Resumo. A presente pesquisa trata da possibilidade jurídica de se alterar a maioridade penal para 16 anos, mediante emenda ao art. 228 CF/88, sem adentrar no mérito de sua eficácia na prevenção e repressão à criminalidade. Para tanto, expõe questões constitucionais pertinentes às cláusulas pétreas, explora a natureza dos direitos e garantias fundamentais individuais, e apresenta noções sobre política criminal. Por fim, em síntese de toda a matéria estudada, deduz não ser o citado dispositivo uma cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV CF/88, por se tratar de norma de política criminal.
Palavras-chave: maioridade penal, redução, política criminal
Sumário. 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. Abordagem Constitucional. 2.2. Direitos e Garantias Fundamentais. 2.3. Política Criminal. 2.3.1. Nova Defesa Social. 2.3.2. Movimentos de Lei e Ordem. 2.3.3. Política Criminal Alternativa. 2.4. A Natureza da Inimputabilidade do Menor de 18 Anos. 3. Considerações Finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, se tem discutido sobre a redução da maioridade penal de 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos. E, entre os diversos pontos que se têm analisado sobre tal tema, encontra-se a discussão acerca da natureza jurídica de cláusula pétrea ou não do art. 228 da Constituição Federal de 88 (CF/88), o que poderia impossibilitar tal alteração, em face ao disposto no art. 60, § 4º, IV da Carta Suprema.
A questão que se formula, então, é se de fato a natureza jurídica do citado dispositivo constitucional seria a mesma das normas insculpidas no art. 5º da CF/88, que possuem o cunho de garantia individual fundamental; ou se se trata apenas de uma regra de política criminal, adaptável com o evoluir da sociedade, sem a cristalização do art. 60, § 4º, IV da CF/88, o qual imporia a necessidade de uma nova Constituição Federal para que fosse feita esta mudança, sob pena de ser ferido o Princípio do Devido Processo Legal, tornando tal mudança inconstitucional.
Assim, a presente pesquisa visa identificar a natureza jurídica do art. 228 da CF/88, a fim de se esclarecer definitivamente se, na Ordem Jurídica nacional, há a possibilidade de ocorrer redução da maioridade penal para 16 (dezesseis) anos. Neste processo, se traçará o que são materialmente as garantias individuais e o que é a política criminal.
Isto posto, contemporaneamente, tem sido observada uma progressão da violência contra a vida cometida por menores, causando uma forte pressão midiática e social pela punição penal de tais indivíduos. Neste sentido, é de suma relevância a análise acerca da possibilidade ou não da redução da maioridade penal, como pré-requisito à discussão sobre sua eficácia no combate à violência.
Por fim, o presente estudo, quanto aos objetivos, será de natureza exploratória, por ser estudo preliminar para proporcionar familiaridade com o problema. E também explicativa, visando elucidar os elementos e principais pontos sobre a matéria. Quando ao método, é uma pesquisa bibliográfica, pois incide sobre as produções acadêmicas (Doutrina) e Jurisprudenciais acerca das características essenciais das cláusulas pétreas em sentido material, bem como das questões pertinentes à política criminal, sua natureza e conceito.[1]
2 – DESENVOLVIMENTO
2.1 – ABORDAGEM CONSTITUCIONAL
Os Direitos Fundamentais são o conjunto de direitos e liberdades assegurados a todos os membros da família humana, consistente no reconhecimento a favor dos indivíduos do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, entre outros, todos com fundamento na própria natureza humana.
Sua primeira e mais importante institucionalização deu-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948. Apesar de não se tratar de um Tratado Internacional, constitui-se como uma orientação a ser seguida pelas nações vinculadas à organização. E, de fato, todas as suas disposições já estão previstas na atual Constituição Federal.
Tais direitos acham-se inclusos e positivados, na CF/88, em seus arts. 5º ao 17 – Direitos e Garantias Individuais, Sociais e Coletivos, Nacionalidade, Direitos Políticos e Partidos Políticos. Mas também se encontram espalhados em seu texto, sempre que neles se encontrem referências a direitos que digam respeito à própria dignidade do ser humano. Possuem cunho inalienável, devido à sua condição essencial à possibilidade de pleno desenvolvimento da personalidade humana em todos os níveis.
Entre estes direitos, é assegurada aos previstos no art. 5º da CF/88 a garantia de não supressão dos mesmos, por força do art. 60, § 4º da CF/88. Contudo, o texto legal não faz expressa referência ao art. 5º. Ele dispõe, tão-somente, no inciso IV, que é absolutamente vedada a deliberação a proposta de emenda que tenha como objeto a abolição dos direitos e garantias individuais.
Quer isto dizer que, por exemplo, caso surja um forte movimento pela da pena de morte em tempos de paz, como consequência de uma nova campanha midiática contra a violência, tal posicionamento social não poderá chegar a ser implementado pelo Poder Legislativo. Isto por que o art. 5º, XLVII, ‘a’ CF/88 veda expressamente as penas de morte. Logo, por força do art. 60, § 4º, IV CF/88, é juridicamente impossível a instauração de tal espécie de sanção penal na República Federativa do Brasil.
Se, mesmo assim, houver uma tentativa de imposição da pena de morte fora do caso de guerra declarada, será cabível a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, ‘a’ CF/88, cuja legitimidade ativa está disciplinada no art. 103 CF/88.
Tal medida judicial é um dos meios de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Suas características principais são a posterioridade à entrada em vigor do diploma legislativo (controle repressivo), a análise independente de qualquer caso concreto (abstração), a cognição plena por parte dos Ministros (desvinculação à causa de pedir), com eficácia ex nunc (retroativa à data da publicação da lei), erga omnes (alcança a todos), vinculante e de efeitos repristinatórios (a lei anterior revogada retorna à vigência).
Cumpre ressaltar a possibilidade de alteração dos efeitos da Ação Direta de Inconstitucionalidade. É a chamada Modulação de Efeitos, que pode ser feita mediante manifestação expressa e fundamentada da maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Assim, a garantia de que o art. 60 será observado integralmente, não somente quanto às cláusulas pétreas, mas também quanto ao procedimento legislativo, se dá através do controle judicial de constitucionalidade. Contudo, ressalve-se, este não é o único meio. No caso das emendas, também existe o controle político preventivo, exercido pelas Comissões de Constitucionalidade e Justiça, bem como o direito líquido e certo dos parlamentares ao Devido Processo Legislativo, defensável por meio de mandado de segurança no curso das deliberações (art. 5º, LLXIX CF/88).
Porém, as limitações ocorrem apenas no sentido da supressão ou redução dos direitos fundamentais. Isto quer dizer que alterações com vistas à ampliação de tais direitos estão de acordo com a ordem constitucional. Assim, por exemplo, poder-se-á alterar o art. 5º, LXVII CF/88 para dele retirar a possibilidade de prisão civil pelo depositário infiel.
À competência para a produção de Emendas Constitucionais dá-se o nome de Poder Constituinte Derivado. A denominação advém do fato de estar vinculado e limitado pelo Poder Constituinte Originário, único com as qualidades de absoluto e irrestrito, responsável pela confecção da própria Constituição. Deste, literalmente deriva aquele, através do art. 60 da CF/88, e, por isso, possui as delimitações impostas pelo dispositivo constitucional.
Além dos limites expressos ao Poder Constituinte Derivado, existem igualmente as restrições implícitas. Referem-se ao próprio art. 60, § 4º da CF/88, cuja alteração não é permitida, pois se trataria de um meio escuso para se suprimir as cláusulas pétreas e, posteriormente, reformar a Constituição no que o Poder Constituinte Originário não permitiu. Convém se ressaltar que a competência do Poder Legislativo para a confecção de Emendas Constitucionais igualmente não pode ser alterada, como limitação implícita.
É importante observar que pela redação da norma, face ao texto constitucional, não há restrição ao mencionado dispositivo no sentido de se delimitar ao Capítulo I do Título II da Carta Maior, o qual trata apenas dos Direitos e Garantias Fundamentais Individuais. Pelo contrário, conforme o Supremo Tribunal Federal, em diversas decisões, tais direitos e garantias acham-se espalhados no texto da Constituição Federal.
Entre as decisões neste sentido, cite-se a emitida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.666, Rel. Min. Ellen Gracie, julgada em 03/10/02 e publicada no Diário de Justiça em 06/12/02. Nesta ocasião, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de que é proibida a deliberação de emenda constitucional que se destine a suprimir do texto constitucional o § 6º do art. 195, ou que exclua a incidência desse dispositivo a uma hipótese em que, pela vontade do constituinte originário, devesse ele ser aplicado.
Ou seja, há o reconhecimento expresso pelo Judiciário, através do órgão encarregado pela guarda da Constituição, de um dispositivo fora do art. 5º da CF/88.
Ultrapassada a análise acerca do Poder Constituinte Derivado e das limitações expressas e implícitas ao seu exercício, bem como da forma de controle sobre as Emendas Constitucionais, cumpre agora adentrar superficialmente no tema dos Direitos Fundamentais. Trata-se, neste momento, de análise constitucional, pois eles estão enunciados na Constituição Federal, além de emanarem dos princípios e regimes adotados pela mesma, bem como de tratados internacionais firmados pelo Brasil (art. 5º, § 2º CF/88).
É fato de que a evolução e o estabelecimento dos Direitos Humanos se deram de forma histórica, o que é uma de suas características. Inclusive, classificam-se em gerações. A primeira geração surge como um dever de abstenção do Estado na esfera do indivíduo, em respeitar sua liberdade, e será estudada detalhadamente no próximo tópico.
A segunda geração se caracteriza como um atuar positivo do Estado. Tais direitos consubstanciam os direitos sociais, que são o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a educação, a assistência aos desamparados e a proteção à maternidade e à infância (arts. 6º ao 11 CF/88). São os que buscam assegurar a igualdade.
Já a terceira geração, que também impõe uma atuação positiva do Estado, é aquela que traz os direitos coletivos. Estes, desvinculados de um grupo social específico, têm como titular toda a coletividade. São citados mais comumente os direitos ao meio ambiente equilibrado e saudável, à qualidade de vida, à paz, à autodeterminação dos povos, à defesa do consumidor, da criança e do idoso. Seu foco está na solidariedade ou fraternidade que deve reger as relações humanas. Acham-se espalhados no texto constitucional.
Por fim, a quarta geração são os direitos das minorias, decorrentes da evolução da sociedade e da globalização. O presente trabalho não se vincula a este conceito, que aqui é citado apenas por ser adotado por expressiva parcela da Doutrina constitucionalista. Lidam com assuntos relacionadas à informática, biociência, clonagem, eutanásia, células tronco; e os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.
Há ainda parte da doutrina que faz referência a uma quinta geração, que seria o direito à paz. Contudo, na verdade, está vinculado à terceira geração dos Direitos Fundamentais, como exposto acima.
Além dos supracitados, também prevê a Constituição Federal de 1988 o direito à nacionalidade, em seu art. 12. De fato, trata-se de um Direito Fundamental por encerrar proteção indispensável à dignidade humana, uma vez que o apátrida não possui o direito a nenhuma espécie de proteção de Estado algum.
Também constam os Direitos Políticos, nos arts. 14 a 16, pois a participação direta ou indireta no governo de seu país é igualmente inalienável da condição humana, para que esta seja digna. Não sendo assim, estará o indivíduo submetido ao poder de forma ultrajante, sendo compelido à rebelião e à revolta como forma de reaver sua liberdade e a observância de seus direitos.
Como se pode observar, os Direitos Fundamentais, de certa forma, constituem um retorno à ideia do Direito Natural, pois se vinculam à própria natureza humana (arts. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Quer isto dizer que tais normas emanam não da vontade do legislador, mas da própria natureza das coisas, das quais não podem se separar.
Contudo, sua efetiva imperatividade depende de previsão expressa ou implícita, de forma que, na atualidade, estão incorporados pelo Direito Positivo. Isto é salutar, porque supera discussões desnecessárias à sua aplicação pelos tribunais.
Por fim, em face ao exposto e diante do art. 228 CF/88, objeto do presente estudo, deve-se fazer a seguinte indagação: seria a inimputabilidade penal aos menores de 18 (dezoito) anos mera medida de política criminal ou se caracterizaria como um direito ou garantia inerente a todo ser humano em todo local e em qualquer sociedade?
Se a resposta for pela primeira opção, ter-se-á a impossibilidade do Poder Legislativo Derivado reduzir a maioridade penal, sob pena de se atacar tal alteração através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, por ofensa ao art. 60, § 4º, IV CF/88. É necessária, pois, uma análise aprofundada acerca da natureza jurídica do disposto no art. 228 CF/88.
2.2 – DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS INDIVIDUAIS
É de suma importância para o objetivo deste estudo, o detalhamento acerca dos direitos e garantias fundamentais de primeira geração. Estes, que são objeto da impossibilidade absoluta de supressão prevista no art. 60, § 4º, IV CF/88, devem ser analisados para que se chegue a uma conclusão acerca de sua natureza. Assim, com alguma margem de segurança, será possível afirmar quais normas constitucionais pertencem a esta classe, malgrado estarem fora do art. 5º da CF/88.
Tendo em vista sua finalidade, que é precipuamente assegurar a liberdade, tais espécies de direitos cumprem duas funções na defesa do ser humano. A primeira, é que estabelecem vedações ao Estado, o qual deve abster-se de determinados atos que possam afetar injustificadamente o âmbito individual. Nas palavras de Canotilho: “constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual”.[2]
Já a segunda função diz respeito diretamente ao indivíduo. Se, por um lado, o Estado tem dever de abstenção; por outro, o indivíduo tem direito de ação, em sentido amplo. Trata-se de sua liberdade de exercer os direitos individuais e de fazê-los cumprir através das garantias constitucionais. Neste sentido, dispõe Canotilho que tais direitos implicam, num plano jurídico-subjetivo, “o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade-positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”.[3]
Tais direitos também são denominados, por conta de sua finalidade e funções, de Direitos e Garantias Individuais e Políticos Clássicos (liberdades públicas), designação vinculada ao seu marco inicial, no ano de 1215, através da Magna Charta.
Este documento histórico, cujo nome completo é Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae,[4] foi o primeiro documento a restringir o poder do monarca a partir da Baixa Idade Média. Sua assinatura deu-se na Inglaterra, pelo Rei João Sem-Terra, como consequência de seus conflitos com os barões ingleses.
O art. 39, uma de suas cláusulas mais importantes, impõe a necessidade de um julgamento legal dos seus pares, ou pela lei, a fim de que qualquer pessoa seja presa, aprisionada, privada de sua propriedade, tornada fora da lei, exilada, ou destruída, ou para que se aja ou se envie alguém contra ela. Noutras palavras, passou-se a impor ao rei o julgamento dos indivíduos conforme a legislação em vigor, de acordo com o devido processo legal, e não segundo seu mero arbítrio, como era feito até então.
Destaque-se que todo esse dispositivo se resume, na constituição pátria, em seu art. 5º, incisos LIII a LV. Dispõem eles, sucessivamente, que todos devem ser julgados pela autoridade competente; que somente se poderá privar alguém de seus bens e liberdade mediante o devido processo legal; e que o contraditório e ampla defesa são assegurados a todos, seja num processo judicial, seja num procedimento administrativo.[5]
Outros dois documentos históricos de grande relevância advieram das revoluções francesa e americana. Conforme Carl Schmitt, os direitos fundamentais tiveram seu nascimento, propriamente, no século XVIII, a partir das declarações formuladas pelos Estados americanos.[6] Em linhas gerais, afirma ele que se deu com o início do moderno Estado de Direito Liberal-burguês, o começo da era da democracia, em suas palavras.
Neste ponto, insta salientar que, do ponto de vista ontológico e histórico, ou seja, de sua essência e proveniência, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. A diferença situa-se no fato de que aqueles se encontram positivados, com força para produzirem efeitos na ordem jurídica, enquanto estes estão na ordem moral.
E o primeiro documento que concretizou tais direitos foi resultado da revolução francesa de 1789. Nesta, foram proclamados de forma inequívoca os direitos à liberdade, à igualdade e à propriedade, bem como as garantias individuais liberais, de forma inequívoca e bem delineada.
Como se pode depreender, a historicidade dos direitos fundamentais é uma de suas características. Particularmente os de primeira geração surgiram em momentos da história na qual a nobreza (Magna Charta) ou a burguesia (Declaração dos Direitos Humanos e Bill of Rights) tiveram condições de impor ao Estado um dever de abstenção. Tiveram nascimento de condições políticas e sociais específicas, e sobressaíram como resultado de conflitos, no qual os monarcas foram derrotados.
Contudo, também possuem outras características. São suas principais: relatividade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, indivisibilidade, abertura, aplicabilidade imediata e universalidade. Acerca desta última, é facilmente perceptível através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por que emanada pela Organização das Nações Unidas (ONU), ente de direito público internacional que reúne quase todos os Estados do mundo, com 192 membros, atualmente.
A relatividade ou possibilidade de limitação encontra-se no fato de que nenhum direito é absoluto, sequer a vida. Muitas vezes, não raramente, há conflitos entre direitos fundamentais. Um dos exemplos mais proeminentes se dá entre o direito à vida e à inviolabilidade de crença e consciência (art. 5º, caput e VI CF/88, respectivamente), no caso dos adeptos da religião Testemunha de Jeová, que se negam a receber transfusão de sangue, mesmo perante a morte certa.
A solução para tais conflitos dá-se, primeiramente, pela verificação de alguma ressalva legal. Existem previsões expressas de limitação a direitos fundamentais, como é o caso da possibilidade de invasão de domicílio na hipótese de flagrante delito, independentemente da vontade do morador (art. 5º, XI CF/88), ou da vedação ao habeas corpus contra o mérito das punições disciplinares militares (art. 142, § 2º CF/88).
Entretanto, caso não exista tal ressalva, será preciso então se realizar a denominada ponderação de princípios. Em linhas gerais, o juiz aplicador deverá sopesar, no caso concreto, qual direito melhor efetiva a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III CF/88), considerada sobreprincípio, uma vez que todos os direitos fundamentais orientam-se a realizá-la.[7]
No exemplo citado, acerca da negativa pela transfusão de sangue, tem-se, de um lado, a irrenunciabilidade do direito à vida e, de outro, a inviolabilidade da liberdade de crença. A questão é controversa, porque uma decisão permite que a pessoa morra enquanto outra a torna um morto-vivo, seja interno, seja no seu meio social de mesmos valores. Em tais casos, a importância da fundamentação da decisão transpassa a mera possibilidade de se recorrer e se situa como meio de legitimação da escolha feita pelo magistrado posto em situação não prevista pela lei.
A característica de irrenunciabilidade se encontra explicitada no art. 11 do Código Civil de 2002 (CC). Trata-se da vedação a que o indivíduo abra mão de tais direitos. Neste sentido, para exemplificar, não há liberdade para lesão corporal consentida; o que está em consonância com o art. 13 CC, o qual veda a disposição do próprio corpo que reduza a integridade do mesmo ou vá contra a moral, exceto em casos médicos. Mesmo se uma pessoa der expressa e livre permissão por escrito para alguém amputar-lhe um membro, quem o fizer incidirá nas penas do art. 129, § 2º do Código Penal, se imputável.
Esta característica, muitas vezes, é criticável por retirar a liberdade do ser humano agir livremente perante si mesmo sem causar prejuízos a terceiros. Contudo, sua função protetora é maior do que este defeito, uma vez que impede meios escusos de se retirar de alguém a sua dignidade humana. Por fim, deve-se ressaltar que irrenunciável é o direito, não seu exercício.
Acerca da imprescritibilidade, como o próprio termo expõe, o exercício e defesa dos direitos fundamentais através do Poder Judiciário não se esvai com o decorrer do tempo. A qualquer momento, em qualquer época, a pessoa poderá entrar com uma ação para assegurar a observância de tais direitos.
Quanto à indivisibilidade, significa que tais direitos estão interligados e são interdependentes. Isto quer dizer que não é possível a existência de um sem o outro, de forma digna ao ser humano. É fácil se vislumbrar a correção desta característica, ao se pensar no direito à vida sem liberdade ou sem segurança.
Evidentemente, deve-se lembrar da relatividade dos direitos fundamentais. Assim, por expressa ressalva legal, é cabível a restrição ou privação da liberdade aos que cometem crimes (art. 5º, XLVI CF/88) e em certas dívidas civis (art. 5º, LVII CF/88). Contudo, isto não retira de tais direitos a indivisibilidade, porque as limitações aos direitos fundamentais se dão como medida excepcional, e não como regra.
Pela abertura entende-se que não há somente direitos fundamentais expressos, mas também existem os tácitos. Neste sentido, é clara e inequívoca a redação do art. 5º, § 2º da CF/88. Mas, segundo Manoel Gonçalves, “a doutrina brasileira não tem, em geral, procurado identificar os elementos que justificariam o reconhecimento de novos direitos”.[8]
O autor aponta que a jurisprudência do STF sugere uma concepção material dos direitos fundamentais, e cita a ADI nº 939/DF, da relatoria do Min. Sydney Sanches, decidida em 15/11/1995. Nesta ocasião, o tribunal declarou como cláusulas pétreas, com incidência do art. 60, § 4º, I e IV CF/88, o disposto nos arts. 150, III, ‘a’ e ‘b’, e VI CF/88: o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte; o princípio da imunidade tributária recíproca, que veda aos Entes a instituição de impostos uns dos outros, o que é garantia da Federação; e as imunidades tributárias religiosa, política/educacional e cultural.
Por fim, sua última característica é a aplicabilidade imediata, prevista no art. 5º, § 1º CF/88. A exceção se encontra nas normas constitucionais de eficácia limitada, cujo exercício depende de norma infraconstitucional disciplinando o assunto, tal qual se deu com o Código de Defesa do Consumidor em relação ao art. 5º, XXXII CF/88.
2.3 – POLÍTICA CRIMINAL
Antes de se falar acerca da política criminal, é necessário se adentrar na própria criminologia, aqui entendida como um ramo da sociologia, e não como um campo autônomo de conhecimento. Nas palavras críticas de Roberto Lyra, ou “a criminologia é ciência social, ou não é ciência. Ciência social filiada à Sociologia e não outra ciência social solta, desorientada, inoperante para figurar na enciclopédia sociológica”.[9]
A partir desta noção, já se compreende a criminologia como estudo destacado do Direito. Neste sentido, Sérgio Salomão Shecaira, ao tratar de seu objeto, diz que a criminologia “ocupa-se estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle social do delito e, para tanto, lança mão de um objeto empírico e interdisciplinar”.[10] Assim, difere-se do Direito Penal, ciência jurídica embasada em critérios axiomáticos que estabelece valores, ordena e orienta a realidade; uma vez que a criminologia se direciona tão-somente a conhecê-la e explicá-la.
Noutras palavras, a criminologia se aproxima do delito para vê-lo em sua essência, estudar a razão de seu surgimento no indivíduo e na sociedade que o cerca, suas consequências, e o faz de forma direta, interessada em compreender o problema criminal e vir a transformá-lo. Já o direito penal se restringe ao crime como ação ou omissão descrita na norma, em busca da subsunção do fato à norma, segundo a teoria formal do delito: tipicidade (arts. 13, 14, 17 a 22 do Código Penal), antijuridicidade (arts. 23 a 25 do Código Penal) e culpabilidade (arts. 26 a 28 do Código Penal).[11]
A doutrina apresenta divergências sobre sua natureza científica, contudo, é certo que apresenta método empírico de análise e observação da realidade, sendo prevalente a posição aqui adotada. Mas, evidentemente, a criminologia é uma ciência humana, uma ciência do ser, e não uma ciência exata.
Quanto ao conceito de criminologia, prevalece o proposto por Antonio García-Pablos de Molina: ciência empírica interdisciplinar que visa o estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, a fim de fornecer uma informação válida e bem examinada sobre a origem, evolução e principais variáveis do crime considerado como problema individual e social, assim como sobre os meios de sua efetiva prevenção e técnicas de intervenção positiva no delinquente.[12]
Um pouco diverso é o conceito proposto por Roberto Lyra, que a define por três vertentes. Para o doutrinador, ela se caracteriza como a ciência que estuda: a) as causas da criminalidade e da periculosidade preparatória desta; b) as expressões e as consequências de ambas; e c) a política a opor a tais a fenômenos.[13]
Para se fazer uma ponte com a política criminal, é interessante destacar outra afirmação feita por Roberto Lyra. Segundo o exposto pelo autor, a criminologia deve orientar a Política Criminal: “a) na prevenção especial e direta dos crimes socialmente relevantes; b) na intervenção relativa às suas manifestações e aos seus efeitos graves para determinados indivíduos e famílias”.[14]
Inicialmente, acerca da política criminal, deve-se ressaltar que não se trata de ciência, como a criminologia e o direito penal. É uma disciplina sem método próprio, disseminada pelos diversos Poderes de todos os Entes da Federação. Assim, o legislador pode agravar as penas de uma determinada conduta, de um lado, enquanto o governador pode aumentar o efetivo policial em uma região com grande ocorrência de delitos, de outro. Em ambos os casos, se trabalha na prevenção e na repressão da conduta delitiva.
Desta forma, a amplitude da política criminal é enorme. Infere-se da leitura da doutrina que toda conduta pública cuja fundamentação é se evitar ou se reprimir de forma mais eficaz um delito faz parte da política criminal: a criação de órgãos públicos como uma Secretaria de Segurança, o aumento da iluminação durante a noite, o mapeamento da criminalidade, a possibilidade ou não de progressão de regime nos crimes hediondos, as decisões judiciais embasadas nos princípios da insignificância ou da adequação social,[15] o toque de recolher aos menores de 18 anos, etc.
A política criminal deveria ser, pois, resultado prático da criminologia. A partir do estudo de todos os elementos que envolvam o crime, cabe ao Estado adotar as medidas necessárias à sua redução e prevenção. Na prática, não é assim que se dá. O maior exemplo de tal falha está no Movimento pela Lei e pela Ordem, muitas vezes adotado pelo legislador, apesar da comprovação científica da ineficácia do agravamento das penas no combate à criminalidade.
Um primeiro conceito de política criminal o define como conjunto de “princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação”.[16] Surgem da ininterrupta mudança social com resultados que tragam novas ou antigas propostas ao direito penal, das revelações empíricas possibilitadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia.
Nas palavras de Zaffaroni, se conceitua como “a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”.[17]
Por fim, pode-se citar também a visão de Rocha, pela qual a política criminal estabelece o encargo, os conteúdos e o alcance dos institutos jurídico-penais, bem como a aplicação prática do direito penal. Para o doutrinador, “são as opções da política criminal que decidem sobre a incriminação ou não de determinadas condutas, considerando-se a vantagem social da qualificação, bem como quem deve ser responsabilizado”.[18]
Contudo, as três definições acima apresentadas possuem enfoque na função legislativa, a qual não esgota as possibilidades da política criminal, como visto. Apesar de ser o viés conceitual predominante, não se demonstra como o mais completo.
Assim, a fim de englobar toda sua amplitude, pode-se afirmar que a política criminal é uma ferramenta utilizada pelos três Poderes da República a fim de (1) orientar os atos públicos em sentido lato destinados à redução, prevenção ou repressão das condutas penalmente típicas, (2) estabelecer os pressupostos para a aplicação das penas face à relevância da conduta e às condições pessoais do agente, bem como (3) quais ações e omissões devem ser tipificados, e (4) qual o tratamento a ser dispensado ao delinquente.
No enfoque histórico, o surgimento da política criminal deu-se na Itália, na segunda metade do século XVIII, com o livro Dos Delitos e das Penas, de Cesare Becharia (1738-1794). Nesta obra, com ideias à frente de seu tempo, o autor deduz princípios que hoje são basilares no direito penal. Segundo Iuri Teixeira Brito, em detalhado artigo sobre política criminal, “o questionamento de Beccaria projeta a teoria do direito penal da estrutura meramente descritiva e submissa às funções declarativas da lei penal (perspectiva de lege lata) à busca de soluções para o problema da criminalidade (perspectiva lege ferenda)”.[19]
Entre os argumentos apresentados por Becharia em sua obra, mostra-se a comprovação da ineficácia do uso da tortura na busca pelo infrator. Afirma que uma pessoa sem grande tolerância à dor logo irá confessar atos que não tenha cometido; ao passo que alguém com grande resistência às sevícias graves, mesmo se responsável pelo delito, sairá como inocente. E, de fato, por pior que sejam as aflições impostas, existe sempre aquele capaz de suportar tais sofrimentos sem ceder.
Por fim, cumpre adentrar nas três grandes correntes da política criminal. São elas: a nova defesa social, os movimentos de lei e de ordem, e a política criminal alternativa.
2.3.1 – NOVA DEFESA SOCIAL
A primeira posição, surgida em 1945 com o nome de defesa social, foi rebatizada em 1954 para nova defesa social, face à publicação do livro de Marc Ancel, La Défense Sociale Nouvelle, considerado por Roberto Lyra a bíblia deste movimento.[20]
Segundo o autor, são três suas principais características: 1ª) trata-se de um movimento, não de um corpo de doutrina consolidado, e possui caráter multidisciplinar, abrigando as mais diversas posições; 2ª) possui mutabilidade, pois suas concepções variam com o tempo de acordo com as mudanças na sociedade, uma vez que se constitui como movimento prático com a finalidade de reformar as instituições jurídico-penais e a própria estrutura social, de forma que, por isso, não especula nem busca se cristalizar em abstrações; e 3ª) apresenta universalidade, consequente de sua postura crítica, multidisciplinar e pluridimensional do crime, a qual ultrapassa as particularidades das legislações nacionais.
Seus postulados são igualmente três: 1º) examinar criticamente as instituições vigentes, de forma permanente, para humanizar e aprimorar a atividade punitiva, bem como renovar ou até suprimir tais instituições; 2º) postura multidisciplinar que se ligue a todos os campos do conhecimento aptos a contribuir para uma completa visualização do fenômeno criminal, uma vez que a simples política penal não é a melhor arma contra o crime; 3º) como resultado das outras duas premissas, tem-se a arquitetura de um sistema de política criminal que garanta os direitos humanos e impulsione os valores essenciais da humanidade.
Procura um tratamento bifrontal: para os delitos de menor monta, propõe a descriminalização; já para os delitos estatais, os que afetem à economia e aos direitos difusos, sugerem a via oposta, mas sem recair no terrorismo estatal. Repudiam a pena de morte e o uso indiscriminado das medidas cautelares privativas de liberdade. Reconhecem o fracasso da ideologia do tratamento, de forma a assegurar ao delinquente a vontade de querer continuar a sê-lo; contudo, com a colocação à sua disposição de condições para que, voluntariamente, não volte a delinquir. É, pois um caminho moderado para as reformas penais, embasado em fundamentos científicos, de maneira a dar ao direito penal aspecto preventivo e protetor da dignidade humana.[21]
2.3.2 – MOVIMENTOS DE LEI E ORDEM
A segunda posição, que reúne os movimentos de lei e ordem, é uma reação ao fenômeno da criminalidade orientada em direção oposta à nova defesa social. Basicamente, segundo esta visão, o agravamento das penas seria condição suficiente para a prevenção e repressão dos delitos. Não há, neste movimento, qualquer base científica ou estatística de sua eficácia.
É um retorno ao antigo modelo punitivo-retributivo, com um novo nome.[22] Seus defensores crêem que a escalada da criminalidade se dá como consequência de um tratamento benigno dado aos delinquentes. Tal posição ignora outras variáveis na realidade humana, como o aumento da ideologia do consumo para uma população cada vez mais excluída, a eliminação do Estado de Bem-Estar Social a partir da derrubada do muro de Berlim que causou o agravamento do abandono da população sem condições econômicas, o êxodo rural com grandes aglomerações urbanas sem perspectivas nem oportunidades a partir das políticas econômicas focadas em latifúndios em detrimento da economia local, etc.
Normalmente, tais ideias surgem a partir da mídia, em apoio a governos autoritários ou de forma espontânea, em séria e grave irresponsabilidade social. Jornalistas se colocam como conhecedores da realidade, malgrado falarem sobre tudo sem nada saberem com profundidade. A propaganda repetida, massante, espetacular e exagerada da violência cria, mormente naqueles cuja reflexão é limitada por se informarem exclusivamente através dos grandes meios de comunicação, sejam doutores ou analfabetos, o terror capaz de justificar um direito penal quase sanguinário.
Neste movimento, se inclui o objeto do presente estudo: a redução da maioridade penal, alardeada independentemente de se saber de sua eficácia.
De acordo com este movimento, a política criminal deve se reger por cinco postulados: 1º) o castigo e a retribuição justificam a pena; 2º) punições severas e duradouras aos crimes atrozes; 3º) cumprimento de pena em estabelecimentos de segurança máxima, em regime fechado e severo; 4º) aumento da incidência da prisão provisória, a fim de se aumentar a resposta imediata ao delito; 5º) redução da individualização da pena pelo magistrado e ínfimo controle judicial da execução, que deve ser da competência quase exclusiva da autoridade penitenciária.
Nesta última característica reside sua postura mais autoritária e inumana. Seria um favor às ditaduras que assim fosse feito, porque o condenado praticamente deixaria de ser um sujeito de direitos, restrito apenas em sua liberdade, para se tornar objeto da autoridade executora, uma vez que não haveria controle sobre a legalidade dos atos desta.[23]
2.3.3 – POLÍTICA CRIMINAL ALTERNATIVA
Por fim, surge a política criminal alternativa, que também se caracteriza como uma frente ampla, tal qual a nova defesa social. Ela se originou com o movimento estudantil de 1968, opositor à sucumbência universitária ao neocapitalismo, tendo sua denominação derivada da obra coletiva de Taylor, Walton e Young, The New Criminology, de 1973.
Interessante notar que este movimento parte da ideia das sociedades de classes, de forma a defender que o sistema punitivo se organiza ideologicamente para proteger interesses inerentes às classes dominantes, mantendo mansa a classe trabalhadora. O direito penal funciona para assegurar a dominação e poder. Neste ponto, destaca-se sua fragmentariedade, a qual pune severamente condutas típicas de marginalizados e deixa praticamente impunes comportamentos gravíssimos e muito mais prejudiciais socialmente.
Como evidente exemplo, encontra-se a possibilidade de o pagamento a qualquer tempo de tributo suprimido,[24] crime típico da classe hegemônica, gerar a extinção da punibilidade (art. 69 da Lei 11.941/09). Mas, nos demais delitos, em regra, a composição do dano constitui simples causa de diminuição de pena (arts. 15 e 16 do Código Penal), mesmo que exclusivamente patrimonial o objeto tutelado e sem ofensa à pessoa.
Diante de tais dados, são cinco os postulados desta frente da política criminal: 1º) a gradual descriminalização, despenalização e desjudicialização, com vistas à abolição da pena privativa de liberdade, por ser um meio inútil de integração social do condenado, com a mera função de estigmatizá-lo; 2º) dupla orientação, segundo a classe de que provenha o crime, proletária e dominante; 3º) efetivação de um processo de socialização alternativo, para transferir do Estado à sociedade o controle das condutas desviantes leves, através da descriminalização, despenalização e desjudicialização; 4º) criminalização de condutas danosas ou que ameacem aos interesses fundamentais das maiorias; 5º) densa propaganda, com objetivo de denunciar as desigualdades do sistema vigente, bem como de obter o apoio popular aos métodos e à ideologia da política criminal alternativa.
2.4 – A NATUREZA DA INIMPUTABILIDADE DO MENOR DE 18 ANOS
Diante de tudo quanto foi exposto, resta agora responder à seguinte pergunta: seria o estabelecimento da maioridade penal um direito fundamental individual ou uma opção de política criminal?
Inicialmente, cumpre estabelecer a impossibilidade de uma discussão acerca de sua natureza como direito fundamental de segunda ou terceira geração, uma vez que a incidência do art. 60, § 4º, IV da CF/88 se estende a estes. Isto se dá por questão conceitual. A segunda geração remete-se a direitos sociais, e a sua proteção à infância envolve as melhores condições para o desenvolvimento da criança, tão-somente, não sua irresponsabilidade penal.[25] Já a terceira geração trata dos direitos difusos, enquanto a maioridade penal não tem relação com aquilo que diz respeito a todos indistintamente.
Ultrapassado este ponto, para começar a análise, deve-se relembrar o que foi dito acerca dos direitos individuais fundamentais. Primeiramente, eles se vinculam à dignidade da pessoa humana e surgem como imanentes à própria natureza do homem em sentido amplo. Basicamente, se traduzem nos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – e tudo mais que se direcione a assegurá-los.
Assim, o indivíduo conquistou o direito a um julgamento justo e público por um tribunal independente e imparcial, para que seus bens, sua liberdade e sua vida sejam respeitados. Também foi assegurado que sua liberdade só poderia ser restringida por lei, que teria direito de se manifestar livremente, bem como o direito à intimidade, vida privada, ao asilo em caso de perseguição política, etc.
Vislumbra-se, pois, em todos os direitos considerados fundamentais individuais, uma ligação direta com a proteção da dignidade do ser humano. Contudo, ao se defrontar com o art. 228 CF/88, que estabelece a inimputabilidade dos menores de 18 (dezoito) anos, não se chega à conclusão que se trata de um direito imanente a todo ser humano, em defesa essencialmente à sua dignidade. Em nenhum aspecto tal postura se aproxima de uma defesa da vida, igualdade, segurança, propriedade ou, sequer, liberdade.
Esta disposição constitucional não visa assegurar liberdade absoluta ao menor infrator, uma vez que a norma prevê a possibilidade de sua punição através de lei especial. Inclusive, neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em seu art. 112, VI c/c 121, dispõe sobre a medida sócio-educativa de internação em estabelecimento educacional.
Trata-se, pois, não de uma inexistência de direito penal incidente sobre os menores de 18 anos, mas sim a incidência de um direito penal especial. Quer isto dizer que a norma, em essência, apenas dispensa a pessoas de certa faixa etária a possibilidade de punições diversas, tendo como última instância a privação de liberdade, se maior de 12 anos (art. 2º c/c 105 da Lei 8.069/90).
E, como prova da inexistência de qualquer universalidade no tocante à inimputabilidade penal dos menores de 18 anos, o que corrobora pelo entendimento de que não se trata direito fundamental, tem-se o direito comparado. Conforme as legislações de outros países, os indivíduos podem ser julgados por crimes mais graves a partir das seguintes idades: México, 6 anos; África do Sul, 7; Escócia, 8; Inglaterra, 10; França, 13; Itália, Japão e Alemanha, 14; Egito, 15; e Argentina, 16.[26]
Além disso, não se vislumbra na inimputabilidade do menor de 18 anos a indivisibilidade própria dos direitos e garantias fundamentais. O estabelecimento da idade mínima em 21, 18, 16, 14, ou em qualquer outra idade, não indica o impedimento ao exercício dos direitos fundamentais, nem os prejudica.
Por fim, há o argumento de que o art. 228 da CF/88 seria uma cláusula pétrea por se caracterizar como uma limitação ao jus puniendi.[27] Tal posição, contudo, carece de uma pesquisa mais aprofundada acerca das razões do estabelecimento de tal idade; bem como ignora o fato de que a inimputabilidade não significa afastamento do poder punitivo estatal, mas sim que este se dará de forma especializada. Logo, tal fundamento não procede.
Assim, não há que se falar que o art. 228 da CF/88 é uma cláusula pétrea, com fulcro no art. 60, § 4º, IV CF/88. A razão é que sequer se vislumbra na disposição resquícios de um direito que se possa dizer imanente à natureza humana ou que vise protegê-la, e que lhe faltam características essenciais como a universalidade e a indivisibilidade. Não se trata de direito fundamental individual, e sua defesa como pertencente a qualquer outra geração mostra-se, por questão conceitual, inviável. Logo, não é um direito fundamental de qualquer espécie.
Os defensores desta posição, malgrado a boa intenção com que a advogam por julgarem ineficaz a redução da maioridade penal, carecem de embasamento teórico e tentam, através da incidência da não supressão das cláusulas pétreas, evitar que haja tal mudança. Infelizmente ou não, não é este o caso. A discussão acerca de tal redução deve se dar, exclusivamente, no âmbito da política criminal.[28]
E outro não pode ser o entendimento. É inequívoca a causa da maioridade penal aos 18 anos como medida de política criminal. Neste sentido, a disposição do art. 228 CF/88 constitucionaliza e torna mais difícil a alteração do que antes estava disposto no art. 23 do Código Penal. E este é seu único efeito: a necessidade do árduo procedimento legislativo de uma Emenda Constitucional para reduzir a maioridade penal.
Contudo, por ter a Constituição adotado a posição do Código Penal, é de relevo se analisar a exposição de motivos do mesmo, no que diz respeito ao citado art. 23. Em tal documento, está literalmente exposto que se trata de opção apoiada em critérios de política criminal, sem meias palavras.
Em seus fundamentos, a exposição de motivos rechaça expressamente os que defendem a redução do limite diante da criminalidade crescente que cada vez mais atrai um maior contingente de menores, pois tais pessoas ignoram que o menor é um ser humano ainda incompleto e naturalmente anti-social na medida em que não é socializado ou instruído. Conclui que o concerto na formação do caráter deve ser feito através da educação, e não pelas penas criminais.
Termina considerando que a legislação própria dos menores de 18 anos dá ao Estado condições aptas ao afastamento do menor infrator do meio social, se necessário, mas sem contaminá-lo com a convivência carcerária do adulto, considerada esta mais deletéria.
Assim, resta comprovado que a escolha pela menoridade penal até os 18 anos incompletos se dá como medida de política criminal, adotada diante de um critério puramente biológico, independentemente do entendimento por parte do infrator da consciência da ilicitude do fato ou de conseguir determinar-se de acordo com tal consciência.
Não é, repita-se, um direito fundamental individual, porque nem a mais forçada argumentação pode superar a desvinculação entre o art. 228 CF/88 e a defesa da vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança; nem conseguirá alcançar a universalidade ou a indivisibilidade própria dos direitos humanos fundamentais. Tampouco, se conseguirá encaixar o dispositivo como direito fundamental social ou coletivo, por evidência.
Entretanto, caracteriza-se como escolha feita pelo legislador a fim de optar pela melhor forma de se prevenir futuros delitos, em ato de política criminal. Neste sentido, preconiza que o menor de 18 anos está em formação e, para ele, há maiores esperanças de que se corrija. Noutras palavras, colocá-lo na prisão seria dar causa a um maior número de crimes no futuro, e esta é a razão final que pode ser deduzida.
Assim, retira-o do convívio carcerário para remetê-lo a um programa educativo. Aos menores de 12 anos, prevê medidas de proteção (art. 101 da Lei 8.069/90), sem envolver a privação de liberdade. São elas: encaminhamento aos pais ou responsável; orientação, apoio e acompanhamento; matrícula e freqüência obrigatórias ao ensino fundamental; inclusão em programa de auxílio; tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico; programa de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; acolhimento institucional; programa de acolhimento familiar; e colocação em família substituta.
E, aos adolescentes, prevê medidas sócio-educativas (art. 112 da Lei 8.069/90), cuja mais extrema envolve a internação em estabelecimento educacional. Além desta, são as demais: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; regime de semi-liberdade; e qualquer uma das seis primeiras citadas no parágrafo anterior.
Nos dois casos, a escolha baseia-se nas análises que se demonstram como mais eficaz para fins de prevenção ao crime. O ideal é, com base nos estudos da criminologia focada na figura do delinquente e do controle social, adotar as posturas legais mais aptas a evitar um aumento na criminalidade no futuro.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na verdade, não há diferenças entre os estabelecimentos prisionais e aqueles previstos na lei como educativos aos adolescentes infratores. E isto é inaceitável por que, entre os presos adultos, o Poder Executivo e, absurdamente, o Judiciário[29] ignoram em absoluto a existência do art. 5º, XIL da CF/88, que lhes assegura o respeito à integridade física e moral. E entre os menores internados têm-se exatamente a mesma vivência dos estabelecimentos de segurança máxima, sem nenhuma espécie de vontade política em contrário.
No final, seja no presídio ou nos estabelecimentos (não) educacionais, a privação de liberdade aliena, não socializa nem educa. Serve apenas para marginalizar, retribuir e desumanizar. Funcionam como escola do crime, em que os detidos possuem todo o tempo disponível para aprenderem uns com as experiências dos outros, bem como para serem abusados e sofrerem violências.
Em relação ao presente estudo, não cabe dizer se é ou não positiva a alteração da maioridade penal, mas se conclui que ela é possível, através de uma Emenda Constitucional. Entretanto, deve ser profundamente ressaltado que tal mudança não pode advir do movimento pela lei e ordem, irrefletido, desesperado, irracional, tão propagado pela grande mídia.
O fato é que a sociedade evolui e uma pessoa de 16 anos hoje em dia não é mais como a de anos atrás. Não há de se fundamentar a redução com base na escalada da violência, mas tão-somente perante a constatação, se esta ocorrer, por exemplo, de que uma pessoa de 16 anos possui completa lucidez do caráter ilícito de seu comportamento e capacidade de se comportar conforme tal entendimento.
Contudo, esta não é a postura adotada atualmente. O indivíduo menor de 18 anos é considerado como possuidor de um potencial de mudança maior que o adulto. Seu problema se foca em sua natureza que, devido à idade, é inclinada a não ser sociável. O problema então se torna não sua punição, mas o acerto de sua educação – o que, de fato, não é feito.
Exclui-se, pois, a visão que estabelece a maioridade penal aos 18 anos como cláusula pétrea com base no art. 60, § 4º, IV da CF/88. Com isso, de um lado, se perde pela possibilidade de uma redução enfocada na campanha do terror provocada pelos grandes meios de comunicação, em atitude sensacionalista e irrefletida.[30]
Mas por outro, é positivo que não seja uma cláusula pétrea, pois possibilita alterações embasadas em critérios científicos, capazes de gerar resultados mais eficazes no combate à criminalidade, inclusive suas causas. Neste ponto, não significa a mera redução da idade, necessariamente; mas, por exemplo, a implantação de um critério biopsicológico.
Cristalizar a maioridade penal seria não uma medida de proteção à sociedade, nem ao indivíduo. Se evidenciado, através do estudo e da pesquisa, que a melhor política é a redução da maioridade penal, esta deve ser feita. E nosso ordenamento jurídico não apresenta óbices a tal medida.
Advogado e Pós-graduando em Direito Penal / Processo Penal
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