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A democratização da sociedade civil brasileira

A par da democratização política, tornada definitivamente possível com a promulgação e a aplicação da Carta Magna de 1988, há um processo que está em curso em nosso País e que deve ser estudado com atenção, pois que serve de base àquela: trata-se da democratização da sociedade civil.


A nosso ver, esse fenômeno está, a pouco e pouco, revertendo a tradição autoritária no Brasil e proporcionando a sustentação e o aprofundamento da democracia no âmbito político. De duas maneiras se vem consolidando a democratização da sociedade civil brasileira: por meio da fragmentação do poder privado e por intermédio do desenvolvimento da consciência coletiva. Cuida-se de fenômeno cujos vetores são as cidades, principalmente as metrópoles (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, etc.). Basear-se-á este artigo em duas obras de nossa autoria: Lo Individual y lo Colectivo en la Realidad Brasileña (Revista de Informação Legislativa, ano 32, outubro – dezembro de 1995, nº 128, pp. 221 – 229; Revista de Direito Civil, volume 76, abril – junho de 1996, pp. 98 – 107; Revista da FADUSP, volume 91, 1996, pp. 161 – 178) e Quinhentos Anos de Brasil: a Fragmentação do Poder Privado nas Metrópoles Brasileiras e o Direito Civil (Revista da FADUSP, volume 95, 2000, pp. 231 – 237).


Inicialmente, analisemos a fragmentação do poder privado, aqui considerado a autoridade exercida, de maneira incontrastável, no âmbito da família, da propriedade, da residência e do trabalho.


Do ponto de vista familiar, partiu-se de um modelo de família patriarcal, que foi dominante até as primeiras décadas do século XX, para chegar-se atualmente à concepção de família nuclear. Reduziu-se o número de pessoas que vivem na mesma casa tipicamente a pais e filhos, desintegrando-se os antigos grupos familiares horizontalmente extensos. Ademais, com a independência funcional e financeira da mulher, passou sua autoridade a ter maior peso dentro da família, fato que conduziu à contestação da superioridade masculina nas relações domésticas. Os filhos, por seu turno, em virtude dos movimentos de emancipação — muitos dos quais resultantes de influências externas –, estão tendo um papel decisivo nas relações familiares, perdendo o caráter passivo que lhes era reservado no passado.


Além dessas modificações radicais havidas na organização familiar, outras não menos importantes podem ser apresentadas: a) a utilização, cada vez mais comum, da separação e do divórcio; b) a diminuição progressiva dos matrimônios tradicionais e o aumento das uniões estáveis; c) o crescimento do número de famílias monoparentais. Assim, o poder familiar, nas grandes cidades brasileiras, está mais e mais dividido entre o homem e a mulher, com a participação crescente do papel dos filhos nas decisões.


No que se refere à questão da propriedade, há que destacar-se o tema da propriedade dos bens imóveis. Sob esse aspecto, observa-se, nos centros metropolitanos, o desaparecimento dos imóveis quase-rurais que antigamente lhe caracterizavam a paisagem. O crescimento desordenado das metrópoles, aumentado pelo êxodo rural e pela valorização do setor terciário da economia, causou a especulação e a divisão da terra urbana.


A conseqüência desse fato é a desconcentração da propriedade da terra urbana, a qual, nos limites da cidade, está sendo detida por um número cada vez maior de pessoas. As antigas áreas rurais das metrópoles são rapidamente compradas e divididas, de maneira que se fragmenta o poder antes exercido por poucos sobre o solo urbano.


Ainda no âmbito residencial se pode ver a fragmentação do poder privado, em virtude da verticalização das metrópoles, do aumento populacional e da grande necessidade de espaço. É aqui que se incluem os condomínios de apartamentos, vinculados ao regime da propriedade horizontal. O poder incontrastável no passado exercido pelo patriarca sobre sua própria residência perde totalmente o sentido nessa nova ordem.


No que concerne às atividades profissionais, visível é a fragmentação do poder privado, a qual se manifesta de duas maneiras: a) por meio da multiplicação dos contratos de trabalho (que são caracterizados pelo poder de direção do empregador); b) por meio do aumento das sociedades civis e comerciais (principalmente as anônimas e as de responsabilidade limitada).


Tais fenômenos estão associados às mudanças pelas quais as metrópoles brasileiras estão passando, de centros industriais a centros de prestação de serviços.


Passemos agora à consolidação da consciência coletiva, visível no âmbito jurídico, por exemplo, por meio das importantíssimas leis sobre a proteção do ambiente, do consumidor, da paisagem e do patrimônio histórico, estético e turístico.


A urbanização tem sido um fator decisivo para a criação de uma mentalidade diversa da tradicional. Com efeito, na cidade rompeu-se a estrutura rígida e patriarcal da sociedade brasileira, por conta da sua exposição à influência da cultura estrangeira e do predomínio das relações humanas secundárias, de caráter contratual, sobre as primárias, de caráter pessoal. Aqui, há que mencionar-se a participação decisiva das classes médias.


Por outro lado, associada à urbanização, a industrialização rompeu o monopólio da atividade agrícola de exportação e permitiu o nascimento de novas classes sociais.


Outro fator de extraordinário relevo para o desenvolvimento da consciência coletiva no Brasil tem sido a expansão dos meios de transporte e comunicação, os quais rapidamente difundem a filosofia de vida urbana, carregada de ideais igualitários e democráticos, bem como permitem o rompimento do isolamento de várias comunidades.


O aumento populacional é outro fenômeno que tem contribuído muito para a conscientização coletiva, por meio do preenchimento dos vazios demográficos e pela maior circulação de pessoas no território brasileiro.


Reflexo importante do aumento da conscientização coletiva é o crescente surgimento de associações representativas de interesses coletivos (por exemplo, de defesa do consumidor, de moradores de um determinado bairro, etc.), de lideranças comunitárias e de ONGs (organizações não-governamentais), voltadas para objetivos vários (por exemplo, a proteção do meio ambiente).


Informações Sobre o Autor

Carlos Alberto Bittar Filho

Procurador do Estado de São Paulo
Doutor em Direito pela USP/SP


Equipe Âmbito Jurídico

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