Resumo: Este artigo tem como objetivo o estudo da cláusula geral do devido processo legal. Para tanto, será feito uma explanação sobre a mudança de paradigma, moderno ao pós-moderno. Por fim, o significado do devido processo legal entendida como a citada cláusula.
Palavras-chaves: Direito processual – devido processo legal – cláusula geral.
Sumário: 1. Introdução. 2. Breve histórico do devido processo legal. 3. Da superação do paradigma do devido processo legal formal. 4. Da cláusula geral do devido processo legal. 5. Conclusões. Referências.
1. Introdução
A cláusula geral do devido processo legal é, indubitavelmente, o ponto de partida de todo o ordenamento processual. Deste modo, aquilo que for entendido por devido processo legal irá irradiar por todo o direito processual.
Passa-se a elaborar, brevemente, o histórico do devido processo legal e o que significa o devido processo legal como uma cláusula geral.
2. Breve histórico do devido processo legal
Diversas legislações da antiguidade já previam processos para julgamento dos crimes e das solicitações dos pleiteantes. Entretanto, foi no capítulo 39 da Magna Carta de 1215 do Rei João Sem-Terra, na Inglaterra, que ficou estabelecida a necessidade expressa e intransponível de submissão à lei da terra para julgamento, o que implica dizer que a origem do devido processo legal está visceralmente ligada a matriz liberal (seria melhor “ao liberalismo”.
“Nenhum homem livre será detido ou preso ou tirado de sua terra ou posto para fora da lei ou exilado ou, de qualquer modo destruído (arruinado), nem lhe imporemos nossa autoridade pela força ou enviaremos contra ele nossos agentes, senão pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra. Capítulo 39 da Magna Carta de 1215 do Rei João Sem-Terra.” (LIMA, 199, pp.30/31).
O capítulo 39 se referiu a legem terrae, expressão, posteriormente, traduzida como law of the land, sem, contudo, mencionar a expressão, hoje conhecida como due process of law, expressão esta que passou a ser mais conhecida através do direito norte-americano.
No ano de 1354 (mil trezentos e cinqüenta e quatro), o rei Eduardo III, na Inglaterra, no Statute of Westminster of the Liberties of London, após tradução para o inglês da Magna Carta, utilizou, pela primeira vez, a expressão due processo of law, que passou a ter a seguinte redação:
“Nenhum homem de qualquer camada social ou condição social, pode ser retirado de sua terra ou propriedade, nem conduzido, nem preso, nem deserdado, nem condenado a morte, sem que isto resulte de um devido processo legal”. (LIMA, 1999, p.35).
Em seguida, interessante evento ocorreu, no século XVII, no reinado de Carlos I. Foi a prisão de cinco nobres, ordenada pelo soberano, devido à recusa em pagar empréstimo compulsório ou ao Rei, decretado a fim de custear guerras. Tal fato gerou discussão na câmara dos comuns, que, sob o auspício do Sir Edward Coke, redigiu a Petition of Rights de 1628, que dispunha, em pequeno trecho:
“Que o homem livre somente pode ser preso ou detido pela lei da terra, ou pelo devido processo legal, e não pela ordem especial do Rei sem qualquer acusação”. (LIMA, 1999, p.37).
Sobre o mencionado fato, explica Maria Rosynete (1999, p.37):
“Este documento assentou a idéia de que o Capítulo 39 da Magna Carta se inseria a garantia de não ser preso sem a evidência de uma justa causa. Tal pensamento faz parte da filosofia de Sir Edward Coke fundamentada na supremacia do direito comum sobre os poderes do Rei e do Parlamento, que muito influenciou as colônias inglesas da America, ao lado da doutrina da supremacia do direito natural de John Locke, e apontada como principal de constituição escrita nos Estados Unidos.”
Ultrapassado este período Inglês, a Constituição dos Estados Unidos da América, originalmente, não tratava do devido processo legal, sendo, posteriormente, abordado, de forma explícita, na 5ª e na 14ª Emendas. Na 5ª emenda, a referida cláusula devido processo legal apareceu, pela primeira vez, ao lado da tríade "vida, liberdade e propriedade" e, na segunda, significou a igualdade na lei e não só perante a lei, além de marcar a sua utilização efetiva, pelo Tribunais.
Na América Latina, a Argentina, influenciada pela doutrina norte-americana, embora não expressamente, consagra o debido processo legal substancial como sinônimo de razoabilidade. No México, em que pese ser um marco a Constituição de 1917, a consagração se deu apenas em sentido formal.
Na Europa continental, a Itália trouxe, na Constituição de 1946, em seu art. 24, a seguinte redação:
“Todos podem agir em juízo para tutelar os seus próprios direitos e seus legítimos interesses. A defesa é um direito inviolável em qualquer estado ou grau de procedimento. São assegurados àqueles que não dispõem de meios econômicos, com determinados institutos, os meios para agir e defender-se perante cada juízo. A lei determina as condições e os modos de reparação dos erros judiciários.” (GAMA, 2005, p.59).
Na Alemanha, ainda que implicitamente na Carta de 1949, assegurou-se o direito a um procedimento justo, um processo pautado nos ideais de justiça e eqüidade. Ainda, a Lei de Bonn veda a ofensa aos princípios fundamentais, o que representa a existência de um devido processo legal em sentido substancial. Estes países, onde há enorme aprofundamento científico no direito processual serviram de exemplo para os demais, como Espanha, que consagra um proceso justo, processo debito, processo debido según ley ou juicio justo. Todavia, não há consenso na doutrina e nos Tribunais espanhóis sobre o alcance e extensão da cláusula. (LIMA, 1999, pp.54 e 64)
Ainda, em sede de direito comparado, anota Lídia Gama sobre o direito português:
“A Constituição da República portuguesa dispõe no item 3 do art. 26 que a privação da cidadania civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos. É evidente que a referência aqui é feita somente aos direitos civis e vai de encontro ao propósito de nosso trabalho, qual seja, a expressão do princípio do devido processo legal no processo civil. Na França a Constituição de 1958 não contém expressamente o princípio do devido processo legal. Porém o Counseil Constitutionnel, em diversas decisões reconhece vários princípios processuais”. (GAMA, 2005, pp.61/62).
No Brasil, a Constituição de 1988, denominada "cidadã", expressamente consignou, no art. 5º, inciso LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Trata-se da única Constituição brasileira que trouxe ipsis verbis a previsão do devido processo legal. Entretanto, importante relatar que, mesmo antes de previsão expressa, os Tribunais no Brasil e pelo mundo, já consagravam, implicitamente, a cláusula do devido processo legal, a exemplo do caso Alemão, em que a cláusula do devido processo legal é previsão implícita da Carta Alemã de 1949.
3. Da superação do paradigma do devido processo legal formal
Conforme mencionado no início do tópico anterior, o devido processo legal trata-se de criação com vinculação, eminentemente, liberal e burguesa, já que resultava da proteção em face do rei absoluto e déspota.
Nos moldes da Revolução Francesca e os marcos da liberdade, igualdade e fraternidade, a cláusula do devido processo legal, expandiu o seu conteúdo, na medida em que se estendeu a todo o cidadão em face do Estado.
De outro turno, com a superação do paradigma positivista e liberal, surge o devido processo legal substancial, que consiste num due process que visa à obtenção de uma sentença justa e condizente com a realidade social. Deste modo, o exercício do devido processo substancial deve ter como objetivo a realização dos valores constitucionais, a saber: a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à liberdade, dentre outros.
Foi nos Estados Unidos da América, local onde o devido processo legal consignou-se a latere da tríade "vida, liberdade e propriedade", que surgiu o chamado devido processo legal substancial, superando o paradigma formal e positivista. No caso Dred Scott v. Sandford em 06 de março de 1857, em que foi anulado o Missouri Compromisse Act., que proibia a escravidão, permanecendo Dred Scott como escravo, o fundamento utilizado foi o devido processo legal substancial.(LIMA, 1999, p.110).
Dessume-se, portanto, que, lamentavelmente, o devido processo material, ou devido processo justo para alguns, surgiu para legitimar a escravidão, conduta que é fortemente rechaçada na pós-modernidade ocidental. Como se observa, os valores da sociedade mudam no decorrer do tempo. Assim, a justiça de outrora pode ser absolutamente contrária à justiça do agora, bem como a justiça do agora pode ser absolutamente distante da justiça do amanhã, por isso a flexibilidade do devido processo legal em sentido substancial.
Este postulado valorativo, no caso justiça, com fundamento na teoria do direito, inclusive, é um dos motivos pelos quais se sustenta que o devido processo legal, antes de ser justo ou substancial, seja valorativo.
No Brasil, a primeira aplicação do devido processo legal, em sentido substancial, ainda que não expressamente declarado, ocorreu, em 1968, no julgamento do Habeas Corpus n. 45.232 – GB, em decisão do Supremo Tribunal Federal. Explica Maria Rosynete (1999, pp. 202/203):
“Sobre tal decisão, o ponto fulcral no julgamento foi o despacho judicial, proferido no curso do processo criminal, em curso na Auditoria da 5ª Região Militar, que impunha aos denunciados, acusados da prática de crime contra a segurança nacional – José Rodrigues Vieira Neto e Outros, uma medida administrativa consistente na suspensão de suas profissões e atividades particulares.O Ministro-Relator pontuou, logo de início, que esta medida administrativa configurava verdadeira pena acessória, que estava sendo aplicada sem processo regular, ou antes do procedimento judicial. Era preciso, portanto, examinar a justa causa desta providência cautelar que atingia a liberdade dos pacientes e nas suas exigências mais elementares da vida – a necessidade de prover a própria subsistência. Além do que, a restauração destes direitos, caso sobreviesse uma sentença absolutória, não tinha o poder de reparar os reflexos graves que esta pena causaria na vida dos pacientes.”
Assinale-se, ainda, que tal conceito de um devido processo legal substancial decorre da tentativa dos processualistas contemporâneos de reaproximação do direito processual ao direito material. Sinaliza José Roberto dos Santos Bedaque (2006; p.63) que “é preciso, pois, cada vez mais, tornar flexível a tutela jurisdicional, no sentido de adaptá-la às necessidades do desenvolvimento eficaz do processo, como instrumento efetivo de proteção dos direitos substanciais”.
Utiliza-se, ademais, a razoabilidade e a proporcionalidade como fundamentos de aplicação do devido processo substancial:
“O conteúdo do devido processo substancial que é o conteúdo material do devido processo legal significa que o Estado não pode, a despeito de observar a seqüência de etapas em um dado procedimento, privar arbitrariamente os indivíduos de certos direitos fundamentais. Exige-se razoabilidade da restrição.” (LIMA, 1999, p.200).
Deste modo, toda esta nova definição de um devido processo legal substancial, decorre de uma visão pós-positivista do processo[1].
Assim, na pós-modernidade jurídica, deve-se compreender o devido processo legal não apenas em sentido substancial, mas sim, valorativo, de acordo com os valores constitucionais e sociais. O que implica dizer que o devido processo legal substancial aplica-se ao mérito da decisão, observando a razoabilidade, a proporcionalidade e a justiça no caso concreto.
Nesse sentido, o devido processo legal, em sentido meramente formal (positivista estrito) não mais prevalece, permanecendo o devido processo formal-valorativo, comprometido com a justiça da decisão, aproximando-se e equiparando-se, em alguns aspectos, ao devido processo legal substancial.
4. Da cláusula geral do devido processo legal
Para compreender a natureza jurídica do devido processo legal, faz-se necessário, inicialmente, delinear o que significa uma cláusula geral para, em seguida, mencionar a categoria jurídica de cláusula geral que pertence o devido processo legal.
Com a mudança de paradigma positivista ao pós-positivista, os estudos no campo jurídico passaram a ser realizados sob este novo viés interpretativo, não sendo suficiente que o legislador “racional” preveja todas as hipóteses da vida, através de leis, passando-se a adotar a técnica legislativa das cláusulas abertas, em que o intérprete assume um novo papel, muito mais importante do que aquele desenvolvido sob o paradigma positivista.
Confiram-se, a propósito, os escólios de Judith Martins-Costa (1998, n. 139), a qual registra o papel das clásulas gerais no Novo Código Civil, aplicando-se, todavia, às demais legislações na contemporaneidade:
“O Código Civil, na contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais completa tradução na codificação oitocentista. Hoje a sua inspiração, mesmo do ponto de vista da técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos. (…) As cláusulas gerais, mais do que um “caso” da teoria do direito – pois revolucionam a tradicional teoria das fontes –, constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis”. (Martins-Costa,1998, n. 139)
Resume, no mesmo sentido, de forma inteligente, Nelson Rosevald e Cristiano Farias (2008, p. 57):
“A diferença entre o Sistema aberto, este formado por cláusulas gerais, e o Sistema fechado, decorrente de um ordenamento positivista: O sistema fechado atendia ao ideário do positivismo jurídico e da busca de uma ciência pura do Direito. Trata-se de uma ordem governada por um ideal de codificação, em que o direito aplicado seria apenas aquele emanado da autoridade legislativa competente para editar a norma, sem que se pudesse admitir qualquer interferência dos valores filosóficos, sociológicos e econômicos que estivessem a margem do sistema hermenêutico. Já o sistema aberto, apoiado na jurisprudência admite a incompletude, a capacidade de evolução e a modificabilidade do sistema, impregnando-o de dinamicidade em desenvolvimento paulatino e contínuo. Aqui, não há previsão rígida de previsões normativas, havendo, portanto, espaço para a ponderação de critérios.”
Este conceito de cláusula geral teve como marco inicial a Constituição Norte-America de 1789, que possui como característica a presença de conceitos jurídicos abertos, cabendo especial papel ao aplicador da lei, na concreção da norma na realidade fática. Não por outra razão, sob a égide da Constituição dos Estados Unidos da América já se permitiu, e, em seguida, se proibiu a escravidão.
Portanto, o sistema aberto de cláusulas gerais teve inicio nas constituições e, basicamente, na tradição jurídica do comum-law.Contudo, vem ganhado força a cada dia, entre os países com tradição do civil-law, seja na interpretação e aplicação da constituição, seja nas legislações infraconstitucionais. Tome-se como marco a promulgação do novo código civil brasileiro, que possui diversas cláusulas abertas, a exemplo da proteção da função social do contrato e a boa-fé objetiva a eles aplicada, sendo permeado pelos valores da eticidade, socialidade e operabilidade.
Explicite-se que a atividade do magistrado, no sistema aberto de cláusulas gerais, não é arbitrária, vinculando-se à lei, ao contrato e aos princípios, Assim “a atividade criadora do juiz não se confundirá com o arbítrio, posto contida nos limites da realidade do contrato, sua tipicidade estrutura e funcionalidade, com aplicação reserva aos princípios admitidos pelo sistema” (FARIAS-ROSENVALD, 2008, p. 58).
Conclui-se, portanto, que, no plano processual, a natureza jurídica do devido processo legal é de cláusula geral, aberta aos valores e aos nortes interpretativos, cabendo especial papel ao hermeneuta ao aplicá-lo no caso concreto.
Nesse sentido, acena Fredie Didier (2005, p. 37) “o devido processo legal é um direito fundamental de conteúdo complexo. Trata-se de uma cláusula geral e, portanto, aberta, que a experiência histórica cuida de preencher”.
Pode-se encontrar o devido processo legal em diversos ramos do direito, como: direito processual constitucional, direito processual administrativo, direito processual civil, direito processual penal ou direito tributário.
Entretanto, insta esclarecer que a doutrina costuma conceituar o devido processo legal de diversas maneiras, o que não afasta a sua natureza de cláusula geral, tendo sido referendado também como conceito jurídico indeterminado, postulado fundamental ou princípio (irradiante)[2].
O devido processo legal encaixa-se, pois, como uma técnica legislativa, no sentido das cláusulas gerais, cabendo especial papel ao intérprete julgador na sua valoração e aplicação.
A consequência de enquadrar o o devido processo legal nesta categoria de cláusula geral é que o seu alcance e conteúdo irá depender do momento histórico da sociedade com suas diversas nuances e múltiplos valores. Isto quer dizer que, num Estado democrático de direito, haverá um devido processo constitucional, que visa à persecução dos valores democráticos insertos na Constituição, enquanto num regime autoritário, ou permeado pelo racionalismo exacerbado, haverá, caso exista, um devido processo meramente formal, apenas para que não se julgue sem um procedimento. Num Estado liberal burguês existirá um devido processo legal excessivamente formal, com objetivo primeiro de proteção da propriedade, descuidando-se dos valores sociais. É a cláusula geral do devido processo legal delineada e aplicada de acordo com os valores da sociedade.
5. Conclusões
À guisa de conclusões, entende-se o devido processo legal como uma cláusula geral, na compreensão do direito como um sistema aberto que se aplica topicamente, na dimensão da justiça do caso concreto, sem olvidar a vinculação à lei e aos princípios constitucionais.
A consequência de enquadrar o devido processo legal nesta categoria de cláusula geral é que o seu alcance e conteúdo irá depender do momento histórico da sociedade com suas diversas nuances e múltiplos valores.
Mestre em direito público pela Universidade Federal Bahia. Pós-graduado em Processo pelo CCJB Centro de Cultura Jurídica da Bahia. Advogado
Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…
Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…
Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…
O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…
Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…
Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…