Resumo: O presente artigo analisa a questão relacionada à vulnerabilidade e à abusividade nos contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e pelo Código Civil de 2002 (CC/02). Tem como ponto de partida uma breve reflexão acerca dos princípios sociais da contratação (função social, boa-fé objetiva e equivalência material). Em um segundo momento é apresentada a regulamentação das cláusulas abusivas no CDC, com base nos comandos normativos que versam sobre o tema. Por fim, apresenta-se uma leitura acerca das claúsulas abusivas nas relações contratuais civis, tendo por fundamento a aplicação dos princípios sociais e de regras específicas, reguladas pelo CC/02.
Palavras-chave: Contratos; Cláusulas abusivas; Vulnerabilidade; CDC; CC/02
Sumário: 1 Introdução 2 Princípios Sociais da contratação 2.1 Função social do contrato 2.2 Boa-fé objetiva 2.3 Equivalência material 3 Cláusulas abusivas e vulnerabilidade 3.1 Cláusulas abusivas no CDC 3.2 Cláusulas abusivas no CC/02 4 Conclusões
1.Introdução
O contrato é o principal instrumento jurídico de desenvolvimento das atividades econômicas. Como tal, sofreu diversas mutações ao longo do tempo, seguindo a lógica imposta pelo ideário dominante em cada período histórico. No Estado moderno, partindo-se da análise do liberalismo, a concepção de contrato, bem como a sua teoria geral, teve forte influência do pensamento individualista, centrado na autonomia privada e na igualdade formal entre os contratantes.
A partir do liberalismo, o contrato passou a ser realmente considerado como mecanismo que propicia a circulação de riquezas, assumindo papel central na esfera jurídico-econômica. Com as codificações, peculiares ao liberalismo, e a consequente dicotomia direito público e direito privado, os contratos têm sua disciplina afetada ao do direito civil, principal ramo privatista.
Em um segundo momento, o do Estado Social, de contornos intervencionistas, ganharam relevo os aspectos sociais do contrato. De mero acordo de vontades destinado a produzir efeitos jurídicos, o contrato agregou ao seu conceito a idéia de instrumento de efetivação da justiça social. Não se concebia mais a autonomia total das partes envolvidas no negócio jurídico, tampouco a obrigatoriedade absoluta dos termos da avença, traduzida na conhecida expressão pacta sunt servanda. Surge, pois, um arcabouço jurídico voltado a garantir a igualdade material entre os pactuantes, calcado em cânones que ganharam a denominação de “princípios sociais”.
2. Princípios Sociais da contratação
Os primados sociais não eliminam os postulados liberais, quais sejam, os princípios da autonomia privada, da força obrigatória dos contratos e da relatividade de seus efeitos. Têm, todavia, o condão de limitar o seu alcance e conteúdo. Baseados no ideário do Estado social, procuram se distanciar do individualismo peculiar ao período liberal, que predominou na codificação de 1916, conferindo um caráter coletivo aos contratos. A partir do momento em que esses princípios sociais passaram a ser expressamente consagrados pelo Código Civil de 2002, conquistaram o status de cláusulas gerais, ou seja, de formulações contidas na lei, de caráter geral e conteúdo impreciso, que conferem maior amplitude ao juiz para decidir os casos concretos que lhe são submetidos. Passemos a uma breve análise de cada um destes princípios sociais.
2.1 Função social do contrato
Este princípio está expressamente disposto no CC/02, no art. 421, o primeiro que trata da Teoria Geral dos Contratos. Determina que os interesses individuais das partes engajadas no contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais. Havendo conflito entre esses interesses individuais e coletivos, deverão prevalecer estes últimos, em detrimento da vontade do indivíduo.
O papel exclusivamente individual do contrato, como pretendiam os liberais, é incompatível com o status por ele adquirido no Estado Social, de instrumento de efetivação da justiça social. A função social, portanto, funciona como limitadora da vontade das partes, que não podem, em virtude de um contrato, gerar prejuízos a terceiros ou, em maior escala, à toda a coletividade.
Há que se ressaltar, porém, que o princípio da função social do contrato não possui apenas este aspecto negativo, de limitar a autonomia privada. Deve também ser interpretado por um viés positivo, ativo, no sentido de impor aos contratantes um dever de atuação em benefício de toda a coletividade.
2.2 Boa-fé objetiva
Impõe aos contratantes uma conduta honesta, correta, proba. Diferentemente da boa-fé subjetiva, que está ligada à intenção das partes, a boa-fé objetiva significa um dever geral de conduta, imposto a todos os contratantes.
A boa-fé objetiva deve ser observada pelos pactuantes não apenas no momento da execução do contrato, mas também durante as tratativas iniciais e mesmo após a sua conclusão.
Uma das mais importantes decorrências do postulado em questão é a proibição do venire contra factum proprium, ou seja, do comportamento contraditório. Em uma relação contratual, aquele que sempre se comportou de uma determinada maneira não pode surpreender a outra parte e adotar comportamento diametralmente oposto, ainda que esse esteja albergado pelas regras contratuais e pela lei aplicável.
2.3 Equivalência material
Este cânone visa assegurar a igualdade substancial entre as partes envolvidas no contrato, antes, durante e depois da sua execução. A partir deste primado, a eficácia absoluta do pacta sunt servanda sofreu forte mitigação, com o intuito de se preservar a equidade entre os contratantes.
Tal princípio é aplicável a qualquer relação que apresente desequilíbrio entre as partes contratantes, sejam elas de caráter civil, empresarial ou consumerista. Uma das hipóteses em que se vislumbra a aplicação do princípio da equivalência material entre as partes em detrimento da obrigatoriedade dos contratos é quando ocorre a chamada onerosidade excessiva. Esta é entendida como um desequilíbrio entre as prestações relativas a cada contratante, advinda de um evento imprevisível, posterior e externo à avença. Neste caso, o contratante que se sentir lesado pode requerer a revisão judicial do pacto, para que se determine o reequilíbrio das prestações.
3 Cláusulas abusivas e vulnerabilidade
O fundamento da previsão da nulidade das cláusulas abusivas é exatamente o princípio da equivalência material, que tem como supedâneo a busca pela igualdade material entre as partes contratantes. Esta procura pelo equilíbrio nas relações contratuais teve como marco o advento do Código de Defesa do Consumidor, idealizado para regular as relações entre consumidores (parte mais fraca) e fornecedores (parte mais forte).
3.1 Cláusulas abusivas no CDC
A legislação consumerista, portanto, teve destacado papel na superação da ideia de igualdade formal entre os contratantes, que tanto desequilíbrio entre as partes gerou, principalmente após o surgimento das relações massificadas, nas quais um contratante mais forte impõe as suas condições aos contratantes mais fracos.
A vulnerabilidade do consumidor, portanto, é decorrente da posição dominante do fornecedor em relação ao consumidor, tanto no aspecto econômico, quanto na possibilidade exclusiva de escolha dos produtos e técnicas colocados no mercado.
Para tentar superar essa desigualdade entre as partes contratantes, o CDC adotou, dentre outras, a técnica da proibição das cláusulas abusivas, que são aquelas que “não asseguram o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes”, na dicção do próprio diploma normativo (art. 51, §4º). No dizer de Bruno Miragem, “O abuso de direito no direito do consumidor é o abuso de uma posição jurídica dominante de uma das partes, o fornecedor”[1].
O CDC traz um rol extenso, porém exemplificativo, das cláusulas abusivas. O art. 51 é considerado um dos mais importantes da lei, visto que determina a invalidade de termos que gerem iniquidade entre os contratantes. Nestes casos, a sanção imposta pela lei é a nulidade absoluta da cláusula, como forma de afastá-la do âmbito contratual. Note-se que o CDC não impõe a nulidade do contrato, mas tão-somente daquela obrigação decorrente da abusividade de determinada cláusula. A nulidade absoluta das cláusulas abusivas é, indubitavelmente, uma das mais importantes sanções a projetar, pela via normativa, a proteção do consumidor no direito brasileiro.
São exemplos de cláusula abusiva, na dicção do art. 51 do CDC: a) a que prevê a inversão do ônus da prova, em prejuízo do consumidor; b) a que gera onerosidade excessiva para o consumidor; c) a que impede o reembolso de quantia paga pelo consumidor; d) a que impede a alteração unilateral do preço, pelo fornecedor. Conforme dito alhures, o rol é aberto, devendo o julgador analisar o caso concreto, para verificar se uma determinada cláusula não especificada no art. 51 pode ser considerada abusiva.
Finalizando o estudo das cláusulas abusivas no CDC, destaque-se que mesmo que o consumidor aceite que o contrato contenha tais cláusulas, as obrigações delas decorrentes não poderão ser exigidas pelo fornecedor, por se tratar de matéria de ordem pública, portanto indisponível ao alvedrio das partes.
Passar-se-á, doravante, a analisar a questão sob a ótica do Código Civil.
3.2 Cláusulas abusivas no CC/02
O diploma civil não possui uma norma específica, que trate diretamente da questão das cláusulas abusivas. Há, em verdade, algumas normas que disciplinam a matéria da abusividade, mas apenas em casos específicos. Uma grande parcela da doutrina defende a aplicabilidade das cláusulas abusivas apenas em sede de contratos de adesão, por expressa previsão legal. Tal entendimento, contudo, não é consentâneo com a própria base principiológica social do Código de 2002, calcada na busca da igualdade substancial entre as partes e na justiça social.
Neste sentido, o magistério de Bruno Miragem: “Esta concepção social do contrato tem como pressuposto a necessidade de proteção do equilíbrio entre os interesses legítimos de ambos os contratantes, e da confiança dos contratantes entre si, assim como na projeção dos efeitos da relação contratual em face de toda a comunidade”.[2]
De fato, na disciplina dos contratos de adesão, o diploma civilista protege o interesse do aderente, visando tutelar os interesses daqueles considerados em posição inferior ao contratante que estipula as cláusulas. Tal proteção ocorre porque a massificação das relações contratuais limitou a autonomia privada, no aspecto da liberdade contratual, tornando muitas vezes impossível a negociação dos termos da avença entre os pactuantes. Assim, ao aderente só resta aceitar as cláusulas impostas pelo estipulante, o que pode gerar uma desigualdade muito grande quando da execução do contrato.
Coube ao legislador criar regras que visam amenizar os efeitos desta desigualdade, como, por exemplo, a que determina que as cláusulas ambíguas inseridas em um contrato de adesão devem ser interpretadas em favor do aderente. Não pode o estipulante, que impôs as condições do contrato, querer ver uma ambiguidade, por ele mesmo criada, ser resolvida em seu favor judicialmente.
É importante ressaltar, porém, como o faz Rodrigo Toscano de Brito, que a necessidade de observância da equivalência material não se volta apenas àqueles contratantes considerados “vulneráveis”.[3] Embora tenha uma maior incidência na tutela dos interesses destes, considerados mais fracos na relação contratual, presta-se à proteção daqueles que não o são, mas sofrem com o desequilíbrio do contrato. Assim, ainda segundo o autor, tal princípio é aplicável tanto às relações civis propriamente ditas, como também às de cunho empresarial e, obviamente, consumerista. Embora tal opinião não seja unânime na doutrina, encontra respaldo nos escritos de Nelson Nery Júnior[4], Cláudia Lima Marques[5], entre outros.
Para Bruno Miragem: “Enquanto no direito civil comum, o desrespeito dos limites impostos pelos fins econômicos e sociais, pela boa-fé e pelos bons costumes, implica na caracterização da conduta abusiva, no direito do consumidor esta se dá por uma posição de dominância do fornecedor em relação ao consumidor”.[6]
Destarte, a aplicação do princípio da equivalência material, e o consequente reconhecimento da abusividade de determinadas cláusulas em contratos de natureza civil, não podem ficar adstritos aos contratos de adesão.
Em relação às demais formas de contratação, não se pode dizer que há lacuna quanto à regulamentação das cláusulas abusivas, como entendem alguns, para defender a aplicação das regras do CDC aos contratos de natureza civil. Em verdade, o CC/02, ao adotar os princípios sociais da contratação, já fornece as bases para que se anule qualquer conduta abusiva. Ademais, a doutrina sustenta que o fundamento para a anulação de referidas cláusulas é o abuso de direito, tipificado no art. 187, do diploma civil. Abuso de direito é o uso excessivo de alguma coisa. Na contratação, o abuso se caracteriza quando se dá o uso da liberdade contratual de forma excessiva e desproporcional, em desacordo com a autonomia da vontade da outra parte, afrontando a boa-fé e a função social do contato.
Não há como negar, pois, a estreita relação entre cláusulas abusivas e o abuso de direito, posto que ambos os institutos remetem à ofensa à boa-fé, assim como à extrapolação aos fins econômicos e sociais do contrato. Forte nisso, bem como na principiologia social que dá sustentação à teoria contratual ao CC/02, é forçoso se reconhecer a possibilidade de anulação das cláusulas abusivas inseridas em um contrato de natureza civil.
Assim, é forçoso reconhecer que nem toda cláusula considerada abusiva na esfera consumerista pode ser tida como tal em uma relação civil comum. Nesta última, o reconhecimento da abusividade de uma cláusula dependerá da análise concreta das partes envolvidas na avença, bem como do modo pelo qual ela foi pactuada, para que reste demonstrado o abuso de direito, ensejando a invalidação da obrigação por ela imposta.
4 Conclusões
O atual momento por que passa a legislação civil impõe a interpretação das regras contratuais sob o prisma da constitucionalização, da humanização das relações jurídicas. Logo, não se pode olvidar que as relações contratuais devem se pautar pela busca incessante da igualdade material entre os pactuantes, em substituição à já superada igualdade formal, preconizada pela legislação de cunho liberal.
Assim, a proteção às partes consideradas vulneráveis, por meio da proibição das cláusulas abusivas, tão claramente disciplinada pelo CDC, constitui-se um dos mais importantes mecanismos de efetivação da equivalência material nas relações contratuais. A sua aplicabilidade direta, todavia, se restringe ao âmbito das relações consumeristas, regulados pelo CDC, em razão da sua especificidade, não se estendendo aos contratos de natureza civil, disciplinados pelo CC.
Nas relações regidas pelo Código Civil, contudo, como consequência da adoção dos princípios sociais da contratação, especialmente o da equivalência material, também existe fundamento para a invalidação das cláusulas consideradas abusivas. O supedâneo para tal invalidação é o abuso de direito, que está positivado expressamente na legislação civil, e se caracteriza quando uma das partes abusa da sua posição contratual, ferindo a boa-fé e a função social do contrato. Entender de modo distinto seria negar os próprios fundamentos que norteiam a legislação em vigor, qual seja, a repersonalização e a busca pela justiça social.
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