Houve durante muito tempo e até época
recente, no Brasil, acentuado respeito à Jurisdição, nesta última
compreendidos o direito-obrigação de dizer o Direito (parece
redundância, mas não é), a intocabilidade dos juízes
e a obediência plena às decisões últimas do Poder Judiciário. Na verdade, tal
soberania se fazia presente, esquisitamente, numa época em que o Poder
Executivo autoritário enfraquecia, com suas tenazes, a capacidade de
resistência do cidadão. Uma contradição, certamente, levando-se em consideração
que o próprio Poder Judiciário, no triste quadrante atravessado pelo
golpe de 1964, teve, em parte, seu império desguarnecido em razão dos
atos de força da denominada revolução. Ali, a atividade da Jurisdição se
repartia, pois o juiz, não podendo reagir ao regime, se transformava em seu
arauto, fortalecendo-se, em conseqüência, em razão do suporte autoritário.
Circunstâncias curiosas aconteciam: o magistrado não conseguia proteger o
cidadão, mas tinha redobrada potencialidade na execução de decisões robustecedoras dos desígnios do Executivo. O fenômeno não
estacionava nos juízes. Contagiava, com razão maior, o Ministério Público, na
medida em que este, com plena autenticidade, usava as
vestimentas costuradas pela nova ordem instituída. Assim, naquela época, era
fácil ao Poder Judiciário subjugar o cidadão aos efeitos da coisa julgada;
menos difícil ao Ministério Público, assemelhadamente,
era a assunção de conduta apta a atemorizar o ou os investigados,
ressaltando-se que a nobre Instituição, por seus prepostos, ocupava muita vez a
presidência das denominadas Comissões Gerais de Investigações.
Serve o intróito para a única
finalidade de permitir o paralelo entre o que foi e o que é.
Analisando-se o período atual,
conclui-se, extravagantemente, que o Poder Judiciário brasileiro mantém a duras
penas seu poder de império, vendo suas decisões sendo repetidamente
desrespeitadas pelo próprio Poder Executivo. Exemplo típico é o recente
confronto entre o Superior Tribunal de Justiça e o Ministério da Educação, opondo-se
o respectivo Ministro, respaldado pela Advocacia-Geral
da União, a mandado expedido pela autoridade judiciária competente. Não é só:
os precatórios assumiram, agora, ridícula conotação, porque, além de não serem
pagos, não tem o Supremo Tribunal Federal força suficiente a tornar efetiva a
exigibilidade de cumprimento pelos governos devedores. Há outras vertentes
preocupantes: nas diversas repartições da Jurisdição, ditas “competências”, há
conflitos substanciais sobre a correção ou não de decisões abrangentes de
provocações comunitárias importantes, algumas delas refletindo-se sobre o
panorama político da nação. E não há mistério nisso. Basta um correr de olhos
no acidente pré-eleitoral atingindo o cerne da candidatura da amazona Roseana
Sarney. Aqui, magistrados e magistrados litigam, uns acusando os outros de
menor dose de correção enquanto são cumpridos mandados de busca e
apreensão. Interfere no episódio a Presidência da Suprema Corte, prestando
declarações respeitantes ao roteiro do episódio litigioso. No entretempo –
fator intensamente interessante –, continua o Ministério Público pontificando,
sempre representando um poder qualquer, já agora seu, tendo-o obtido na última
reforma constitucional, porque a tanto se dispôs, montando praça nos corredores
do Congresso Nacional. Dentro do contexto, o fiscal supremo
(o Judiciário), este sim regulador daquilo que se convencionou chamar de
agressão-resistência, tomando-se a agressão como violência praticada contra o
cidadão e a resistência como o uso dos meios adequados à vivificação de
direitos constitucionalmente assegurados, observa, esmaecido, a tramitação das
condutas investigatórias do Estado persecutor, sem
musculatura suficiente a lhe refrear os excessos. Observa-se,
então, grande sorte de comportamentos anômalos praticados por agentes da nobre
Instituição, acolitados, na grande maioria das oportunidades, por uma sutil
sucumbência de alguns órgãos Jurisdicionais, restabelecendo-se, então, o
soturno ambiente corporificado durante a dita revolução de 1964. Houve época,
certamente, em que as investigações do Ministério Público eram indevassáveis,
protegidas sempre pelo segredo nos escaninhos dos gabinetes, transformando-se
os juízes em consortes inertes das arbitrariedades praticadas. Aquele tempo
ameaça retorno. Aparece pior ainda, pois protegido por ficção consistente
na quase rotineira inércia do Poder Judiciário. Já se vê que os tempos são
ruins. Num período dito democrático, desnivela-se o equilíbrio imprescindível,
abrindo-se espaço a uma abstrusa perseguição recoberta pelo sigilo. Despe-se o
juiz de sua toga, incapaz de disciplinar a atividade de um órgão que, hoje, tem
movimentação absolutamente atrabiliária,
beneficiando-se, supinamente, do maior defeito atribuível a ser humano ou
agremiação qualquer: a ausência de censura enquanto voltado à inação. Diz isso,
obviamente, com novidades absolutamente imorais consistentes na denominada
delação premiada, classicamente instrumentalizada, na
doutrina, dentro da prevaricação. Tempos estranhos, finalize-se: uma facção do
Poder Judiciário só é forte quando coonesta o
poder (ou quem o detém), enfraquecendo-se na proteção dos direitos
fundamentais dos miseráveis e partindo para verdadeiro autocídio coletivo, na
medida em que se destrói no combate interno. O Ministério Público, sempre
detentor do direito de punir, quer nos regimes autoritários quer nos sedizentes democráticos, aproveita os vazios e exercita a
função de intimidar, de controlar, de impor, de determinar, de subsumir os
investigados, unilateralmente, à vontade dos prepostos. Quanto ao povo, tem
medo de todos. Antes tinha pavor da polícia; confiava no magistrado e temia o
Ministério Público. Hoje tem medo da convergência e não confia em ninguém. Fecha
as janelas da casa e se esconde no negror da desesperança. Eis o que restou.
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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