A ação é “pop”, popular


O quis juris que representa a causa de pedir na ação popular começa pela causa remota que deriva da cidadania, de seu status civitatis o que implica no exercício de seus direitos políticos (…) 


O Estado de Direito e, particularmente o democrático depende da eficácia do controle social sobre o poder sob pena do perecimento fatal de suas instituições básicas.


A América Latina tem sido um triste exemplo de desconsideração ao Estado de Direito e os chamados erroneamente de “movimentos revolucionários” que tomaram o poder sempre fizeram que as garantias da sociedade em relação ao Estado fossem afastadas em nome da blasfêmia denominada de ideologia da segurança nacional.


No Brasil com a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 passou a conhecer um novo vigor democrático com nítido interesse em restaurar o Estado democrático o que veio incrementar os mecanismos jurisdicionais de controle dos atos do poder público, notadamente em função da criação de novos instrumentos processuais constitucionais vocacionados para a defesa de direitos inerentes à cidadania.


E neste contexto se engedra o revigoramento da ação popular. Sem dúvida, a CF vigente instaurou uma democracia participativa que conclama os cidadãos quer isoladamente, quer reunidos a colaborarem na gestão e fiscalização da coisa pública (art. 5o., XXI, LXX, LXXIII, art. 8o, III , art. 129,§ 1o., art. 216, § 1o., art.225  da CF/88).


Convém traçar os contornos sobre a questão coletiva visualizando o objeto e a finalidade de certas ações coletivas. A ação popular tem por objeto interesse difuso à preservação da: probidade, eficiência e moralidade na gestão da coisa pública.


Também visa à tutela do meio ambiente e ao patrimônio público lato sensu (art. 5o LXXIII, arts. 37, 170 VI da CF/88 e arts. 1o. e 4o. LAP). Também é possível a tutela de interesse difuso dos consumidores (CDC, art 81,I; Lei 7.347/85, art. 10. caput).


É permitida a tutela cautelar com a desconstituição do ato lesivo e condenação dos responsáveis à reposição do status quo ante, permitida a tutela cautelar (Lei 4.717/65, arts. 1o., 5o. parágrafo quarto, 11o.,12o., sem prejuízo de perdas e danos).


A aparição da ação popular deu-se  pela primeira vez no direito contemporâneo na Bélgica com a lei comunal de 30/03/1836 e em seguida, o mesmo ocorreu em França, através da Lei comunal de 18/07/1837.


Mais tarde, surgiu também  na Itália em função de matéria eleitoral em 1859. No campo do direito urbanístico e no dizer de José Afonso da Silva a ação popular ganhou caráter publicístico da atividade educadora e induziu o legislado a chamada “legge-ponte” (Lei 765 de 6.8.1967).


Registre-se a acentuada tendência na legislação para aumentar o número de ações já admitidas. A ação popular veio a ser suprimida no nefasto período fascista o que confirmou a tese de Nelson Carneiro a denominar tais ações como “flores exóticas nos regimes absolutos”.


Na Espanha constata-se ação popular em matéria penal ex vi o art. 101 da Ley de Enjuiciamiento Criminal.


Em Portugal temos  a Lei 83 de 81.8.1995 que regula o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular, sendo protegidos os interesses pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção ao consumo de bens e serviços, ao patrimônio cultural e o ao domínio público (art. 1o.).


A legitimação ativa compete a qualquer cidadão no gozo dos direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses coletivos e difusos independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.


A Lei portuguesa prevêem a possibilidade do direito de exclusão por parte daqueles que não aceitam ser  representados pelo autor popular.


Enfim, importante também destacar que essa lei acolheu a técnica da coisa julgada secundum eventum litis ( art. 19) de sorte que sua eficácia geral não se opera quando a causa de improcedência for a insuficiência de provas.


A ação popular prevista § 54o., da Lei 72 da Baviera destinada à defesa de direitos fundamentais previstos no art. 98 da Constituição.


Na Inglaterra, esclarece Livio Paladin, talvez se possa admitir a existência de ação do tipo popular se aceitar como tal acusação provada.


Um marco considerável no direito brasileiro sobre a evolução da ação popular, é a Constituição Federal de 1934 que foi o primeiro texto legal que lhe deu guarida.


Informa  Paulo Barbosa de Campos Filho que dos fragmentos do direito romano se originaram vários interditos populares para defesa das rei communes omnium que abriam caminho ao exercício de verdadeiras ações populares. 


Admitindo em sede doutrinária a sobrevivência da ação popular no período imperial e no início da República, onde vigoraram as Ordenações do Reino ex vi o Dec. 2691/1860 e ainda Lei 173/1873.


É com o advento do Código Civil de 1916 que propiciou um certo consenso doutrinário e até jurisprudencial no sentido de que o art. 76 teria ab-rogado de vez  os últimos vestígios de ação popular na medida que condicionava o exercício direito da ação, na medida da existência de um legítimo interesse econômico, ou moral. 


Não tinham mais uma função especial a exercer, o direito moderno, as ações populares.


Sendo majoritária a corrente que postula pela não-sobrevivência da ação popular após o CC/1916, continuava-se admiti-la, como forma de representação em matéria eleitoral e, mesmo a Lei baiana 1.384/20, a Lei de Organização dos Municípios da Bahia criava uma ação popular de tipo supletivo em seu art. 31.


Na Constituição de 1934, a ação popular apareceu com todas as letras no seu inciso 38 do art. 113 dissuadindo de vez os que agouravam pelo seu desaparecimento do cenário jurídico-nacional.


No interstício  ocorrido entre a Constituição de 1937 e a de 1946, sobreveio o CPC de 1940 que repristinou a antiga ação popular prevista no art. 13 do Dec. 173/1893 ao dispor em seu art. 670 in verbis: :”A sociedade civil com personalidade jurídica, que promover atividade ilícita ou imoral, será dissolvida por ação direta, mediante denúncia de qualquer do povo, ou do órgão do MP.”


Ressurge então das cinzas ditatórias em assembléia constituinte em 1946 em § 38 do art. 141 da CF de 1946.


Não se cuidou apenas de uma reintrodução da ação popular e sim, de uma sensível ampliação de seu objeto que momento abriga também a administração indireta , autarquias, sociedade de economia mista.


Também a CF/88 permitiu a ampliação de seu objeto na medida em que permitiu que através da ação popular sindicasse a moralidade doa to impugnado ( art. 5o., LXXIII).


A guisa de ilustração, duas relevantes questões jurídicas suscitadas quando do advento da Cf de 1946: a ação popular era auto-aplicável ou se a ação abrangia também atos ocorridos antes da vigência da Constituição de 1946 ?


Ambas questões foram dirimidas em memorável sentença do magistrado e processualista José Frederico Marques (vide RT 181/836). Quanto a primeira questão, entendeu que independe de regulamentação ulterior para ser usada e exercitada, na ausência de norma regulamentadora infra-constitucional, vale-se das regras de hermenêutica e através dos princípios sobre a integração da ordenamento jurídico (…)


Já quanto a segunda questão, entendia que não cabia excepcionar às malhas da ação popular aos atos praticados anteriormente ao advento da Constituição Federal de 1946.


O objeto da ação popular foi ampliado em nível constitucional à proteção da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural.


José Carlos Barbosa Moreira ainda ressalta que a alusão ao meio ambiente é inovadora pois antes da Lei 4.717, só se tratava de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.


No Direito positivo brasileiro contemporâneo deve-se considerar popular a ação que, intentada por qualquer do povo, ( mas particularmente como eleitor, no caso de ação popular constitucional) objetive a  tutela judicial de um dos interesses pretaindividuais previstos numerus clausus nas normas de regência a saber:


a) moralidade administrativa, o meio ambiente, o patrimônio público lato sensu (erário, valores artísticos, estéticos, históricos ou turísticos); 


b) também possível sua utilização na área de consumo.


Merece relevo a lição deixada por Seabra Fagundes, acerca do vero conceito da ação popular: “Não é o ser intentada contra pessoa jurídica de direito público, nem o dizer respeito a relações jurídicas em que o Estado, ou outras dessas pessoas, seja interessado ou parte, que lhe empresta caráter específico.”


A ação popular é remédio de direito processual embora com aplicação de direito administrativo bem como de seus princípios regentes.


E o elemento que lhe dá caráter peculiar é o interesse à propositura que aparece individualizado nas ações em geral e que se apresenta indeterminado pelas repercussões impessoais da lide.”


O quid juris que representa a causa de pedir na ação popular começa pela causa remota que deriva da cidadania, de seu status civitatis o que implica no exercício de seus direitos políticos  (tanto assim que deve juntar-se à petição inicial o título de eleitor) Lei 4.717/65 art. 1o., parágrafo terceiro.


E o cidadão pode fazê-lo, porque na qualidade de titular daquele direito subjetivo público, pode, perfeitamente exigir ao Administrador, seu mandatário, o exato cumprimento do que lhe foi delegado.


E neste sentido declara a  CF vigente “todo o poder emana do povo, (e em seu nome é exercido) …” art. 2o.


No que tange à causa próxima, deve o autor da ação popular indicar e dar ao menos um início de prova de que um agente público ou autoridade dentre os indicados no art. 6o., e parágrafos seguintes da Lei 4.717/65 procedendo com ação ou omissão que lesou ou está prestes à lesar o erário público, o meio ambiente, ou o patrimônio cultural lato sensu, ou ainda, laborou contra ou quase em afronta a moralidade administrativa.


Moacyr Amaral Santos ressaltou que pela Lei 4.717/65 traça os pressupostos da ação: a) a lesividade do ato ao patrimônio público (da União, do DF, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas); b) que o ato lesivo seja contaminado de vício ou de defeito de nulidade ou anulabilidade.


O texto constitucional deixa evidenciado que se trata de ação que visa a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas. A lesividade, contudo, pressupõe a ilegalidade contínua . A ação popular reclama pois o binômio ilegalidade-lesividade.


A questão da moralidade administrativa situa-se na zona fronteiriça entre o Direito e a Moral e daí a dificuldade em conceitua-la.


Mas o Direito e a Moral são espécies do gênero Ética, de sorte de que a gestão da coisa pública é o pano de fundo de toda ação popular.Dentro da moralidade administrativa pode sendo enumerados o abuso do direito e o desvio de poder, a razoabilidade da conduta sindicada.


José Frederico Marques, afirmou que o autor em uma ação popular funciona como substituto processual, por isso que não defende direito seu em Juízo e, sim o da comunidade da qual é parte integrante.


Jellineck ensina que “o juiz não deve decidir se foi respeitada uma pretensão jurídica individual do autor, mas se a pretensão da coletividade à observância de ordem jurídica foi respeitada pelo Estado que a deve realizar”.


O autor, pois , é substituto processual do verdadeiro autor que é a coletividade, sendo esse um entendimento pacífico na doutrina, acolhido também pelo Supremo Tribunal Federal.


O cidadão, em nome próprio, defende o interesse da Administração Pública.


A tese oposta, enxerga o autor popular agindo em legitimação ordinária, considerando a ação popular como ação constitucional de índole corretiva.


Registre-se que a tutela de urgência que na ação popular se faz através de provimento liminar  (parágrafo quarto do art. 5o., da Lei 4.717/65 está ampliada pelo advento da tutela antecipada do CPC art. 273 redação dada pela Lei 8.952/94.


Concluindo a ação popular uma demanda veiculada em rito ordinário, num processo de conhecimento. Seu curso procedimental depende da massa probatória( prova testemunhal, pericial, documental) o rito se definirá como ordinário ou suma´rio quando o juiz designará a AIJ( Lei 4.717/65, art. 7o., V ,CPC art. 331


Hely Lopes Meirelles preceitua a ação popular como meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual, municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos. Sublinha ainda a manutenção do conceito anterior e o aumento de sua abrangência.


Mesmo na dúvida, abrangeria também os atos praticados pelas sociedade de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos e entes de cooperação além dos órgãos da Administração centralizada.


O beneficiário direto e imediato da ação popular não é o autor, é o povo, que é titular do direito subjetivo ao governo honesto. E o cidadão a promove no uso de sua prerrogativa cívica conferida constitucionalmente.


A ação popular foi regulamentada pela Lei 4.717, de 29.6.65 que lhe imprime o rito ordinário com pequenas alterações. Cabe ressaltar que a referida lei é anterior a CF de 1967 e, também à Emenda de 1969.


Entretanto, a ação popular tem sido desvirtuada e utilizada maliciosamente como meio de oposição política de uma Administração a outras, o que requer do Judiciário redobrada prudência e atenção no seu julgamento a fim de não se instrumentalizar mera vendetta partidária e nem impeça realização de obras e serviços públicos essenciais à comunidade que ela visa proteger.


Quantos aos requisitos para  exercício da ação popular, cumpre aduzir que deve o autor ser cidadão brasileiro em pleno gozo de seus direitos cívicos e políticos, devidamente cadastrado como eleitor. Os inalistáveis ou inalistados bem como partidos políticos e entidades de classe ou qualquer outra pessoa jurídica não possuem qualidade para propor ação popular (Súmula STF 365).


O segundo requisito é a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar. Não se exige ilicitude mas sim a ilegalidade na sua formação e no seu objeto. A ilegitimidade pode derivar de vício formal ou substancial, ou seja, o desvio de sua finalidade.


O terceiro requisito é a lesividade doa to ao patrimônio público. Tanto pode ser a lesão efetiva quanto a legalmente presumida (a própria lei regulamentadora da ação popular em seu art. 4o., a prevê).


A ação popular na opinião de Bielsa visa proteger não só interesses econômicos ou patrimoniais mas também de ordem moral e cívica, e daí ressalta-se sua índole educativa.


No que tange a moralidade administrativa igualmente protegida pela ação popular, na dicção do saudoso Hermes Lima convém assinalar “apesar de possuir origem e formação inteiramente social individualiza-se a norma moral em cada pessoa e, por isso, reage a qualquer codificação, não se prestando a ser judiciariamente organizada como a norma jurídica”. (Introdução à Ciência do Direito, 27 ªedição, Freitas Bastos, p.111).


Se a Administração age dentro da lei, sem desvio de finalidade, não há como aceitar a intervenção do Poder Judiciário através da ação popular.


Portanto, a ação popular tem fins preventivos e repressivos da atividade administrativa ilegal e lesiva ao patrimônio público.


Difere assim do mandado de segurança pois que este presta-se a invalidar atos de autoridade ofensivos a direito individual ou coletivo, líquido e certo; a ação popular destinação à anulação dos atos ilegítimos e lesivos ao patrimônio público.


A competência para processar e julgar a ação popular é determinada pela origem do ato a ser anulado. A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas ações que forem posteriormente intentadas contra as mesmas partes e sob os mesmos fundamentos (parágrafo terceiro, art. 5o., da Lei 4.717/65).


As sentenças proferidas em ação popular são possíveis de recurso de ofício e apelação voluntária, com efeito suspensivo e das decisões interlocutórias, cabe agravo de instrumento (art. 19 e parágrafos da Lei 4.717/65, com a redação dada pela Lei 6.014/73), salvo da decisão concessiva da liminar, que no entender de Hely Lopes Meirelles, é passível de pedido de cassação ao Presidente do tribunal competente para o recurso de mérito.


A sentença definitiva produzirá efeitos de coisa julgada oponível erga omnes, exceto quando a improcedência resultar da deficiência de prova, caso em que poderá novamente ser renovada com idêntico fundamento, desde que indiquem novas provas (art. 18). Tal renovação pode ser feita pelo autor anterior bem como também por outro cidadão.



Informações Sobre o Autor

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.


Equipe Âmbito Jurídico

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