Resumo: O objetivo do presente artigo é dissecar e analisar a banalização da violência como notícia, a exploração midiática abusiva do evento criminoso envolvendo a menor Isabella Nardoni, a atuação da policia e a prática conjunta (imprensa e Policia) da violação aos direitos humanos em múltiplas vertentes. O artigo analisa a informação jornalística contemporânea na ambiência brasileira, que é demasiadamente voltada para a divulgação da violência e a perenização da notícia-espetáculo. Busca destacar as irregularidades perpetradas pelo aparelho policial na apuração dos autores do ilícito, e a despreocupação com os estamentos jurídicos que asseguram direitos aos investigados. O artigo põe em evidência, neste caso específico, a excessiva, abusiva e emocional divulgação dos fatos ou eventos relacionados à investigação, envolvendo até imagens de infantes, deturpando os valores da família e instigando a vingança particular. O trabalho estabelece uma relação entre o direito à liberdade de expressão e de comunicação (art. 5º, IV, V, IX, XIII e XIV e art. 220, §§ 1º, 2º e 6º, da Constituição Federal), a limitação imposta aos órgãos policiais quando em interrogatórios e prisões (Art. 5°, XI, da CF e Arts. 5, 6, 7 e 8, do Pacto de San José da Costa Rica), os direitos da personalidade dos envolvidos e de terceiros que igualmente têm berço constitucional (art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal), e os direitos humanos difusos de menores (Arts. 4°, 7°, 15, 17, 18 e 76 do ECA), dos acusados, e genericamente dos pais e madrastas. Como metodologia, optou-se pela descrição do sistema do direito positivo nacional a partir de uma perspectiva normativista, sem prejuízo à concepção dos princípios constitucionais como normas jurídicas.
Palavras-chave: Caso Isabella Nardoni. Constituição; Direitos Humanos; Informação Jornalística como espetáculo; Liberdade de expressão; Liberdade de Comunicação; Dignidade da pessoa humana.
1. INTRODUÇÃO.
Após a Constituição de 1988, que inaugurou por aqui a normalidade democrática, muito se tem falado em direitos humanos no Brasil, principalmente após o acontecimento de alguma chacina ou de alguma barbárie perpetrada por policiais ou por unidades militarizadas. Nesta tônica da criação de uma rede protetiva dos direitos humanos, até uma Secretaria Especial de governo foi criada (SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República), com status de Ministério.
A cada acontecimento funesto e de forte comoção social, Órgãos e entidades cuidadoras do tema ocupam o espaço midiático e público para cobrarem providências rigorosas do Estado.
No entanto, recentemente, neste caso da menor Isabella Nardoni, assassinada cruelmente no apartamento do seu pai, tem se praticado associativamente pela imprensa e pela polícia, uma sucessão de violação aos direitos humanos, sem que haja qualquer grita das entidades organizadas nesse setor. O mutismo é a tônica, o acovardamento o emblema.
Por que o Movimento Nacional dos Direitos Humanos não veio ainda a público censurar a Rede Globo por ter entrevistado dezenas de crianças na sala de aula na Escola onde Isabella estudava, perguntando o que elas sentiam pela morte dela? Ou quando visitou algumas famílias que tinham filhos estudando na mesma escola, e passou vídeos mostrando Isabella em cenas alegres, entrevistando novamente algumas crianças, provocando choro nelas?
O que motiva o silêncio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República quanto ao proceder da Polícia, que antes de anexar o Laudo Pericial aos autos do Inquérito Policial, já houvera disponibilizado cópias para os jornalistas? O que falaria o Ministro titular da SEDH sobre interrogatórios noturnos dos acusados Alexandre Nardoni e Anna Jatobá, com duração de mais de sete horas, desrespeitando o Pacto de San José da Costa Rica? Como se permitir que aconteçam prisões domiciliares perto das 23 horas, violando a Constituição Federal? Por que nada foi dito a respeito do procedimento da Delegada que preside o inquérito, que fez induções falsas no interrogatório dos acusados, dizendo que o laudo técnico havia comprovado manchas de vômito nas vestes do acusado Alexandre, e de sangue da vítima nos bancos traseiros do carro da família, quando tais fatos eram inverídicos?
E entidades reconhecidas como a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e o Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras dos direitos Humanos, por que ainda não se manifestaram sobre o abuso cometido pela imprensa brasileira, com essa transmissão incessante e desnecessária da vida dos acusados, a intromissão na vida privada e perseguição dos seus familiares, a perenização da notícia em busca da audiência, a estigmatização e estereotipação da madrasta, a banalização da violência, o estímulo à vingança privada, e a geração do medo e do pavor das crianças em relação aos seus pais?
São esses enfoques que o artigo quer abordar, com o intuito de provocar uma reflexão sobre a incapacidade de reação dos movimentos sociais relacionados aos direitos humanos, quando são evidenciados interesses massivos da sociedade midiática.
2. IMPRENSA E VIOLÊNCIA
O desenvolvimento tecnológico e a conformação dos sistemas econômicos fizeram com que as sociedades se tornassem mais complexas e grande parte da comunicação humana fosse intermediada pelos meios de comunicação, que pretendem representar a voz de cada cidadão, constituindo-se em poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos, determinantes na construção da opinião pública.
Ciosos desse Poder abstrato de que são dotados, os meios de comunicação têm manipulado a informação, adequando-a as suas conveniências, agindo como se não sofressem limites.
No Brasil, o direito à liberdade de imprensa tem berço constitucional há mais de um século, constando objetivamente no §12º do artigo 76 da Carta Política de 1890. Contudo, tem sido ele evocado diariamente para justificar todo o tipo de tropelias em relação a outros direitos. O mais grave é que, devido a disputa mercadológica entre os atuantes nesse viés empresarial, a informação ou a notícia tem vindo com maior grau de espetaculosidade, produzida com estardalhaço, objetivando atrair o público, sem a menor preocupação com os preceitos básicos da ética e violando os direitos fundamentais das pessoas noticiadas.
Para a formação midiática moderna não basta noticiar ou informar. O que importa é chocar, é sobressaltar o destinatário, seja ele leitor, ouvinte ou expectador. A disputa – de poder ou de mercado – tem afastado a verdade como elemento fundante da informação, sujeitando o receptor a um constante exercício logístico de bom senso e de equilíbrio para identificar o que é excesso, o que é irreal, daquilo que é fato verídico.
Para comercializar a notícia ou conquistar audições não se olham os meios, mesmo que o argumento seja manipular a informação.
Por aqui, é fato, na mídia a violência rende dividendos financeiros. Nenhum jornal deixa de colocar em sua primeira página a foto do último e do mais recente assassinato. Nenhum telejornal que se preze principia sua edição sem fazer uma chamada para uma ocorrência criminosa.
Não é de hoje que se discute sobre a banalização da violência na mídia brasileira, principalmente na televisão. Há alguns anos o Ministério da Justiça resolveu entrar nessa briga, com a classificação etária dos programas de TV. Uma medida paliativa foi tomada, com o anúncio na parte inferior do vídeo contendo a idade recomendada e aconselhável para os expectadores, sendo esta medida inócua pois um simples aviso na tela não impede que menores assistam a um programa impróprio.
Na contramão dos programas censurados estão os jornalísticos, que ficam de fora da classificação. Talvez por isso, programas policiais – os filhotes de “Aqui Agora”, “Cadeia Nacional” e “Cidade Alerta” – fazem audiência em cima das tragédias. A exposição da violência é acriteriosa, continuada, sem limites.
Uma demonstração emblemática se dá agora com o caso Isabella Nardoni. Pai e madrasta foram presos e submetidos até agora a um linchamento moral. Mesmo sendo apenas suspeitos, a imprensa mandou às favas a máxima da presunção da inocência e já proclamou e julgou o casal como os culpados pela morte da menina.
Na busca da manutenção da audiência, a imprensa montou postos de observação permanente em pelo menos cinco locais diferentes: na casa da mãe de Isabella; no apartamento do pai de Alexandre Nardoni; em volta do apartamento dos pais de Anna Carolina Jatobá; no entorno do apartamento da irmã de Alexandre, Cristiane Nardoni, e, por fim, no gabinete do Promotor Francisco Cembranelli.
A exploração é tamanha sobre o caso que o nome Isabella Nardoni, se consultado em um sítio de pesquisas como o Google, contém 1.520.000 (um milhão, quinhentos e vinte mil) referências. O nome do seu pai já conta com quase um milhão de referências. Segundo o Observatório da Imprensa, este é o caso, na história da imprensa brasileira, que mais recebeu cobertura contínua. Uma certa emissora de TV já chegou a dispensar 60% de sua programação diária apenas para a cobertura do episódio.
O que se percebe é que a vida dos acusados, dos seus pais, a da mãe da menor e a dos seus familiares, foi bruscamente interrompida, suas intimidades devassadas, grampos telefônicos clandestinos instalados e até o lixo de suas casas é revirado, tudo em busca de uma satisfação para a opinião pública, ávida na bisbilhotice e na criação de “judas” sociais.
O caso prossegue sem fechamento e vai continuar sendo explorado à exaustão pela mídia. Tudo bem que o que aconteceu com a pobre Isabela é notícia e por isso tem que ser mostrado, mas todo o mis em scene feito em cima do caso não tem outra justificativa, se não os pontos do Ibope. E tudo isso é mostrado em qualquer horário, sem o menor pudor e até mesmo ocupando programas inteiros.
Qual a utilidade da classificação etária do Ministério da Justiça? Como evitar que crianças sejam aterrorizadas diariamente com imagens de Isabella e a reprodução do seu assassinato, com a informação acessória e contínua de que os assassinos são seus pais, provocando nos infantes um temor de que lhes aconteça mal igual?
A imprensa quando noticia e reproduz a notícia, incessantemente, está provocando e incitando violência. Se não uma violência física, não consumada ainda graças a proteção policial aos acusados em suas saídas domiciliares, mas de certo uma violência psíquica aos milhões de pessoas que assistem passivamente ao desenrolar do episódio, principalmente contra as crianças.
Que trauma ou prejuízos psicológicos não se assomarão aos menores que convivem sob os cuidados alternados de madrastas, estereotipadas e estigmatizadas na personificação criminosa feita pelos noticiários de Anna Carolina Jatobá?
O irônico é constatar que enquanto a tragédia com Isabella é escancarada de forma exagerada pela mídia, tantos outros casos parecidos que aconteceram fora de São Paulo passaram despercebidos.
O caso Isabella não foi o primeiro a ser exageradamente exposto pelos meios de comunicação, explorados comercialmente com o objetivo de elevação do Ibope. E enquanto o Ministério da Justiça se preocupar somente com os filmes da Sessão da Tarde, não será o último.
A violência rende frutos comerciais e as emissoras de televisão, que teriam uma obrigação de transmitir uma programação educativa, estão ávidas por novos crimes.
3. VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS RELATIVOS AOS MENORES
Neste episódio da morte da menor, deve ser evidenciada a necessidade de se garantir a proteção dos direitos humanos das crianças frente a lógica perversa da imprensa, cujos tentáculos são dominantes e imobilizadores da sociedade brasileira. Nesse sentido, imprescindível lembrar que o público telespectador ou leitor infanto-juvenil constitui-se num segmento em formação, com uma menor capacidade de discernimento, e por isso é alvo de proteção de uma legislação própria, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A veiculação indiscriminada de cenas violentas ou de relatos descritivos da cena do crime, em horário diurno, tem gerado graves conseqüências psíquicas aos infantes. Toda vez que o caso é destacado, tem como chamada sonora ou visual a fotografia de Isabella, despertando a atenção das crianças.
Assim, o público infanto-juvenil é sem dúvida a parcela da sociedade mais atacada por este tipo de ação deletéria e criminosa da imprensa, uma vez que ainda não possui capacidade de discernimento, não tem maturidade para isolar o evento do seu ambiente existencial, confundindo personagens e fatos.
Muito mais violência se pratica contra os infantes quando os repórteres, sob o pretexto da notícia, entrevistam crianças na sala de aula onde Isabella estudava, ou na residência dos vizinhos, expondo vídeos para provocar choro nos entrevistados.
Diante dessa problemática verifica-se ser imprescindível compatibilizar a programação e o conteúdo dessas notícias com a vulnerabilidade psíquica que estão expostas as crianças e adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente traz inúmeros artigos que se referem a proteção dos menores. E ao se fazer uma analogia com o tema em questão podemos perceber que existem alguns artigos que poderiam ser aplicados pelo Judiciário Brasileiro, pelos órgãos de proteção das crianças e dos direitos humanos para conter essa deturpação psicológica contínua.
A legislação reconhece a criança e o adolescente como seres humanos em estágio de desenvolvimento e, assim sendo, gozam eles de uma proteção especial, proteção esta voltada para afastá-los de qualquer obstáculo que possa mitigar seu pleno amadurecimento físico, mental, moral, espiritual e social.
Os dispositivos do ECA bem se adequam a esse desejo legislativo de proteger o menor:
“Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
“Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.”
“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.”
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”
“Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”
Se assim o é, como se permitir a veiculação de imagens de crianças entrevistadas, em prantos? E qual a justificativa para que não se impeça da exposição permanente à reprodução da cena da queda da criança Isabella, com sobejos de culpa para o pai e a madrasta?
Quantos milhares de criança neste país estão olhando com desconfiança para seus pais? Quantos outros milhares não passarão a estigmatizar e a estereotipar ainda mais a madrasta?
No que tange à madrasta, é evidente a exploração da imprensa dessa condição sócio-familiar da acusada Anna Carolina Jatobá. É apenas uma reiteração psicológica nos infantes da figura mitológica da madrasta, a conhecida personagem má da maioria das estórias infantis. Desde “João e Maria”, “Cinderela”, “Branca de Neve”, e outros contos antigos, a personagem da madrasta apenas encobre o lado sombrio da mãe. É ela quem encarna o egoísmo, a rivalidade, a crueldade ou o descaso para com o sofrimento das crianças, de modo a manter a idealização da maternidade biológica e conservar a santa mãe em seu pedestal.
É preciso entender que a própria reprodução incontida da matéria incute inconscientemente nas famílias a possibilidade fática da solução de um problema interno pela violência doméstica. E os crimes domésticos colocam em evidência o desamparo infantil. Pesquisa da Unicef sobre a violência doméstica no Brasil revela que 44,3% dos homicídios de crianças ocorrem dentro de casa, sendo 34,4% deles cometidos por parentes das vítimas. Sem contar os casos de abuso sexual, que ocupam o primeiro lugar na lista das formas de violência familiar.
É preciso dar um basta neste conteúdo impróprio trazido para o ambiente doméstico por meio da televisão ou de outros meios de comunicação! O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe até de um artigo específico para regular a programação e o conteúdo das emissoras de rádio e televisão, exigindo que tenha apenas finalidade educativa, artística, cultural e informativa. Pelo menos assim se lê no artigo 76:
“Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.”
As entidades defensoras dos Direitos Humanos não podem ficar inertes nesta questão, entorpecidas e também inebriadas pela hipnose do “plim-plim” televisivo.
3. VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS QUANTO AOS ACUSADOS
No que respeita aos acusados, interrogatórios prolongados por mais de sete horas ou a prisão em seus domicílios em horário noturno, são apenas destaques dos múltiplos desrespeitos cometidos. Violação à Constituição Federal Brasileira e ao Pacto de San José da Costa Rica é rotina procedimental contínua do aparelho policial, com um endosso efetivo da grande imprensa.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)
(Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, institui no seu artigo 5°, inciso I, que “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.”
Adiante, o artigo 7°, inciso 4, informa que toda pessoa tem direito à liberdade pessoal, mas, se for detida, “deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.”
A expressão “sem demora’ vai constar no item 5 do mesmo artigo, enunciando que ofende ao direito fundamental do cidadão o interrogatório prolongado por mais de sete horas, como se deu com os Nardoni.
O inciso 2 do artigo 8° do mesmo pacto diz que “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”
A Constituição Brasileira, por seu turno, garante a inviolabilidade do domicílio e a prisão em horário noturno (Art. 5°, inciso XI). Contudo, no caso dos Nardoni, as suas prisões, ampla e previamente anunciadas pela imprensa, somente aconteceram em horário noturno, depois de uma alongada cobertura prévia dos noticiários. Sempre por volta da meia-noite.
Apreciando o Recurso Extraordinário nº 460.880-4/RS, o Supremo foi chamado a analisar a extensão da proteção constitucional conferida ao domicílio. O quadro fático apresentava oficial de justiça que, portando mandado em que constava autorização expressa para cumprimento em domingo ou em dia útil, nos termos do § 2º do artigo 172 do Código de Processo Civil, tentara entrar na residência do réu, contra a vontade deste, em um sábado, durante o repouso noturno, para intimar a mulher — cônjuge —, que estava enferma.
O Supremo Tribunal Federal considerou caracterizada a ofensa ao dispositivo da Carta que versa a inviolabilidade noturna do domicílio, pouco importando a existência de ordem judicial. É em relação a esta última mesmo que ocorre a limitação constitucional. O inciso XI do artigo 5º do Diploma Maior preceitua ser a casa “asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Em síntese, prevaleceu a disciplina constitucional em detrimento do que previsto no Código de Processo Civil e determinado pelo Juízo. A atuação judicante é vinculada. Faz-se a partir do Direito posto e, no ápice da pirâmide das normas jurídicas, está a Carta da República, que a todos, indistintamente, submete.
Diante da clareza vernacular do preceito constitucional, somente durante o dia poderia haver o implemento da ordem judicial de prisão dos acusados do crime perpetrado contra Isabella. O STF, no caso antes narrado, atuou revelando que os cidadãos devem ter a Constituição como uma derradeira trincheira.
4. A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS QUANTO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DOS ACUSADOS E DE TERCEIROS
Por derradeiro, é bom que se diga que os familiares de Isabella e dos acusados estão vivendo em cárcere privado, impedidos de saírem dos seus domicílios. Do mesmo modo são devassados diariamente em suas intimidades. Perseguidos também que são por um batalhão de jornalistas e fotógrafos.
É preciso, portanto, impor limites aos meios de comunicação social. No artigo “A Liberdade de Expressão e Informação – Jurisdição Criminal, Para Quê?”, o Juiz-Conselheiro Guilherme da Fonseca do Tribunal Constitucional português adverte quanto aos riscos da atuação desses veículos de informação. Diz ele que os “mass media” asseguram eco universal à opinião pública, e de certo modo a dirigem e controlam. Principalmente quando o fato tem repercussão criminal, os efeitos são mais deletérios ainda: “acusado ou nem isso, quem a comunicação social condene, condenado fica. Quando a absolvição chega, já não é notícia”.
A imprensa emite pré-juízos que são verdadeiros condicionantes na ação humana e no conglomerado coletivo chamado de opinião pública; parcela hoje desconcentrada, deslocalizada e multipolarizada do poder que outrora fora tradicionalmente concentrado na titularidade do Estado.
Não se trata de diabolizar a Comunicação Social, culpando-a dos males da sociedade contemporânea. Os media têm uma função informativa essencial numa democracia e a eles se deve a denúncia de situações políticas, sociais e econômicas graves, com implicações de cariz criminal que mais das vezes levam os poderosos ao banco dos réus.
Noutro ângulo, porém, os meios de comunicação social devem especial respeito aos direitos pessoais, como sejam, nomeadamente, o direito ao bom nome e reputação, à privacidade, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, consagrados no artigo 5º da Constituição Federal, num quadro de proteção mais vasta da dignidade da pessoa humana proclamada no artigo 1º também da Constituição Federal, suportando as conseqüências advenientes em caso de afronta.
Desde que vive e enquanto vive o homem é dotado de personalidade, sendo a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações, ou, ainda, em outros termos, como ensina, Silvio Venosa, “é o conjunto de poderes conferidos ao homem para figurar nas relações jurídicas” (2002, p. 148).
Consideram-se, pois, direitos da personalidade, segundo Carlos Alberto Bittar, “os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos” (1995).
Na imagem de Orlando Gomes (2001), são direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina como direitos absolutos. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos. Ou, por fim, como define Francisco Amaral, “direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual” (2001, p. 243).
Os direitos da personalidade constituem direitos inatos, correspondentes às faculdades normalmente exercidas pelo homem, relacionados a atributos inerentes à condição humana, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo – a nível constitucional ou a nível de legislação ordinária – e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou às incursões de particulares (Bittar; 1995, p. 07).
Na verdade, o fato é, que reconhecidos como direitos inatos ou não, os direitos da personalidade se constituem em direitos mínimos que asseguram e resguardam a dignidade da pessoa humana e como tais devem ser previstos e sancionados pelo ordenamento jurídico, não de forma estanque e limitativa, mas levando-se em consideração o reconhecimento de um direito geral de personalidade, a que se remeteriam todos os outros tipos previstos ou não no sistema jurídico.
A Constituição brasileira prevê a cláusula geral de tutela da personalidade, que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Dignidade, na sábia formulação de Immanuel Kant, é tudo aquilo que não tem preço.
A existência de um direito geral de personalidade nada mais é que o reconhecimento de que os direitos da personalidade constituem uma categoria dirigida para a defesa e promoção da pessoa humana, “a rigor, a lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana” (TEPEDINO, 2003, p. 37).
Por derradeiro, resumidamente pode-se afirmar, que os direitos da personalidade são direitos subjetivos, que tem por objeto os elementos que constituem a personalidade do seu titular, considerada em seus aspectos físico, moral e intelectual. Tem como finalidade primordial a proteção das qualidades e dos atributos essenciais da pessoa humana, de forma a salvaguardar sua dignidade e a impedir apropriações e agressões de particulares ou mesmo do poder público.
E assim, não se tem conhecido, se diz com alentado pesar, respeito da imprensa em relação aos direitos humanos e da personalidade dos envolvidos e dos seus parentes.
Constitui dever de quem informa contribuir para a formação da consciência cívica, desenvolvimento cultural, fortalecimento da cidadania, não fomentando violência ou outros sentimentos gratuitos de indignação e de revolta, e, primordialmente, respeitando a consciência moral das gentes. Devem, ademais, tratar os assuntos com toda a seriedade, profissionalismo, competência e objetividade. Deve, ainda, ter-se em conta o valor socialmente relevante da notícia, o cuidado na forma de transmitir, a verdade da informação alcançada através da objetividade e da seriedade das fontes.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Os direitos humanos como um dado construído, no dizer de Hannah Arendt, precisam melhormente ser defendidos pelos seus órgãos e entidades de defesa especialmente constituídos para esse fim, quando os desrespeitadores sejam veículos de comunicação de forte poder massivo.
O menor tem especial proteção do ordenamento jurídico, devendo ficar a salvo da programação televisiva deletéria e violenta, destruidora e inimiga da sua formação moral e psíquica sadia. Este mote também deve ser um enfoque de luta dos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos.
Defender a ordem jurídica internacional e a Constituição Federal quanto a observância de preceitos protetivos aos acusados é dever de toda a sociedade brasileira.
De fato, a liberdade de expressão e o direito à informação aumentam e se desenvolvem nas sociedades quando não são esquecidos os princípios éticos da comunicação, tais como a preeminência da verdade e do bem do indivíduo, o respeito à dignidade humana e a promoção do bem comum.
Professor da UERN, Especialista em Direito Público, Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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