The University Autonomy after Thirty Years of the 1988 Federal Constitution
Davi Valdetaro Gomes Cavalieri[1]
Resumo: O presente trabalho propõe uma reflexão acerca da autonomia universitária, prevista no art. 207 da Constituição Federal Brasileira, desde a sua gênese até os dias atuais – tempo em que as instituições vivem uma crise acompanhada de incerteza sobre seu futuro. Por meio de análise doutrinária e jurisprudencial, bem como do cotejo da legislação atinente à matéria, pretende-se avaliar a necessidade reformulação do modelo existente em nossas universidades, repensando e reconstruindo o atual formato para uma maior adequação às contingências do mundo contemporâneo e da esfera acadêmica. Trata-se de um grande desafio para que tais instituições venham a ser efetivamente autônomas, não apenas na teoria, mas, sim, de maneira a cumprir sua função social e dar concretude ao princípio que é assegurado pelo texto constitucional.
Palavras-chave: Autonomia Universitária. Liberdade Acadêmica. Crise. Medidas de reformulação.
Abstract: The present work proposes a reflection about the university autonomy, provided for in art. 207 of the Brazilian Federal Constitution, from its inception to the present day – a time when the institutions live a crisis accompanied by uncertainty about their future. Through doctrinal and jurisprudential analysis, as well as the collation of relevant legislation, we intend to evaluate the need to reformulate the existing model in our universities, rethinking and reconstructing the current format to better fit the contingencies of the contemporary world and the sphere. academic It is a major challenge for such institutions to be effectively autonomous, not only in theory, but in order to fulfill their social function and to concretize the principle enshrined in the constitutional text.
Keywords: University Autonomy. Academic Freedom. Constitutional Principle. Social Function.
Sumário: Introdução; 1 A Autonomia Universitária Antes da Constituição Federal De 1988; 2 Assembleia Nacional Constituinte e Promulgação da Constituição; 3 Interpretação e Eficácia do Art. 207 da Constituição; 4 A Autonomia Universitária à luz da Jurisprudência do STF: Controle Judicial dos Atos Praticados pelas Universidades; 5 Balanço da Autonomia Universitária após mais de Trinta Anos de sua Inserção no Texto Constitucional; Considerações Finais; Referências.
INTRODUÇÃO
Em tempos recentes, muito se tem questionado o futuro das instituições públicas de ensino superior no Brasil, em razão de diversos fatos sucessivamente noticiados.
Questionamentos acerca da alocação de verbas destinadas à educação superior e à pesquisa, dos problemas existentes na gestão dos recursos destinados às Instituições e de seu patrimônio, sem contar a polêmica levantada em torno da suposta ideologia existente no âmbito universitário.
Os temas acima citados geram um debate tão acirrado, que demonstra não somente a polarização de que padece o Brasil atual, mas também a existência de um claro abalo da relação de confiança entre as universidades e a sociedade.
Fato é que as Universidades Públicas estão em voga – e em crise. Temos como alento, contudo, o ranking[2] divulgado em 07 de outubro de 2019 pela Folha de São Paulo, avaliação anual de institutos públicos e privados de ensino de todo o país utilizando bases de dados e pesquisas de opinião, que aponta para uma supremacia das instituições públicas.
Tais questões tornam imprescindível e urgente o debate acerca do princípio da autonomia universitária, consagrado no art. 207 da CF/88 (BRASIL, 1988).
Após mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal, como pode ser avaliado o modelo de autonomia conferido às Universidades?
Para tentar responder esta instigante pergunta, propõe-se neste trabalho analisar a questão da autonomia universitária desde a sua origem no ordenamento jurídico brasileiro até os dias atuais, com as peculiaridades que fazem deste tema uma fonte inesgotável de debate. Procurou-se cotejar a forma como o art. 207 da Constituição tem sido interpretada pelo Poder Judiciário, e, principalmente, avaliar os pontos positivos e negativos do modelo atual para propor medidas que venham a dar uma maior eficácia a tão importante princípio.
1 A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA ANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Embora haja relatos de tentativas de positivação da autonomia universitária em períodos remotos, foi somente no início da “Era Vargas”, em 1931, que a autonomia universitária aparece prevista no ordenamento jurídico brasileiro.
Foi na denominada “Reforma Francisco Campos” (nome do então Ministro da Educação), primeira reforma educacional de caráter nacional, que adveio o Decreto n° 19.851, de 11 de abril de 1931, trazendo disposições sobre as universidades em seu art. 9°:
DECRETO Nº 19.851, DE 11 DE ABRIL DE 1931
Art. 9º As universidades gosarão de personalidade juridica e de autonomia administrativa, didactica e disciplinar, nos limites estabelecidos pelo presente decreto, sem prejuizo da personalidade juridica que tenha ou possa ser atribuida pelos estatutos universitarios a cada um dos institutos componentes da universidade.
Paragrapho unico. Nas universidades officiaes, federaes ou estaduaes, quaesquer modificações que interessem fundamentalmente á organizacção administrativa ou didactica dos institutos universitarios, só poderão ser effectivadas mediante sancção dos respectivos governos, ouvido o Conselho Nacional de Educação. (BRASIL, 1931).
A pretensa autonomia contida no dispositivo acima, além de se limitar aos preceitos do próprio Decreto nº 19.851, é duramente restringida pela “sanção dos respectivos governos” e pela oitiva do Conselho Nacional de Educação (CIRNE, 2012). Em outras palavras, pouca ou quase nenhuma margem foi deixada para as Universidades.
A norma, de maneira simultânea, “proclamava e cerceava a autonomia das universidades” (RANIERI, 1994, p. 80), e isso é facilmente perceptível em diversas disposições do Decreto. Na prática, portanto, qualquer questão relativa à organização didática e administrativa das Universidades deveria ser submetida ao crivo do Governo Federal, o que representa um caráter nitidamente centralizador.
Duas décadas depois, a autonomia universitária voltou a fazer parte do nosso ordenamento jurídico, com a LDB de 1961:
LEI Nº 4.024, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1961
Art. 80. As Universidades gozarão de autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar, que será exercida na forma de seus estatutos. (BRASIL, 1961).
Embora devidamente positivada, havia um claro problema de efetividade da autonomia universidade diante do modelo de forte controle central então adotado. A autonomia era restringida por outros dispositivos e pelas competências do Conselho Federal de Educação, que podia até mesmo suspender o funcionamento das Universidades por ato próprio, como se depreende do art. 84 do referido diploma normativo:
Art. 84. O Conselho Federal de Educação, após inquérito administrativo, poderá suspender, por tempo determinado, a autonomia de qualquer universidade, oficial ou particular, por motivo de infringência desta lei ou dos próprios estatutos, chamando a si as atribuições do Conselho Universitário e nomeando um reitor pro tempore. (BRASIL, 1961).
Essa realidade somente se modificou com o advento da Constituição de 1988.
2 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE E PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
A autonomia universitária ganhou o status constitucional com a promulgação da CF/88, passando a estar categoricamente contemplada no texto constitucional.
Antes de fazer uma abordagem sobre a previsão constitucional e seus contornos, é interessante entendermos como que se deu o respectivo ato fundador, isto é, como a questão da autonomia universitária foi discutida na Assembleia Nacional Constituinte.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 propiciou uma oportunidade inédita de participação política à sociedade civil brasileira, decorrendo também daí a denominação de “Constituição Cidadã”. Como apontado por Cirne (2012), foram 583 dias (quase dois anos) de intensos debates, em que milhares de pessoas participaram ativamente da edificação de um texto constitucional “do zero”, num viés democrático nunca antes presenciado.
E como as Universidades puderam ter um protagonismo nesse processo?
Através da participação de seus dirigentes, professores, servidores e alunos; em razão de haver um sentimento e um discurso uníssono no sentido de que os diplomas normativos até então vigentes nunca garantiram de fato a autonomia universitária, e esta ficava mais restrita, ano após ano (CIRNE, 2012). Importante mencionar o fato de a constituinte ter sido realizada em um contexto de greve geral das universidades públicas, com remissão expressa nas suas reuniões a essa situação.
Para ilustrar o cenário acima descrito, merece destaque a seguinte transcrição da Ata da 11ª Reunião da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, realizada em 22 de abril de 1987:
O SR. PRESIDENTE (Hermes Zaneti): […] Gostaria de lembrar aos membros desta Subcomissão que embora nosso trabalho como Constituinte seja atividade com uma tarefa definida, nossa atuação também como parlamentares nos engaja no processo político diário, e, nessa condição, preocupados com a educação brasileira – sabemos todos do momento crítico em que vive, especialmente a universidade, já que está em greve há um bom período sem que até o momento tenha havido algum processo de entendimento que pudesse criar uma perspectiva de solução desse impasse. […] O SR. LUIS ANTÔNIO CUNHA: […] Não temos, ainda, o conceito da autonomia universitária, que faz parte da prática da tradição hispânica; até mesmo eles colocam esse nome no próprio título da universidade. Existe a Universidade Nacional Autônoma do México, de Santo Domingo, e dezenas de outras. E, para nós, autonomia é uma letra morta nas leis e decretos. Precisamos inventar o conteúdo para essa palavra, que por enquanto é vazia, e precisamos desde já, até para poder inventá-la e para rejeitar o que sabemos que não devemos fazer, ter pelo menos essa folga, essa base de recursos, para podermos trabalhar. Isso é o que nós queremos: voltar a trabalhar. (BRASIL, 1987).
É relevante destacar, ainda, que o Brasil vinha de longo período de regime militar, com cassações de professores universitários por questões políticas e tentativas de controle ideológico da vida acadêmica, o que trouxe enormes prejuízos às Universidades. Durham (2005) aponta que, para combater o controle ideológico então predominante, a mobilização da comunidade universitária se fez necessária para garantir, também, a liberdade acadêmica.
Dessa forma, a inserção da autonomia universitária na Constituição poderia reverter um processo de decadência, e o texto representaria, então, as preocupações da comunidade universitária.
Como resultado desse processo de emancipação, o artigo 207 da Constituição de 05 de outubro de 1988 estabeleceu:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (BRASIL, 1988).
A análise do dispositivo acima merece uma interpretação acurada, o que propõe fazer a seguir.
3 INTERPRETAÇÃO E EFICÁCIA DO ART. 207 DA CONSTITUIÇÃO
Percebe-se que o texto constitucional estabelece uma espécie de divisão da autonomia universitária em “dimensões”: autonomia didático-científica, autonomia administrativa e autonomia de gestão financeira e patrimonial.
Para fins didáticos, essas dimensões podem ser divididas em dois pares de liberdades: a de pesquisar e de ensinar, de um lado; a de administrar-se e gerir seus recursos, de outro (DURHAM, 1989).
Em breve síntese, passa-se a abordar a distinção entre as dimensões da autonomia universitária.
Autonomia científica: consiste na liberdade de estabelecer quais os problemas que são relevantes para a investigação, definir a forma pela qual os problemas podem ser pesquisados e julgar os resultados da investigação por parâmetros internos ou processo de conhecimento. As Universidades, portanto, possuem liberdade para estabelecer as metas científicas, artísticas e culturais que julgar apropriadas; bem como para garantir aos grupos de pesquisa a liberdade de elaborar seus próprios projetos e definir os problemas que consideram relevantes (DURHAM, 1989).
Autonomia didática: consiste na liberdade de ensinar e aprender e está baseada no reconhecimento da competência da universidade para definir qual conhecimento é relevante e como deve ser transmitido. Implica a capacidade de selecionar os alunos, definir os cursos que devem ser ministrados, avaliar o desempenho dos estudantes e outorgar os títulos correspondentes ao grau de domínio do conhecimento atingido. Está ligada ao conceito de “liberdade acadêmica”, bastante difundido em países europeus e também nos EUA (DURHAM, 1989).
Autonomia administrativa: consiste na liberdade para se organizar internamente como melhor lhes convier, aprovando seus próprios estatutos, elegendo seus dirigentes etc. Implica em capacidade decisória para resolver, interna corporis, os assuntos de sua própria competência, bem como para disciplinar as suas relações com os corpos docente, discente e administrativo que integram a Universidade (DURHAM, 1989).
Autonomia financeira: outorga à Universidade o direito de gerir e aplicar os seus próprios bens e recursos, em função de objetivos didáticos, científicos e culturais já programados (DURHAM, 1989).
Por ser clara a distinção, poder-se-ia parecer simples o manejo do art. 207 da Constituição, não dependendo de lei regulamentadora para produzir todos os seus efeitos. Não foi, contudo, o que se viu na prática, visto que diversas interpretações surgiram, pondo inclusive em xeque a eficácia da referida norma.
O principal argumento era exatamente o da carência de regulamentação: como a legislação infraconstitucional então vigente era de cunho centralizador, não representava o novo momento democrático (CIRNE, 2012).
Necessário destacar que nos trabalhos da Subcomissão de Educação, Cultura e Desporto, da Assembleia Nacional Constituinte, foi discutida a inclusão da expressão “nos termos da lei” na redação do artigo:
Na primeira etapa de discussões, portanto, o legislador constituinte não vislumbrava a autonomia universitária sem regulamentação; o objetivo era solucionar, ao menos em tese, os problemas de financiamento e controle na esfera pública. A autonomia universitária regulamentada (nos termos da lei), porém seria vencida pela autonomia tradicional (sem regulamentação), incorporada à redação final da Constituição e assim mantida até hoje, associada à concepção da universidade de pesquisa. (RANIERI, 2018, p. 950).
A controvérsia foi tratada pelo Supremo Tribunal Federal, quando pela primeira vez se deparou com um julgamento envolvendo o recente artigo 207 da Constituição.
O julgamento em questão foi o da ADI 51-9/RJ, em que o Procurador-Geral da República questionava norma editada pelo Conselho Universitário da UFRJ, que previu a eleição e posse do Reitor e do Vice-Reitor da Universidade sem a participação do Poder Executivo Federal, cabendo este processo de escolha apenas à comunidade acadêmica como consectário de sua autonomia.
Embora o julgamento tenha trazido considerações interessantes acerca da autonomia universitária, o STF acabou firmando o entendimento de que a única consequência que a ser extraída da constitucionalização da autonomia universitária está relacionada ao status, à hierarquia, como se pode observar no trecho abaixo:
[…] se, antes, a autonomia das universidades configurava instituto radicado na lei ordinária – e, portanto, supressível por mera ação legislativa ulterior -, registra-se, agora, pelo maior grau de positividade jurídica que a ele se atribuiu, a elevação desse princípio ao plano do ordenamento constitucional. Mas a palavra autonomia continua tendo o mesmo sentido e significado, quer escrita em lei ordinária, quer escrita no texto fundamental. (STF, 1989).
Como a legislação infraconstitucional então vigente previa que a escolha dos dirigentes das Universidades Federais cabia ao Poder Executivo, e, segundo o STF, a Constituição não teria modificado em nada o panorama material da autonomia universitária, o ato impugnado foi declarado inconstitucional.
Ficou a impressão, por conseguinte, de que o dispositivo constitucional seria letra morta, enquanto não surgisse nova regulamentação dentro dos novos parâmetros democráticos instituídos no país.
Então, nesse contexto democrático, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9.394/96) almejou suprir essa lacuna e iniciar um novo marco legal. No intuito de resguardar a abertura conferida pelo texto constitucional às universidades, a lei lhes garantiu uma maior margem de decisão interna, consoante se infere dos artigos 53 e 54 do referido diploma legal (BRASIL, 1996), que fazem clara menção às dimensões da autonomia universitária extraídas da Constituição.
Após a LDB, surgiram outras legislações esparsas que guardam relação, direta ou indiretamente, com a autonomia universitária. Exemplos: Lei n. 10.172, de 9/1/2001, que aprova o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001); Lei n. 10.861, de 14/4/2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (BRASIL, 2004); a Lei n. 10.973, de 2/12/2004, a chamada “Lei da Inovação”, que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo (BRASIL, 2004); e a Lei n. 11.096, de 13/1/2005, que institui o Programa Universidade para Todos – Prouni (BRASIL, 2005).
4 A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STF: CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS PRATICADOS PELAS UNIVERSIDADES
A definição de “autonomia universitária” passa necessariamente pela distinção entre os termos “autonomia” e “soberania”, no seguinte sentido: autonomia não significa soberania, e, portanto, não exclui formas de controle por parte do poder público. Trata-se de um poder derivado, que existe em razão do ordenamento que consente em sua existência (RANIERI, 2018).
Esse mesmo raciocínio aparece em julgados do Supremo Tribunal Federal, oportunidades em que os Ministros afirmam, em seus votos e decisões, que autonomia universitária não significa soberania das universidades, devendo estas se submeter às leis e demais atos normativos, vide o Recurso Extraordinário n.º 561.398, de relatoria do então Ministro Joaquim Barbosa (STF, 2009).
A distinção é válida. Prefere-se, contudo, ir um pouco além na reflexão, pois a acepção de “autonomia” não deve ser vista apenas no sentido de discrepância em relação à soberania. Analisando de forma mais ampla, a autonomia pode ser vista como uma prerrogativa para executar as atividades que lhes são próprias, e que não são realizadas para seu exclusivo interesse, mas constituem um serviço que se presta à sociedade. Como consequência, o reconhecimento da autonomia não exime as instancias públicas de verificar a prestação efetiva destes serviços.
Essa verificação cabe também ao Judiciário, e o STF, ao longo dos últimos trinta anos, deparou-se com a questão da autonomia universitária em relevantes julgados, alguns dos quais serão relatados adiante, apenas para fins ilustrativos, sem realizar um cotejo analítico dos precedentes.
ADI nº 51-9/RJ: Eleição e posse do reitor e vice-reitor pela universidade (Data de julgamento: 25.10.1989). Universidade federal. Autonomia (art. 207, CF). Ação direta de inconstitucionalidade. Resolução 2/1988 do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que dispõe sobre eleição do reitor e vice-reitor. Inconstitucionalidade. Ofensa ao inciso X e caput do art. 48 e inciso XXV do art. 84, ambos da CF. (STF, 1989)
MC na ADI nº 1511-7/DF[3]: Avaliação periódica (PROVÃO). (Data de julgamento: 16.10.1996). Relator: Ministro Carlos Velloso. Objeto da ação: suspender por sua inconstitucionalidade a realização do PROVÃO (exame de avaliação do ensino superior), previsto no art. 3º, § 1 a 7º, da Lei 9.131/95.
Resultado: a liminar foi indeferida por maioria de votos (6 votos pelo indeferimento e 4 pelo deferimento, incluído aqui o voto do Presidente). (STF, 1996).
MC na ADI nº 2367-5/SP: Implantação de campus universitário. Requerente: Governador do Estado de São Paulo. Requerido: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Data do julgamento: 05.04.2001.
Objeto da ação: suspender a lei paulista nº 10.545/00 que determinava a implantação de um campus universitário da UNESP em Bragança Paulista por iniciativa parlamentar estadual. Resultado: medida cautelar deferida, por unanimidade de votos, para suspender a lei nº 10.545/00 do Estado de São Paulo, sob o fundamento de que a implantação de campus universitário sem que a iniciativa legislativa tenha partido do próprio estabelecimento de ensino envolvido caracteriza, em princípio, ofensa à autonomia universitária (CF, artigo 207). (STF, 2001).
ADI 3792/RN – Prestação de assistência judiciária gratuita. Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 22/09/2016. EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 8.865/06 do Estado do Rio Grande do Norte. Obrigação de a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte prestar serviço de assistência judiciária, durante os finais de semana aos necessitados presos em flagrante delito. Violação da autonomia universitária. Vício formal. Ação julgada procedente. Modulação. Efeitos ex nunc. 1. A previsão da autonomia universitária vem consagrada no art. 207 da Carta Política. Embora não se revista de caráter de independência (RMS nº 22.047/DF-AgR, ADI nº 1.599/UF-MC), atributo dos Poderes da República, revela a impossibilidade de exercício de tutela ou indevida ingerência no âmago próprio das suas funções, assegurando à universidade a discricionariedade de dispor ou propor (legislativamente) sobre sua estrutura e funcionamento administrativo, bem como sobre suas atividades pedagógicas. 2. A determinação de que o escritório de prática jurídica preste serviço aos finais de semana, a fim de atender necessitados presos em decorrência de flagrante delito, implica necessariamente a criação ou, ao menos, a modificação de atribuições conferidas ao corpo administrativo que serve ao curso de Direito da universidade. Isso sem falar que, como os atendimentos serão realizados pelos acadêmicos do Curso de Direito cursando o estágio curricular obrigatório, a Universidade, obrigatoriamente, teria que alterar as grades curriculares e os horários dos estudantes para que desenvolvessem essas atividades em regime de plantão, ou seja, aos sábados, domingos e feriados. Peca, portanto, o diploma legislativo em sua totalidade, porque fere a autonomia administrativa, a financeira e, até mesmo, a didático-científica da instituição, uma vez que ausente seu assentimento para a criação/modificação do novo serviço a ser prestado. […] (STF, 2016).
RE 597285/RS: Critérios adotados pela UFRGS em seu programa de ação afirmativa. Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2012. “As universidades têm autonomia para estabelecer critérios de entrada de alunos por cota social. É constitucional o uso de ações afirmativas, tal como a utilização do sistema de reserva de vagas (“cotas”) por critério étnico-racial, na seleção para ingresso no ensino superior público”. (STF, 2012).
Além dos mencionados casos já enfrentados pelo STF, é de se notar que, com o passar dos anos, há um crescente número de estudantes que recorrem à jurisdição estatal para solucionar as mais variadas disputam que surgem no escopo da prestação de serviço universitário.
São demandas judiciais versando sobre ENEM, ENADE, matrícula de alunos, colação de grau, expedição e revalidação de diploma, desligamento de estudante, além de outras como a cobrança de mensalidade em pós lato sensu em Universidades públicas, a concessão de título honoris causa, a oferta de disciplinas com temas considerados polêmicos, entre outros. Fato é que o artigo 207 da Constituição Federal vem sendo cada vez mais enfrentando no âmbito do Poder Judiciário.
5 BALANÇO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA APÓS MAIS DE TRINTA ANOS DE SUA INSERÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL
Passadas mais de três décadas, qual balanço é possível fazer a respeito da autonomia universitária? Foi efetivada na prática? Cumpriu com as expectativas com as quais foi concebida, fruto de um rico e complexo processo histórico?
No caso das universidades públicas, a sensação é de que a liberdade de ensino e pesquisa não se encontra plenamente assegurada, tendo em vista os crescentes conflitos instalados no âmbito da comunidade acadêmica, os ataques feitos a professores e alunos por questões políticas e/ou ideológicas, o uso das redes sociais para fins nada construtivos ao meio acadêmico, a tentativa de se impor o que deve e o que não deve ser lecionado em sala de aula, a desenfreada submissão de casos ao Judiciário, entre várias outras deformidades que assolam o atual cenário em que vivemos – e que, infelizmente, respingam no âmbito universitário.
Esses fatores demonstram um claro abalo na relação de confiança entre as universidades e a sociedade.
Como muito bem explica Schwartzman (2019), no mundo de hoje, com universidades gigantescas, grandes orçamentos e professores e alunos provenientes de diferentes ambientes e condições sociais, esta relação de confiança fica abalada, fazendo com que movimentos políticos pressionem e governos desenvolvam sistemas complicados e nem sempre bem-sucedidos de avaliação do desempenho das universidades e restrições no acesso e uso de recursos.
Complementa o ilustre autor:
Esta recuperação interessa a todos, e requer um trabalho permanente de ambas as partes. […]Para recuperar sua legitimidade, as universidades públicas precisam se preocupar mais seriamente com a qualidade e relevância do que produzem, mostrar melhor o que fazem e assumir a responsabilidade pela administração de seus recursos, saindo do colo confortável, mas sufocante, do serviço público. […]O governo, ao invés de alternar entre aceitar tudo e pagar a conta, para garantir apoio ou com medo dos protestos, ou partir para o ataque, precisa desenvolver um sistema mais adequado de avaliação e associar o financiamento público ao desempenho efetivo das instituições, mediante contratos de gestão, e não a seus custos históricos. (Schwartzman, 2019, p. A2).
É imprescindível, portanto, que a prioridade das universidades não seja de aumentar o corpo docente e administrativo, assim como o valor dos salários, mas, sim, no sentido de expandir as vagas e os cursos no limite máximo de sua capacidade, de modo a atender à demanda social. A autonomia das universidades deve, sim, ser vista como uma condição necessária para o cumprimento de sua função social, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais competentes.
Atualmente, as universidades federais não têm plena autonomia no uso dos recursos de pessoal, na seleção de seus alunos, bem como nos investimentos. Além disso, carece de autonomia para atrair talentos, em virtude da rigidez dos planos nacionais de carreira e isonomia salarial. Por sua vez, o conteúdo dos cursos é cada vez mais determinado externamente, através dos currículos estabelecidos pelo Governo.
No que tange à pesquisa, existe uma autonomia relativa, pois há uma inexorável dependência de recursos controlados por CNPq e CAPES.
O contexto hodierno revela, assim, uma profunda crise que torna imperiosa uma reformulação do modelo existente em nossas universidades, repensando e reconstruindo o atual – e disfuncional – formato, para que venham a ser efetivamente autônomas, não apenas na teoria.
Como bem aponta RANIERI (2018), o artigo 207 vem apresentando mais resultados contraditórios que desempenho adequado de sua função social. Aprimorar a autonomia universitária, tanto por parte do Poder Público quanto das próprias universidades, é condição vital para que não se transforme em mitologia jurídica, por falta de efetividade.
Como uma alternativa viável para fortalecer as nossas instituições de ensino, vem ganhando força a corrente a defender a criação de uma vinculação direta de recursos às universidades, como um percentual de determinados tributos independente da vontade dos governos. É o que ocorre desde 1989 com as Universidades Públicas do Estado de São Paulo (USP, Unicamp e UNESP), a partir do Decreto estadual nº 29.598/89 (BRASIL, 1989), que prevê o repasse de percentual do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) às instituições, em duodécimos mensais, sendo verbas administradas autonomamente pelas instituições:
Decreto nº 29.598, de 02 de Fevereiro de 1989 – Dispõe sobre providências visando a autonomia universitária
Artigo 2 º – A execução dos orçamentos das Universidades Estaduais Paulistas, no exercício de 1989, obedecerá aos valores fixados no orçamento geral do Estado, do corrente ano, e às demais normas e decretos orçamentários, devendo as liberações mensais de recursos do Tesouro a essas entidades respeitar o percentual global de 8,4%, da arrecadação do ICMS – quota parte do Estado no mês de referência. (SÃO PAULO, 1989).
Não é o que ocorre, contudo, nas 63 (sessenta e três) universidades federais, que contam com financiamento do Tesouro Nacional e fontes alternativas, como convênios, contratos e financiamento de pesquisa (RANIERI, 2018).
Já em âmbito estadual, percebe-se já existir uma mobilização para que outras instituições sigam o mesmo caminho. É o caso das universidades do Estado do Rio de Janeiro, pois, desde o ano de 2017, tramita no Supremo Tribunal Federal a ADPF n° 474, proposta pela Rede Sustentabilidade, com pedido expresso para que as universidades públicas fluminenses (UERJ, UENF e UEZO) façam jus ao recebimento de duodécimos mensais dos valores a elas atribuídos pelo orçamento do Estado do Rio de Janeiro, nos termos do art. 168 da Constituição, cabendo-lhes gerir autonomamente os referidos recursos para o desempenho de suas atividades institucionais (STF, 2017).
Sem dúvidas, a fixação de um montante em termos de porcentagem da arrecadação representa a efetivação da autonomia universitária, na medida em que garante um fluxo de recursos que não depende de negociação permanente. Não por acaso, USP e Unicamp são as duas primeiras colocadas no ranking divulgado em 07 de outubro de 2019 pela Folha de São Paulo em sua avaliação periódica – RUF (FOLHA, 2019).
Como outra alternativa de reformulação do atual modelo, temos o Programa Future-se, que pretende estabelecer novas formas de gestão e novas fontes de financiamento com o propósito de buscar o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais. A intenção é promover a atração de recursos privados, facilitar processos licitatórios e, com isso, financiar pesquisa, inovação, empreendedorismo e internacionalização nas instituições de ensino. O referido programa necessita de maior amadurecimento, para que venha efetivamente a contribuir para o fortalecimento das nossas universidades, com um sistema sólido que assegure o exercício da autonomia constitucionalmente prevista.
Merece ser destacada, ainda, a implementação de programas de integridade no âmbito das instituições de ensino. Para se combater a corrupção que infelizmente veio a assolar as instituições brasileiras, é necessário haver um verdadeiro compromisso social dos atores envolvidos em prol da moralidade administrativa e da prestação de um serviço público de excelência, influenciando as novas gerações a seguirem um perfil pautado em valores de ética e integridade.
Como exemplo desse novo e importante paradigma, a Universidade Federal Fluminense (UFF) lançou em 2019 o seu Programa de Integridade, tendo como objetivos fundamentais fomentar uma cultura de integridade, de transparência e de observância às regras estabelecidas na legislação; conscientizar a comunidade acadêmica sobre situações que podem expor a universidade a riscos para a integridade; organizar e planejar ações para reduzi-las ou mitigá-las; estruturar um sistema de gestão da integridade com diretrizes e requisitos de comportamento, inclusive para a alta direção; oferecer direcionamento para estabelecer e revisar as ações relativas à integridade; verificar a eficácia do gerenciamento dos riscos para a integridade e para a gestão; produzir informações íntegras, confiáveis e tempestivas para a tomada de decisões, o cumprimento de obrigações de transparência e a prestação de contas; assegurar a conformidade com leis e regulamentos aplicáveis à Universidade (UFF, 2019).
No mesmo sentido, a Universidade de Brasília (UNB) publicou um Plano de Integridade para o triênio 2019-2021, contemplando medidas a serem implementadas com a finalidade de prevenir, detectar e remediar as ocorrências de quebra de integridade na instituição (UNB, 2019).
Para além das questões administrativas, financeiras, orçamentárias, fiscais e de integridade, é imprescindível que a sociedade e o Poder Público envidem máximo esforço para garantir a manutenção da autonomia didático-científica, para permitir a histórica e fundamental liberdade acadêmica.
Não é benéfico se deparar, nos dias de hoje, com agentes políticos desferindo acusações aos professores brasileiros de “doutrinarem ideologicamente” os alunos durante as aulas e criando canais para que sejam feitas “denúncias” aos profissionais do magistério superior. Esse tipo de conduta persecutória representa um absurdo retrocesso num país que viveu 15 anos de regime militar, com cassações de professores universitários por questões políticas e tentativas de controle ideológico da vida acadêmica por dispositivos de censura instalados nas instituições, trazendo acachapante prejuízo às universidades.
A liberdade acadêmica, que em estudos estrangeiros é conceituada como academic freedom, encontra grande vitalidade, por exemplo, no continente europeu, que não olvida da destruição causada por regimes autoritários na Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, assim como pelos regimes comunistas na URSS e no Leste Europeu (DURHAM, 2005). Nos Estados Unidos, ainda, houve o fenômeno do MacArthismo, que promoveu um verdadeiro expurgo na intelectualidade americana, em plena vigência de um regime democrático (DURHAM, 2005).
A liberdade acadêmica, ou academic freedom, consagra exatamente a liberdade de ensino, de expressão e de investigação face a limitações de natureza religiosa, política ou ideológica e diz respeito aos docentes.
Trata-se de um valor que não pode, em hipótese alguma, ser perdido ou esquecido – pelo contrário, deve ser permanentemente valorizado e assegurado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, em que pese a previsão expressa de autonomia às universidades, na prática se tem observado um progressivo esvaziamento de tal garantia.
Diante das reflexões expendidas ao longo do presente trabalho, ficou demonstrada a verdadeira crise instalada no âmbito universitário, que demanda uma reformulação do modelo atual, que carece de funcionalidade.
Algumas medidas devem ser tomadas e os resultados tendem a ser positivos, como no caso da vinculação de percentuais da arrecadação de impostos às universidades, medida já em prática no Estado de São Paulo e com possibilidade de ser seguida por outros entes federativos. A implementação de programas de integridade também se torna uma condição necessária para que as universidades se encontrem dentro dos padrões de ética e moralidade que são absoluta exigência no mundo atual.
Com relação à judicialização da autonomia universitária, o tema deve ser tratado com uma devida cautela. Inegavelmente, tal fenômeno é fruto também da democratização do acesso à justiça, o que é bastante salutar se utilizado de maneira equilibrada. O que não se pode conceber, todavia, é a invasão do Judiciário nas decisões discricionárias exaradas pelas universidades com fundamento em sua autonomia constitucionalmente garantida, sob pena de tornar inócuo o comando contido na carta magna, e, via de consequência, enfraquecer sobremaneira as nossas instituições de ensino superior.
Contudo, nada disso fará sentido caso não seja assegurada a liberdade acadêmica, isto é, a autonomia didático-científica das instituições de ensino. Trata-se da pedra fundamental de nossas universidades, sem a qual se torna impossível a edificação do ensino e a transmissão do saber.
Sociedade e poder público devem caminhar juntos, encarando a autonomia das universidades como uma condição necessária para o cumprimento de sua função social, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais éticos e competentes.
REFERÊNCIAS
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(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI 51, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/1989, DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001).
(Recurso Extraordinário no. 561.398, Agravo Regimental. Relator Ministro Joaquim Barbosa, j. 23-6-2009, 2ª T, DJE de 7-8-2009)
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[1] Mestrando em Desenvolvimento no Estado Democrático de Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – FDRP/USP. Especialista em Direito Público. Procurador Federal, carreira da Advocacia-Geral da União (AGU). E-mail: davicavalieri@gmail.com
[2] Ranking Universitário da Folha – RUF. Disponível em: https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-universidades/principal. Acesso em: 20 out. 2019
[3] Nesta ação, grupo de partidos políticos objetivaram a declaração da inconstitucionalidade de dispositivos da lei que alterou a LDB então vigente, e que foram regulamentados pela Portaria Ministerial que instituiu o “PROVÃO”. Alegou que as portarias do Ministro de Educação que instituíram o “PROVÃO” eram inconstitucionais, pois ofenderiam os artigos 207 (autonomia universitária) e 84, IV, (competência para as Diretrizes e Bases da Educação) da constituição, ao limitarem os poderes da universidade. Ação julgada improcedente.
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