A adoção da teoria do bem-jurídico penal no Projeto de Código Penal

Resumo: trata-se de artigo cujo escopo é examinar a adoção, pelo Projeto de Novo Código Penal, da teoria do bem jurídico penal, bem como tangenciando pontos concernentes ao construto teórico pertinente à temática, adotando como metodologia precípua a revisão bibliográfica, além da abordagem dogmática da (possível) novel legislação.

Palavras-chave: Direito penal. Bem jurídico-penal. Lesividade. Projeto de Novo Código Penal. Teorias do bem jurídico-penal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Teorias do Bem Jurídico Penal. 3. Adoção da teoria do bem jurídico penal no Projeto de Novo Código Penal. 4. Conclusão. 5. Referências.  

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1. INTRODUÇÃO

A Teoria do Bem Jurídico há muito tem guarida no Direito Penal a fim de indicar a que fim se prestará a qualificação de determinadas condutas como crimes e com que objetivo se está a assim qualificá-las e, ulteriormente, puni-las com uma sanção penal. Com efeito, entende-se que o Direito Penal cuida da repressão dos atos que lesionam ou exponham a perigo bens jurídicos.

O bem jurídico exsurge para o direito penal como fundamento de sua existência e limite de sua atuação. Trata-se de construção teórica afeita à teoria dos direitos fundamentais e aos contornos de um direito penal garantista que atenda aos princípios dos Estados Democráticos de Direito ocidentais. Com efeito, diz-se que o direito penal serve à proteção de bens jurídicos, de sorte que apenas podem ser punidos por esta via os bens assim definidos.

2. TEORIAS DO BEM JURÍDICO PENAL

Deve-se a Feuerbach a primeira teoria que esboça um conceito material de delito (porquanto entendido enquanto lesão advinda de uma conduta e não, meramente, como descumprimento de um comando normativo, previsto em uma hipótese de incidência que tem como elemento deôntico uma pena) que se aproxima da noção de bem jurídico. Para ele, crime seria a violação de um direito subjetivo, previamente definido em lei como tal, que teria por consequência uma pena.

Seguindo a trilha de Feuerbach, Birnbaum cunha a expressão “bem jurídico”, ao estabelecer que o crime, ao revés de identificar-se com o combalir de um direito subjetivo, seria a lesão a um bem jurídico. Essa tese, destarte, foi o responsável pela introdução do conceito de bem no contexto jurídico penal. Nesse sentido, fincou o objeto material do delito na realidade, porquanto direcionara a conceituação de crime não como danoso a um direito, mas a um objeto real e existente, pertencente a um sujeito. Argumentava que o direito subjetivo jamais poderia ver-se diminuído ou lesionado, mas que apenas o bem jurídico, objeto do mundo real, que teria tal aptidão.

Com o positivismo, a exigência por legitimidade externa ao Direito desaparece e com ela se esvai (em certa medida) a força das teses cujo escopo fora traçar um conceito material de delito. Veja-se que marca o positivismo uma busca por uma abordagem avalorativa do direito enquanto objeto científico. Seguindo a corrente positivista, Binding interligou conceito formal e material, de sorte que este restou esvaziado de sentido, ao defender que o bem jurídico tutelado pela intervenção penal seria o que a norma definisse como sendo bem jurídico. O legislador poderia utilizar-se do direito penal como entendesse pertinente, sem que houvesse qualquer mecanismo delimitador da atividade estatal.

Franz Von Liszt é o principal responsável pela hegemonia e ascensão final do bem jurídico como definidor do delito. Após as concepções de Binding, Von Liszt reaviva a noção delimitadora de bem jurídico, imputando-lhe uma preexistência que, justamente, o configura como limiar (de legitimação) da atividade legiferante que apenas o reconhece (LISZT, 1899). Consoante essa tese a preexistência caracteriza o bem jurídico-penal, que, portanto, não é criado pela norma, mas por ela encontrado.

As teses retro explanadas compõem a evolução histórica do bem jurídico, mas não esgotam a sua trilha. Com efeito, teses outras, hodiernamente, abordam a questão. Decerto, classificar e conceituar as teses de diversos autores implica retirar-lhes o que é de peculiar, para agrupá-las de acordo com as intersecções que porventura existirem. Todavia, tal se faz necessário, com fins didáticos e metodológicos. Nesse sentido, têm-se as teorias sociológicas e constitucionais do bem jurídico-penal.

As teorias sociológicas analisam a questão do bem jurídico-penal mediante avaliação da sua construção em sociedade. Põem em relevo, a sua função social. Deveras, tem como paradigma a noção de que o sistema social busca a manutenção e perpetuação de seu funcionamento. Nesse sentido, consoante a tese, o mau funcionamento do sistema deve ser corrigido, de sorte que a realidade sistêmica funcione. Sob a perspectiva acima vislumbrada, não poderia ser outro o bem jurídico que não a funcionalidade social e a missão do Direito Penal assegurar as expectativas sociais em derredor do sistema jurídico que conduzem a comunidade à ordem.

As teorias constitucionais correlacionam o escopo histórico da construção teórica do bem jurídico-penal e a positivação de normas programáticas nas Constituições que servirão como diretivas de política criminal (tendentes à consecução do estabelecimento de um Estado Democrático de Direito) e nesse contexto, como suporte axiológico de delimitação do poder de punir. As teses constitucionalistas se referem à utilização da Constituição (enquanto veículo das finalidades do Estado) como delimitadora da faculdade de criar crimes, em verdade, partem de uma configuração estatal específica (organizada constitucionalmente), qual seja, o Estado Democrático de Direito. Identifica-se, portanto, uma tentativa de solidificar a noção de bem jurídico-penal valendo-se das chamadas Constituições Programáticas, de sorte que não se trata de uma tese positivista (no sentido de aceitar que o quer que preveja uma Constituição tornar-se-á bem jurídico-penal legítimo), mas de uma tese que propugna a adoção de um ideário de Estado pelo direito positivo. Subdividem-se em teorias de caráter geral e de fundamento constitucional estrito.

As teorias constitucionais de caráter geral cingem-se a considerar os princípios gerais de uma Constituição como limiares da atividade legiferante infraconstitucional (em que se insere a positivação de crimes). Defensor de tal tese, Roxin não olvida de apontar que o Estado deve garantir não só as condições individuais de co-existência semelhante (vida, patrimônio, integridade física, liberdade etc.), como também as instituições adequadas para esse fim (sistema financeiro, administração pública, etc.). Diferenciando-se das teorias de caráter geral, as teorias de fundamento constitucional estrito, apontam que os bens jurídico-penais devem ser encontrados não nos princípios gerais do Estado contidos na Constituição, mas advir de comandos constitucionais de criminalização. É dizer, bem jurídico-penal é aquele cuja tutela penal fora demandada pelo legislador constituinte (a partir da constitucionalização de um Estado Democrático de Direito). Trata-se de viés teórico que, apesar de interessante, esbarra nas próprias limitações do direito (enquanto ordenamento estático) que não poderá prever toda a esfera de proteção dos indivíduos necessária ao longo dos tempos.

3. ADOÇÃO DA TEORIA DO BEM JURÍDICO PENAL NO PROJETO DE NOVO CÓDIGO PENAL

Cumpre convir que a concepção do Estado brasileiro enquanto Democrático e de Direito constitucionalista impõe a adoção da teoria constitucionalista na busca de critérios adequados de identificação dos bens, uma vez que a ordem constitucional pátria é reveladora da necessidade de legitimidade da intervenção penal. Ademais, a adoção de tal ideário impede a aceitação de qualquer teoria do bem que o confunda com a vigência da norma (ou eficácia), ou qualquer outra tese que una os aspectos formais e materiais do delito numa só dimensão.

A Constituição é o texto normativo máximo (no Brasil e, de regra, em todos os Estados Democráticos de Direito), que contém as regras de organização do Estado em todas as suas áreas de atuação (jurisdicional, administrativa, legiferante) e os direitos fundamentais dos cidadãos, de sorte que toda a legislação infraconstitucional há de buscar na Lex Legum sua validade. Em caso de incongruência entre a norma infraconstitucional e a constitucional, o aplicador do direito deve afastar a norma de hierarquia inferior do ordenamento ou, se possível, dar-lhe interpretação que seja congruente ao texto superior hierarquicamente. Nesse sentido, conforme leciona Jorge de Figueiredo Dias (DIAS, p. 67):

“…um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez signifca que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de “identidade”, ou mesmo só de “recíproca cobertura”, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins”.

Nesse sentido, Enrique Bacigalupo (BACIGALUPO, p. 44) ensina que:

“La aplicación del derecho penal se debe llevar a cabo, en principio, mediante la técnica de una interpretación ‘conforme la Constitución’, es decir, que los tribunales ordinarios deben aplicar las normas de tal manera ‘que una ley de contenido o indeterminado se determina pelo contenido de la Constitución’ y que ‘no cabe declararla nulidad de una ley que pueda ser interpretada en consonancia con la Constitución’. Asimismo, a los derechos fundamentales se les reconoce un efecto radiante sobre el derecho ordinario”.

Em um Estado Democrático de Direito, comumente, a liberdade e a propriedade privada são direitos fundamentais de todas as pessoas, de sorte que a intervenção penal (cujas possíveis sanções se dirigem, em diferentes graus, sempre, a estes dois direitos) demanda um fundamento (tão valioso quantos os direitos que por ela serão cerceados) para ser legítima. Não é diferente no Estado Brasileiro, que guarida a liberdade dos indivíduos (em suas mais diversas facetas, referindo-nos, especificamente, à liberdade de locomoção) e a propriedade privada no texto constitucional (enquanto direitos fundamentais e fundamentos da República)[1]. Diante de tal conjuntura, forçoso convir com Roxin (ROXIN, 1997, p. 17) quando afirma que: “…em um Estado democrático de Direito, modelo teórico de Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos”.

Nessa trilha de raciocínio, na realidade do direito positivo, essas condições individuais necessárias devem ser identificadas como direitos ou garantias fundamentais, porquanto as esferas de faculdades subjetivas a ser afetadas pelas sanções penais assim o foram. No âmbito das atividades e instituições estatais, os direitos fundamentais irradiam enquanto finalidade precípua do Estado, de sorte que a proteção penal deve restringir-se aos serviços voltados a tais garantias e manutenção da própria configuração democrática que, afinal, é o fundamento ético-político da garantia de tais direitos. Decerto, sendo também a liberdade uma garantia fundamental, o seu cerceamento, apenas será necessário se outras medidas não forem suficientes para proteção de um bem de outrem violado. Por conseguinte, sucintamente, a pena deverá ser necessária, adequada, proporcional, e subsidiária.

Nesse sentido, convergiu a comissão de elaboração do novo código penal, no sentido de enxergar a necessidade da adoção da teoria do bem jurídico-penal, fazendo-o mediante inserção do art. 14, ad litteram: “A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva, a determinado bem jurídico”. Chama a atenção que, conforme o art. 14, de maneira louvável, será vedado criar delitos de perigo abstrato, devendo o legislador infraconstitucional criminalizar condutas que representem efetiva ou potencial lesão a bens jurídicos.

4. CONCLUSÃO

Assim sendo, ante o exame do art. 14 proposto no Projeto do Código Penal, percebe-se que a Comissão que elaborou o Projeto curou que atentar para a questão da lesividade no âmbito do Direito Penal, trazendo ao Direito Positivo, de forma mais palatável, a teoria do bem jurídico-penal como limite ao poder punitivo, que, portanto, deve adstringir-se aos casos necessários, em que a intervenção penal é adequada, proporcional e ultima ratio.  

 

Referências
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e crime. Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1995.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999.
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal. Buenos Aires, Hammurabi, 1989.
LISZT, Franz von. Tratado de direito penal allemão. Rio de Janeiro, F. Briguiet & C, 1899, t. I.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 4 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2009.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
______. Derecho Penal – Parte General – Tomo I – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Madrid: Civitas, 1 ed. , 1997.
______. Estudos de direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2008.
______. Problemas fundamentais de direito penal. 3 ed. Lisboa, Vega, 1998.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte, Del Rey, 2000.
Notas:
[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Informações Sobre o Autor

Rudá Santos Figueiredo

Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Bahia Especialista em Ciências Criminais pelo Juspodivm-IELF Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia Professor da Pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito Professor de Direito Penal da Faculdade Baiana de Direito Professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Salvador-FACSAL Coordenador Adjunto da Pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito Coordenador Adjunto da Pós-graduação em Ciências Criminais do Ciclo


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Equipe Âmbito Jurídico

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