A ação penal nas lesões leves praticadas em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher após a apreciação do tema pelo Supremo Tribunal Federal

Ao longo do tempo o crime de lesões corporais  tem sido processado por meio de ação penal pública incondicionada, independentemente da gravidade dos ferimentos. Porém, com a edição da Lei 9099/95, a ação penal nos casos de lesões leves e culposas passou a ser pública condicionada a representação, de acordo com o disposto no artigo 88 do referido diploma. Dessa maneira, desenhou-se o seguinte quadro no que tange à ação penal nos crimes de lesões corporais: havendo lesões graves, gravíssimas e seguidas de morte (art. 129, §§ 1º. a 3º., CP) a ação seria pública incondicionada. Porém, em ocorrendo lesões leves (art. 129, “caput”, CP) ou lesões culposas (neste caso independentemente da gravidade – art. 129, § 6º., CP ou art. 303, CTB), a ação penal seria pública condicionada a representação.

Com o advento da Lei 10.886/04, que acrescentou o § 9º. ao artigo 129, CP, criando uma nova hipótese típica para os casos de “violência doméstica”, inclusive  com apenação autônoma, cogitou-se a possibilidade de que houvera uma alteração quanto à ação penal, qual seja, a de que, com a criação da nova figura típica, a ação penal teria passado a ser novamente incondicionada, uma vez que a nova lei não chegou a tratar da questão da ação penal, voltando a ser aplicável a regra do artigo 100, CP, determinante de que no caso de silêncio da lei a ação é pública incondicionada.

Analisando a questão de forma sistemática e ampla, abordando não somente o enfoque legal, mas também os diversos aspectos criminológicos, vitimológicos, sociológicos e de política criminal envolvidos, chegou-se  alhures à conclusão de que, na verdade,  a ação penal não teria sofrido alteração em face da Lei 10.886/04.[1]Quando o quadro parecia estabilizado, eis que surge no cenário a Lei 11.340/06, apelidada de “Lei Maria da Penha”, trazendo em seu bojo inovações no trato legal da violência doméstica e familiar contra a mulher.[2]

Uma das determinações contidas nesse diploma legal é a de que, nos termos de seu artigo 41, “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9099, de 26 de setembro de 1995”.

Face a isso, parece irretorquível que a partir da vigência da Lei 11.340/06 retornou a ação penal a ser pública incondicionada, mesmo nos casos de lesões leves, desde que perpetradas no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque não é no Código Penal que se vai encontrar o dispositivo que determina a ação penal pública condicionada para as lesões leves em geral, e sim no artigo 88 da Lei 9099/95. O raciocínio é simples: se a Lei 9099/95 não se aplica mais aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, inexistindo qualquer ressalva, conclui-se que não se aplica por inteiro, inclusive o seu artigo 88, de forma que no silêncio do Código Penal, reintegra-se a regência do artigo 100, CP, que impõe a ação penal pública incondicionada.

Altera-se agora a sistemática nos seguintes termos:

a)Em casos de lesões corporais dolosas graves, gravíssimas e seguidas de morte, a ação penal continua como sempre pública incondicionada, independentemente da condição da vítima.

b)Ocorrendo lesões corporais culposas (de qualquer natureza), a ação penal continua sendo pública condicionada a representação, nos termos do art. 88 da Lei 9099/95, independentemente da condição da vítima.

c)Ocorrendo lesões corporais dolosas leves, não importando a condição da vítima (homem ou mulher), desde que não classificáveis  como “violência doméstica  ou familiar” de acordo com os ditames da Lei 11.340/06, a ação penal continua sendo pública condicionada a representação por força do artigo 88 da Lei 9099/95.

d)Tratando-se de lesões corporais dolosas leves classificáveis como “violência doméstica e familiar”, mas perpetradas contra homens, permanece a ação penal pública condicionada (art. 88 da Lei 9099/95).

e)Finalmente, acontecendo lesões dolosas leves contra “mulher” no contexto de “violência doméstica ou familiar”, passou a ação penal a ser  pública incondicionada, vez que o art. 88 da Lei 9099/95 teve vedada sua aplicação a esses casos na forma do art. 41 da Lei 11.340/06.

Essa mudança revela o acatamento de manifestações críticas quanto à banalização que teria ocorrido com os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher pela aplicação da Lei 9099/95 e pelo condicionamento da ação penal.

Por esse caminho trilha Alice Bianchini ao sustentar que “se, por um lado, merece louvor a iniciativa do legislador, (…), acenando para a despenalização e instituindo o princípio da oportunidade, nestes casos, não se pode olvidar que a norma em análise culminou por abranger situações que, nos dias de hoje, são causa de enorme agastamento social”. Destaca a autora a inconveniência da aplicação dos institutos da Lei 9099/95 aos casos de violência doméstica. Em seu entendimento, o abrandado tratamento revelaria uma verdadeira tolerância e até conivência com tais práticas, chegando, ainda que indiretamente, a torná-las legítimas. [3]

Assumindo o risco de ir contra os anseios de respeitáveis seguimentos sociais, inclusive de movimentos relacionados à defesa dos Direitos das Mulheres, é inevitável manifestar o desacerto dessa opção legislativa.

A postura que se mostra na alteração legislativa, operando um retrocesso no tema da ação penal nos casos de lesões leves, é contaminada por uma concepção irracional do Direito Penal como única solução para todas as espécies de conflitos sociais e interpessoais. Alimenta a conformação de um “Direito Penal Simbólico” como suposta solução para quaisquer problemas sociais[4], fomentando a crença de que tudo se resolve com leis penais rigorosas, desde a proteção à vida até o bom andamento da economia.[5]

Não se advoga a tese do afastamento do poder repressivo e coercitivo do Direito Penal nos casos de violência doméstica contra a mulher, mas isso não justifica a indevida e anacrônica subtração do conflito da vítima pelo Estado, desprezando suas expectativas, sentimentos e interesses em nome de uma suposta proteção ou tutela. Muito mais “tutela” do que proteção, na medida em que certas vítimas (no caso, as mulheres) parecem ser consideradas, como outrora já ocorreu, verdadeiras incapazes.

Ademais, deve-se ter em mente que um direito apartado de bases reais flutua na abstração e se torna um instrumento inútil, tal qual alerta há tempos Miguel Reale ao asseverar que “o Direito, como tudo que existe em razão do homem e para reger comportamentos humanos, está imerso no mundo da vida (‘Lebenswelt’)”.[6] Foi por isso que outrora constatou-se  que a ação penal pública incondicionada naufragava  frente ao desinteresse  da vítima que ocasionava terrível prejuízo probatório e distorção na aplicação da lei. Percebeu-se que não se pode esquecer que os conflitos domésticos são muito mais complexos do que a simplista e maniqueísta divisão entre agressor e vítima, comportando relevantes aspectos afetivos e emocionais que não podem ser desconsiderados nem obliterados por alguma magia legal.

Em percuciente trabalho de pesquisa, Wânia Pasinato Izumino demonstra que a imposição da ação penal pública incondicionada pela lei nos casos de violência doméstica e familiar jamais teve o condão de impedir a atuação, até preponderante, de fatores extralegais na conformação das práticas e decisões judiciais de casos concretos.[7] A criminalização primária erigida de forma publicista pura não garante, por si só, uma correspondente criminalização secundária.

Na realidade, o destino das mulheres vitimizadas está nas mãos delas próprias. A aplicação de mecanismos repressivos aos agressores com eficácia depende muito mais da consciência das próprias mulheres do que da rigidez na forma da ação penal. A norma que amarra as vítimas na ação pública incondicionada retira-lhes a dignidade de seres humanos capazes de conduzir o próprio destino, transformando-as em tuteladas de segunda classe.

Neste ponto é oportuno destacar que a Lei 11.340/06 atribui à mulher um tratamento diferenciado, promovendo sua proteção de forma especial em cumprimento a diretrizes constitucionais e de convenções internacionais. [8] Promove assim uma chamada “discriminação positiva” amplamente justificável. [9]

Por outro lado, ao impor a ação penal pública incondicionada em casos de lesões leves somente quando versarem sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, incide numa violação ao Princípio da Igualdade em relação ao tratamento dado nos mesmos casos a outros seguimentos da sociedade beneficiados com a determinação constitucional e de tratados internacionais de uma idêntica “discriminação positiva”. São exemplos os idosos (art. 230, CF) e as crianças e adolescentes (art. 227, CF) para os quais, ainda que vitimizados em contexto doméstico ou familiar, não se prevê qualquer alteração da natureza da ação penal em se tratando de ofendido do sexo masculino.

Este ponto poderia ensejar uma sobrevida para a continuidade da aplicação do art. 88 da Lei 9099/95, mesmo aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em que resultem lesões leves, inobstante a regra do art. 41 da Lei 11.340/06, considerando que outra interpretação conduziria à inconstitucionalidade por violação do Princípio Isonômico. Indo ainda um pouco adiante, pode-se considerar que toda vedação de aplicação da Lei 9099/95 somente para os casos de violência doméstica e familiar “contra a mulher” seria inconstitucional sob o mesmo fundamento. Ora, se é um absurdo que a violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto reconhecida internacionalmente como “violação dos direitos humanos”, seja considerada uma infração de “menor potencial ofensivo”[10], por que não o seria a mesma violação nos casos dos idosos, das crianças e dos adolescentes do sexo masculino?

As questões são sem dúvida polêmicas e somente o tempo poderia dizer como seriam solucionadas pela doutrina e pela jurisprudência. Reconhecer-se-ia a inconstitucionalidade total ou parcial do art. 41 da Lei 11.340/06? Seria ele aplicado normalmente sem maiores questionamentos? Só mesmo o tempo traria respostas. De outra banda, bem melhor andaria o legislador se mantivesse a ação penal pública condicionada para todos os casos de lesões leves, evitando o retrocesso a um sistema penal que despreza os interesses da vítima, tratando-a como simples objeto no Processo Penal.

Fato é que isso não ocorreu e coube então ao STF decidir a questão, o que fez nas ADI 4424 e ADC 19, considerando constitucional a vedação do artigo 41 da Lei 11.340/06. Ficou então estabelecido que a ação penal nas lesões leves envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher é pública incondicionada, já que inaplicável o único dispositivo que apontava para a necessidade de representação, ou seja, o artigo 88 da Lei 9099/95.

Frise-se, porém, que é apenas nas lesões corporais leves que se opera essa alteração na ação penal em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque o condicionamento da ação à representação da vítima está disposto na Lei 9099/95, vedada sua aplicação pelo artigo 41 da Lei Maria da Penha.  Nos demais casos em que a ação é privada ou pública condicionada por força de outros dispositivos que não fazem parte da Lei 9099/95, inaplicável aos casos abrangidos pela Lei 11.340/06, nada se altera. Por exemplo, no caso do crime de ameaça ou do crime de dano simples, as ações continuam respectivamente pública condicionada e privada porque essas condições derivam do próprio Código Penal e não da Lei 9099/95, sendo apenas esta que é abolida pelo artigo 41 da Lei Maria da Penha quando se verse sobre violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse importante aspecto é visível tanto no voto já publicado do Ministro Luiz Fux, que somente faz referência às lesões leves, como no próprio petitório da PGR que também somente trata desse crime e inclusive dá o exemplo da manutenção da ação condicionada no crime de ameaça.

Essa observação acima é importante, pois que se corre o risco de, numa interpretação açodada e por demais ampla, entender-se que todo e qualquer crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher passa a ser de ação pública incondicionada, o que não corresponde à realidade, mesmo porque tanto o artigo 41 da Lei 11.340/06, quanto o teor das ações que tramitaram no STF não apresentam esse alcance tão amplo, versando somente sobre as lesões leves e a Lei 9099/95, nada dizendo a respeito de outros diplomas legais ou infrações penais.

 

Referências
ALVES, Fabrício da Mota. Lei Maria da Penha: das discussões à aprovação de uma proposta concreta de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. In: www.jusnavigandi.com.br , em 08.08.2006.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos, COUTO JÚNIOR, Osmir Pires. A ação penal nos casos de violência doméstica. In: www.ibccrim.org.br , em 15.12.2004.
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Trad. Luiz Flávio Gomes. 2ª. ed.  São Paulo: RT, 2002.
FARIA JÚNIOR, César de. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais.  n. 4, p. 114 – 121,  jul./set., 1993.
IZUMINO, Wania Pasinato. Justiça Criminal e violência contra a mulher: o papel da Justiça na solução dos conflitos de gêneros. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: n. 18,  p. 147 – 170, abr./jun., 1997.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

Notas:
[1] CABETTE, Eduardo Luiz Santos, COUTO JÚNIOR, Osmir Pires. A ação penal nos casos de violência doméstica. In: www.ibccrim.org.br , em 15.12.2004.
[2] ALVES, Fabrício da Mota. Lei Maria da Penha: das discussões à aprovação de uma proposta concreta de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. In: www.jusnavigandi.com.br , em 08.08.2006.
[3] Apud, MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 258.
[4] CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Trad. Luiz Flávio Gomes. 2ª. ed.  São Paulo: RT, 2002, p. 94.
[5] SPOLANSKY, Norberto, apud, FARIA JÚNIOR, César de. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais.  n. 4, jul./set., 1993, p. 115.
[6] Teoria tridimensional do Direito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 101.
[7] Justiça Criminal e violência contra a mulher: o papel da Justiça na solução dos conflitos de gêneros. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: n. 18, abr./jun., 1997, p. 147 – 170.
[8] Artigo 226, § 8º., CF; Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.[9] ALVES, Fabrício da Mota. Op. Cit., p. 9.
[10] Op. Cit., p. 5.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


Equipe Âmbito Jurídico

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