sua condição de pessoa humana e de cidadã.


Na Antiguidade, as tribos e famílias eram comandadas pela mãe, e por isso eram chamadas de sociedades matriarcais. Nessas organizações sociais, as mães eram responsáveis pela divisão de bens, pelo sustento da família e pela organização do clã. Ao contrário do que se observa posteriormente, o marido é que se mudava para a tribo da esposa. Além disso, os antigos consideravam que o sangramento mensal da mulher e aquele ocorrido no momento do parto eram responsáveis pela subsistência do recém-nascido (SERAFINS, 2002, item 934).


Foi na Idade Contemporânea que a mulher emancipou-se e conquistou seu espaço no cenário social. Desde o direito de votar até a criação de leis versando sobre a proteção específica, a mulher está significativamente mais presente nas empresas, na política e no mundo científico. Muito importante neste processo foi o movimento do feminismo, movimento criado em 1848, na Convenção dos Direitos da Mulher dos Estados Unidos, que foi influenciado pelas conquistas da Revolução Francesa (cujo lema era “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”), e que reivindicava que os direitos sociais e políticos adquiridos nas revoluções também deveriam se estender às mulheres, pois estas também eram cidadãs.


No Brasil, muitos textos legais surgiram tendo como objeto central a proteção dos direitos da mulher. Sem prejuízo de outros, é importante mencionar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei 5.452/1943), que traz regras sobre a proteção ao trabalho da mulher, instituindo inclusive a licença maternidade e impondo a proibição de distinção salarial pelo gênero; o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) que tipifica, entre outros crimes, o de estupro; e a Lei 10.778/2003 que estabelece a notificação compulsória no caso de violência contra a mulher em serviços de saúde públicos ou privados.


A discriminação e violência praticadas pelas mais variadas formas contra as mulheres são manifestações de desigualdade de poder estabelecida ao longo da história entre homens e mulheres. A desigualdade é fruto da cultura patriarcal e machista dominante na sociedade, impondo nas leis e costumes uma falsa idéia de superioridade dos homens e de inferioridade e subordinação das mulheres. Com a promulgação da Lei Maria da Penha, a sociedade deparou-se com um novo mecanismo de proteção à mulher vitimada.


2. Violência de gênero e familiar


A mulher é a maior vitima da violência de gênero. De acordo com as estatísticas, em 95% dos casos de violência praticada contra a mulher, o homem é o agressor. Usam-se as expressões violência de gênero e violência contra a mulher como sinônimos[1].


Conforme Saffioti[2], violência de gênero é um conceito mais amplo que o de violência contra a mulher e abrange não apenas as mulheres, que no Brasil é constitutiva das relações de gênero. Violência de gênero, por sua vez, produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe, raça/etnia. Expressa uma forma particular da violência global mediatizada pela ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo, para isso, usar a violência.


Dentro dessa ótica, a ordem patriarcal é vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero, uma vez que está na base das representações de gênero que legitimam a dominação masculina internalizada por homens e mulheres.


Pode-se dizer que a violência é representada por ações humanas realizadas por indivíduos, grupos, classes ou nações, numa dinâmica de relações ocasionando danos físicos, emocionais, morais e espirituais. Contudo, historicamente, a mulher já foi e, ainda hoje, continua sendo vítima de uma forma de violência muito específica, a chamada violência doméstica e familiar. Este tipo de violência caracteriza-se como uma forma de agressão sofrida em um local onde deveria predominar relações harmoniosas de afeto, respeito e amor mútuo entre seus membros. Em decorrência deste tipo específico de violência, esse espaço privado das relações afetivas deixa de ser um local acolhedor, respeitoso e confortável, para se tornar um ambiente perigoso e tenso[3].


Como sabemos, a violência doméstica é um problema que atinge mulheres em todo mundo. Assim, Cavalcanti complementa que ela decorre da desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, bem como da discriminação de gênero ainda presente tanto na sociedade como na família.[4]


Assim a violência doméstica e familiar esta definida no artigo 5º da lei 11.340/06, que diz:


“Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:


I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;


II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;


III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.


Parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.[5]


A violência doméstica praticada contra a mulher é um acontecimento antigo e que viveu no silêncio e no anonimato no decorrer dos anos. Isso ocorria porque esse fato era socialmente aceito diante do predomínio de uma cultura machista, de dominação masculina. Como conseqüência absurda dessa dominação machista, as situações de violência do homem em relação à mulher, principalmente nas relações familiares e afetivas, sempre foram tratadas como algo natural, de menor importância e intrínseco à condição humana de gênero.


No Brasil, o feminismo concebeu propostas consistentes pela influência dos movimentos sufragistas americanos e ingleses, sendo que a roupagem dada ao Brasil aproxima-se muito mais da americana. Foi Bertha Lutz, líder da “Federação Brasileira pelo Progresso Feminino” (FBFF) fundada em 1922, que se destacou na luta pelo sufrágio feminino, representando um instrumento de legitimação do poder político e concentrando a luta no nível jurídico institucional da sociedade[6].


Os movimentos feministas sofreram um período de estagnação, principalmente em decorrência do caráter do governo da época que impedia qualquer tipo de manifestação popular.


No dia 29 de maio de 1983, em Forlaleza, no Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por um tiro de espingarda por seu marido, que simulou um assalto. Como conseqüência desse tiro, Maria ficou paraplégica. Não satisfeito com o resultado dessa violência, que tinha como finalidade a morte da mesma, depois de alguns dias o marido tentou outra investida: dessa vez a tentativa de eletrocutá-la, enquanto ela tomava banho.


Seis meses antes da prescrição do cumprimento do débito, Marco Antonio foi condenado pelo crime a cumprir, em regime aberto, dez anos de pena. O caso de Maria da Penha demonstra que a violência doméstica é reflexo da cultura onde a mulher é vista como ser inferior que deve se subjugar às vontades de seus parceiros.


A história de Maria da Penha foi objeto de tamanha repercussão internacional que o Comitê Latino-Americano e Caribe para Defesa da Mulher (CLADEM) formalizou denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).


Em 2001, o Brasil foi condenado internacionalmente através de um relatório da OEA que impôs um pagamento de indenização de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizando o Estado Brasileiro pela negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas a de simplificar procedimentos judiciais, penais, diminuindo os prazos processuais de julgados.


Diante da pressão sofrida pela OEA, o Brasil viu-se forçado a cumprir convenções e tratados internacionais dos quais é signatário. Está é a razão da referência que a ementa da Lei Maria da Penha faz à Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.


Antes da entrada em vigor da Lei 11.340/06 já havia uma definição da violência doméstica e familiar contra a mulher, com até mesmo algumas formas de manifestações. Vejamos: são atos dirigidos contra a mulher que correspondem a agressões físicas ou sua ameaça, a maus-tratos psicológicos e a abusos ou assédios sexuais, cometidos por um membro da família ou pessoa que habite, ou tenha habitado o mesmo domicílio.


As diversas formas de violência contra a mulher estão descritas na Lei 11.340/06, resultado da ratificação, pelo Brasil, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, em novembro de 1995.


A Lei Maria da Penha resultou na ampliação das formas de manifestação da violência doméstica contra a mulher. Além da mais praticada, a violência física, incluiu-se também a moral, sexual, psíquica e patrimonial.


– Violência Física


De acordo com art. 7º da Lei 11.340/2006, violência física é aquela entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.


– Violência Psicológica


Conforme art. 7° da Lei 11.340/2006, violência psicológica é compreendida como qualquer conduta que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento das mulheres ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.


– Violência Sexual


De acordo com art. 7º da Lei 11340/2006, a violência sexual é compreendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.


– Violência Patrimonial


Conforme o art. 7° da Lei 11.340/2006, a violência patrimonial é qualquer conduta que configure retenção, subordinação, destruição parcial ou total de objetos da mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.


– Violência Moral


De acordo com art. 7º da Lei 11.340/2006, a violência moral é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.


2.1. Inovações trazidas com a Lei Maria da Penha


De acordo com Cunha e Pinto[7], grandes foram as inovações trazidas pela Lei Maria da Penha, notando-se nitidamente a preocupação de proporcionar realmente a máxima proteção às mulheres já vítimas e também às possíveis futuras vítimas desta forma tão cruel e covarde de violência. Dessa forma, a lei atua realmente da maneira a que se propôs, fazendo o uso de seus mecanismos no combate da violência nos casos já existentes e conseqüentemente agindo de forma inibidora e repressiva contra aqueles que por ventura poderiam tornar-se agressores, verificando-se assim seu efeito preventivo. Para facilitar a visualização das inovações desta legislação, veja-se o que descreve a cartilha informativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Governo Federal:


“INOVAÇÕES DA LEI


1. Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher.


2. Estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.


3. Determina que a violência doméstica contra a mulher independe de sua orientação sexual.


4. Determina que a mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz.


5. Ficam proibidas as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas).


6. É vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor.


7. A mulher vítima de violência doméstica será notificada dos atos processuais, em especial quando do ingresso e saída da prisão do agressor.


8. A mulher deverá estar acompanhada de advogado(a) ou defensor(a) em todos os atos processuais.


9. Retira dos juizados especiais criminais (lei 9.099/95) a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher.


10. Altera o código de processo penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher.


11. Altera a lei de execuções penais para permitir o juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.


12. Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher.


13. Caso a violência doméstica seja cometida contra mulher com deficiência, a pena será aumentada em 1/3.


AUTORIDADE POLICIAL


1. Prevê um capítulo específico para o atendimento pela autoridade policial para os casos de violência doméstica contra a mulher.


2. Permite a autoridade policial prender o agressor em flagrante sempre que houver qualquer das formas de violência doméstica contra a mulher.


3. Registra o boletim de ocorrência e instaura o inquérito policial (composto pelos depoimentos da vítima, do agressor, das testemunhas e de provas documentais e periciais).


4. Altera o código de processo penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher.


5. Altera a lei de execuções penais para permitir o juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.


6. Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher.


7. Caso a violência doméstica seja cometida contra mulher com  deficiência, a pena será aumentada em 1/3.


PROCESSO JUDICIAL


1. O juiz poderá conceder, no prazo de 48h, medidas protetivas de urgência (suspensão do porte de armas do agressor, afastamento do agressor do lar, distanciamento da  vítima, dentre outras), dependendo da situação.


2. O juiz do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher terá competência para apreciar o crime e os casos que envolverem questões de família (pensão, separação, guarda de filhos etc.).


3. O Ministério Público apresentará denúncia ao juiz e poderá propor penas de 3 meses a 3 anos de detenção, cabendo ao juiz a decisão e a sentença final.


4. Remete o inquérito policial ao Ministério Público.


5. Pode requerer ao juiz, em 48h, que sejam concedidas diversas medidas protetivas de urgência para a mulher em situação de violência.


6. Solicita ao juiz a decretação da prisão preventiva com base na nova lei que altera o Código de Processo Penal.”


O artigo 5º da Lei 11.340/2006 determina que, para seus efeitos, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, psíquico, sexual e dano moral ou patrimonial, praticada no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto.


Em um primeiro momento, diante desse conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher e do que foi abordado no capítulo que trata da violência de gênero, pode-se afirmar que os sujeitos do crime previsto na Lei 11.340/2006, são:


– sujeito passivo: somente a mulher que tenha sido vítima de agressão decorrente de violência doméstica e familiar;


– sujeito ativo: somente o homem.


Contudo, há opiniões doutrinárias que não encaram de forma tão simples essa afirmação, devido ao disposto no art. 5º, parágrafo único, da Lei Maria da Penha: “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”, ou seja, quando se fala em violência doméstica e familiar contra a mulher, o foco principal de tudo isso é o sujeito passivo, a mulher, sendo que independe se o sujeito ativo da violência é homem ou mulher.


Como se destaca na seqüência, alguns doutrinadores defendem que o sujeito passivo também pode ser o homem, assim como o sujeito ativo pode ser a mulher. Sem dúvida, existem controvérsias. Souza descreve, com propriedade, a controvérsia quanto ao sujeito ativo dos crimes tratados nessa lei:


“O tema tem dado ensejo a uma aberta divergência quanto à pessoa que pode figurar como autor dos crimes remetidos por esta Lei, havendo uma corrente que defende que, por se tratar de crime de gênero e cujos fins principais estão voltados para a proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar, com vistas a valorizá-la enquanto ser humano igual ao homem e evitar que este se valha desses métodos repugnáveis como forma de menosprezo e de dominação de um gênero sobre o outro, no pólo ativo pode figurar apenas o homem e, quando muito, a mulher que, na forma do parágrafo único deste artigo, mantenha uma relação homoafetiva com a vítima, ao passo que uma segunda corrente defende que a ênfase principal da presente Lei não é a questão de gênero, tendo o legislador dado prioridade à criação de “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, sem importar o gênero do agressor, que tanto pode ser homem, como mulher, desde que esteja caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade[8]”.


É importante ressaltar, que não é qualquer mulher e nem qualquer homem que podem ser sujeitos dos crimes previstos na Lei Maria da Penha. Entre eles deve existir uma relação pessoal, ou seja, de afetividade ou doméstica (art. 5º, I e III), que tanto pode decorrer do parentesco, do relacionamento amoroso e da convivência ou ex-convivência no lar. Um homem que agride uma mulher na rua para roubar sua bolsa, não é processado e julgado nos termos da Lei Maria da Penha, mas sim pela suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003.


De um modo geral, a Lei Maria da Penha cria diversas garantias à mulher agredida, desde a saída do agressor de casa, a proteção dos filhos e o direito de reaver seus bens, até o cancelamento de procurações feitas em nome do agressor.


Considerações finais


A violência doméstica e familiar há muito vem sendo tema de homéricas discussões, uma vez que as mulheres vêm conquistando cada vez mais o seu espaço junto à sociedade moderna. Vindo de um passado degradado e repleto de muito sofrimento e luta, as mulheres têm conseguido muitas vitórias em diversos ramos, como, por exemplo, no campo profissional, possibilitando a elas que demonstrem cada vez mais sua capacidade e competência, ganhando o direito de poder expressar-se livremente sobre todos os assuntos sem temer recriminações.


Assim, pode-se dizer que a violência é representada por ações humanas realizadas por indivíduos, grupos, classes, nações, numa dinâmica de relações, ocasionando danos físicos, emocionais, morais e espirituais. Contudo, historicamente a mulher há muito foi e, ainda hoje, continua sendo vítima de uma forma de violência denominada de violência de gênero.


A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, foi criada para garantir mecanismos de repressão e prevenção à violência de gênero, expressão utilizada para fazer referência às diversas condutas praticadas contra as mulheres, condutas estas que resultam em danos físicos, psicológicos, morais, sexuais e materiais, caracterizando-se pela imposição de uma submissão do gênero feminino perante o controle do gênero masculino, fato que remonta de um passado de subordinação feminina nessa relação de poder.


Dentro desse contexto, o termo gênero aborda as diferenças socioculturais existentes entre os sexos masculinos e femininos, que se traduzem em desigualdades econômicas e políticas, colocando a mulher em posição inferior a do homem nas diferentes áreas da sociedade humana, no que diz respeito a essa relação de poder.


O importante é observar o significado do termo gênero para a sociologia, a antropologia e outras ciências humanas. Elas abrem mão da categoria gênero para demonstrar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na vida pública e privada de ambos os sexos, impondo-lhes papéis diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram posições de dominação e de submissão.


A situação de violência de gênero no Brasil chegou ao extremo no triste acontecimento envolvendo a cearense Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de um marido violento, que após varias agressões e duas tentativas de homicídio, colocou-a prostrada em uma cadeira de rodas. Com muita garra, seu grito e sua luta adquiriram repercussão mundial, demonstrando o agravamento da violência praticada contra a mulher no Brasil, o que exigiu, devido à severa cobrança dos órgãos internacionais de direitos humanos e da mulher, o enfrentamento do problema pela sociedade e pelo Poder Público.


Dessa forma, constatou-se, com essa pesquisa, que o crime de violência conta a mulher é uma realidade muito complexa e que necessita da atenção irrestrita do ente estatal, com a elaboração de medidas de combate e repressão a esta atitude, seja com leis especificas, como o caso da Lei 11.340/06, que proporcionou uma verdadeira revolução dentro desse contexto com seus diversos dispositivos inovadores; seja com a elaboração de políticas públicas com o intuito de fazer a inclusão das mulheres no contexto social moderno, onde ela está nem atrás nem à frente do homem, mas sim lado a lado com este, para que juntos possam vencer os embates do convívio cotidiano.


Mas infelizmente a iniciativa estatal não é suficiente para que esse objetivo seja alcançado, dependendo em muito da atitude e do posicionamento repulsivo a este tratamento. Principalmente por que o crime de violência doméstica é um crime silencioso e que, em geral, demora muito a vir á tona.


Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, 25% do total de 29% das mulheres agredidas no Brasil, em 2005, não contaram a ninguém sobre a violência que sofreram; 60% nunca deixaram o lar, nem por uma noite, em função das agressões sofridas; menos de 10% procuraram serviços especializados de saúde ou segurança. Em média, a mulher demora 10 anos para pedir ajuda pela primeira vez.


 


Referências bibliográficas:

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica Contra a Mulher no Brasil: Análise da Lei “Maria da Penha”, nº 11.340/06; 2ª ed.- Bahia: Jus Podivm, 2008, p 26.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), comentada artigo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MATTIOLI, Olga Maria Cecilliato; ARAUJO, Maria de Fátima (organizadores).Gênero e violência. São Paulo: Arte & Ciência, 2004, p. 168.

NJAINE, Kathie; SOUZA, Edinilsa Ramos de; MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. Conselho Federal: A cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil, 19 jun. 2006. Disponível em: http://www.oab.org.br/notícia.asp2.id=7287 , acesso em 01 de setembro 2011.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a Mulher. Curitiba: Editora Juruá, 2007.

TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher?: São Paulo: Brasiliense, 2003, p.11.

Notas:

[1] TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher?: São Paulo: Brasiliense, 2003, p.11.

[2] Ibid.

[3] NJAINE, Kathie; SOUZA, Edinilsa Ramos de; MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. Conselho Federal: A cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil, 19 jun. 2006. Disponível em: http://www.oab.org.br/notícia.asp2.id=7287 , acesso em 01 de setembro 2011.

[4] CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica Contra a Mulher no Brasil: Análise da Lei “Maria da Penha”, nº 11.340/06; 2ª ed.- Bahia: Jus Podivm, 2008, p 26.

[5] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos; Lei nº. 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha.

[6] MATTIOLI, Olga Maria Cecilliato; ARAUJO, Maria de Fátima (organizadores).Gênero e violência. São Paulo: Arte & Ciência, 2004, p. 168.

[7] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), comentada artigo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

[8] SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à Lei de Combate à Violência contra a Mulher. Curitiba: Editora Juruá, 2007.

Informações Sobre o Autor

Aloisio Barbosa Calado Neto

Doutorando em Ciências Juridicas e Sociais pela UMSA – Universidade del Museo Social Argentino. Pós Graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho – RJ. Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas. Membro do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.


Equipe Âmbito Jurídico

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