Resumo: A iniciativa de integração regional por meio da União Europeia é resultado do arranjo histórico-político e geopolítico do pós-1945 e mantém-se, apesar das alterações recentes e significativas, até os dias atuais, expandindo o número de membros e alargando sua arquitetura institucional. Construída pela interação de fatores internos (pacificação e recuperação econômica) e externos (projeção autônoma e contenção da influência soviética), o projeto integracionista foi desenvolvido a partir dos vetores de prevalência do capital e do desenvolvimento socioeconômico, com forte apoio e considerável complacência do poder hegemônico. Hodiernamente, acumula quase setenta anos de experiência e um grau considerável de interdependência em diversas áreas estratégicas. Isto não significa, entretanto, que todos os membros sejam beneficiados, ao contrário, a institucionalização dos princípios do neoliberalismo pelo Tratado de Maastricht gerou maiores assimetrias e prejuízos ao bem-estar social nas sociedades europeias.
Palavras-chave: União Europeia; Integração Regional; Crise Monetária; Correção de rumos; Neoliberalismo.
Abstract: The project of regional integration through European Union results from a historical, political and geopolitical post-war arrangement and it was maintained, although current and substantial modifications, until present days, expanding the numbers of member States and enlarging its institutional architecture. Built through interaction of internal circumstances (the need of pacification and of economic recovery) and external aspects (autonomous projection and soviet influence deterrence), the integrationist draft was developed according to two prior prisms, such as capital prevalence and socioeconomic growth), with a providential support of the hegemonic power. Currently, such experience is almost seventy years old and holds a remarkable level of interdependence in a myriad of strategic areas. However, it does not mean that the present model of European integration benefits all State members, on contrary, the institutionalization of neoliberalism principles through Maastricht Treaty yields more asymmetric conditions and deleterious effects to welfare in European society.
Keywords: European Union; Regional Integration; Monetary Crisis; Turning Point; Neoliberalism.
Sumário: I- Introdução; II- A Gênese da União Europeia; III- Primeira Fase: a Organização Europeia para a Cooperação Econômica e a União Europeia de Pagamentos; IV- Segunda fase: o padrão dólar-ouro e as iniciativas reativas às crises; V- Terceira Fase: O Tratado de Maastricht e a correção de rumos da integração europeia; VI- Conclusão.
I- Introdução
Influenciado por teorias liberais que emergiram no contexto do pós- Segunda Guerra Mundial, o projeto europeu, capitaneado por Robert Schuman e Jean Monnet, tinha forte inspiração no funcionalismo. Construto teórico, cujo maior expoente foi David Mitrany[1], que enfatizava a necessidade da cooperação internacional como forma de alcançar a paz, o que diminuiria os conflitos entre interesses nacionais. Crítica do Estado nação, esta corrente liberal defendia a transferência de funções e prerrogativas soberanas estatais para organizações internacionais. Por serem instrumentais e com função definida, estas conseguiriam potencializar tarefas específicas, sem passar pelos problemas próprios dos Estados. Analistas[2], entusiastas desta dinâmica, aperfeiçoariam este pensamento e veriam na centralidade econômica, irradiadora de efeitos prósperos para outras áreas, a razão do alegado estágio avançado da União Europeia, o qual serviria de inspiração para as iniciativas de cooperação menos desenvolvidas. A formação e a institucionalização da União Europeia foram a materialização desta lógica neofuncional[3], constituindo, para os autores de matriz liberal, um modelo a ser utilizado por outras regiões, sobretudo para a América Latina. Os órgãos que coordenariam os processos de integração teriam como cunho prioritário o aspecto econômico, e não o social ou político.
Com as mudanças sistêmicas durante as décadas de 1970 e de 1980, a estratégia comunitária sofreu forte guinada. Abandonou a concepção do bem-estar social e direcionou-se pela ideologia neoliberal a seguir o caminho do privilégio aos capitais privados. O Tratado de Maastricht ilustra esta guinada como reação às transformações regionais e internacionais, concretizadas na década de 1990. Neste momento, a relativa paz, a prosperidade econômica e o fortalecimento institucional comunitário, alcançados pela Europa e alardeados por entusiastas neoliberais, criaram uma sensação ilusória de um modelo exitoso a ser utilizado por outras regiões. O funcionalismo deveria prevalecer, agora, todavia, capitaneado por um modelo econômico que abandonava o regionalismo fechado[4] para ingressar em uma lógica de regionalismo aberto[5], sem barreiras ao comércio mundial, escancarado ao mercado internacional, pressupondo que todos os países teriam condições iguais de competitividade e, se não o tivesse, poderiam se juntar aos vizinhos com os mesmo níveis de desenvolvimento para aumentar seu poder de barganha. Atualmente, os europeus sentem os efeitos nefastos de adoção do prontuário neoliberal.
Desta forma, a análise da construção do projeto europeu, com a devida consideração dos aspectos político-econômicos, será dividida em um primeiro capítulo sobre a gênese do projeto, no segundo, será abarcada a primeira fase das iniciativas econômicas, no terceiro, a segunda fase, no quarto, a terceira, e no quinto, um conclusão sucinta e crítica levantará reflexões ao debate.
II- A Gênese da União Europeia
O atual estágio alcançado pela Europa em seu processo de integração regional pode ser explicado a partir de uma análise crítica, que situa o processo como resultado, não exclusivo, mas considerável, das transformações internas e do sistema internacional. A iniciativa unificadora da Europa não é inédita do contexto pós-1945, pois já existiam ideias anteriores neste sentido[6] (TREIN, 2008). É fundamental destacar, no entanto, que o impulso integrador do final da Segunda Guerra Mundial é peculiar, resultado de uma combinação de fatores, tanto internos quanto externos, da nova reorganização mundial sob os valores da hegemonia estadunidense[7] (TAVARES E BELLUZZO, 2004). Os rumos do projeto europeu, em grande medida, foram dados por uma estratégia tolerada[8], considerando os privilégios concedidos dentro do padrão monetário internacional[9].
Os desdobramentos geopolíticos desde o conflito mundial foram determinantes para os rumos tomados pelo continente. Destruída materialmente, arrasada pelas perdas humanas e ocupada por tropas estrangeiras, a região, que por pelo menos desde o século XVI foi o epicentro mundial, viu-se uma posição ímpar dentro do sistema interestatal capitalista[10]. Como a oeste foi invadida pelos americanos e a leste, pelos soviéticos, a Europa tornou-se o centro da disputa de poder entre as duas grandes potências vitoriosas do conflito. Dividido o continente, as diferentes porções seguiram estratégias alinhadas com interesses externos. Enquanto que a parte oriental adotou a lógica soviética, a ocidental buscou enquadrar suas demandas à hegemonia estadunidense. Esta, por fazer parte da constituição da União Europeia, será alvo de maior aprofundamento deste estudo.
Desde a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, preparada pela Carta do Atlântico[11], em 1941, na qual a Grã-Bretanha reconheceu a hegemonia americana, os Aliados já começaram a pensar na reorganização mundial após o final do conflito. Diversas conferências importantes foram realizadas de 1941 até 1945, com destaque para a ocorrida na pequena cidade norte-americana de Bretton Woods, em julho de 1944. A iminência da vitória aliada levou os países capitalistas a discutir o gerenciamento econômico internacional sob a égide da hegemonia estadunidense[12]. A ordem monetária foi instalada pelos Estados Unidos, como forma de organizar a configuração mundial do pós-guerra, sempre de acordo com seus interesses nacionais. O dólar foi alçado à condição de moeda internacional, única a ser conversível em ouro, enquanto as outras somente tinham o recurso de converterem-se em dólar. Ademais, criou-se o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, BIRD, conhecido posteriormente como Banco Mundial, e o Fundo Monetário Internacional, o FMI, responsável pela correção do desequilíbrio na balança de pagamentos dos países. Desta reorganização mundial deriva ainda a Organização das Nações Unidas[13], que ratificou a força política e diplomática dos americanos, com o apoio dos europeus. A estes não cabiam uma opção de enfrentamento, mas de consentimento com o poderio americano, devido às condições internas de cada país.
Assim, à Europa Ocidental foi disponibilizada uma estratégia diferenciada, em relação a outras regiões, dentro do sistema hegemônico de poder, a qual foi, inevitavelmente consentida pelas elites locais ante a conjuntura internacional da época. Fiori explica a benevolência hegemônica aos europeus (FIORI, 2004: p. 88):
“Na verdade, a posição ultraliberal dos financistas só foi quebrada transitoriamente pela crise de escassez de dólares na Europa em 1947; pela ameaça de vitória política-eleitoral dos comunistas na França e na Itália, nas eleições de 1948; e pelo colapso da economia japonesa. Suas ideias predominaram de 1945 e 1947, mas acabaram sendo revertidas pelo novo quadro internacional e pela imposição de prioridades estratégicas da nova Doutrina da Guerra Fria. É neste contexto que se explica o Plano Marshall, assim como todas demais concessões feitas pelos Estados Unidos, com relação ao protecionismo dos europeus, em particular com a retomada dos velhos caminhos heterodoxos das economias alemã e japonesa.”
A Inglaterra, apesar de não ocupada, consentiu com a estratégia associada aos Estados Unidos, mas autônoma da Europa, sobretudo no que tocava a questão monetária. Para o continente, a integração era querida, como discursou Winston Churchill[14], em 1946, em Zurique, clamando pelos Estados Unidos da Europa, como solução para as guerras fratricidas continentais. Ainda que tivesse aderido à União Europeia de Pagamentos, o fez com muita resistência, postura que manteve até a entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1973. Mesmo após a adesão o Reino Unido permaneceu cético e pragmático, não adotando a maioria dos acordos comuns[15], ressaltando uma postura autônoma ao eixo franco-germânico.
Por sua vez, a França não via como alternativa plausível para a paz na região e para sua soberania qualquer solução que não fosse o fim da rivalidade com a Alemanha por meio do controle da economia germânica. Não por acaso, a iniciativa da União partira de políticos franceses como Robert Schuman[16] e Jean Monnet[17], que foram os responsáveis por articular os primeiros passos da integração e a aproximação entre os dois países, cujo embrião foi a administração multilateralizada das indústrias de matérias-primas para a guerra, o carvão e o aço. Adotou uma estratégia dual, de negociações com a Alemanha, pela força regional, e com os Estados Unidos, pela projeção internacional.
Já na Alemanha[18], ocupada e dividida, com enormes perdas territoriais e demográficas, a influência externa foi ainda mais determinante. Cooptada pela possiblidade de desenvolvimento a convite do poder hegemônico, alterou os rumos nacionalistas de sua curta, mas intensa, história como Estado nação. Comandada pelas elites liberais colocadas no poder pelas tropas estrangeiras optou pela inserção regional que favorecesse os capitais nacionais[19]. Os políticos liberais privilegiaram a aliança do capital alemão com os capitais europeus, sobretudo franceses, para sua prosperidade e desenvolvimento, em detrimento de seu projeto de poder mundial[20]. Trocou-se uma busca por proeminência mundial de caráter militar, belicista e induzida pelo Estado por uma estratégia regional de crescimento a partir da imposição e da fusão de sua força econômica interna com as outras economias, industrialmente mais frágeis.
Resumindo, a resolução à questão interna gravitava em torno da situação econômica catastrófica, sendo necessário encontrar uma solução para sua reconstrução e pacificação, mantendo a remuneração satisfatória das elites liberais e impedindo a ascensão dos partidos socialistas internos. Os países europeus encontravam-se numa encruzilhada, desgastados pelo conflito, com perdas humanas, deterioração social e grande parte de sua cadeia produtiva e de sua infraestrutura comprometidas e, muitos, ainda, ocupados por potências estrangeiras, no Ocidente, pelos Estados Unidos, e no Oriente, pela União Soviética. O factível crescimento das ideias socialistas em meio à crise e a escassez de divisas motivaram o pragmatismo das elites capitalistas dos países ocidentais que aceitaram a ajuda financeira estadunidense e por meio dela criar um ambiente seguro e estável para a reconstrução econômica e social pela proliferação do capital, o qual foi obrigado a compor com os interesses do trabalho, articulando o Estado de bem-estar social e promovendo a cooperação entre as economias regionais, tanto no viés comercial quanto no aspecto socioeconômico.
A questão externa da integração foi determinada pelos rumos do embate entre Estados Unidos e União Soviética, que culminou na Guerra Fria. Era necessário retomar a proeminente projeção internacional e, ao mesmo tempo, às economias europeias ocidentais criar uma barreira de contenção à influência e aos capitais estatais soviéticos, os quais já haviam tomado a porção oriental do continente. A ameaça vinda do modelo político e econômico adotado pelo Leste Europeu ao capitalismo liberal estadunidense alterou a estratégia hegemônica quanto à situação dos antigos inimigos de guerra, em meados de 1947, sobretudo em relação à solução dada à questão alemã[21]. Cogitada para ser desindustrializada e tornar-se uma grande colônia agrícola[22], foi transformada na grande vitrine do capitalismo ocidental, por meio do projeto americano de desenvolvimento a convite[23] dos outrora inimigos de guerra[24]. Assim, mesclando os motivos internos e externos, a integração europeia passou a ser construída a partir da Alemanha Ocidental como o polo irradiador do crescimento econômico regional, em uma estratégia hegemônica de europeizar os interesses alemães[25].
O primeiro passo foi dado por meio da intervenção externa concretizada pelo Plano Marshall[26], o qual tinha objetivos econômicos claros[27], como a intensificação dos vínculos comerciais, o que geraria recursos para a superação da escassez de capitais e para a articulação de resgate da conversibilidade das moedas, e escopos geopolíticos e geoeconômicos implícitos, como a dolarização da dívida europeia, a introdução da moeda estadunidense no comércio europeu e o estreitamento da dependência ao poder hegemônico, o que indiretamente resultou em um acordo entre as elites liberais, sobretudo, de França e Alemanha em favor da cooperação regional. Neste sentido, iniciativas econômicas voltadas à coordenação monetária foram encetadas até se chegar ao atual estágio de união econômica. O primeiro instrumento cooperativo à recuperação econômica foi a estruturação de um balanço de pagamentos conjunto para regular o direcionamento dos investimentos e o equilíbrio das trocas comerciais.
A União Europeia de Pagamentos, inserida no âmbito da Organização de Cooperação Econômica Europeia, facilitou a coordenação econômica e abriu uma exceção para a autonomia dos europeus dentro do padrão dólar-ouro, possibilitando entendimentos em outras áreas. Com a extinção da União Europeia de Pagamentos em 1958, a tolerância estadunidense terminou, e os europeus foram gradualmente obrigados a aderir ao padrão monetário internacional. Isto não retirou, porém, o sentimento de autonomia monetária, traduzido em concertações regionais fora do sistema de Bretton Woods.
A busca reativa por alternativas ao dólar foi intensificada após o rompimento unilateral do padrão pelos Estados Unidos. A incerteza quanto ao sistema monetário internacional reforçaram a necessidade e a importância de uma estabilidade econômica regional menos dependente do sistema internacional. Propostas variadas de alcançar uma moeda única foram lançadas, porém, adotaram-se soluções cautelosas, baseadas em serpentes monetárias e mecanismos de taxas de câmbio, refletidas no Plano Werner e no Sistema Monetário Europeu, iniciativas que passaram a delinear a imposição germânica por uma política econômica ortodoxa, cujo objetivo é a manutenção dos preços relativos, com o intuito de evitar altas taxas inflacionárias.
As transformações sistêmicas ocorridas, principalmente na década de 1980 levaram o processo europeu a ser repensado, a partir do relançamento da integração, com o Ato Único Europeu, articulado por Jacques Delors, em 1985. O ideário globalizante impregnava o pensamento das elites, que romperam a acomodação do capital com o trabalho pelo bem-estar social para impor seus interesses ao bloco. A pressão pela abertura das economias ao capital financeiro era latente e considerada retoricamente como inevitável. A reunificação da Alemanha e a dissolução da União Soviética aceleram a remodelagem europeia, que culminou no Tratado de Maastricht, de 1992. O tratado internacional estruturou a integração por meio da formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto, mas com uma lógica distinta, que priorizava somente o viés do capital, abandonando o desenvolvimento socioeconômico. Além disso, no documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.
Apesar de a área do Euro ser uma parte que compõe o todo União Europeia, é, indubitavelmente, o vetor mais importante e a locomotiva do processo integracionista. Em virtude disto, a narrativa da trajetória de integração regional no continente priorizará as iniciativas econômicas. O foco da construção comunitária partirá dos primeiros projetos de coordenação econômica até alcançar a formação da área monetária única. As iniciativas de integração regional liderada pelo vetor monetário não são inéditas no cenário europeu, projetos relevantes foram promovidos durante o século XIX[28], a integração europeia do pós-Segunda Guerra conseguiu, sem embargo, criar um arcabouço institucional e uma coesão monetária entre os membros inéditos para uma organização internacional.
Desta forma, as iniciativas de integração monetária podem ser didaticamente divididas em três grandes fases[29], que marcam a trajetória monetária comum desde a União Europeia de Pagamentos até chegar à União Econômica Monetária. A primeira dirá respeito ao contexto do imediato pós-guerra até 1958, com a extinção da União Europeia de Pagamentos. A segunda diz respeito ao período de tentativa de enquadramento das moedas europeias no padrão dólar-ouro e as soluções autônomas de antes e de após o rompimento dos Acordos de Bretton Woods, dentro do padrão dólar-flexível[30] (SERRANO, 2004), englobando os acordos de serpente monetária e o sistema monetário europeu. A terceira vincula-se à correção de rumo dada ao projeto europeu pelo Tratado de Maastricht, ressaltando os acontecimentos de preparação e de consolidação da moeda comum, o euro. Todas as etapas divididas didaticamente nesta pesquisa são diretamente influenciadas pela hegemonia estadunidense no sistema internacional
III- Primeira Fase: a Organização Europeia para a Cooperação Econômica e a União Europeia de Pagamentos
A partir da mudança de estratégia hegemônica para a Europa, com o advento do Plano Marshall em 1948, foi criada uma engenharia para a reconstrução dos países que se submeteram à estratégia estadunidense[31], a qual pode ser considerada como a primeira fase. Politicamente, neste momento de crise, o capital foi obrigado a conciliar-se com o trabalho, havendo uma manifesta expansão dos direitos sociais e da intervenção estatal na economia, modelo conhecido como de bem-estar social, praticado até mesmo por governos liberais, como na Alemanha (EICHENGREEN, 2000: p. 151): “Uma acomodação com os partidos trabalhistas era vital para que a Europa impedisse que as crises políticas e greves se colocassem como obstáculos no caminho da recuperação e do crescimento.”. Isso fez com que, economicamente, para recuperar as forças, as finanças fossem obrigadas a se conciliar com interesses industriais. Logo, os investimentos externos fomentaram o público, sendo direcionados pelos commanding heighties[32] para infraestrutura e indústrias pesadas, que em uma visão universal não deveriam competir internacionalmente, pois estes setores precisavam de mercados amplos. Este panorama veio a justificar a administração multilateral dos bens de produção essenciais para a guerra, como o carvão e aço, o que ficou refletido na criação da Comunidade Europeia de Carvão e Aço, a CECA, em 1951[33].
A aceitação dos investimentos externos e da dolarização da economia europeia revelou a intenção dos capitais nacionais locais em compor com o dólar. Para administrar os recursos oriundos da injeção de dólares na economia europeia proporcionada pelo Plano Marshall foi criada a Organização Europeia para Cooperação Econômica[34], em 1948. Em um contexto de debilidades econômicas decorrentes da guerra, carência de reserva de meios de pagamentos internacionais, o que impedia a conversibilidade imediata das moedas, de necessidade imperativa de obtenção de dólares para importar máquinas e equipamentos dos Estados Unidos e de frustradas tentativas de conversibilidade isolada da libra, a organização internacional viabilizou em seu âmbito a criação da União Europeia de Pagamentos[35], medidas cujo objetivo era facilitar a conversibilidade gradual das moedas europeias em dólar e incentivar a liberalização comercial. Mendonça resume o funcionamento do sistema de pagamentos (MENDONÇA, 2004: p. 3):
“Os pagamentos e as receitas de exportação dos diferentes países eram centralizados no Banco de Pagamentos Internacionais (instituição integrada na UEP) procedendo-se mensalmente aos acertos de saldos, através do pagamento em ouro ou em dólares. Inicialmente só uma parte dos saldos era regularizada deste modo sendo a parte restante transformada em crédito do credor ao devedor. Todavia, à medida que o processo de reconstrução se foi realizando e as reservas foram sendo reconstituídas, foi diminuindo a fracção de crédito e aumentando o pagamento em dólares ou em ouro.”
Encetou-se, assim, a primeira iniciativa econômica de cooperação monetária na Europa Ocidental por um meio próprio, fora da lógica do sistema monetário padrão, mas com a tolerância e chancela estadunidense, reconhecendo o irrealismo das exigências rígidas de Bretton Woods. Dentro da alçada da OECE e fora do âmbito do FMI (já que nesta época não tinha aderido ainda ao padrão monetário internacional), a União Europeia de Pagamentos propiciou a formação de uma zona autônoma, onde circulava uma verdadeira moeda europeia, constituída pela transferência de saldos credores em seu interior, a unidade de conta europeia (UCE). Após cumprir seus objetivos, tornar as moedas europeias conversíveis em dólar e liberalizar o comércio, foi extinta em 1958.
Esta autonomia pode ser ilustrada pelo Acordo Monetário Europeu[36], em 1955, ainda dentro da OECE, criado para substituir a União Europeia de Pagamentos, após sua dissolução. Pregava pela continuação de um mecanismo de compensação multilateral gerido pelo Banco de Pagamentos Internacionais[37] para países que mantivessem a inconversibilidade; pela criação de um Fundo Europeu de concessão de crédito de curto prazo, em 1962; e pela estipulação de cláusulas relativas à estabilização das cotações das taxas de câmbio das partes contratantes (limite às flutuações viabilizou políticas comuns, como a PAC[38]). Destarte, verifica-se a relevância desta experiência de autonomia monetária dos europeus[39], o que, além de fomentar o comércio intraeuropeu, garantiu aos países condições de competitividade no mercado internacional, restabelecendo a hipótese de conversibilidade das moedas, pois, sem isto, os países se tornariam dependentes dos custos da moeda de reserva para comercializar internacionalmente.
IV. Segunda fase: o padrão dólar-ouro e as iniciativas reativas às crises
Com a retomada da conversibilidade das principais moedas europeias, veio o aumento da pressão dos EUA para a entrada da Europa no sistema monetário internacional, cujo epicentro era o dólar estadunidense. A União Europeia de Pagamentos era vista como uma etapa transitória de estabilização. A cooperação monetária por ela proporcionada ampliou, todavia, os horizontes europeus. Quando foi decretado oficialmente seu fim, em 31 de dezembro de 1958, a integração europeia tinha se aprofundado substancialmente, com os Tratados de Roma[40] e a consequente instituição da Comunidade Econômica Europeia e da EURATOM.
Neste diapasão, logo veio o reconhecimento do Fundo Monetário Internacional e a adesão inevitável ao padrão dólar-ouro, o que não durou muito. A desconfiança coletiva nos rumos do padrão dólar, motivada pelos constantes déficits no balanço de pagamentos estadunidense, justifica-se ante a evidente insuficiência de lastro do dólar em relação ao ouro, uma vez que após o espraiamento dos investimentos e das ações bélicas dos Estados Unidos pelo mundo eram contraditórias à austeridade e o ajuste automático imposto por Bretton Woods. Constatadas estas incompatibilidades, buscaram-se alternativas no intuito de manter certa autonomia monetária.
Neste prisma, propostas variadas foram lançadas. Primeiramente, optou-se pelo Acordo de Basileia, de 1972, celebrado entre os seis bancos centrais comunitários, que previa a serpente no túnel, mecanismo que impunha limites de flutuação das moedas em relação ao dólar (túnel) e no tocante às moedas envolvidas (medida na largura da serpente), cujo controle era feito por meio de intervenções coordenadas dos bancos centrais nacionais. Em segundo lugar, adotou-se uma solução cautelosa, elaborada pelo Comissário Europeu, o luxemburguês Pierre Werner, o Plano Werner, que se baseava em uma unidade escritural comum (ECU) e na serpente monetária, como formas de atingir após 10 anos um estágio propício para a criação de uma união econômica monetária. O cumprimento das disposições e o alcance do ambicioso cronograma ficaram comprometidos, quando emergiu a crise iminente, com o rompimento unilateral dos Acordos de Bretton Woods pelos Estados Unidos e a incerteza quanto ao padrão monetário internacional, que reforçaram a necessidade e a importância de uma estabilidade econômica regional menos dependente do sistema internacional (EICHENGREEN, 2000: p.185): “As economia interdependentes na Europa ocidental procuraram repetidamente colocar em prática uma ancoragem cambial coletiva”.
Assim, durante a década de 1970, tentaram manter as bandas de flutuação de 2,25% previstas no acordo através de um esquema conhecido como Serpente Europeia[41] (já sem a limitação do túnel, já que não havia mais padrão dólar-ouro), visto que as taxas de câmbio das moedas envolvidas poderiam variar somente dentro dos limites pactuados. Em meio às incertezas do sistema monetário internacional, outros países como Reino Unido[42], Dinamarca e Irlanda optaram pela adoção do Acordo de Basileia, aderindo à Comunidade Europeia[43]. Apesar da vivência curta e atribulada[44], a serpente monetária pode ser considerada o primeiro mecanismo direto de gestão conjunta das moedas europeias, servindo posteriormente para o planejamento de outras iniciativas.
Passados os primeiros anos de tormenta, um novo acordo foi articulado. Elaborado em 1978 e lançado em 1979, o Sistema Monetário Europeu, cujo cerne era o Mecanismo de Taxa de Câmbio, fixou as paridades bilaterais entre as moedas envolvidas e estabeleceu metas comuns em matéria monetária. Seus objetivos eram criar uma zona de estabilidade monetária interna e externa, promover uma maior cooperação das políticas econômicas e estipular políticas comuns a terceiras moedas e aos choques monetários. Implicitamente era a assunção da hegemonia germânica no continente, pois elegeu como desiderato a estabilidade da moeda, cujo modelo era a gestão do marco alemão: em detrimento do pleno emprego, elegeu-se como prioridades a baixa inflação e a estabilidade cambial (MENDONÇA, 2004). Sua lógica era calcada em três eixos: na unidade monetária europeia, o ECU[45]; no sistema de taxas de câmbio e um mecanismo associado de intervenção, o MTC I; e no conjunto de mecanismos de crédito de curto e médio prazo. Os europeus, por meio de sistemas autônomos, atrelavam as moedas nacionais ao marco alemão, tentando recuperar a pujança de seu mercado comum em um panorama cercado de incertezas.
Este sistema evidencia o movimento dos países, envolvidos na esfera de influência americana, em busca de alternativas para a sobrevivência no sistema mundial. O contexto da década de 1970 mudara consideravelmente o arranjo do pós-guerra. O esgotamento do modelo de bem-estar social começou a aparecer quando o capital passou a lucrar menos por ter que pagar salários maiores, concedendo demais para a vontade do trabalho, pois os sindicatos ganhavam poder de barganha e contestavam o regime, acirrando o conflito distributivo e tencionando o compromisso capital-trabalho do pós-guerra (SERRANO, 2004).
V- Terceira Fase: O Tratado de Maastricht e a correção de rumos da integração europeia
Em meio a uma sequência de crises, interna e externa, acompanhada de questionamentos sobre o declínio da hegemonia estadunidense, antes do fim do governo Carter, ainda em 1979, Paul Volker assume a cadeira do Federal Reserve, dando nova guinada às pretensões imperiais estadunidenses[46], com o Choque de Juros. Na manobra, as taxas de juros foram elevadas unilateralmente e atingiram níveis estratosféricos, acompanhadas por um discurso de fomento às inovações financeiras e à desregulamentação, que predominaria na década de 1980. A valorização inesperada do dólar, como manobra para sair do contexto de crises[47], que suscitavam o questionamento à hegemonia americana, conduziu a economia mundial à recessão. Os EUA, em sua estratégia de restauração liberal-conservadora, retomam progressivamente o controle do sistema monetário-financeiro internacional, surgindo um novo sistema financeiro internacional, que, posteriormente ficaria conhecido como dólar flexível (SERRANO, 2004).
A particularidade desse novo padrão reside no fim de duas limitações que tanto o padrão ouro-libra, quanto o ouro-dólar impunham aos países que emitiam a moeda chave, a necessidade de manter o câmbio fixo, para que se evitasse a fuga para o ouro e os consequentes déficits na conta corrente, e a possibilidade de incorrer em déficits globais na balança de pagamentos e financiá-los com ativos denominados em sua própria moeda como nos outros padrões anteriormente citados. Ademais, a ausência de conversibilidade em ouro garante ao dólar a liberdade de variar por sua iniciativa unilateral a paridade em relação às moedas dos outros países conforme sua conveniência, por meio de mudanças nas taxas de juros americanas.
A Diplomacia do Dólar Forte de 1979 e a consequente valorização compulsória do marco alemão em meados dos anos de 1980[48], aliadas à forçada desregulamentação financeira, arrefeceram o ímpeto comercial alemão e restringiram sua área de influência ao continente europeu. Franklin Serrano sintetiza o movimento, ao qual os países industrializados, como a Alemanha, passaram a seguir (SERRANO, 2004: p.202):
“Os demais países industrializados foram forçados a acompanhar de perto este movimento de alta, sem precedentes, das taxas de juros, sob pena de sofrerem uma desvalorização cambial descontrolada com consequências inflacionárias. A partir daí os países desistiram definitivamente de questionar a dominância do dólar e a Europa defensivamente começou a montar o sistema monetário europeu para estabilizar o câmbio entre os países da própria comunidade europeia.”
Além do efeito econômico, a manobra estadunidense possuía claros contornos políticos. A financeirização proposta pelo neoliberalismo vinha acompanhada da ideologia do Estado mínimo, devendo agir logística e pontualmente para corrigir eventuais distorções, mas deixando por conta do mercado a regulação da economia, cabendo a atuação estatal somente em casos inevitáveis. A mudança de perspectiva minara as bases do Estado de bem-estar social do pós-guerra, como bem sintetiza Carlos Medeiros (MEDEIROS, 2004: pp.139-140):
“A retomada da política hegemônica do dólar no início dos anos 80 interrompeu as possibilidades de se construir em colaboração com os principais países industrializados, alternativas monetárias a um dólar enfraquecido. A estratégia de enquadramento dos aliados e das moedas rivais se deu como reação ao extraordinário sucesso industrial e exportador da Alemanha e do Japão e da contestação do dólar enquanto moeda internacional que caracterizaram a economia mundial no final dos anos 70. A iniciativa norte-americana de retomada da hegemonia econômica e ideológica nas relações internacionais afirmou-se, também, como uma ampla ofensiva interna liderada pelos EUA e Inglaterra contra os sindicatos, o Estado de Bem-Estar, o excesso de democracia, interrompendo o crescimento compartilhado típico do keynesianismo social que caracterizou o capitalismo industrial no pós-guerra.”
Esta ruptura veio ao encontro das pretensões das elites liberais da Europa, cujos anseios foram arrefecidos pelo contexto do imediato pós-guerra. Marcou a guinada do projeto europeu que abandonou a diretriz do desenvolvimento socioeconômico, presente desde os Tratados de Roma, e acolheu o viés ortodoxo de prioridade à manutenção dos preços e da inflação interna em detrimento das altas taxas de crescimento, priorizando apenas o capital financeiro. O conservadorismo em relação aos gastos sociais que afetou a política de pleno emprego na Alemanha acabou contaminando todas as economias comunitárias do Sistema Monetário Europeu, uma vez que estavam ancoradas no marco alemão[49].
A década de 1980 pode ser identificada como o momento de inflexão que explica em grande parte os atuais rumos do processo de integração europeia. Junto com a ofensiva financeira e ideológica, empreendeu-se uma estratégia militar que levou ao estrangulamento da União Soviética e a consequente dissolução do bloco socialista, o que fortaleceu o discurso triunfalista da hegemonia estadunidense e mudou significativamente a geopolítica europeia. Com a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha[50] e a desintegração da União Soviética, alteraram-se substancialmente alguns motivos da construção do projeto integracionista.
Em um contexto de mudanças, repensou-se o processo europeu, e a reação às transformações mundiais começou com o relançamento da integração, a partir do Ato Único Europeu, documento que continha as diretrizes futuras da guinada europeia, articulado por Jacques Delors, socialista francês, quando este assumiu a presidência da Comissão Europeia, em 1985. Era necessário alterar os rumos da integração. Esta foi, então, relançada sobre novas bases. Acreditava-se que uma política macroeconômica unificada, ainda que inserida na lógica neoliberal, poderia fortalecer a posição dos europeus no contexto de poder americano. Previa-se a criação de uma União Econômica Monetária (UEM) em três fases graduais, com menor transferência de competências orçamentárias para a CEE, se comparado com o Plano Werner. O objetivo final era a adoção de taxas de câmbio fixas e uma política monetária única para a área, a serem determinadas por uma entidade independente de um Estado nacional. Assim, pensou-se o Banco Central Europeu e o Sistema de Bancos Centrais que o sustentaria.
A remodelagem europeia culminou no Tratado de Maastricht, de 1992. O tratado internacional pensou a integração por meio da formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto[51]. No documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. Assim, em 7 de fevereiro, o Tratado de Maastricht é assinado, baseado no binômio gradualismo-convergência. O lançamento da UEM seria projetado em três fases previstas mesmo antes da assinatura dos aderentes (MENDONÇA, 2004). As fases de adaptação[52] incluíam a coordenação e liberalização financeira, em um primeiro momento, a consolidação de novas estruturas, em segundo lugar, e a transferência de responsabilidades dos países para os órgãos competentes, no terceiro ciclo.
Iniciada em 1° de julho de 1990, a primeira fase, seguindo a euforia neoliberal que contagiava o contexto, buscava a liberalização completa dos movimentos de capitais entre todos os Estados-Membros. Ainda que tenha sido encetada antes, este período só alcança robsutez institucional com a entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em 1° de novembro de 1993.
Bem-sucedida, a primeira fase pavimenta o caminho para a segunda. Em conformidade com o artigo 109-E do Tratado, começa em 1° de janeiro de 1994, o período de constituição de novas estruturas, notadamente com a criação do Instituto Monetário Europeu (IME)[53], órgão embrionário do futuro Banco Central Europeu. Ademais, cabia aos Estados aderentes assegurar a compatibilidade tanto de sua economia quanto de sua legislação nacional com os ditames da área comum, sobretudo quanto à independência do Banco Central Europeu.
A compatibilidade econômica viria com o estágio de atingimento dos critérios de convergência, previsto para 1° de janeiro de 1999, inaugurando a terceira fase, expressa no artigo 109-I do Tratado da União Europeia. O empenho europeu em cumprir os compromissos assumidos foi demonstrado no Conselho Europeu de Madrid, realizado em dezembro de 1995, o qual confirmou as diretrizes de Maastricht. Para se chegar à moeda única era necessário, todavia, o cumprimento de critérios de convergências[54], condições econômicas e financeiras que permitissem o agrupamento dos países em um mercado único. Os pressupostos envolvem a estabilidade dos preços[55]; situação orçamental[56] (evitabilidade de déficits excessivos); a participação no mecanismo de taxas de câmbio do Sistema Monetário Europeu[57]; a convergência das taxas de juros no longo prazo[58]. O cumprimento das condicionantes é analisado pelo Conselho da União Europeia, após recebimento de relatório oriundo da Comissão Europeia, concedendo o parecer favorável não ao Estado que pleiteia a entrada na área monetária comum.
Além das condições econômicas, era fundamental alcançar concerto político sobre os determinados assuntos, como o quadro jurídico para a utilização do euro. Inicialmente, foram intensificados os preparativos, em 1998, com a listagem dos países aptos a participar (cumpridores dos critérios de convergência), o estabelecimento da taxa de conversão definitiva entre o Euro e as moedas nacionais, a adoção de disposições legais e administrativas, e a instituição do Sistema Europeu de Bancos Centrais, cujo pilar é o Banco Central Europeu. O arranque efetivo veio em 1° de janeiro de 1999, com a adoção do ECU, enquanto moeda contábil (função de unidade de conta da moeda). Este período de efetivação duraria três anos, até a entrada do Euro em circulação, como meio de troca nas economias envolvidas. Em 1° de janeiro de 2002, o ECU deixou de existir e o Euro transformou-se em moeda autônoma e com curso oficial, subsistindo com as moedas nacionais até a data derradeira de 1° de julho de 2002, a partir da qual não poderão mais ser trocadas pela moeda única.
A opção pela entrada na UEM dos diversos países justificava-se por vantagens como a ausência de custos na conversão cambial, uma garantia de eficiência econômica; uma maior transparência dos preços; eficiência da intermediação financeira e dos processos de investimento; redução da incerteza dos agentes econômicos; evita desvalorizações competitivas, diminuindo tensões comerciais e protecionismo (afastamento em relação aos conflitos do passado). Ao mesmo tempo, em contrapartida, havia desvantagens claras, como a perda de autonomia na condução da política monetária; a grande assimetria entre os países; e a perda da taxa de câmbio como ferramenta de política monetária.
Os pontos negativos pesaram significativamente para alguns países que optaram por uma aceitação parcial das novas disposições, o que ocasionou no surgimento de diversas subdivisões dentro da União Europeia. Com a entrada em vigor do Tratado, ficaram evidentes os variados enquadramentos jurídicos dos países. Todos os Estados membros, 12[59] em 1992, assinaram o documento. Inglaterra e Dinamarca, parcialmente, pois exerceram o direito de não vir a compor a área monetária única. Em outras palavras, seriam partes do mercado comum, mas não do mercado único. Estabeleceu-se que aqueles Estados que aderissem posteriormente ao Tratado, ainda que não entrassem imediatamente, seriam potenciais membros da área do Euro, efetivando-se esta condição quando tiverem preenchidos os pressupostos necessários.
A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial. A euforia liberal com o aprofundamento do projeto europeu, consolidado em Maastricht, durou ao longo da década de 1990. Perpassou os Tratados de Amsterdã, de 1997, e de Nice, de 2001, que prepararam a integração europeia para uma moeda única e para uma ambiciosa expansão territorial. Atingiu seu ápice com a criação do Banco Central Europeu, em 1999, com a entrada em circulação do euro, em 2002, marcando a unificação da política monetária dos países membros da União Europeia que adotaram a moeda comum, e com a proposta de uma constituição europeia, nos moldes daquela de um Estado nacional[60].
A capacidade de desenvolvimento da União Europeia, a partir deste momento, começou a explicitar suas limitações, bem maiores que suas pretensões. A Constituição Europeia, documento pensado nos moldes de uma federação cosmopolita, inspirada em teóricos liberais, como o alemão Jürgen Habermas[61], foi rechaçada, quando colocada à participação das sociedades holandesa e francesa. A insatisfação refletia a recusa da construção de uma federação europeia, como Estados Unidos da Europa, bem como a utilização de meios tecnocráticos, e não democráticos, para esta tarefa. Junto com o motivo do déficit democrático, talvez ainda mais influente, estava o protesto local em relação ao modelo econômico adotado pelos governos de direita e da socialdemocracia europeia, mostrando claramente o esgotamento do neoliberalismo pactuado em Maastricht. Mesmo assim, neste contexto ainda foram incorporados ao território comunitário mais dez países, cuja maioria era oriunda do Leste Europeu, de poderio econômico frágil, o que demandaria um esforço ainda maior da União Europeia para sua incorporação, além das mudanças institucionais necessárias. Um maior número de membros, todos com direito iguais, passou a inviabilizar decisões céleres sobre assuntos urgentes.
Em meio a este impasse, cuja demanda era por flexibilidade institucional e manutenção do poder das economias mais fortes, foram celebrados em 2007, os Tratados de Lisboa, cuja composição era feita pelo Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Estes documentos traziam ao direito comunitário muitas das disposições materiais previstas na malfadada Constituição Europeia, além de viabilizarem a flexibilidade institucional, para possibilitar ações mais rápidas em tempos de crise, os quais se aproximavam. Logo, os Tratados de Lisboa buscaram adequar e adaptar as estruturas políticas do contexto hodierno às alterações econômicas consagradas em Maastricht.
O momento atual pelo que atravessa a integração europeia ainda reflete a inflexão proporcionada pelo que foi acordado em Maastricht, ainda que o ideário neoliberal tenha perdido força no sistema capitalista. Os êxitos e contradições da evolução do processo europeu fizeram com que a uniformização proposta pelo Tratado da União Europeia resultasse, ao contrário do esperado, em um acirramento das assimetrias entre os membros, criando um bloco com vários subconjuntos, de diferentes velocidades de interdependência.
VI- Conclusão
Portanto, é fundamental compreender a contextualização que envolve as duas experiências, sendo a União Europeia mais longeva e fruto de uma continuidade de décadas. O fenômeno da integração pela via econômica não é inédito no continente europeu, havendo outras iniciativas registradas anteriormente. Contudo, a União Europeia é resultado de um movimento deflagrado em meio às circunstâncias geopolíticas do pós-guerra. Buscou-se no estreitamento das relações comerciais uma solução para duas questões incômodas para o equilíbrio de poder anglo-saxão: a pacificação interna por meio do equacionamento do dilema alemão (fim da beligerância alemã em relação aos outros países por disputas territoriais, possibilitando um ambiente estável para o comércio e a integração dos capitais nacionais) e a consolidação de um bloco capitalista próspero, que buscasse atender os interesses das elites liberais e que, assim, rechaçasse a influência socialista oriunda da União Soviética. Contando os europeus, nos dois prismas, com a chancela financeira e ideológica dos Estados Unidos. Este apoio e esta tolerância hegemônica contribuíram muito para a relativa prosperidade das iniciativas integradoras.
A elite alemã conservadora colocada no poder no pós-guerra entendeu a necessidade de renunciar aos pleitos históricos pela parcela oriental de seu território (e pela unificação dos povos de origens germânicas) e adotou uma postura pragmática de apaziguar as rivalidades com os europeus (principalmente no tocante aos franceses) por meio da integração pela interdependência econômica. A contrapartida foi a enxurrada de investimentos e tolerância hegemônica quanto à prática de uma política econômica heterodoxa (em meio a um rígido e ortodoxo padrão internacional monetário), estratégia conhecida como desenvolvimento a convite dos outrora inimigos de guerra, a qual proporcionou à Alemanha a posição de liderança econômica regional.
Tendo a economia alemã sido estabilizada, tornou-se o polo irradiador da integração via comercial no continente. Adotou-se a estratégia dual de prevalência dos capitais, acoplados aos interesses industriais, somada a um Estado de bem-estar social, responsável pela concessão de direitos sociais, econômicos e culturais aos trabalhadores. Se é que é possível pontuar a pacificação interna na Europa, haja vista a constatação objetiva do não travamento de guerras entre os membros da União Europeia, autores, como o português José Manuel Pureza, creditam aos arranjos internos nos países axilares, o que viabilizou a composição entre capital e trabalho pelo bem-estar social e o desenvolvimento socioeconômico (PUREZA, 2012):
“O que garantiu a longa paz na Europa não foi a UE, mas, sim, o modelo social de complemento do salário por serviços públicos e direitos sociais. A paz entre a França e a Alemanha foi muito mais fruto do horizonte de ascensão social comum a ambos os povos do que das reuniões de todos os dias em Bruxelas. Por outras palavras, foi a paz positiva que foi garantidora da paz negativa na Europa nas últimas cinco décadas. A Europa da paz foi a Europa assente num contrato social amplo à escala de cada Estado e numa preocupação com a coesão social e a justiça territorial à escala do conjunto da União. Essa Europa merece ser distinguida pelo seu trabalho em prol de uma paz socialmente sustentada.”
Este caminho da paz socialmente sustentada foi percorrido até as mudanças sistêmicas provocadas pela onda globalizante, a qual provocou o fim do arranjo do pós-guerra internamente nos Estados, alterando os rumos da cooperação regional, cujo viés mercadológico foi acentuado e priorizado. Com o relançamento da integração na década de 1990, o viés da justiça social foi desmontado, enquanto o capital financeiro se livrou do industrial, emergindo como condutor dos rumos no continente, desde Maastricht até os dias atuais. Pureza explica a inflexão no projeto europeu (PUREZA, 2012): “Sucede, todavia, que desde 1992 que a Europa abandonou esse modo de ser um projeto de paz. Passou a dar primazia inequívoca à competitividade em detrimento da coesão. Passou a dar primazia ao ser mercado em detrimento do ser união”.
A prolongada e aparentemente exitosa existência da União Europeia, iniciativa que a partir desta guinada preza exclusivamente pela estabilidade de poucos por meio da integração comercial e pela tese do esvaziamento dos Estados nacionais, mediante a distribuição de competências soberanas à organização internacional, ajustes do prontuário neoliberal, foi, enquanto durou a fábula da globalização[62], apregoada como modelo, pelas elites liberais, para a reinserção de outras regiões saídas de período de crises econômicas. Esta lógica transforma a sociedade em refém da integração (PUREZA, 2012):
“A UE trocou a paz positiva pela guerra social e tornou-se sua protagonista. A grande maioria dos europeus tem hoje a sua vida refém e não beneficiária da integração. Sobre a ruína dos equilíbrios sociais que alimentaram a paz feita de expectativas positivas para o quotidiano das pessoas está a erguer-se um retorno aos "tempos difíceis" de guerra social e, com eles, o anúncio de horizontes de fragilização muito preocupante da paz mínima, negativa, de silêncio das armas”.
Professor de Direito Internacional dos Cursos de Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional
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