Resumo: A presente resenha versa sobre o capítulo X da obra “O império do direito”, de autoria de Ronald Dworkin, um dos principais filósofos do pensamento jurídico anglo-saxão da atualidade. Dworkin foi assistente do renomado juiz Learned Hand da Corte de Apelo dos Estados Unidos. Após, trabalhou em um importante escritório de advocacia na cidade de Nova Iorque. Foi professor de Teoria do Direito na Yale University (1962-1969), após foi professor de Teoria Geral do Direito em Oxford e, atualmente, atua como professor na New York University School of Law. Sua teoria é marcada, sobretudo por uma leitura moral da Constituição.[1]
A decisão judicial na democracia contemporânea
Dworkin inicia o presente capítulo questionando se o direito constitucional estaria baseado em um erro. Tal questionamento tem como pano de fundo a situação do debate popular acerca do modo como os juízes devem decidir. Na análise do autor, o papel, inicialmente limitado, da jurisdição constitucional norte-americana só pôde ser rejeitado pela Suprema Corte em 1803, quando seu presidente John Marshall decidiu que os tribunais e a Suprema Corte têm o poder de decidir pelo governo o que a Constituição pretende dizer, bem como, de declarar inválidos quaisquer atos dos outros órgãos públicos quando os mesmos excederem os poderes que lhe foram conferidos pela Constituição. Dworkin esclarece que a problemática, agora, não reside em saber que poder tem a Corte Suprema, mas sim, em saber como deve ser exercido seu vasto poder. Sob esse enfoque, o autor procede à análise do estado atual da teoria constitucional acadêmica dos Estados Unidos.
O autor menciona que na distinção liberal-conservador, um juiz conservador será aquele que entender que a interpretação constitucional deve corresponder estritamente às convicções do legislador constituinte, ao passo que um juiz liberal será aquele cujas convicções sobre a adequação forem mais flexíveis. Entretanto, é possível que um juiz combine posições conservadoras e liberais, não se enquadrando facilmente em tal classificação. Assim, a distinção liberal conservadora é, para Dworkin, inexata e, portanto, improvável que contribua significativamente para uma análise séria sobre o julgamento da constitucionalidade.
Conforme Dworkin, pela perspectiva historicista, a interpretação constitucional deve pautar-se nos princípios que exprimem as intenções históricas de seus legisladores. Dworkin refuta tal ideia e defende as declarações históricas dos fundadores da Constituição foram feitas em circunstâncias políticas diversas e por e para uma forma de vida política totalmente diferente. Segundo ele, a Constituição leva os direitos a sério, e o historicismo não.
Ao explanar cerca do passivismo, Dworkin refere que, por esta teoria, as cláusulas abstratas da Constituição não concedem nenhum direito aos cidadãos, a não ser os direitos concretos que indiscutivelmente decorrem somente da linguagem dessas cláusulas. Dworkin refuta o passivismo e assevera que o passivista apela ao convencionalismo e, muitas vezes ao ceticismo, que é singularmente inepto. Dworkin refuta também a teoria contrária à passivista, qual seja a ativista, afirmando que o ativismo ignora o texto constitucional e impõe aos demais poderes estatais sua própria concepção do que a justiça exige.
Ao fim desta análise, Dworkin assevera que tais teorias não podem oferecer a interpretação bem-sucedida que os juízes e advogados norte-americanos necessitam e infere que “podemos aprender com seu fracasso: devemos desconfiar de qualquer estratégia interpretativa apriorística, fixada numa orientação estreita e formada pela justaposição de idéias, para decidir o que é uma constituição”. (p. 453)
Diante de tal constatação, e para dar conta dos casos constitucionais polêmicos, Dworkin cria a figura de um juiz filósofo com grande poder intelectual, denominado Hércules. Esse juiz não se enquadra na formulação acadêmica padrão dos juízes, pois ele não é historicista, passivista nem ativista. Ele julga interpretativamente, aceita o direito como integridade e concentra-se nas questões de princípio.
Para explicar qual é o caráter e quais são as dimensões do direito individual contra a discriminação racial, Hércules elabora três teorias: a) classificações suspeitas, que especifica que o direito contra a discriminação é apenas uma consequência do direito que as pessoas têm de ser tratadas como iguais; b) categorias banidas, que estabelece categorias e atributos particulares e entende que a lei não poderá fazer distinções entre grupos de cidadãos que se utilizam destas categorias, sob pena de violação do direito constitucional; c) fontes banidas, que reconhece um direito especial e diferente contra a discriminação e entende que a segregação é, ela mesma, uma forma de preconceito e, por isso não pode ser preservada.
Com base nestas teorias, Dworkin passa a explanar sobre qual seria a possível decisão de Hércules sobre dois casos polêmicos: o primeiro deles é caso Brown, julgado em 1954 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que decidiu pela proibição da segregação racial nas escolas públicas, por entender que tal prática era contrária a Constituição. Hércules decidiria, neste caso, apoiando-se nas fontes banidas e nas categorias banidas, pela inconstitucionalidade da segregação, e embora sua decisão deva ser sensível às consequências, decidiria que o remédio à segregação deve ter aplicação imediata e eficaz, sem submeter-se aos interesses daqueles que tencionam subverter tais direitos.
O segundo caso refere-se à discriminação inversa ocorrida no caso Bakke, julgado pela Suprema Corte em 1978, que decidiu pela inconstitucionalidade dos programas de admissão que reservam vagas com base na raça, acolhendo, pois, o argumento de Alan Bakke de que o sistema de cotas utilizado pela Universidade da Califórnia era ilegal porque não dispensava tratamento igual na disputa por vaga, eis que alguns alunos, por serem negros, ingressavam na Universidade com notas inferiores àquelas dos alunos brancos reprovados. Neste caso, Hércules decidiria com base na teoria das fontes banidas, pois a discriminação racial que prejudica os negros é injusta porque expressa preconceito e não porque as pessoas não podem escolher sua raça.
Em derradeira análise, Dworkin assevera que Hércules é guiado por um senso de integridade constitucional e acredita que a Constituição norte-americana consiste na melhor interpretação possível da prática e do texto constitucional, sendo que seu julgamento acerca daquilo que seja a melhor interpretação é sensível à complexidade dos valores políticos subjacentes a essa questão. Refere, ainda, que Hércules não é um tirano que tenta privar o povo de seu poder democrático, pois, quando ele declara inconstitucional algum ato do legislativo, ele o faz a serviço de seu julgamento mais consciente sobre o que é, de fato, a democracia e sobre o que a Constituição, enquanto guardiã da democracia, realmente quer dizer.
Em face do exposto, pode-se concluir que o ponto central de reflexão do autor reside em sustentar uma atividade substantiva da atividade judicial, ou seja, ele reconhece que as decisões devem ser justificadas desde um ponto de vista moral e que os juízes estão vinculados a determinados princípios preexistentes e que, portanto, desenvolvem uma atividade interpretativa vinculada e não puramente discricionária. A interpretação é, para ele, uma atividade criativa, em que a resposta correta é aquela que atribui melhor sentido à prática social em questão. Inconteste a pertinência da teoria dworkiniana ao contexto atual. Entretanto, o juiz Hércules, por ele idealizado, afigura-se demasiado ideológico diante das complexidades que revestem o aparelho judiciário na atualidade. Ademais, para que se possa questionar sobre como devem decidir os juízes na atual democracia, talvez devamos questionar aquilo que seja, de fato, a democracia.
Mestranda em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especializanda em Direito Imobiliário com ênfase em Direito Notarial e Registral na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
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