Resumo: O presente estudo possui dois objetivos: expor o papel dos tributos como instrumento de concretização dos direitos fundamentais (extrafiscalidade) e demonstrar a importância da linguagem técnica para evitar interpretações equivocadas que ponham em risco a efetividade das políticas públicas realizadas por meio da tributação. Partindo da análise das contribuições para o “Seguro Acidente de Trabalho” e da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho a respeito desta espécie tributária, buscamos apresentar um exemplo concreto de tributação extrafiscal e de equívoco jurisprudencial estimulado pelo uso de expressões usuais sem o devido respaldo técnico.
Palavras-chave: Direito Tributário. Extrafiscalidade. Seguro Acidente de Trabalho. Justiça do Trabalho.
Sumário: 1. Introdução. 2. Proteção constitucional dos riscos sociais decorrentes dos acidentes de trabalho. 3. Breve histórico do Seguro Acidente de Trabalho. 4. A natureza jurídica do SAT. 5. O “SAT” e a extrafiscalidade. 6. Da importância social do SAT. 7. A importância da linguagem científica e a virada jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho. 8. A competência da Justiça do Trabalho para executar o SAT e a efetividade da política tributária. 9. Conclusão.
1. Introdução.
Em recente julgamento, a Subseção Especializada em Dissídios Individuais – I do Tribunal Superior do Trabalho reverteu jurisprudência consolidada há vários anos, passando a reconhecer a distinção entre as chamadas contribuições para o “SAT” e as contribuições para “Terceiros” e, por conseguinte, a competência da Justiça do Trabalho para executá-las sob sistemática da “execução fiscal ex officio”.
Contudo, o mérito deste entendimento ultrapassa a correção técnica a respeito da natureza jurídica das contribuições sociais para o financiamento da Seguridade Social, e revela a relevância do tema para a efetividade de uma política tributária de grande repercussão na proteção dos trabalhadores.
Assim, o objetivo deste breve trabalho é mostrar a importância da correta identificação dos institutos jurídicos para a concretização dos direitos sociais, em especial, no tocante à prevenção dos acidentes de trabalho por meio de uma política tributária.
2. Proteção constitucional dos riscos sociais decorrentes dos acidentes de trabalho.
A preocupação do Direito com o bem estar do ser humano fez surgir a Previdência Social e difundi-la como a ferramenta mais comum de proteção dos riscos sociais, em especial aqueles que reduzem a capacidade do indivíduo prover seu sustento próprio e familiar através do trabalho. Nesse contexto, as contingências decorrentes dos acidentes de trabalho representam uma importante parcela dos problemas sociais relacionadas com a morte e a incapacidade laborativa.
O reconhecimento internacional deste problema fez com que o Brasil aderisse a diversos tratados e acordos que prevêem a obrigação de preservar a incolumidade do trabalhador e suprir suas necessidades em caso de enfermidade. Nesse sentido, foi ratificada a Convenção nº 102, da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe a respeito de normas mínimas de seguridade social a serem instituídas por seus membros[1] e elaborada a a Declaração Sociolaboral do Mercosul, que determina a promoção de “políticas e programas em matéria de saúde e segurança dos trabalhadores e do meio ambiente de trabalho, a fim de prevenir os acidentes de trabalho e as enfermidades profissionais” (art. 17º, 2), prevendo, em seguida, a proteção dos trabalhadores “frente à contingência de riscos sociais, enfermidades, velhice, invalidez e morte” (art. 19º, 2)[2].
Nesta linha de raciocínio, ainda que o direito à previdência social não estivesse previsto no caput do art. 6º da Carta Republicana[3], é certo que a cobertura das contingências sociais relacionadas aos acidentes de trabalho (redução da capacidade laborativa, invalidez e morte) se insere no rol de direitos fundamentais albergados como cláusulas pétreas em nosso Sistema Constitucional[4]. Assim, independente da origem do status de direito fundamental conferido aos direitos sociais, tais direitos merecem ampla proteção e progressiva efetivação.
De fato, não faria sentido que o Estado se comprometesse com a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII, da Constituição), sem, contudo, oferecer mecanismos legais que viabilizassem a cobertura efetiva destes riscos.
Com base nestas premissas, pode-se afirmar que a Constituição Brasileira já protegeria os trabalhadores contra os eventos de doença, invalidez ou morte, independente de tais eventos estarem relacionados a acidentes de trabalho[5], e, como será visto adiante, por pertinência lógica, esta cobertura foi inserida no contexto amplo da Seguridade Social, consoante se extrai do art. 7º, XXVIII, e dos arts. 194 caput e 201, I, da Constituição, eis que se trata de direito relacionado à cobertura de contingências sociais:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
I – universalidade da cobertura e do atendimento;
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Por fim, sobreleva destacar que, num Estado Democrático, a proteção contra as contingências sociais se impõe em decorrência do princípio da solidariedade e da constatação de que o desenvolvimento da nação é impossível sem que todos tenham assegurado um limite mínimo de dignidade[6]. Trata-se, então, de uma perspectiva publicista da Seguridade Social, que realça o seu caráter amplo e universal (direito social tutelado pela coletividade), em detrimento da perspectiva individual (direito de crédito em face do Estado).
3. Breve histórico do Seguro Acidente de Trabalho.
Os autores convergem em atribuir a criação formal da Previdência Social às leis alemãs de 1883, 1884 e 1889, por meio das quais o chanceler Otto Von Bismarck instituiu, respectivamente, o seguro social obrigatório (seguro-doença), o seguro contra acidente de trabalho e os seguros contra invalidez e velhice.
No Brasil, a primeira lei a disciplinar a responsabilidade por acidentes de trabalho veio antes mesmo da Lei Elói Chaves (Decreto-legislativo n°. 4.682/1923), tida pela doutrina como o marco legal para o desenvolvimento da Previdência Social no Brasil. Pouco antes, o Decreto-lei nº 3.724, de 15 de janeiro de 1919, previa o pagamento de indenizações e a prestação de assistência médica, farmacêutica e transportes, tudo a cargo do empregador.
Este modelo de “seguro contra acidentes de trabalho” adotado inicialmente no Brasil foi claramente influenciado pelos movimentos sociais e se aproximava do modelo alemão de seguro contra acidentes de trabalho (Unfallversicherung), especialmente no que tange à distribuição dos encargos com pensões e assistência sobre os empregadores[7].
No entanto, o avanço dos direitos sociais no Brasil culminou na promulgação da Lei nº 5.316, de 14 de setembro de 1967, que incorporou o “seguro de acidentes de trabalho” na estrutura da Previdência Social, cujo custeio ficaria à cargo dos empregados[8]. Houve, então, um deslocamento do formato de seguro privado, caracterizado pelo pagamento de indenizações, para um sistema público, fundado na concessão de benefícios, à semelhança dos demais benefícios de natureza previdenciária.
É interessante notar que a Constituição de 1967, de 24 de janeiro de 1967 já previa o seguro contra acidentes de trabalho como direito dos trabalhadores[9] – tradição que já remontava às Cartas de 1934[10], 1937[11] e 1946[12] e que foi repetida na Constituição de 1988, nos moldes do já mencionado art. 7º, XXVIII.
Em seguida, a Carta Republicana em vigor foi alterada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, voltando a admitir a participação do setor privado na cobertura dos riscos de acidentes de trabalho, de modo concorrente com a Previdência Social[13].
Por derradeiro, merecem destaque as Leis nº 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991. A primeira, que unificou também a disciplina legal dos benefícios previdenciários, de modo a abranger aqueles de origem acidentária[14], e, a segunda, que instituiu “alíquota adicional” às contribuições sociais destinadas ao financiamento da Seguridade Social[15].
Este breve histórico serve para afastar os possíveis equívocos que a expressão “Seguro Acidente de Trabalho (SAT)” desperta:
a) Em seus primórdios, o SAT não constituía uma modalidade especial de seguro privado, muito embora as empresas e o mercado tenham se organizado para prestar cobertura direta ou indireta aos riscos dos acidentes de trabalho.
b) Num segundo momento, a partir de 1967, o SAT passou a ser compreendido na proteção dos trabalhadores contra a infortunística laboral prestado pela Previdência Social, mediante contribuições dos empregadores.
c) Com o advento das Leis nº 7.787/1989 e 8.212/1991 e das polêmicas que envolveram a utilização do grau de risco ambiental do trabalho, o SAT foi identificado como a parcela das contribuições sociais destinadas a custear os benefícios previdenciários decorrentes dos acidentes de trabalho e da exposição a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
Esta última é a expressão mais comumente empregada na doutrina e jurisprudência e que será, neste estudo, identificada como contribuições para o “SAT”.
4. A natureza jurídica do SAT.
A fim de dar concretude às normas constitucionais que disciplinam o custeio da Seguridade Social e que atribuem ao empregador o ônus dos acidentes de trabalho, o legislador ordinário serviu-se de uma fórmula sistemática: partindo do art. 7º, XXVIII, delimitou o sujeito passivo, e do art. 195, I, da Constituição Federal[16], definiu o fato gerador e a base de cálculo das contribuições destinadas a financiar os benefícios da Previdência Social relacionados com os acidentes de trabalho.
Assim, foram instituídas as chamadas contribuições previdenciárias devidas pelas empresas (“contribuições patronais”), as quais contam com uma parcela adicional de alíquota variável, nos termos do art. 22 da Lei nº 8.212/1991:
“Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:
I – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa. (Redação dada pela Lei nº 9.876/1999).
II – para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos:” (Redação dada pela Lei nº 9.732/1998).
É importante mencionar a identidade entre a contribuição para o SAT e a contribuição social incidente sobre a folha de pagamento da empresa, como bem explicou o Desembargador Federal Wellington Mendes de Almeida[17]:
Da análise do dispositivo citado acima (art. 22 da Lei 8.212/91, com redação dada pela Lei 9.598/97), extrai-se o entendimento de que não foram criadas duas contribuições previdenciárias incidentes sobre folha de salários, nem se trata, no inciso II, de um adicional à contribuição prevista no inciso I. Cuida-se, isto sim, de uma única contribuição a cargo do empregador, incidente sobre as remunerações pagas ou creditadas, durante o mês aos segurados empregados que lhe prestem serviços. A destinação de parte da contribuição para o custeio dos benefícios concedidos em razão de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho não descaracteriza a unicidade da contribuição social, pois estas contribuições não são estranhas ao Plano de Benefícios da Previdência Social, ou seja, não há desvio de destinação.
Em seguida, quanto à dupla previsão constitucional da contribuição para o SAT, concordam os doutrinadores Sérgio Pinto Martins[18] e Fabio Zambitte Ibrahim[19]. No campo da jurisprudência, por sua vez, a questão parece ter sido pacificada pelo Supremo Tribunal, como se colhe em trecho de decisão proferida pela Ministra Ellen Gracie, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 537.658/SP[20]:
1. O Plenário desta Corte, no julgamento do RE 343.446/SC, rel. Min. Carlos Velloso, unânime, DJ de 04.04.2003, decidiu pela desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o custeio do Seguro de Acidente de Trabalho – SAT, ante a previsão dos arts. 7º, XXVIII, e 195, I, da Carta Magna, que permitem a sua criação por meio de lei ordinária, afastando-se, dessa forma, a hipótese de violação aos arts. 154, I, e 195, § 4º, da Constituição Federal. Assentou-se, ainda, que o art. 22, II, da Lei 8.212/91, ao instituir alíquotas proporcionais ao grau de risco da atividade exercida pelo contribuinte, a serem definidas mediante decreto regulamentador, não ofendeu os princípios da isonomia e da legalidade tributária. Ficou consignado, a final, que o exame do decreto em tela, a fim de saber se excede ou não os limites traçados na lei regulamentada, não é questão constitucional, mas de legalidade, cuja análise se mostra inviável em sede de recurso extraordinário.
Enfim, a leitura dos dispositivos legais anteriormente mencionados deixa claro que a contribuição destinada ao “SAT” possui a mesma natureza da contribuição patronal (tributo da espécie contribuição social), o mesmo locus legislativo (art. 20 do Plano de Custeio da Seguridade Social), o mesmo fato gerador (“a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço”), a mesma base de cálculo (“o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos”), o mesmo sujeito passivo (empregador, empresa ou entidade equiparada). Logo, sob o ponto de vista do Direito Tributário, ante a coincidência entre seus elementos essenciais, imperioso concluir que se trata de parcela adicional da mesma exação em modalidade de alíquota variável e destinada ao custeio de determinados benefícios da Previdência Social.
5. O “SAT” e a extrafiscalidade.
Desde sempre se sabe que a interferência do Estado na propriedade privada costuma provocar distorções na economia e no comportamento dos cidadãos[21]. Com base nesta observação, o palco da extrafiscalidade foi descortinado no âmbito do Direito Tributário[22].
Todavia, a partir do pós-guerra e do fortalecimento das doutrinas do Welfare State, o Direito Tributário deixou de concentrar seus olhares apenas no conflito entre a propriedade privada e o poder de império. Para além de estabelecer limites à atuação do Estado na extração do patrimônio particular, o fenômeno tributário passou a ser visto como legitimador do contrato social (cidadania fiscal) e a tributação como um instrumento de realização dos valores sociais e democráticos.
Clemente Checa Gonzáles assinala que o Estado Contemporâneo, nascido da quebra do Estado Liberal, se encarrega de “dirigir globalmente el sistema económico assumiendo directamente muchas de sus funciones y tiene a su cargo la fundamental tarea de conseguir la superación de los obstáculos que se oponen a la igualdad de hecho entre los ciudadanos”[23].
Assim, a doutrina passou a opor a função meramente arrecadatória do tributo, típica do Estado Liberal, à função de viabilizar as políticas públicas voltadas para o bem estar da sociedade[24], e, nesse contexto, ganha destaque a utilização direta das normas tributárias para interferir nas condições econômicas e sociais do país. É o que aponta o citado professor[25]:
“los ingressios publicos tambien son, o poden serlo, un médio directo para la consecucion de los citados fines –, razón por la que ‘uno de los aspectos essenciales de la actividad tributaria sea extrafiscal, esto es, el de perseguir directamente fines diversos del fiscal’ como poden ser los redistributivos, los de modificacion de las condiciones econômicas y sociales, lo de ser instrumento de planficación, etc.”
Esta mudança de foco também é destacada pelo espanhol Eugenio Lejeune Valcárcel, segundo quem o tributo “a pesar de haber sido pensada primigeniamente para otros fines, presenta, sin embargo, uma especial idoneidad para el logro de los objectivos constitucionales”[26].
Representada por Hugo de Brito Machado, a doutrina brasileira assente que o emprego dos tributos com finalidade diversa da arrecadação é marca comum do mundo moderno[27]:
“O objetivo do tributo sempre foi o de carrear recursos financeiros para o Estado, no mundo moderno, todavia, o tributo é largamente utilizado com o objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia. A esta função moderna do tributo se denomina função extrafiscal.”
Para nós, o que a doutrina se acostumou a chamar de extrafiscalidade nada mais é que a representação das funções elementares dos tributos num contexto de Estado que conta com “colaborações” individuais para promover os valores sociais da coletividade que consentiu com a tributação. Todavia, nos estreitos limites deste trabalho, importa apenas demonstrar que a extrafiscalidade é uma marca indelével em nosso ordenamento jurídico e de grande importância na realização dos valores constitucionais. Esta parece ser a perspectiva presente na lição de Andrea Viol Lemgruber[28]:
“Nesse sentido, reduzir a tributação simplesmente à sua finalidade arrecadatória é desconhecer a força de seu poder, pois o financiamento do Estado não se esgota em si mesmo. Pelo contrário, é o próprio poder de financiar o Estado que estabelece a abrangência da tributação em tantas dimensões da vida coletiva. Qualquer formulação de política tributária que não leve em consideração essa abrangência estará fadada a um reducionismo arrecadatório e a uma miopia de visão estratégica que poderá, a longo-prazo, inviabilizá-la.”
Exemplos desta nova concepção podem ser vistos em diversas frentes como na crescente utilização de impostos progressivos, destinados a graduar a capacidade contributiva e, ao mesmo tempo, reduzir os desníveis econômicos entre as classes sociais, na utilização de contribuições como ferramenta de estabilização da economia e proteção da concorrência ou, ainda, no uso de benefícios fiscais visando a redução das desigualdades regionais.
No caso das contribuições para o “SAT”, a definição de alíquotas diferenciadas em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa serve justamente para distribuir os encargos da cobertura previdenciária de forma justa. Assim, ao aplicar este critério de equidade, o legislador buscou ampliar a participação das empresas que desenvolvem atividades mais perigosas ou com maior grau de incidência de acidentes no custeio da Seguridade Social.
Outro efeito esperado com o impacto dos custos fiscais é o desestímulo às atividades perigosas e a redução do número de acidentes, na medida em que as despesas com tributos podem ser redirecionadas para o desenvolvimento de práticas mais seguras no ambiente de trabalho. Embora desnecessária menção expressa, este objetivo constou da redação do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.212/1991[29].
Não se nega, contudo, que os parâmetros utilizados para identificar os graus de risco envolvam grandes polêmicas, em especial após o advento das Leis nº 9.732/1998, 10.256/2001 e 10.666/2003, que alteraram as alíquotas e a forma como são fixadas, inclusive estabelecendo distinção em relação a determinados grupos de contribuintes. Todavia, é inegável que um sistema de apuração que leve em conta uma avaliação de risco pormenorizada de cada contribuinte seria inviável em razão dos elevados custos que esta operação exigiria. Também não seria recomendável estabelecer inúmeras alíquotas e condições de enquadramento, a fim de não tornar o tributo excessivamente complexo e aumentar as despesas das empresas com a sua operação e da Fazenda com a fiscalização.
Nesse contexto, merece destaque a inovação trazida no art. 10 da Lei nº 10.666/2003[30], que previu a alteração das alíquotas do “SAT” em razão do desempenho específico da empresa, no contexto dos índices de sinistralidade da respectiva atividade econômica. Aqui, o foco da distinção entre os contribuintes não está na capacidade contributiva, nem na eficiência da arrecadação, mas em valores que comumente são perseguidos em searas distintas da política fiscal.
Entretanto, o que indicaria um distanciamento do Direito do Tributário, dando espaço a normas de proteção social (trabalhista e previdenciária), revela a essência da tributação enquanto instrumento de concretização dos princípios constitucionais. Ao abrir mão de parcela da arrecadação em favor das empresas que obtiverem desempenho satisfatório na prevenção de acidentes de trabalho, o Estado está dirigindo a alocação de recursos privados para a obtenção de resultados que desoneram a Previdência Social e, sobretudo, preservam a vida e a integridade dos trabalhadores. Por outro lado, ao impor ônus adicional às empresas que concretamente contribuíram para o aumento do risco acidentário, o Estado estimula os esforços individuais em prol da segurança ambiental e, simultaneamente, obtém mais recursos para financiar o “Seguro contra Acidentes de Trabalho”.
Outro aspecto que merece destaque na técnica acima é a inspiração no principio da isonomia. Fugindo do lugar-comum de somente considerar os contribuintes como centros de disponibilidade econômica, a Lei elegeu como elemento discriminatório o desempenho de atividades causadoras de maior ou menor risco de acidentes de trabalhos e o fato de estar a empresa contribuindo ou não para a redução das estatísticas setoriais. Este discrímen é razoável e se extrai de valores constitucionais como a solidariedade e a dignidade da pessoa humana. Assim, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, “Não há que se falar, portanto, em tratamento igual entre contribuintes em situação desigual, já que a própria lei fazia distinção”[31].
Enfim, mesmo se afirmando que a finalidade desta norma não seria imediatamente arrecadatória, é inegável que estamos diante do uso de ferramentas que envolvem as receitas e as despesas públicas (alíquotas de tributos e gastos com a Previdência Social), a fim de alcançar o interesse público (redução dos acidentes). Ou seja, independente de considerá-la (extra)fiscal, trata-se de demonstração da essência e finalidade da tributação.
Destarte, a utilização do Fator Acidentário Previdenciário para delimitar a imposição tributária não importa na criação de um tributo de caráter pessoal, vinculado ao ressarcimento das despesas com determinados sinistros. Se assim fosse, uma empresa que jamais teve registros de acidentes de trabalho com seus empregados estaria exonerada do adicional destinado ao “SAT”. Contudo, a aplicação do fator multiplicador/redutor termina por aproximar a norma tributária da situação peculiar de cada empresa, utilizando a majoração ou mitigação da alíquota do tributo como instrumento de prevenção concreta dos acidentes de trabalho, sem esquecer que se trata de contribuição social destinada a custear o risco.
Como visto, as contribuições para o SAT constituem parcela adicional à contribuição patronal destinada a financiar de forma geral os benefícios ditos acidentários, e não a reparar os prejuízos in concreto causados por determinadas empresas – hipótese que somente se admite nos casos de dolo ou culpa (art. 7º, XXVIII, fine). Não se pretende, pois, distribuir pessoalmente os custos “previdenciários” dos acidentes de trabalho, mas, sim, a cobertura geral dos riscos acidentários.
6. Da importância social do SAT.
A natureza tributária das contribuições para o SAT está ligada à sua finalidade precípua de obter recursos para custear a prestação de serviços e benefícios previdenciários aos trabalhadores vitimados por acidentes de trabalho. Contudo, é importante atentar para as normas que regem o financiamento da Seguridade Social e a responsabilidade do empregador/contratante pelos riscos dos acidentes de trabalho.
Uma leitura apressada do art. 7º, XXVIII da Constituição poderia conduzir a uma conclusão incoerente: se os empregadores são responsáveis pelo seguro contra acidentes de trabalho, não poderia este serviço ser prestado pela União, nem custeado por recursos públicos, ainda que extraídos parcialmente dos potenciais causadores dos infortúnios.
No entanto, a responsabilidade dos empregadores pela cobertura genérica dos riscos de acidentes de trabalho não pode ser interpretada de modo isolado, sem considerar, por exemplo, os arts. 194 e 195 da Constituição Federal, que consagram como princípios da Seguridade Social a diversidade da base de financiamento e a equidade na forma de participação no custeio – o qual será compartilhado por toda a sociedade (solidariedade). Por esta razão, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade na utilização da estrutura e de recursos próprios da União (INSS) para administrar a concessão dos benefícios destinados à trabalhadores vitimados por acidentes de trabalho.
O alcance do art. 7º, XXVIII estabelece uma proteção em favor do trabalhador, o qual terá disponível uma forma de sustento enquanto não recuperada sua capacidade para o trabalho, independente da efetiva prestação de assistência material por parte dos empregadores[32]. Dito de outra forma, A incorporação do antigo “SAT” ao sistema já utilizado para prestação da cobertura previdenciária resultou numa maior proteção ao trabalhador e esta proteção reveste-se do mais relevante interesse público, pois concretiza direitos fundamentais e visa o bem estar de toda a coletividade.
Ao prestar diretamente a cobertura previdenciária, o Estado não está senão cumprindo o mandamento constitucional que reconhece ser a previdência social um direito fundamental dos trabalhadores[33].
Em suma, a responsabilidade dos empregadores não afasta a gestão pública dos recursos da Seguridade Social, nem obriga a União a criar um regime paralelo de previdência apenas para administrar os benefícios e serviços de origem acidentária. Na prática, a inclusão do sistema anterior de proteção contra acidentes de trabalho no âmbito do Regime Geral de Previdência Social, também constituiu medida de nítida eficiência e economia, pois aproveitou o ganho de escala de todo o aparato material e normativo existente.
Note-se que a União somente está obrigada a suportar os ônus decorrentes dos acidentes que se insiram nos riscos gerais do trabalho. Quando o empregador incorrer em dolo ou culpa, geralmente configurada pelo descumprimento das normas de segurança e higiene do trabalho, caberá à autarquia previdenciária propor ação regressiva[34], conforme enunciam o art. 120 da Lei nº 8.213/1991 e o art. 7º, XXVIII, da Carta Magna. Assim, embora a Previdência Social preste o auxílio necessário ao trabalhador acidentado, ao final, caberá ao empregador arcar com as despesas realizadas.
7. A importância da linguagem científica e a virada jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho.
Com o avento da Emenda Constitucional nº 20/1998, a Justiça do Trabalho tornou-se competente para “executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir” – sistemática que foi renovada pela Emenda Constitucional nº 45/2004[35]. A literalidade da norma não deixaria dúvidas a respeito de seu alcance, bastando recorrer aos dispositivos constitucionais em referência:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
(…)
II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Mais uma vez, o princípio da legalidade em matéria tributária trataria de limitar as incertezas a respeito de quais tributos estariam abrangidos pela previsão constitucional acima[36]. Mas não foi isso que aconteceu.
Aparentemente, um debate lateral a respeito da competência da Justiça do Trabalho para executar as chamadas “contribuições para Terceiros” terminou distorcendo a discussão a respeito da natureza jurídica das contribuições destinadas ao “SAT.
A fim de facilitar a fiscalização e arrecadação de contribuições que possuíam a mesma base de cálculo das contribuições sociais incidentes sobre as remunerações pagas ou creditadas aos segurados da Previdência Social, o Instituto Nacional do Seguro Social passou a cobrar, mediante remuneração, contribuições sociais como o “salário-educação” e contribuições de interesses de categorias econômicas[37], a exemplo daquelas destinadas às entidades integrantes do “Sistema S”[38].
A despeito das semelhanças entre tais as contribuições sociais[39] e de eventual debate a respeito da natureza jurídica de algumas das contribuições inseridas no conceito de “terceiros”, a própria Constituição Federal cuidou de separar as chamadas contribuições “paraestatais” do conceito de contribuições para financiamento da Seguridade Social (art. 195), como se vê no art. 240:
“Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.”
Com base nesta distinção, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu que a cobrança das “contribuições para terceiros” não se insere na competência material da Justiça do Trabalho:
INSS.CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DEVIDA A TERCEIROS ART. 240 DA CF. EXECUÇÃO DE SENTENÇA ÓBICE DA SÚMULA Nº 266 DO TST. Inviável é o conhecimento do recurso de revista interposto em processo que se encontra em execução de sentença (CLT, art. 896, § 2º) quando as razões da revista estão voltadas para a suposta declaração de incompetência da Justiça do Trabalho pelo TRT, enquanto este órgão jurisdicional adotou a tese de que o art. 240 da Carta Magna exclui do rol do art. 195 da CF a contribuição devida a terceiros. O Regional, nesse passo, não fixa tese contrária ao art. 114, § 3º, da CF, dispositivo tido por violado. Recurso de revista não conhecido.[40]
É provável que a semelhança entre a terminologia consagrada pelo uso para designar as contribuições destinadas a entidades integrantes do “Sistema S” (SESI, SENAI, SENAT etc.) e a parcela adicional das contribuições sociais para custeio do “SAT”, tenha influenciado o julgamento dos inúmeros recursos que foram submetidos a apreciação dos tribunais, mas, o fato é que a jurisprudência firmada em relação à competência da Justiça do Trabalho para execução das “contribuições para terceiros” terminou sendo aplicada também aos casos nos quais se discutia a cobrança das contribuições para o “SAT”. É o que se viu em incontáveis acórdãos proferidos nos últimos anos:
“CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DESTINADAS A TERCEIROS E SAT (SEGURO ACIDENTE DO TRABALHO) – INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA A SUA FIXAÇÃO E EXECUÇÃO. A justiça do trabalho é incompetente para executar a contribuição a terceiros e a SAT (Seguro Acidente do Trabalho), na medida em que tais rubricas não se encontram entre as contribuições previstas no art. 195, I, “a”, II, da CF, não havendo falar em violação ao artigo 94 da Lei 8.212/94. A competência da Justiça do Trabalho para execução das contribuições sociais fixada no artigo 114, inciso VIII da Constituição federal, que dispõe: VIII- A execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir. Vê-se, então, que a Justiça do Trabalho é competente para executar as contribuições incidentes a teor do que dispõe o artigo 195, I, a, e II, da constituição federal, que se transcrevo: a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; logo, há que se concluir, que as contribuições sociais destinadas a terceiros não estão inseridas dentre aquelas previstas no dispositivo legal acima transcrito, o mesmo ocorrendo com relação à contribuição SAT (Seguro Acidente do Trabalho). Com efeito, a competência desta justiça especializada, regulada pelo artigo 114 da CF/88, deve ser interpretada restritivamente e não de maneira ampliativa. Em conseqüência, ao declarar a incompetência da justiça do trabalho para executar as referidas contribuições sociais, o juízo a quo deu a exata subsunção da descrição dos fatos ao conceito contido nos preceitos constitucionais citados. Neste sentido os seguintes precedentes: TST-RR 1610/1996-005-08-40.4, DJ de 11.02.2005, relator juiz convocado Luiz Antonio Lazarim; TST-RR-626/1999-010-12-00.1, DJ 12.08.2005, relator ministro Ives Gandra Martins Filho. Recurso conhecido e não provido.[41]
AGRAVO DE INSTRUMENTO. COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS DEVIDAS A TERCEIROS E AO SAT. Tendo o julgado regional firmado tese no sentido de que não cabe à Justiça do Trabalho executar as contribuições devidas a terceiros e ao SAT, de se concluir que cumpriu, com rigor, os preceitos constitucionais que tratam da competência. Isso porque as contribuições sociais destinadas a terceiros e ao SAT não estão inseridas na previsão dos arts. 114, § 3º (atual art. 114, inciso VIII), e 195, incisos I e II, da Constituição Federal. Agravo de instrumento não provido.[42]
(…) II – RECURSO DE REVISTA – EXECUÇÃO – CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS DEVIDAS A TERCEIROS E CONTRIBUIÇÃO DO SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO (SAT)- INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Consoante a iterativa jurisprudência do TST, não se inclui na competência da Justiça do Trabalho a execução das contribuições sociais devidas a terceiros e ao SAT, nos termos dos artigos 114, VIII, e 240 da Constituição. Recurso de Revista conhecido e provido.[43]
(…) COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. EXECUÇÃO. CONTRIBUIÇÃO EM FAVOR DE TERCEIROS. SEGURO ACIDENTE DE TRABALHO – SAT. Na esteira da jurisprudência desta Corte, a Justiça do Trabalho não detém competência material para determinar a execução de contribuições em favor de terceiros. Viola o artigo 114, VIII, da Constituição Federal acórdão regional que mantém sentença que determina o recolhimento de contribuição para o Seguro Acidente de Trabalho – SAT, contribuição de terceiros. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido, no particular.”[44]
Observa-se que este entendimento se baseou na equivocada premissa de que o “SAT” seria um fundo ou entidade, com personalidade jurídica própria e finalidade distinta da Previdência Social. Todavia, como vimos no início deste trabalho, os riscos sociais representados pelos acidentes de trabalho são cobertos por meio do Regime Geral de Previdência Social e parcialmente custeados com base numa política tributária diferenciada, que busca gravar mais severamente as empresas que contribuem para os índices acidentários. Para entender este capítulo é necessário que o operador do Direito transite pelos conceitos de Seguridade e Previdência Social, bem assim pela noção de tributação “extrafiscal” e de tributos vinculados.
Assim, uma análise do inteiro teor dos acórdãos que se seguiram à torrente jurisprudencial retratada acima revela que o emprego de termos consagrados pelo uso pode dificultar a correta apreensão dos institutos jurídicos aos quais se referem ou mesmo direcionar uma interpretação desvinculada do contexto normativo em questão. É o que se vê nos seguintes trechos de julgados do TST:
“Em relação à Contribuição do Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), vale ressaltar que o artigo 202 do Decreto nº 3.048/99 deixa claro que é destinada ao financiamento de benefícios decorrentes dos riscos ambientais derivados da atividade da empresa. Dessa forma, tal parcela não pode ser enquadrada como contribuição de seguridade social, porquanto não está relacionada com a saúde e a previdência, merecendo o tratamento jurídico destinado às contribuições a terceiros. Essas últimas são destinadas a entidades privadas de serviço social e de formação profissional.
A leitura do artigo 114, inciso VIII, c/c 195, incisos I e II, ambos da Constituição, mostra que as contribuições sociais destinadas a terceiros e ao SAT não podem ser incluídas entre as passíveis de execução no âmbito da Justiça do Trabalho.”[45]
“As contribuições sociais a que se refere o dispositivo, e que estão previstas no art. 195, I, “a”, e II, da Constituição Federal, são especificamente aquelas que, a cargo do empregador e outras pessoas, são destinadas ao financiamento da seguridade social e incidem sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho.
A contribuição do empregador para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT, diversamente, tem como destino o financiamento de benefícios e prestações decorrentes de acidentes sofridos pelo empregado na empresa, com alíquota de contribuição fixada de acordo com o grau de risco da atividade econômica, e não com base em folha de pagamento de salário.
Não se trata, pois, de contribuição previdenciária que incide sobre as “sentenças” proferidas pela Justiça do Trabalho. Ao contrário, o valor devido à cobertura de acidentes do trabalho tem como credor o INSS, o que denota que o seguro tem como objetivo o custeio de prestações previdenciárias, no contexto do Direito Previdenciário, motivo pelo qual a Justiça do Trabalho não tem competência para executar referidas parcelas, nos termos do art. 114, VIII, da Constituição Federal.”[46]
Dentre os argumentos utilizados para se atribuir às contribuições do SAT natureza jurídica distinta das demais contribuições sociais previstas no art. 195, I, “a”, e II da Constituição Federal, está a afirmação de que tal exação “é destinada ao financiamento de benefícios decorrentes dos riscos ambientais derivados da atividade da empresa” e que “não está relacionada com a saúde e a previdência”. Entretanto, além de desprezar a integração constitucional do antigo “Seguro Acidente de Trabalho” na esfera da Previdência Social (e, portanto, da Seguridade Sócia), esta assertiva somente poderia ser considerada verdadeira num contexto bastante restrito de Direito Tributário, por pressupor que as contribuições sociais não poderiam ter finalidades específicas, além do financiamento geral de toda a Seguridade Social.
Ocorre que a norma tributária não perde sua finalidade maior (Seguridade Social) quando atinge objetivos especiais dentro daquela seara (benefícios previdenciários de origem acidentária) – falha da orientação pretoriana sedimentada até então que foi bem evidenciada por Jediael Galvão Miranda:
“O fato da contribuição ao SAT também se destinar ao financiamento da aposentadoria especial não constitui desvio de finalidade nem tampouco fator que enseja a edição de lei complementar, porquanto se trata de contribuição que encontra fundamento de validade não somente no inciso XXVIII do art. 7º da Constituição Federal, mas também no inciso I do art. 195 da Constituição, nada impedindo que a lei, na hipótese, dê mais de um destino à respectiva receita, considerando o duplo aspecto de previsão constitucional”.[47]
Enfim, a mudança na jurisprudência até então pacífica do TST começou no final do ano de 2009, com a prolação de acórdãos isolados de sua 3ª turma:
“(…) RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO CONTRIBUIÇÃO SOCIAL DE TERCEIROS. SISTEMA S. SEGURO DE ACIDENTE DE TRABALHO SAT. Compete à Justiça do Trabalho a execução, de ofício, da contribuição social do empregador referente ao seguro de acidente de trabalho SAT, incidente sobre a remuneração e destinado ao financiamento da seguridade social, nos moldes dos arts. 114, VIII, e 195, I, a, e II, da Carta Política. Por outro lado, à luz da jurisprudência desta Corte, a exação da contribuição social de terceiros, de interesse das categorias profissional ou econômica (CF, art. 149), que constituem o denominada sistema S, refoge à competência material desta Justiça Especializada porquanto não se enquadra na hipótese constitucional de execução ex officio das contribuições previdenciárias stricto sensu, assim entendidas as compreendidas pelo art. 195, I, a , e II, da Constituição da República e decorrentes de condenação ou de sentença homologatória de acordo, nos termos do art. 114, VIII, da Carta Magna.[48]
2 – JUSTIÇA DO TRABALHO – COMPETÊNCIA – SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO (SAT) E CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS DEVIDAS A TERCEIROS. A competência da Justiça do Trabalho para a execução, de ofício, das contribuições sociais se limita às destinadas à seguridade social previstas no art. 195, I, -a-, e II, da Constituição Federal, não se incluindo as contribuições sociais destinadas a terceiros. Precedentes. Incidente a Súmula 333 do TST. Quanto ao Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), é competente a Justiça do Trabalho para executá-lo, de ofício. De acordo com os arts. 11 e 22 da Lei n.º 8.212/91, 201 e 202 do Decreto n.º 3048/99, a contribuição para o SAT destina-se à seguridade social, precisamente ao financiamento da aposentadoria especial e dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho. Sendo inegável que o Seguro de Acidente de Trabalho é contribuição social do empregador, que tem como destino o financiamento da seguridade social (art. 195, inciso I, -a-, da Constituição Federal), conclui-se que incide sobre a remuneração percebida pelo segurado”.[49]
Após intensa atuação da Procuradoria-Geral Federal[50], coube, por fim, à Subseção Especializada em Dissídios Individuais I do TST pacificar a questão, confirmando a prevalência da corrente mais recente sobre aquela cristalizada ao longo dos anos.
“EMBARGOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. EXECUÇÃO DE OFÍCIO DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ALCANCE DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO EM RELAÇÃO AO SEGURO ACIDENTE DE TRABALHO. Diante da origem e do objetivo da contribuição recolhida com o fim de custeio da seguridade social, a título de seguro acidente de trabalho – SAT, não há como afastar a competência da Justiça do Trabalho para execução da contribuição devida, ante o que dispõe o art. 114, VIII, da Constituição Federal, em interpretação sistemática com o que dispõe o art. 195, I, a, da mesma Carta. Enquanto a contribuição de terceiros é destinada a entidades que fomentam o ensino profissionalizante (sistema S) a contribuição devida ao SAT é destinada a financiar a aposentadoria especial e os benefícios relativos a incapacidade do trabalhador em razão dos riscos no ambiente de trabalho, a determinar que o valor devido seja objeto de execução nesta Justiça Especial. Embargos conhecidos e desprovidos.[51]
Em nossa opinião, esta decisão conforma a nomenclatura utilizada pela doutrina e jurisprudência com o arcabouço normativo que dá vida aos respectivos institutos jurídicos.
8. A competência da Justiça do Trabalho para executar o SAT e a efetividade da política tributária.
A cobrança das contribuições sociais decorrentes das sentenças trabalhistas foi introduzida pela Lei nº 7.787/1989, a qual atribuiu ao juiz do trabalho o dever de velar pelo imediato recolhimento das contribuições devidas à Previdência Social[52]. Esta sistemática foi aperfeiçoada pela Lei nº 8.620/1993, que previa o envio de notificação à autoridade tributária (na época, o INSS)[53]. No entanto, conforme assinala André Portella[54], somente com a Emenda Constitucional nº 20/1998 é que se estabeleceu a execução fiscal de ofício no âmbito da Justiça do Trabalho.
Dentre as vantagens dessa nova sistemática se destacam a simplificação do procedimento fiscal, a redução dos custos de cobrança e, sobretudo, a efetividade da arrecadação.
Para os trabalhadores, a execução fiscal de ofício auxilia na certificação de direitos previdenciários de caráter contraprestacional, seja pela exigência de recolhimento específico dos contribuintes individuais e domésticos, seja pela mitigação dos índices de informalidade, ou, ainda, pela possibilidade de compelir desde logo o empregador a cumprir suas obrigações para com a Previdência Social, em favor do empregado reclamante.
Para a sociedade, há um incremento da arrecadação das contribuições sociais, o que auxiliará na redução dos déficits da Seguridade Social;
Para a Fazenda Pública, há enorme economia equivalente à estrutura administrativa poupada.
Para o contribuinte, há a garantia de solução mais breve dos conflitos, inclusive quanto às suas repercussões fiscais, pois o percurso que vai do lançamento tributário até as instâncias recursais administrativas – e, não raras vezes, até a contestação judicial do débito perante a Justiça Federal – é substituído por uma decisão com força de coisa julgada.
Enfim, não se pode negar que a substituição de toda a fase administrativa de constituição do crédito tributário pela sentença trabalhista representou razoável acréscimo da litigiosidade incidente no processo judicial. Contudo, nos parece intuitivo que a economia de recursos humanos e materiais consistente na utilização de um mesmo processo para fins trabalhistas e fiscais imprimiu maior eficiência à administração tributária. É neste ponto que a execução fiscal de ofício realizada pela Justiça do Trabalho interessa ao presente estudo: não como modelo teórico de tributação, mas como instrumento eficiente de arrecadação.
No início deste trabalho, dissemos que a extrafiscalidade se baseia na promoção de valores que não estão imediatamente voltados para a extração do patrimônio particular pelo Estado – o que não afasta sua natureza dita fiscal. De fato, toda alteração no aparato tributário do Estado resultará num acréscimo ou redução da carga tributária e esta circunstância terá conseqüências econômicas inafastáveis, a exemplo do efeito-renda e do efeito-substituição[55].
Como caso hipotético, podemos imaginar a majoração das alíquotas do imposto de importação com o objetivo imediato de restringir o ingresso de mercadorias estrangeiras no país e proteger a indústria nacional. Em determinadas situações, a pressão por mercadorias importadas ou a deficiência do mercado interno poderá resultar num aumento tão vigoroso da arrecadação deste tributo que o Estado poderá se valer destes recursos para, de outras formas, favorecer a produção nacional. Situação oposta também poderia conduzir à queda da arrecadação de outros tributos, caso a redução dos tributos aduaneiros acarretasse uma grande oferta de produtos estrangeiros e a consequente estagnação da economia interna.
Estes exemplos no levam a pressupor que apenas um sistema ideal admitiria a utilização dos tributos para atingir efeitos econômicos e sociais totalmente previsíveis e controláveis. Por isso, não há como acreditar que um tributo tenha fins exclusivamente fiscais ou extrafiscais, nem que suas conseqüências se darão apenas numa ou noutra esfera. Nesse sentido, autores de renome como Paulo de Barros Carvalho[56] e José Cassalta Nabais[57] ressaltam a impossibilidade de isolar totalmente as funções do tributo para classificá-los.
Em verdade, toda transferência compulsória de patrimônio entre o particular e o Estado acarreta efeitos na ordem social, política e econômica, cabendo ao Poder Público zelar para que o tributo esteja alinhado com os valores constitucionais, seja para evitar tributos confiscatórios, seja para evitar políticas públicas deficientes.
Neste contexto, a eficiência na arrecadação é imprescindível à realização das finalidades ditas extrafiscais dos tributos, na medida em que seu sucesso depende da efetiva alteração da conduta dos particulares. No caso do “SAT”, se as empresas que apresentam alto grau de incidência de acidentes de trabalho, por alguma razão, conseguirem se furtar à tributação, os resultados práticos seriam o inverso do desejado, pois a carga tributária seria despejada sobre as empresas menos responsáveis pelos riscos e/ou a Previdência Social não teria condições de oferecer a todos os brasileiros a cobertura adequada.
Não é por outra razão que a informalidade na economia é apontada como uma das principais causas da regressividade e má distribuição da carga tributária brasileira[58].
Nesta ordem de idéias, considerando que o adicional para custeio do “SAT” se insere numa importante política tributária de redistribuição dos encargos da Seguridade Social, construída com base nos princípios da solidariedade e da isonomia, seu sucesso depende da eficiência da arrecadação. Aqui que se mostra a importância da virada jurisprudencial mencionada no capítulo anterior.
Em primeiro lugar, independente de quaisquer considerações a respeito da correta quantificação dos tributos devidos, é fato que a Justiça do Trabalho tem contribuído para o sensível incremento da arrecadação das contribuições sociais.
Apenas no ano de 2009, a Justiça do Trabalho arrecadou R$ 1.669.614.741,99[59] a título de contribuições sociais, sendo lícito supor que este resultado foi obtido com custos muito inferiores àqueles que seriam gastos pelo Poder Executivo no procedimento ordinário de fiscalização e cobrança. Naquele mesmo ano, foi arrecadado o montante de R$ 1.149.467.526,28[60], dentre os créditos de origem previdenciária inscritos na Dívida Ativa da União. Estes dados não podem ser tomados de forma absoluta, porém, o espanto é imediato: a Justiça do Trabalho – que sequer possui capacidade tributária ativa – tem apresentado grande desempenho na cobrança judicial de créditos tributários.
Assim, sob o prisma da eficiência arrecadatória, a execução fiscal das contribuições sociais realizada pela Justiça do Trabalho contribui de forma relevante com o financiamento da Seguridade Social. Deixamos de examinar este resultado sob o prisma da equidade, por fugir ao objeto deste trabalho o cumprimento da legislação tributária em relação ao universo de contribuintes ou à correta delimitação da base de cálculo e alíquota das contribuições. No entanto, nos parece claro que o considerável aumento da arrecadação está ligado ao recolhimento dos tributos por toda a base de sujeitos passivos.
Em segundo lugar, o dissenso entre os Poderes Executivo e Judiciário no cumprimento da legislação tributária terminava por reduzir os benefícios da execução fiscal de ofício e, por conseqüência, a consecução da finalidade social da contribuição para o SAT.
De um lado, o entendimento jurisprudencial predominante impedia que as pequenas somas relativas às contribuições “SAT”[61], individualmente consideradas, fossem executadas pelos órgãos da Justiça do Trabalho, e, de outro lado, o Ministério da Fazenda dispensaria a respectiva inscrição em dívida ativa e/ou ajuizamento da execução fiscal perante a Justiça Comum, tendo em vista os elevados custos da atividade administrativa.
Deixando de lado a eventual análise a respeito das normas que autorizam a dispensa e extinção de créditos tributários de valor diminuto, cumpre-nos somente destacar que a Portaria nº 49, de 1º de abril de 2004, do Ministro de Estado da Fazenda autoriza a não inscrição em Dívida Ativa da União de créditos de valor inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), seguindo as diretrizes do art. 65, parágrafo único, da Lei nº 7.799/1989[62], do art. 54 da Lei nº 8.212/1991[63], e do art. 20 da Lei nº 10.522/2002[64].
No entanto, é certo que a execução da parcela relativa à contribuições para o SAT, juntamente com as demais contribuições sociais devidas pela empresa e pelo trabalhador, praticamente não implicaria aumento nos custos da cobrança judicial, visto que todos os atos judiciais já seriam inevitavelmente praticados.
Desta forma, negar a competência da Justiça Especializada para execução da contribuição ao SAT representava grave risco à suas finalidades sociais, tendo em vista que, na prática, o aspecto econômico tornaria sua cobrança inviável.
Obviamente, o caso concreto revela um descompasso na interpretação da legislação tributária, causado pela má identificação de institutos jurídicos e possível confusão decorrente do emprego corriqueiro de termos “não científicos” pelos operadores do Direito. Contudo, esta situação serve para confirmar que a formulação de uma política tributária não pode prescindir da análise de seus efeitos na arrecadação dos recursos públicos e na efetiva necessidade de custeio das atividades estatais, bem como no comportamento esperado dos contribuintes, especialmente quando a intervenção estatal visa resultados paralelos ao impacto econômico. Da mesma forma, a condução da política fiscal não pode prescindir de uma adequada estrutura arrecadatória, pois somente a eficiência na sua execução poderá garantir o sucesso das políticas sociais contidas na tributação.
9. Conclusão.
Utilizando o exemplo do “Seguro Acidente de Trabalho”, este breve estudo tentou demonstrar que a tributação pode (e deve) ser utilizada como instrumento de concretização dos direitos sociais, visto que a moderna concepção de tributo contem em si o gérmen do Welfare State e é dirigida pelos princípios e valores consagrados na Constituição. No entanto, a eficácia destas políticas de ordem “fiscal” e social depende da correta interpretação da legislação tributária.
Em relação à contribuição para custeio do SAT, esperamos ter esclarecido sua origem no ordenamento brasileiro, seu assento constitucional e legal e, sobretudo, sua importância educativa (estímulo ao incremento da segurança no trabalho e à melhora dos índices de infortunística laboral), equitativa (distribuição de parte dos custos financeiros entre os principais causadores dos riscos) e financeira (custeio da Seguridade Social, em especial, dos benefícios previdenciários relacionados com os acidentes de trabalho).
Vale ressalta que, a comunidade científica possui um papel relevante no processo de concretização da norma, na medida em que a construção de um senso comum teórico deve estar harmonizada com o verdadeiro conteúdo normativo, evitando-se que expressões usuais ocasionem confusões terminológicas ou mesmo equívocos de ordem lógica a respeito dos institutos jurídicos.
Nesse cenário, as recentes decisões da Subseção Especializada I em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho acerca da natureza jurídica do SAT e da competência da Justiça do Trabalho para sua execução ex offício marcam um importante momento para concretização da política de redução dos acidentes de trabalho preconizada por meio da tributação.
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