Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais. No contexto da tutela penal ambiental, há divergência no que se relaciona à aplicação do princípio da insignificância aos crimes contra o meio ambiente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. O primeiro entendimento defende a inaplicabilidade do princípio da insignificância quando o bem jurídico protegido for o meio ambiente, tanto em razão das características do referido bem, quanto em virtude das peculiaridades da tutela penal ambiental. De outro lado, o segundo entendimento diz respeito à possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, mesmo quando o bem jurídico protegido for o meio ambiente, desde que a conduta não lese ou cause perigo de lesão ao bem jurídico protegido, baseando-se, principalmente, no princípio da ofensividade e no caráter ultima ratio do Direito Penal. A partir dos argumentos apresentados, busca-se analisar os conceitos e elementos necessários para que se faça um exame crítico dos entendimentos quanto à aplicabilidade ou não do princípio da insignificância.[1]
Palavras-chave: Princípio da insignificância. Meio ambiente. Crimes ambientais. Aplicação.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Princípio da Insignificância no Direito Penal; 3. A Tutela Penal do Meio Ambiente; 4. A Aplicação do Princípio da Insignificância aos Crimes Ambientais; 5. Considerações Finais; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, além de tutelar diversos direitos essenciais ao homem e à comunidade, tais como a vida e a saúde, postulou acerca da necessária proteção ao meio ambiente. Nesse sentido, o bem ambiental foi erigido a direito fundamental, visando à sua preservação para as presentes e futuras gerações.
Em virtude das constantes agressões ao meio ambiente, passou-se a justificar uma política de criminalização contra os vários atos lesivos, desde a poluição das águas, do solo e do ar, até os danos causados à flora, à paisagem e a outros bens. Dessa forma, foi criada a Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais, aplicáveis às condutas e atividades que atentem contra o bem jurídico ambiental.
No contexto da tutela penal ambiental, há divergências no que se relaciona à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes contra o meio ambiente, tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência. Dessa forma, verificam-se dois entendimentos quanto à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância em sede ambiental.
O primeiro entendimento defende a inaplicabilidade do princípio da insignificância quando o bem jurídico protegido for o meio ambiente, tanto em razão das características do referido bem, quanto em virtude das peculiaridades da tutela penal ambiental. De acordo com tal percepção, qualquer lesão contra o meio ambiente torna-se significativa, porque compromete o meio ambiente como um todo,o que legitima a intervenção penal.
De outro lado, o segundo entendimento diz respeito à possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, mesmo quando o bem jurídico protegido for o meio ambiente, desde que a conduta não lese ou cause perigo de lesão ao bem jurídico protegido, baseando-se, principalmente, no princípio da ofensividade e no caráter ultima ratio do Direito Penal. Nesse passo, quando a conduta contra o meio ambiente for considerada ínfima, deverá ser excluída do âmbito criminal.
A partir dos argumentos apresentados, questiona-se quanto à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais, sem a pretensão de esgotar o tema, porquanto abrangente e complexo. Busca-se realizar a análise dos elementos e conceitos necessários para que se faça um exame crítico dos argumentos quanto à aplicabilidade ou não do referido princípio.
2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL
O legislador penal, em sua função legiferante, descreve as ações que são consideradas crimes e comina-lhes, como consequência jurídica, pena ou medida de segurança (BRANDÃO, 2009, p. 05). Por conseguinte, é possível verificar na legislação as condutas proibidas e das quais os indivíduos devem se abster, sob pena de sofrerem uma sanção criminal.
Portanto, o Direito penal atua como instrumento de controle através do qual o Estado pune os comportamentos que afetam gravemente bens jurídicos essenciais às pessoas e à conservação do organismo social. Segundo Bittencourt (2009, p. 01), o Direito Penal “surge com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens”.
A intervenção penal, em razão da natureza da pena, retrata a forma mais drástica de reação do Estado frente ao ilícito, uma vez que implica restrição de direitos fundamentais da pessoa, assegurados pela Constituição Federal. Assim, a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo só serão justificáveis quando os bens jurídicos penalmente tutelados sejam expostos a dano, efetivo ou potencial, constituindo significativa ofensividade.
Logo, se a missão do Direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes e suas conseqüências são as mais graves porque restringem direitos constitucionais, conclui-se que a incidência da sanção penal deve ser a mínima possível, de acordo com o Direito Penal Mínimo. Cabe, por oportuno, transcrever as palavras de Roxin:
“A função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (2009, p.16-17).
Observe-se que o Direito Penal não se ocupa de condutas que produzam resultado cujo desvalor não represente prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n.º 84.412-SP, Relator Ministro Celso de Mello, Julgado em 19/10/2004). Logo, não é qualquer conduta que interessa ao direito penal, mas unicamente os conflitos sociais mais graves, que venham a gerar resultados jurídicos significativos.
Embora o legislador pretenda reprimir condutas graves, é inevitável que, no caso concreto, a norma penal, em face de seu caráter geral e abstrato, alcance fatos irrelevantes (QUEIROZ, 2001, p. 30). A imprecisão legislativa e o caráter abstrato do tipo penal atribuem à descrição da conduta incriminada uma amplitude maior que a necessária para a proteção dos bens jurídicos.
Não é possível controlar que, eventualmente, condutas sem relevância penal sejam consideradas formalmente típicas, ou seja, perfaçam a descrição legal, quando, na verdade, deveriam ser excluídas da incidência da lei criminal. Assim preleciona Toledo:
“Como os tipos são conceitos abstratos, é impossível evitar que sua previsão legal tenha um alcance maior do que aquele que deveria ter […] Condutas socialmente adequadas e até socialmente necessárias podem, pelo seu aspecto externo, ser atraídas para o campo de força do tipo legal de crime […] (1994, p.129)”.
Diante de tal situação, o jurista alemão Claus Roxin propôs a introdução do denominado princípio da insignificância (Geringfügirkeitsprinzip) no sistema penal, cujo objetivo é excluir do âmbito penal condutas que não apresentam grau mínimo de lesividade para a realização do tipo. Em outros termos, os danos de pouca importância devem ser excluídos do âmbito criminal.
Segundo Silva (2008, p. 37), embora a primeira menção normativa do referido princípio seja atribuída a Roxin, já em 1903 Franz von Lizst, ao discorrer sobre a inflação legislativa penal, criticava o uso excessivo do instituto da pena e questionava acerca da restauração da máxima jurídica mínima non curat praetor – o pretor não cuida de coisas sem importância- proveniente do direito romano.
Contudo, embora possa existir divergência doutrinária com relação à origem do princípio enfocado, é pacífica a ideia de que foi concebido no direito alemão, na denominada “criminalidade de bagatela” (Bagatelledelikte), tendo por contexto histórico a situação econômica surgida a partir da Segunda Guerra Mundial. Oportuno salientar o ensinamento de Lopes acerca do tema:
“em virtude de circunstâncias sócio-econômicas sobejamente conhecidas, um notável aumento de delitos de caráter patrimonial e econômico e, facilmente demonstrável pela própria devastação sofrida pelo continente, quase todos eles marcados pela característica singular de consistirem em subtrações de pequena relevância, daí a primeira nomenclatura de ‘criminalidade de bagatela’(1997, p.38)”.
Logo, o brocardo mínima non curat praetor, que facultava o magistrado (sentido de praetor em latim medieval) de julgar ações de pouca importância – devia desprezar os casos insignificantes para cuidar das questões realmente inadiáveis-, não foi a origem, mas o ponto de partida para a criação do princípio em estudo.
Nesse contexto, o princípio da insignificância foi apresentado em 1964, ocasião em que Roxin postulou o reconhecimento da insignificância como causa de exclusão da tipicidade penal. Posteriormente, o princípio foi mencionado na obra Política Criminal e Sistema Jurídico-penal, ocasião em que Roxin referiu acerca da necessidade de:
“[…] uma interpretação restritiva, que realize a função da Magna Carta e a ‘natureza fragmentária’ do direito penal, que mantenha íntegro somente o campo da punibilidade indispensável para a proteção do bem jurídico.
Para tanto, são necessários princípios regulativos como a adequação social, introduzida por WELZEL, que não é elementar do tipo, mas certamente um auxílio de interpretação para restringir formulações literais que também abranjam comportamentos socialmente suportáveis.
Aqui pertence igualmente o chamado princípio da insignificância, que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos tipos: maus tratos são uma lesão grave ao bem-estar corporal, e não qualquer lesão; da mesma forma, é libidinosa no sentido do código penal só uma ação sexual de alguma relevância, e só uma violenta lesão à pretensão de respeito social será criminalmente injuriosa. Por ‘violência’ não se pode entender uma agressão mínima, mas somente a de certa intensidade, assim como uma ameaça deve ser sensível, para adentrar no marco da criminalidade.
Se reorganizássemos o instrumentário de nossa interpretação dos tipos a partir destes princípios, daríamos uma significativa contribuição para diminuir a criminalidade em nosso país (2002, p. 47)”.
Veja-se que o conteúdo jurídico do princípio da insignificância, nos termos apresentados por Roxin, exerce precisamente a função interpretativa do tipo, de modo a restringir sua abrangência. Para o referido doutrinador, é fundamental se atentar à função maior da lei penal, de forma que a tutela penal somente seja utilizada quando realmente necessário à proteção dos bens jurídicos tutelados
Da mesma forma, Klaus Tiedemann, em 1970, fez referência ao princípio da insignificância, chamando-o de princípio de bagatela (Bagatellprinzip), fundado na proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a intervenção estatal. Tal conclusão derivou do exame do caso de um policial que se apropriou de quinze marcos alemães recebidos como tributo (GOMES, 2009b, p. 49, nota 16).
No que pertine ao direito brasileiro, não se verifica instrumento constitucional ou legislativo ordinário a definir expressamente o princípio da insignificância. Não obstante inexista conceito expresso do princípio em análise, pode-se dizer que decorre da lógica do sistema de valores consagrados pela Constituição Federal, no sentido de limitar o exercício do poder punitivo estatal. Tomando em conta que a norma escrita não contém todo o direito e mesmo por constituir princípio geral de direito, não está adstrito a atuar nas restritas esferas em que pode ser verificado, vez que norteia a hermenêutica da constituição em sua totalidade e permeia todo o ordenamento jurídico.
Com efeito, a doutrina – fonte formal do direito – tem conseguido fixar critérios para conceituação do princípio em estudo, tendo por base a natureza fragmentária e subsidiária do Direito Penal. Cabe mencionar, por primeiro, o conceito trazido por Manãs:
“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal (apud SILVA, I., 2010, p. 94)”.
Depreende-se desse conceito que o princípio em debate é utilizado como método de interpretação restritiva do tipo, por exigir elemento material – lesividade da conduta – para configurar a tipicidade. Para além disso, o referido doutrinador apresenta a necessidade político-criminal de se excluir da incidência da lei criminal as condutas sem relevância penal. Analise-se, também, o conceito trazido por Queiroz:
“Pelo princípio da insignificância, o juiz, à vista da desproporção entre ação (crime) e reação (castigo), fará um juízo valorativo acerca da tipicidade material da conduta, recusando curso a comportamentos que, embora formalmente típicos (criminalizados), não o sejam materialmente, dada a sua irrelevância (2001, p. 30)”.
Do cotejo do entendimento apresentado, julga-se pertinente dizer que o princípio da insignificância é norteado pela proporção entre o desvalor previsto no tipo penal e o desvalor da conduta do agente. Dito de outra forma, tal princípio requer um juízo de ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito inerente à pena e o fim perseguido com a incriminação da conduta.
A jurisprudência pátria, confirmando o entendimento da doutrina, tem contribuído para o conceito objetivo de princípio da insignificância em matéria penal. Veja-se, pois:
“O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima (Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus n.º 130578 – MG; Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 15/04/2010)”.
Tendo em vista os conceitos apresentados, conclui-se que o princípio da insignificância é aquele que interpreta restritivamente o tipo penal, aferindo o grau de lesividade da conduta a fim de excluir do âmbito criminal os fatos de poder ofensivo insignificante aos bens jurídicos protegidos pela lei penal. Nesse sentido, o princípio da insignificância surge com o objetivo de afastar a tipicidade, visto que o fato é formalmente típico, entretanto não materialmente; em verdade, o bem jurídico sequer foi lesado. A aplicação da insignificância, enquanto critério de interpretação restritiva do tipo penal, é a exclusão da tipicidade material.
Contudo, tratando-se de crimes ambientais, surgem dúvidas na aplicação do princípio da insignificância. Isso porque, quando o bem jurídico é o meio ambiente, ou seja, bem jurídico metaindividual, difuso, cuja lesão tem natureza extensiva ou disseminada (MORAES, 2004, p. 73), há grande dificuldade em determinar o que é, de fato, insignificante, já que o bem não pertence a uma pessoa em específico, mas a toda coletividade.
3. A TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE
A Constituição Federal de 1988 elevou o meio ambiente à categoria de direito fundamental de todo cidadão. Por conseguinte, o legislador dedicou ao bem ambiental o Capítulo VI, Título VIII, da Constituição Federal, inserindo um único artigo, que contém seis parágrafos, verdadeiro núcleo da tutela constitucional atribuída ao meio ambiente. Assim diz o art. 225, caput, do referido diploma legal:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Da análise da norma-princípio estatuída no art. 225, caput, o constituinte, quando estabelece o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental das presentes e futuras gerações, impõe tanto ao poder público quanto à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Com a edição de tal dispositivo legal, buscou-se a conscientização dos indivíduos quanto à importância do meio ambiente, visando, assim, ao respeito mútuo entre homem e meio em que vive.
Com relação ao dever de defesa do meio ambiente, a Constituição Federal determina que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitam os infratores, sejam estes pessoas físicas ou jurídicas, às sanções administrativa, civil e penal, cumulativamente (art. 225, §3º). Para Freitas (2001, p. 33), o Brasil possui “uma Constituição Federal que, em matéria de meio ambiente, situa-se em posição pioneira e possibilita ao Poder Público e à coletividade os meios necessários para a tutela desse bem comum da humanidade”.
Na esfera administrativa, a legislação visa à aplicação de sanções, com objetivo de evitar o efetivo dano ao meio ambiente. A responsabilidade administrativa se estabelece entre os indivíduos e o poder público, constituindo o resultado direto de uma conduta contrária à norma vigente. As penas aplicadas não fazem parte do Direito Penal, uma vez que decorrem do poder de polícia do estado (FREITAS, 2001, p. 24).
Encontram-se nos arts. 70 a 76, da Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, as disposições gerais acerca das penalidades administrativas cabíveis no caso de transgressão ao meio ambiente. Tem-se, por exemplo, advertência, imposição de multa simples, multa diária, apreensão de instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos utilizados na infração, conforme o caso. As infrações em espécie encontram-se dispostas no Decreto n.º 6514, de 22 de julho de 2008.
Na esfera civil, a legislação impõe ao causador do dano o dever de reparar o ambiente ao status quo ante, através de uma obrigação de fazer ou não fazer. No caso de não se mostrar possível a reconstituição do meio ambiente, haverá o ressarcimento em pecúnia dos danos causados, irrecuperáveis em curto prazo. Essa forma indireta de reparar o dano é chamada de compensação ecológica.
A esfera penal, por seu turno, atua de maneira repressiva às transgressões ambientais através da imposição de pena. Quando se atribui ao dano ambiental conotação criminal, o Estado não tem a pretensão de obrigar o agente a reparar o dano, o que deverá ser buscado pela esfera cível; tem por finalidade reprimir e sancionar as condutas lesivas contra o meio ambiente.
Cabe mencionar que os infratores ambientais estão sujeitos às sanções administrativas, civis e penais sem que, em rigor, seja violada a proibição do ne bis in idem, tendo em vista que a Carta Magna prevê a responsabilidade dos infratores ambientais nos três mencionados ramos do direito, cumulativamente, de acordo com o caso. Para caracterizar a barreira do princípio constitucional ne bis in idem, não basta apenas a tríplice da identidade de sujeito, do fato e da infração, senão também a natureza dos bens jurídicos ofendidos (GOMES, 2009a, p.59). Quanto à cumulação das mencionadas sanções, assegura PRADO:
“Em princípio não há óbice à existência concomitante de infrações penais e administrativas na proteção jurídica do ambiente, especialmente porque o Direito Penal deve intervir em última instância, diante das agressões mais graves e, portanto, com sanções mais severas (2009, p. 88)”.
Logo, embora as sanções sejam cominadas de forma independente, nas esferas administrativa, civil e penal, podem ser aplicadas cumulativamente. No caso de poluição ambiental que provoque a mortandade de animais, por exemplo, o agente, na esfera civil, terá de indenizar o impacto ambiental gerado por sua conduta. Na esfera administrativa, deverá pagar multa, de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais), por incorrer nas sanções previstas no art. 61 do Decreto n.º 6.514/2008. Além disso, o agente responderá a processo criminal, por se enquadrar na conduta descrita no art. 54 da Lei n.º 9.605/98, que prevê a reclusão de um a quatro anos e multa. Recorde-se que o direito penal será aplicado apenas quando ineficazes os outros ramos do direito.
Com a previsão do art. 225, §3º, da Constituição Federal, que menciona a possibilidade da cominação de sanções penais aos sujeitos que eventualmente causem dano ambiental, é reconhecida a relevância do meio ambiente e sua autonomia como bem jurídico, e, para a sua proteção, deve o ordenamento jurídico valer-se da pena, ainda que em ultima ratio, para protegê-lo (PRADO, 2009, p. 74).
A partir dessa diretriz constitucional e visando atender à constante reivindicação da comunidade nacional e internacional, que pugnavam pela aplicação de sanções severas aos infratores ambientais, o legislador infraconstitucional editou a Lei 9.605/98, sistema normativo que consolida os tipos penais ambientais e objetiva reprimir e sancionar os atos lesivos ao ambiente. Quanto à elaboração e a aplicação do art. 225, § 3º, da Constituição Federal, Moraes (2004, p. 196) refere que “é resultado de um atendimento de pressões não somente internas, mas, principalmente, externas à realidade brasileira”. No que diz respeito ao contexto de criação da referida lei, assevera Costa:
“Importa recordar que, em janeiro de 1998, a imprensa brasileira começou a noticiar a ocorrência de um incêndio no Estado de Roraima. O incêndio alcançou dimensões enormes, ganhou a atenção da imprensa nacional e provocou grande desgaste no Governo Federal. Ademais, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais divulgou no final de janeiro dados de desmatamento da Amazônia em 1995 e 1996, destacando que, em 1995, o desmatamento foi recorde – dado que também foi amplamente divulgado pela imprensa. O período eleitoral se aproximava – o primeiro turno das eleições realizar-se-ia no começo de outubro – e foi solicitada, pelo Presidente da República, urgência na votação dos crimes ambientais, cujo projeto já estava em tramitação (2010, p. 145)”.
A Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, nasceu de projeto enviado pelo Poder Executivo Federal. A exposição de motivos n.º 42 é de 22 de abril de 1991, de elaboração do Secretário do Meio Ambiente. Inicialmente, o projeto tinha o objetivo de sistematizar as penalidades administrativas e unificar os valores das multas. Após debate no Congresso Nacional, optou-se pela tentativa de consolidar a legislação relativa ao meio ambiente no que diz respeito à matéria penal (MACHADO, p. 737).
Antes da edição da referida lei, não havia um ordenamento sistemático de infrações penais ambientais. As infrações existentes encontravam-se em legislações esparsas e em alguns dispositivos do Código Penal. Com o advento da Lei n.º 9.605/98, o legislador ordinário procurou sistematizar a tutela penal ambiental. Contudo, é imperioso frisar que nem todos os atos lesivos à natureza foram abrangidos na íntegra desse texto legal, por isso há normas, ainda em vigor, tanto no Código Penal quanto na Lei das Contravenções Penais. Tem-se, como exemplo disso, a contravenção referente à poluição sonora prevista no art. 42 da Lei das Contravenções Penais.
Conclui-se, portanto, que a tutela penal do meio ambiente decorre da necessidade de o Estado proteger os valores fundamentais da sociedade. Dentre os argumentos utilizados para legitimar a tutela penal ambiental, Silva (2008, p. 63) aponta três aspectos que autorizam a intervenção penal na proteção do meio ambiente: “a) o meio ambiente como bem jurídico penalmente relevante; b) a natureza subsidiária do Direito Penal; e c) a função instrumental da sanção penal”.
Arrematando, cabe a reafirmação do meio ambiente enquanto bem jurídico de natureza jurídica transindividual difusa, merecedor de tutela penal de conformidade com a diretriz perfilhada no texto maior.
4. a Aplicação do Princípio da Insignificância aos Crimes Ambientais
Embora seja consolidada na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância às condutas que não sejam capazes de lesar ou por em perigo o bem jurídico, há divergência no que se relaciona à possibilidade de aplicação do referido princípio nos crimes contra o meio ambiente.
Nesse contexto, surgem dois entendimentos quanto à aplicação do princípio da insignificância em sede ambiental. O primeiro defende a inaplicabilidade quando o bem jurídico for o meio ambiente, tanto em razão das características do referido bem, quanto em virtude das peculiaridades do tipo penal ambiental. De acordo com tal percepção, por se tratar de um direito difuso e, portanto, pertencente à coletividade, conforme estabelecido na Constituição Federal (art. 225, caput), qualquer lesão, mesmo aparentemente ínfima, torna-se significativa, porque afeta o equilíbrio do meio ambiente.
O segundo entendimento é quanto à possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, mesmo quando o bem jurídico protegido for o meio ambiente, desde que a conduta não lese ou cause perigo de lesão ao bem jurídico protegido. Baseia-se no caráter ultima ratio do Direito Penal e na ideia de que a tipicidade exige ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos. Nesse passo, quando a intervenção humana no ambiente for irrelevante, deverá ser excluída do âmbito criminal, considerando que não lesa o bem jurídico tutelado pela norma.
No que diz respeito a tal divergência, é importante frisar que a doutrina ainda se mostra cautelosa, sem assumir uma postura conclusiva a respeito, recomendando, apenas, atenção ao caso concreto e às especificidades da proteção ambiental. A jurisprudência não é diferente; não há uma posição segura e consolidada sobre o assunto, sendo encontradas decisões nos dois sentidos. (MORAES, 2002, p. 726-729).
Logo, é imperioso examinar quais os elementos que tornam o princípio da insignificância aplicável ou não aos crimes contra o meio ambiente. Por conseguinte, a primeira questão é saber se há lesão ao bem ambiental que possa ser considerada insignificante ou se qualquer conduta, ainda que ínfima, deva ser considerada e punida pelo Direito penal.
Em consequência da natureza jurídica do meio ambiente, o dano ambiental possui características próprias, que o fazem diferir do dano individual (BELTRÃO, 2009, p. 208). Uma vez ocorrida eventual degradação, é difícil, senão inviável, a tarefa de identificar os sujeitos que sofreram seus efeitos. Sob esse prisma, afirma-se que o dano ao meio ambiente manifesta-se em dimensão coletiva, podendo alcançar número indeterminado de pessoas.
Ademais, o dano ao ambiente não respeita as fronteiras geopolíticas erigidas pelo homem, podendo, por exemplo, ocorrer em uma determinada região e se entender a outra, tendo em vista que há inúmeros fatores de ordem física, química e biótica que interferem nos efeitos provocados pela ação humana (GRANZIERA, 2009, p. 581). Corroborando tal entendimento, assevera Sirvinskas:
“O meio ambiente não tem pátria. Ele é de cada um individualmente,e, ao mesmo tempo, de todos. Sua proteção não deve restringir-se a uma ou a várias pessoas de um país, mas, sim, a todos os países. Um crime ambiental poderá repercutir em diversos países do mundo, como, por exemplo, um desastre nuclear ou a poluição de um rio que corta alguns países (2010, p. 788)”.
Outro aspecto a ser considerado é que o dano ambiental não pode ser mensurado a partir de uma perspectiva econômica, devendo ser avaliado segundo sua dimensão ecológica, ou seja, não apenas quanto aos efeitos imediatos da conduta danosa, mas tendo em vista a repercussão em determinado ecossistema. Nesse sentido, assevera Leal Júnior:
“[…] na natureza nada é isolado ou independente, tudo depende de tudo e se relaciona com tudo. Da mesma forma que a floresta (todo) não é apenas a soma das árvores que a compõem (partes), o dano a um dos indivíduos que compõem essa floresta não produz um efeito restrito a ele, mas pode alcançar o restante do ecossistema, por exemplo. Não se poderiam considerar isoladamente os danos causados ao meio ambiente, porque o impacto final dos mesmos não é igual à mera soma aritmética de cada um dos impactos individualmente considerados (2007)”.
Todavia, é importante deixar claro que nem toda e qualquer forma de diminuição da qualidade do ambiente como, por exemplo, a utilização de recursos naturais, é capaz de causar impacto ambiental. Em outros termos, a diminuição da qualidade do ambiente sempre ocorre. Assim aduz Leite (2004, p. 237): “não é qualquer espécie de intervenção no ambiente que possui o dever de lesar efetivamente os interesses e pretensões das futuras gerações. […] apenas lesões com contornos de gravidade e seriedade autorizam um juízo de contenção das atividades.” Nesse sentido, refere Carvalho:
“A grosso modo, pode-se afirmar que toda e qualquer ação humana causa impactos negativos. Por exemplo, o simples caminhar por uma pequena trilha no meio da floresta já é impactante. Porém, o que deve preocupar a sociedade não é o impacto ambiental em si, mas o grau desse impacto. Em outros termos, existem aquelas ações perfeitamente aceitáveis pela ecologia, já que não afetam em profundidade o seu equilíbrio; outras, que agridem o meio ambiente mas que, embora com altos custos financeiros e humanos, podem, com o tempo, se não retornar ao status quo ante, pelo menos voltar a ter uma sanidade mínima (nos recursos hídricos, na atmosfera) ou a recuperar, ainda que parcialmente, suas pré-condições (caso, por exemplo, do reflorestamento com espécies nativas); e existem aquelas que causam danos irreversíveis, definitivamente danosos (2001, p. 43)”.
Corroborando tal ideia, consoante define o art. 3º, inciso II, da Lei n.º 6.938/81, o dano ambiental consiste na “degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente”. Depreende-se, desse conceito, que não é qualquer alteração humana no ambiente que pode ser considerada dano ambiental, mas somente aquela capaz de alterar consideravelmente as características do meio ambiente. Mencione-se, ainda, a definição trazida por Leite:
“O dano ambiental, por sua vez, constituiu uma expressão ambivalente, que designa, certas vezes, alterações nocivas ao meio ambiente e outras, ainda os efeitos que tal alteração provoca nas saúde das pessoas e em seus interesses. Dano ambiental significa, em uma primeira acepção, uma alteração indesejável ao conjunto de elementos chamados meio ambiente, como, por exemplo, a poluição atmosférica; seria, assim, a lesão ao direito fundamental que todos têm de gozar e aproveitar do meio ambiente apropriado. Contudo, em sua segunda conceituação, dano ambiental engloba os efeitos que esta modificação gera na saúde das pessoas e em seus interesses (2000, p. 98)”.
Conclui-se, pois, que há intervenções no meio ambiente passíveis de serem consideradas insignificantes, quais sejam, aquelas incapazes de comprometer o equilíbrio ambiental e gerar lesão à saúde das pessoas. Dessa forma, o que interessa ao direito não é o impacto ambiental em si, mas o grau desse impacto. Portanto, é importante identificar o grau de tais impactos ambientais, não apenas para o campo científico, buscando verificar as reais possibilidades, o tempo e os recursos técnicos e financeiros necessários para a recuperação, mas, particularmente, para que se verifiquem quais penas deverão ser impostas – civil, administrativa e/ou penal.
Entretanto, conforme assegura Granziera (2009, p.581), “a fixação de uma linha que separe com clareza, quanto à imposição da responsabilidade do agente, um dano considerado insignificante de outro significante contém tantas variáveis que é praticamente impossível delinear um conceito aplicável a todas as hipóteses.” Complementando esse raciocínio, Milaré apresenta elementos que comprovam tal dificuldade:
“1. porque a lei ressalvados poucos casos, (poluição hídrica e atmosférica, p.ex.) não apresenta parâmetros que permitam uma verificação objetiva da significância das modificações infligidas ao meio ambiente. […]
3. é preciso ter em mente que muitas emissões, até inocentes quando isoladamente consideradas, podem, examinadas no contexto de um conglomerado industrial, por exemplo, apresentar extraordinário potencial poluidor, em razão de seus efeitos sinérgicos (2007, p. 902)”.
Nota-se que, ainda, há outra questão a ser enfrentada: o argumento de que, embora uma única conduta possa ser considerada insignificante, a prática reiterada de pequenos atos lesivos, com o passar do tempo, traz consequências ao meio ambiente. Cita-se, por oportuno, a afirmação de Antunes:
“O fato de que uma fonte de poluição seja quantitativamente desprezível não é suficiente para que o seu titular não esteja incidindo na prática de dano ambiental, pois é a capacidade de suporte do meio ambiente que deve ser levada em consideração e não a emissão em si. A existência de inúmeras fontes de poluição desprezíveis pode, de fato, constituir-se em dano ambiental (2000, p.181)”.
Não se discorda de tal argumento, reconhecendo-se que a natureza sofre com reiteradas condutas lesivas e que seus efeitos são cumulativos, podendo, por exemplo, uma floresta inteira ser devastada, cortando uma árvore hoje, duas amanhã, cinco mais adiante (TACRIM-SP – 7ª Câmara – Ap. 1.018.635/9 – Rel. Côrrea de Moraes- RJTACrim 32/114). Logo, é a capacidade de o meio ambiente suportar, ou seja, o contexto em que ocorreu determinado dano ambiental que deve ser considerado.
Por conseguinte, para que o indivíduo seja responsabilizado por crime ambiental, é necessário que se considere, não o número de espécimes mortas ou abatidas, por exemplo, mas o efetivo dano ao bem ambiental, em determinado ecossistema. De acordo com os fundamentos do Direito penal, para que haja crime, a conduta tem de lesar ou causar perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, consoante o estabelecido pelo princípio da ofensividade. Logo, se a conduta analisada, por si só, não tem o condão de lesar o bem jurídico, não haverá crime, devendo a mesma ser considerada atípica por não preencher o aspecto material da tipicidade.
Para que se julgue a significância ou a insignificância de um determinado elemento do meio ambiente, em consequência das características peculiares ao dano ambiental, deve-se considerar a cadeia de relações e as consequências indiretas da intervenção humana, proibida, no ecossistema. Daí a importância de cada situação concreta ser examinada na sua complexidade e sua totalidade, tendo em vista os interesses tutelados pela lei penal ambiental.
Nesse sentido, a doutrina recomenda cautela e enfatiza a necessidade da utilização de todo o conhecimento técnico disponível para mensurar a relevância de uma determinada intervenção humana em um ecossistema, especialmente quando tal conduta é proibida pelo ordenamento jurídico. Com relação à necessidade de utilização do conhecimento técnico, Sirvinskas (2010, p. 116) assegura que o direito ambiental “[…] depende dos conceitos e conhecimentos de outras ciências[…]. Só pelas informações técnicas fornecidas por essas ciências é que se poderia proteger em juízo o meio ambiente”. No que diz respeito à aferição insignificância da lesão ao ambiente, refere Freitas:
“É preciso que fique demonstrada no caso concreto. É dizer, o magistrado, para rejeitar uma denúncia ou absolver o acusado, deverá explicitar, no caso concreto, porque a infração não tem significado. Por exemplo, em crime contra a fauna não basta dizer que é insignificante o abate de um animal. Precisa deixar claro, entre outras coisas, que este mesmo abate não teve influência no ecossistema local, na cadeia alimentar, analisar a quantidade de espécimes na região e investigar se não está relacionado entre os que se acham ameaçados de extinção (2006, p. 44)”.
Quanto à existência de lesão ambiental insignificante, Silva (2008, p. 88) refere que, “a própria Lei de Crimes Ambientais reconhece a possibilidade de existência de lesão ambiental penal insignificante”, conforme se verifica da redação do art. 54, assim redigido:
“Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
Da análise do referido artigo, depreende-se que somente haverá crime de poluição quando: for comprovado o perigo ou dano à saúde humana; a conduta provoque a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Isso quer dizer que somente restará configurado o crime de poluição previsto no art. 54 se houver destruição considerável da flora ou quantidade relevante de animais. Segundo Prado:
“por destruição significativa da flora deve ser entendida aquela realizada de maneira expressiva, de gravidade considerável. De sua vez, o termo mortandade (matança, chacina) significa que deve haver o extermínio de uma quantidade relevante de animais (2009 p.250)”.
Logo, verifica-se que a lei dos crimes ambientais deixa explícita a existência de lesões ao meio ambiente que não interessam ao direito penal; exemplo disso, é a exclusão do âmbito criminal em caso de destruição da flora que não seja significativa. Assim, quando a conduta não for lesiva ao meio ambiente, pode-se invocar o princípio da insignificância para afastar a incidência da lei criminal sobre a conduta praticada no caso de esta não preencher o aspecto material da tipicidade (Silva, 2008, p. 89).
Na doutrina, o entendimento é quanto à possibilidade de aplicação do princípio da insignificância. Na percepção de Sirvinskas, pode-se aplicar o referido princípio quando a sanção não ensejar tratamento adequado ao caso ou quando houver penas substitutivas na esfera civil ou administrativa:
“[…] esse princípio foi muito adotado, antes do advento da lei 9605/98, nos crimes contra a fauna.
Agora, com a lei 9605/98, o juiz, considerando as circunstâncias, poderá deixar de aplicar a pena no caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, conforme o art. 29, § 2º, referido diploma legal. Também não se fala em crime contra a fauna se for praticado para saciar a fome do agente ou de sua família – estado de necessidade, art. 37, 9605/98.
Vê-se, pois, que o delito nasceu com todos os seus requisitos, mas por motivo de política criminal a sanção não seria aplicada por tornar-se inócua e despida de qualquer utilidade social. A aplicação da sanção nos casos chamados insignificantes só traria prejuízo desnecessário ao agente no tocante à reincidência e à permanência do seu nome no rol dos culpados.
Conclui-se, portanto, que o fato deve ser penalmente insignificante e a exclusão da tipicidade só será possível quando a sanção não ensejar tratamento adequado ao caso ou houver penas substitutivas na esfera civil, administrativa, regulamentar etc., desde que exigidos os preceitos legais ou administrativos extrapenais (2004, p. 26-27)”.
Nesse sentido, Freitas aceita a aplicação do princípio da insignificância em sede ambiental, desde que de forma excepcional, argumentando que, nos casos de menor relevância, além de as penas serem leves, em sua maioria, existe a possibilidade de transação penal e suspensão condicional do processo:
“[…] o reconhecimento do princípio da insignificância deverá ser reservado para hipóteses excepcionais, principalmente pelo fato de que as penas previstas na Lei 9.605/98 são, na sua maioria, leves e admitem transação ou suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, arts. 76 e 89). Em outras palavras, no caso de menor relevância a própria lei dá solução, ou seja, composição entre o Ministério Público e o infrator, sendo esta a opção mais acertada (2006, p. 44)”.
Mencione-se, ainda, que Nucci (2006, p. 507), ao discorrer sobre o princípio da insignificância, entende “perfeitamente aplicável no contexto dos delitos contra o meio ambiente”. Nesse sentido, traz como exemplo o crime do art. 29, da Lei n.º 9605/98, entendendo que matar, perseguir caçar, apanhar, utilizar qualquer animal de mínima importância para o ecossistema, como “uma borboleta ou um filhote de pássaro que caiu do ninho”, é hipótese de aplicação do referido princípio.
Em consonância com os argumentos desenvolvidos, entende-se possível a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais. Contudo, a aplicação do mencionado princípio na prática deve ser realizada com o máximo de cautela e prudência, a fim de não inviabilizar a proteção do meio ambiente. Além disso, é imperioso que a intervenção penal seja realizada de forma coerente com os postulados do Direito Penal, reservando para âmbito criminal as condutas que efetivamente impliquem ofensa ao bem jurídico protegido.
Como se pode constatar na Lei n.º 9605/98, a norma penal tem como propósito proteger o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, assegurado pelo art. 225, da Constituição Federal. Todavia, é importante frisar que essa proteção pelo Direito Penal justifica-se apenas em face de danos efetivos ou potenciais ao equilíbrio do meio ambiente. Logo, conforme referido, é imperioso analisar o contexto em que ocorreu a intervenção humana.
É importante ressaltar que, fora tais casos, a conduta não deixa de ser relevante para o Direito. No entanto, a responsabilização da conduta será objeto do Direito Administrativo ou do Direito Civil, uma vez que o Direito Penal atua, especialmente no âmbito da proteção da proteção do meio ambiente, em caráter subsidiário em relação à responsabilização de caráter não penal.
Logo, se as circunstâncias do caso concreto levam a concluir que a intervenção humana no ambiente não foi capaz de gerar degradação ou risco de degradação ao ecossistema, deve ser tida por ilegítima a intervenção penal. Ademais, deve-se realizar, sempre, um juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que eventualmente lhe será imposta, tendo em vista o princípio da proporcionalidade.
Assim sendo, tem-se que a restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância não deve operar sem os devidos critérios ou derivar da interpretação subjetiva do julgador, mas deve ser resultado de uma análise do caso concreto. Serão analisados, por derradeiro, alguns critérios a serem utilizados pelo interprete da lei para a adequada aplicação do princípio estudado.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a finalidade da norma penal ambiental seja proteger a higidez do ambiente, é imperioso reconhecer que nem toda a intervenção humana tem a capacidade de gerar dano ambiental, havendo determinadas condutas aceitáveis do ponto de vista ecológico. Além disso, é necessário atentar-se ao fato de que, não poucas vezes, a descrição da conduta incriminada no tipo penal ambiental tem amplitude maior que a necessária para a proteção do bem jurídico em questão.
Nesse sentido, entende-se aplicável o princípio da insignificância aos crimes ambientais, devendo ser consideradas insignificantes e, por conseguinte, atípicas as condutas que não afetam o bem jurídico protegido pela norma penal e que não possam comprometer o equilíbrio protegido constitucionalmente. Por conseguinte, a insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem jurídico atingido, no caso o meio ambiente, mas especialmente em relação ao grau de sua lesividade, entendida enquanto ofensa significativa ao bem jurídico.
Logo, para que se constate a significância de uma intervenção humana, faz-se necessário analisar o contexto ecológico em que tal ato foi produzido. Em sede ambiental não se deve considerar critérios meramente quantitativos ou econômicos, tendo em vista a característica difusa do bem jurídico ambiental e a impossibilidade de sua mensuração. É imperioso considerar uma visão completa do ecossistema atingido, somente estando autorizado o reconhecimento da atipicidade da conduta nas hipóteses em que, comprovadamente, não houver lesão ao bem jurídico tutelado. É nesse sentido que se aponta a fundamental importância da prova técnica, elaborada por profissionais multidisciplinares, de modo a não comprometer a proteção do meio ambiente em virtude de uma análise leiga do caso concreto. É preciso considerar também que mesmo a prova técnica encontra grandes dificuldades, visto que o estabelecimento de nexo de causalidade no dano ambiental representa um desafio de difícil superação. Muitas vezes os danos se estendem para além das fronteiras nacionais ou são constatados anos após a ocorrência do evento que os originou.
Exige-se, do operador do direito, uma análise acurada das circunstâncias específicas do caso concreto, de modo que haja proporcionalidade entre o dano causado e a pena eventualmente imposta ao agente. Não há espaço, portanto, para argumentos eivados de radicalismo que desconsiderem o equilíbrio de tais vetores. É necessário que a intervenção penal seja realizada de forma coerente com os postulados do Direito Penal, inclusive porque não se mostra razoável manejar um processo criminal com eventual condenação por ato que sequer tem a capacidade de afetar o bem jurídico protegido, a partir de uma suposta necessidade de fazer do caso concreto um exemplo para a coletividade, em uma verdadeira perversão do sentido intimidatório da prevenção geral.
Cabe destacar que a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais não significa a impunidade do agente que praticou a conduta, tendo em vista que o mesmo deverá ser responsabilizado por meio de imposição de sanção administrativa em decorrência do ato lesivo ou pelo dever de reparar o impacto ambiental gerado. Além disso, deve ser destacado que no que tange à preservação do meio ambiente, o Direito Penal tem pouco a concretamente contribuir, uma vez que os mecanismos que efetivamente podem atuar de forma preventiva cabem a instâncias que extrapolam o âmbito do próprio direito.
Ademais, a aplicação sensata do postulado da insignificância em sede ambiental contribui para impedir uma intervenção judiciária excessivamente restritiva e desproporcional aos objetivos pretendidos pela norma ambiental. Nesse passo, ainda que uma conduta perfaça a redação do tipo penal ambiental, mas não seja capaz de atacar a proteção visada pela norma, a intervenção pelo direito penal será despropositada.
Conclui-se que, na falta da essência que legitima o crime ambiental, qual seja, lesão ou risco ao equilíbrio do meio ambiente, não se justifica a intervenção penal, cabendo ao Estado manipular outros recursos para alcançar a preservação do meio ambiente, mantendo-o ecologicamente equilibrado, o que é, de fato, essencial para uma vida saudável.
Acadêmica de Direito da FURG/RS
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