A decisão 83-165 DC do Conselho Constitucional da França e a proibição do retrocesso

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1  INTRODUÇÃO

A decisão 83-165 DC, proferida em 21 de janeiro de 1984 pelo Conselho Constitucional da França, constitui a primeira concretização jurisprudencial do princípio da proibição do retrocesso social (effet cliquet), assegurador de uma impulsão progressiva dos direitos humanos.

O estudo desse julgado, meta do presente artigo, é de grande relevância para a regulamentação das atuais relações de trabalho, uma vez que também a estas se deve aplicar o referido princípio. Este ainda é, no entanto, “Pouco difundido no Brasil, em especial na seara trabalhista” (MEIRELES; MEIRELES, 2009, p. 82), o que evidencia a atualidade do tema.

A breve pesquisa proposta será indireta (bibliográfica e documental), qualitativa e seguirá o método hipotético-dedutivo.

2  A DECISÃO 83-165 DC E A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL

2. 1  FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO 83-165 DC

A Decisão 83-165 DC, do órgão máximo francês em matéria constitucional, proferida em controle preventivo, declarou inconstitucionais dispositivos da futura lei 84-52, de 1984, adotando a seguinte fundamentação (grifos acrescidos):

“Sobre a alínea primeira do artigo 68 da lei que revoga a lei de 12 de novembro de 1968 sobre as diretrizes do ensino superior:

41. Considerando que o artigo 68, alínea primeira, da lei em análise pelo Conselho Constitucional é o seguinte: “Esta lei revoga a lei nº 68-978 de 12 de novembro de 1968 acerca das diretrizes do ensino superior, à exceção dos artigos 46 a 62, bem como todas as disposições que lhe são contrárias [à lei nova], ressalvadas as disposições regulamentares, que permanecerão em vigor até sua substituição pela aplicação dos parâmetros da presente lei”.

42. Considerando que, se a revogação de dispositivos da antiga lei contrários às disposições da nova lei, bem como a manutenção em vigor das regras antigas até a sua substituição por uma nova regulamentação, não exige censuras do ponto de vista de sua conformidade à Constituição, por outro lado a revogação total da lei de diretrizes de 12 de novembro de 1968, em que certas disposições conferiam aos professores garantias conformes às exigências constitucionais, que não são substituídas na presente lei por garantias equivalentes, não é conforme a Constituição[1] (…).”

Assim, começava a surgir em 1984, também na aplicação do direito, e não apenas na doutrina, lastro para o princípio da proibição do retrocesso social, que pode ser sucintamente definido como a impossibilidade de que nova regulação jurídica venha a suprimir direitos fundamentais anteriormente conquistados pelo homem, aqui inclusos os direitos sociais, sem equivalente compensação.

As normas que regulam as relações jurídicas, inclusive as de trabalho lato sensu, passam, assim, a ser vistas como fruto de um aperfeiçoamento constante e irreversível da sociedade.

É a ideia de progresso social, em última instância, que, embasando a Decisão 83-165 DC, também se fortaleceu nos ordenamentos jurídicos, a partir da prolação desse decisum. A formulação hodierna dessa idéia inclui que a direção em que anda a sociedade, não sendo definida por nenhum parâmetro metafísico ou jusnatural, também não está condicionada a um sistema positivo único de evolução. É balizada, na verdade, pela procura dos valores sociais fundamentais forjados por meio do movimento histórico, como aqueles presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

2. 2  JURISPRUDÊNCIA INFLUENCIADA PELA DECISÃO 83-165 DC

A Decisão 83-165 DC gerou um precedente a ser seguido pela jurisprudência. O Tribunal Constitucional de Portugal, em seu acórdão 509/02, adotou expressamente o entendimento do Conselho francês, e acrescentou que “A questão da proibição do retrocesso não se colocará, em tese, apenas no que se refere aos direitos sociais”, mas também no que chama de “domínio das liberdades fundamentais”, o que corrobora a posição de que o referido princípio produz efeitos nos direitos dos trabalhadores, de cunho social.

É ainda parca, no entanto, a manifestação do Supremo Tribunal Federal brasileiro acerca do assunto, podendo ser citados votos dos Ministros Carlos Ayres Britto (ADI 3104 e RE 351750), Carmen Lúcia (ADI 3104) e Celso de Mello (MS 24875 e ADI 3128).

É possível encontrar jurisprudência relacionada de Tribunais não constitucionais e Juízos singulares, em especial da Justiça do Trabalho nacional, a exemplo do Tribunal Superior do Trabalho (RR-543.056, RMA-812.134 e outros) e do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (00825-2006-003-05-00-0 RO, 01266-2007-511-05-00-1 RO, dentre outros).

2. 3  DOUTRINA INFLUENCIADA PELA DECISÃO 83-165 DC

A doutrina estrangeira e a brasileira, em grande medida, vêm seguindo a orientação criada pela Decisão 83-165 DC. O respectivo entendimento encontra inserção no atual paradigma estatal, nos termos de Canotilho (2007, p. 338):

“O princípio da democracia económica e social aponta para a proibição de retrocesso social. A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de «contra-revolução social» ou da «evolução reaccionária». Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A «proibição de retrocesso social» nada pode fazer contra as recessões e crises económica (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta protecção de «direitos prestacionais de propriedade», subjectivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação do núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada «justiça social». […] A liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois está sempre sujeita ao princípio da proibição de discriminações sociais e políticas antisociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas («lei da segurança social», «lei do subsídio de desemprego», «lei do serviço de saúde») deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa «anulação», «revogação» ou «aniquilação» pura e simples desse núcleo essencial.[…]. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.”

 Pela aplicabilidade do effet cliquet às relações de trabalho, podem ser citados, na doutrina, Barroso (2008), De Conto (2008), e Piovesan (2009). Ingo Wolfgand Sarlet (2009b), que segue a mesma linha, diz que a dignidade da pessoa humana faz parte do mínimo existencial e é princípio normativo que atrai o conteúdo dos direitos fundamentais e pressupõe a proteção dos direitos em todas as dimensões. Dessa forma, ainda que se modifique a estrutura social, os direitos humanos e valores sociais do trabalho seriam absolutos.

2. 4  LEGISLAÇÃO RELACIONADA À DECISÃO 83-165 DC

2.4.1 LEGISLAÇÃO ANTERIOR À DECISÃO

Muito embora a Decisão 83-165 DC tenha representado um divisor de águas, por concretizar pela primeira vez o effet cliquet, sendo seguida por inúmeros intérpretes do direito, sua essência não deixou de ser influenciada por legislação anterior.

Podem ser citadas, como exemplos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fruto da Revolução Francesa e de orientação nitidamente antropocentrista, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial.

Este último diploma, em seu preâmbulo, registra que os povos das Nações Unidas, dentre os quais o Brasil, “decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”.

Também anterior à Decisão em comento, apesar não poder ser apontado como sua influência, o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, promulgado no Brasil por meio do Decreto 678/92, prevê em seu art. 26 o desenvolvimento progressivo dos direitos econômicos, sociais e culturais, nos seguintes termos:

“Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”.

2.4.2 A DECISÃO 83-165 DC E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA

Uma série de dispositivos da Constituição Federal Brasileira de 1988, posterior em quatro anos à Decisão 83-165 DC, adotam entendimento semelhante àquele por esta difundido.

O caput do art. 7º de nossa Carta Magna confere aos trabalhadores os direitos arrolados nos incisos do mesmo artigo, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, o que evidencia a adoção da idéia de progresso. Os direitos sociais, aliás, são cláusulas pétreas de nossa atual Constituição, como revela a melhor interpretação de seu art. 60, § 4º, IV, o qual preceitua que “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir […] os direitos e garantias individuais”.

A Carta de Outubro também consagra a busca por “desenvolvimento nacional” (art. 3º, II), redução das “desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III), “progresso da humanidade” (art.4º, IX), e “progressiva redução das disparidades regionais” (art. 198, § 3º, II, referente à saúde). Fica clara a disposição da Lei Maior brasileira, no sentido de buscar o progresso. A diretriz de proibição do retrocesso, originalmente presente na Decisão 83-165 DC, desse modo, encontra força também na interpretação sistêmica do texto constitucional pátrio.

O progresso é ideia de tal valor, para o povo brasileiro em especial, que está consagrada, como é notório, no lema inscrito na bandeira nacional, símbolo da República por disposição do art. 13, § 1º, de nossa Lei Maior.

3  CONCLUSÃO

Parece ter sido possível demonstrar, dentro dos limites deste artigo, que a Decisão 83-165 DC, que o Conselho Constitucional da França proferiu em 1984, tem enorme importância para os atuais ordenamentos jurídicos que seguem o paradigma democrático, garantista dos direitos fundamentais.

Tal decisão, na verdade, alertou os operadores do direito, pela primeira vez em um caso concreto, de que não se pode voltar atrás na concretização daqueles valores maiores buscados pelos sistemas normativos de cada povo. E essa verdade deve ser pontuada ainda mais na seara trabalhista, devido à fragilidade e necessidade do operário médio.

 

Referências
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Nota

[1] Tradução livre do autor. No original: “Sur l'alinéa 1er de l'article 68 de la loi abrogeant la loi du 12 novembre 1968 d'orientation de l'enseignement supérieur: 41. Considérant que l'article 68, alinéa 1er, de la loi soumise à l'examen du Conseil constitutionnel est ainsi conçu: “La présente loi abroge la loi n° 68-978 du 12 novembre 1968 d'orientation de l'enseignement supérieur à l'exception des articles 46 à 62, ainsi que toutes les dispositions qui lui sont contraires, sous réserve des dispositions réglementaires qui restent en vigueur jusqu'à leur remplacement par les mesures d'application de la présente loi; 42. Considérant que, si l'abrogation des dispositions de la loi ancienne contraires aux dispositions de la loi nouvelle, ainsi que le maintien en vigueur de la réglementation ancienne jusqu'à son remplacement par une réglementation nouvelle n'appellent pas d'observations du point de vue de leur conformité à la Constitution, en revanche l'abrogation totale de la loi d'orientation du 12 novembre 1968 dont certaines dispositions donnaient aux enseignants des garanties conformes aux exigences constitutionnelles qui n'ont pas été remplacées dans la présente loi par des garanties équivalentes n'est pas conforme à la Constitution (…)”.

Informações Sobre o Autor

Carlos Romeu Salles Corrêa

Mestre em Direito do Trabalho e Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Atua na assessoria de Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 5 Região.


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Equipe Âmbito Jurídico

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