Direito Ambiental

A Dimensão Social do Princípio da Sustentabilidade e as Ocupações de Áreas de Preservação Permanente

Victor Hugo de Souza Lima[1]

 

SUMÁRIO: Introdução; Princípio da Sustentabilidade: Conceito e Dimensão Social; Ocupação Irregular de Área de Preservação Permanente; Conflito Ambiental e Solução a partir do Paradigma da Dimensão Social da Sustentabilidade; Conclusão; Referências das Fontes Citadas.

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RESUMO

O presente artigo tem por finalidade analisar o princípio da sustentabilidade e a sua dimensão ambiental, com enfoque da influência deste na solução de conflitos gerados pela ocupação de áreas de preservação permanente por populações de baixa renda. Realizada uma incursão no conceito do princípio da sustentabilidade, de sua envergadura constitucional, faz-se uma explanação acerca da dimensão social da sustentabilidade, que se baseia num processo de melhoria da qualidade de vida, redução das desigualdades sociais e efetivação dos direitos fundamentais sociais. A influência desse preceito é de extrema relevância para a resolução de conflitos ambientais, especialmente na hipótese objeto de enfoque neste artigo, de modo a expurgar soluções simplistas que descurem dos aspectos sociais e acabem incrementando a pobreza e, por consequência, favorecendo à ampliação das precárias condições de vida que representam um claro fator de degradação ambiental. O objeto da pesquisa é a dimensão social do princípio da sustentabilidade. O objetivo geral é analisar a influência da dimensão social do princípio da sustentabilidade na ocupação urbana das áreas de proteção permanente. Os objetivos específicos da pesquisa são demonstrar a necessidade de adoção multidimensional da sustentabilidade, focando na dimensão social. Com relação à metodologia, adotou-se o método indutivo, mediante as técnicas da pesquisa bibliográfica, do fichamento e do referente.

 

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao poder público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O princípio da sustentabilidade tem especial relevo na proteção ambiental e constitui valor jurídico constitucional supremo, funcionando como marco axiológico e normativo ínsito às relações do homem com o meio ambiente.

Não se resume tal princípio à dimensão puramente ambiental, extraindo-se dele também as dimensões ética, econômica, jurídico-política e social, sendo esta última o foco do presente artigo científico, como paradigma a ser utilizado na resolução de conflitos ambientais gerados pelas ocupações irregulares de áreas de preservação permanente por populações de baixa renda, em situação de vulnerabilidade.

Segundo dados do IBGE[2], cerca de 50 (cinquenta) milhões de brasileiros vivem na linha da pobreza, situação que contribui, e muito, para a degradação ambiental e a ocupação urbana irregular, especialmente as áreas de preservação permanente.

Nesse cenário, é comum que o Poder Público adote medidas contra os ocupantes, inclusive judiciais, no intuito de desocupar a área e demolir as moradias existentes com intuito de tutelar o meio ambiente, sem maiores preocupações com os reflexos sociais dessa medida na vida das pessoas, que tem seu estado de pobreza agravado por não ter outras alternativas de moradia.

Com efeito, o objeto do presente artigo é a dimensão social do princípio da sustentabilidade.

O objetivo geral é analisar a influência da dimensão social do princípio da sustentabilidade na ocupação urbana das áreas de proteção permanente e se o produto dessa análise pode levar a um incremento do desenvolvimento sustentável.

Com relação aos objetivos específicos, a pesquisa destina-se à demonstração da impossibilidade de se adotar uma visão oblíqua acerca da sustentabilidade, restrita ao aspecto ambiental, sem considerar a dimensão social, para, com isso, evitar-se a adoção de decisões que, sob auspícios de resguardar o meio ambiente, importem em incrementação da pobreza, como ocorre no caso de determinações judiciais que pura e simplesmente determinem a desocupação da área de proteção permanente e a demolição da edificação da moradia existente no imóvel.

Quanto à metodologia, empregou-se o método indutivo, mediante as técnicas da pesquisa bibliográfica, do fichamento e do referente.

 

  1. O PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE: CONCEITO E DIMENSÃO SOCIAL

O termo sustentabilidade é polissêmico e carregado de abstração, espraiando-se por vários campos jurídicos.

Bosselman diz que sustentabilidade “é ao mesmo tempo simples e complexa. Semelhante à ideia de justiça.” Segundo o autor “A maioria de nós sabe intuitivamente quando alguma coisa não é ‘justa’. Da mesma forma, a maioria de nós tem plena consciência de coisas insustentáveis: lixo, combustíveis fósseis, automóveis poluentes, alimentos não saudáveis (…)”. Porém, a complexidade reside no fato de não existir “(…) uma definição uniformemente aceita (…)”. A sustentabilidade “(…) não pode ser definida sem uma maior reflexão sobre valores e princípios.”[3]

De qualquer maneira, entende-se o princípio da sustentabilidade busca conciliar a proteção ambiental com o desenvolvimento socioeconômico, mediante o reconhecimento da finitude dos recursos ambientais.

Segundo Juarez Freitas, trata-se de um dever ético e jurídico-político de promover o bem-estar no presente, sem causar prejuízos ao bem-estar futuro, seja próprio ou de terceiros. É dizer, a sustentabilidade “consiste em assegurar, de forma inédita, as condições propícias ao bem-estar físico e psíquico no presente, sem empobrecer e inviabilizar o bem-estar no amanhã”.[4]

O termo desenvolvimento sustentável ganhou relevo no Relatório de Brundtland elaborado em 1987 pela Comissão Mundial para o meio ambiente e desenvolvimento, da Assembleia Geral das Nações Unidas, que apresentou o seguinte conceito: “O desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades”[5].

Com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, o desenvolvimento sustentável se concretizou como princípio, tendo tal documento, segundo Maria Luiza Machado Granziera, estabelecido uma conexão entre a pobreza mundial e a degradação ambiental[6].

Gabriel Real Ferrer, ao classificar a conferência de 1992 como a segunda onda do Direito Ambiental, afirma que a partir desse documento se percebe que a solução dos problemas ambientais perpassa necessariamente pelo enfrentamento dos componentes do desenvolvimento e da pobreza.[7]

Isso porque o desenvolvimento sustentável não pode ser pensado numa linha puramente liberal, de mero crescimento econômico, despido de compromisso com as mazelas sociais, daí porque Marcelo Varella afirma que “em uma lógica mais política e social, o desenvolvimento é medido pela expansão de liberdades, como o acesso à saúde e à educação, à proteção do meio ambiente e à democracia”[8].

Juarez Freitas defende uma visão multidimensional de sustentabilidade, dividindo-a em cinco dimensões, a social, a ética, a jurídico-política, a econômica e a ambiental.

A dimensão social, que é a que nos interesse no presente artigo, acolhe os direitos fundamentais sociais e exige o incremento da equidade intra e intergeracional; condições propícias ao florescimento virtuoso das potencialidades humanas; e o engajamento à causa do desenvolvimento, de modo a possibilitar, a longo prazo, a sobrevivência da sociedade, com dignidade e respeito à dignidade dos demais seres vivos. [9]

Denise Schmitt Siqueira Garcia e Heloise Siqueira Garcia[10] assim dissertam acerca da dimensão social da sustentabilidade:

Por fim, a dimensão social consiste no aspecto social relacionado às qualidades dos seres humanos, sendo também conhecida como capital humano. Ela está baseada num processo de melhoria na qualidade de vida da sociedade através da redução das discrepâncias entre a opulência e a miséria com o nivelamento do padrão de renda, o acesso à educação, à moradia, à alimentação. Estando, então, intimamente ligada à garantia dos Direitos Sociais, previstos no artigo 6º da Carta Política Nacional, e da Dignidade da Pessoa Humana, princípio basilar da República Federativa do Brasil.

Inadmissível, portanto, um modelo de desenvolvimento excludente, oligárquico, indiferente, focado apenas no aspecto econômico ou mesmo ambiental. Há de haver um equilíbrio entre as facetas multidimensionais da sustentabilidade, “sob pena de modelo de governança (pública ou privada) ser autofágico e, numa palavra, insustentável”[11].

É importante observar que a Constituição Federal de 1988 tem na sustentabilidade um de seus valores supremos, nas precisas palavras de Juarez Freitas: “no sistema brasileiro, é, entre valores, um valor de estatura constitucional. Mais: é ‘valor supremo’, acolhida a leitura da Carta endereçada à produção da homeostase biológica e social de longa duração”[12].

Logo, tratando-se de um valor supremo, serve de carga axiológica para interpretação, ou reinterpretação, do ordenamento jurídico, porquanto se espraia por diversos ramos, até mesmo em razão de sua polissemia e multidimensionalidade.

Disso decorre que a hermenêutica constitucional é impregnada por esse valor, de sorte que a leitura, por exemplo, do art. 3º, II, da Constituição Federal, que estabelece o desenvolvimento nacional como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, só pode ser interpretado com um desenvolvimento sustentável e, a par da dimensão social, também adjetivado pelo termo social.

Mas sobretudo, sustentabilidade sob a dimensão social não se efetivará sem o abrigo aos direitos fundamentais social, previstos no art. 6º da Constituição Federal, quais sejam, o direito à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência social.

Diante do foco do presente artigo, cabe destacar o direito à moradia. Conquanto o texto constitucional não traga parâmetros explícitos para a definição de seu conteúdo, pode-se estabelecer uma relação estreita com o princípio da dignidade da pessoa humana e com a garantia de padrões qualitativos mínimos a vida saudável, com assinala Sartet[13].

Segundo Tiago Fensterseifer, a garantia do direito fundamental social à moradia não é sinônimo de mera disponibilização de um teto sobre a cabeça, pois, em termos constitucionalmente desejáveis, exige-se um “espaço físico onde a vida humana possa se desenvolver de forma plena e em padrões dignos de existência”, de um padrão mínimo de qualidade ambiental, com acesso à água, ao saneamento básico, à boa qualidade de atividade industrial.[14]

Há uma relação umbilical com o mínimo existencial, identificado sob duas dimensões conforme Denise Schmitt Siqueira Garcia e Heloise Siqueira Garcia, “de um lado, o direito de não ser privado do que se considera essencial à conservação de uma existência minimamente digna; e, de outro, o direito de exigir do Estado prestações que traduzam esse mínimo.”[15]

Nesse sentido, Sarlet expõe que o direito social à moradia abrange posições jurídicas negativas (direito de defesa) e positiva (direita a prestações). No primeiro caso, na condição de direito de defesa impede-se que “a pessoa seja privada arbitrariamente e sem alternativas de uma moradia digna, por ato do Estado ou de outros particulares”[16]. Como prestação, “o direito à moradia abrange prestações fáticas e normativas, que se traduzem em medidas de proteção e de caráter organizatório e procedimental”[17].

Com efeito, a garantia do direito social à moradia insere-se no âmbito da dimensão social do princípio da sustentabilidade, que por sua vez, como valor supremo, constitui referencial axiológico e normativo.

 

  1. A OCUPAÇÃO IRREGULAR DE ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

O Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), em seu art. 3º, inciso II, conceitua as áreas de preservação permanente como uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

O art. 4º da supracita lei estabelece a faixa considerada área de preservação permanente, em zonas rurais e urbanas:

  1. a) faixas marginais de qualquer curso d’água natural e perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura; 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; 30 (trinta) metros, em zonas urbanas;
  2. b) as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de: 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros;
  3. c) as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento;
  4. d) as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros;
  5. e) as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive;
  6. f) as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
  7. g) os manguezais, em toda a sua extensão;
  8. h) as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;
  9. i) no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação;
  10. j) as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação;
  11. k) em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.

A intervenção ou supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ocorrer na hipótese de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental (art. 8º, Lei nº 12.651/2012), as quais são detalhadas nos incisos VIII, IX e X do art. 3º da Lei nº 12.651/2012.

Entretanto, a realidade brasileira retrata a existência de ocupação irregular de áreas de preservação permanente, sem qualquer tipo de planejamento, muitas vezes em precárias condições sanitárias, fora dos preceitos legais, que estabelecem restrições à intervenção ou supressão de vegetação em tais áreas.

É fato notório que essas ocupações ocorrem, em grande parte, devido a falta de políticas públicas adequadas de moradia e planejamento urbano, numa clara omissão do poder público, sem falar na falta de uma educação ambiental adequada.

O certo é que as áreas de preservação permanente são importantes para a manutenção da qualidade do meio ambiente, motivo pelo qual o Direito Ambiental as tutela, estabelecendo normas protetivas, visando a conservação, preservação e regeneração desse espaço territorial.

Paulo Affonso Leme Machado[18] afirma que:

A vegetação, nativa ou não, e a própria área são objeto de preservação não só por si mesmas, mas pelas suas funções protetoras das águas, do solo, da biodiversidade […], da paisagem e do bem-estar humano. A área de preservação permanente – APP é um favor da lei, é um ato de inteligência social e é de fácil adaptação às condições ambientais.

Esse processo contínuo de formação de assentamentos e ocupações irregulares, em condições precárias e com deficiente infraestrutura básica, é fator gerador de degradação ambiental e remete à necessidade de o Poder Público tomar providências administrativos ou judiciais para fazer cessar tal situação.

À míngua de um planejamento, e contando quase sempre com a omissão do ente público municipal, no caso das áreas de preservação urbana, são edificadas moradias ao redor das nascentes, na marginal de cursos d’água, em encostas de morras, enfim, em espaços que gozam de especial proteção.

Sem dúvida, quem mais se insere nesse contexto é a baixa camada social, especialmente nos centros urbanas, que se submete a precárias condições de moradia e sem maiores preocupações com os reflexos danosos ao meio ambiente.

Boa parte dos problemas ambientais se concentram nas áreas mais pobres, o que remete à clara relação existente entre pobreza e preservação ambiental, realidade que só tende a melhorar com uma maior distribuição de renda e a implementação de uma ampla educação ambiental.

Parece óbvio, portanto, que quanto menor a renda de um individuo, menor será a sua preocupação com o meio ambiente, haja vista que todos os seus esforços se concentraram no sustento pessoal e familiar, de modo que outras questões, como a ambiental, tornam-se irrelevantes. Num cenário em que se vive em condições mínimas, sobrevivência é a prioridade.

A miséria e a pobreza gerada pela falta de acesso à direitos básicos como saúde, saneamento básico, educação, trabalho, moradia, renda mínima, alimentação, lazer, dentre outros, representa claro fator de degradação ambiental e enfraquece a dignidade das pessoas de baixa renda.

Somente com um maior desenvolvimento social, e não meramente econômico, proporcionando melhores condições de vida as pessoas, é que se conseguirá uma maior conscientização acerca da importância da proteção do meio ambiente.

 

  1. CONFLITO SOCIOAMBIENTAL E SOLUÇÃO A PARTIR DO PARADIGMA DA DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE

Com o surgimento de uma conflito socioambiental gerado pela ocupação por pessoas em situação de pobreza e, portanto, hipossuficientes, em vulnerabilidade social, ocupando uma área considerada de preservação permanente, para o fim de utilizá-la como sua moradia, o ente público competente, ao tomar providências, notifica o indivíduo a desocupar o local e lavra auto de infração, ao passo que, em caso de inércia, ajuíza ação judicial para tal fim, pedindo inclusive a demolição da edificação existente.

Nessa perspectiva, instaura-se, então, um choque entre o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à moradia, cuja solução em âmbito administrativo ou judicial é de grande complexidade, não só jurídica como prática.

À primeira vista, a solução mais simples seria a determinação de desocupação da área, com demolição da eventual edificação existente, como forma de preservar e/ou recuperar a área de preservação permanente. O particular arcaria com esse ônus, por ser presumidamente sabedor de que o local não admite a ocupação fora das hipóteses legais de utilidade pública ou interesse social, e não poderia reivindicar nada em troca, por se tratar de um ato ilícito, contrário ao que dispõe a legislação ambiental.

Tal decisão contemplaria, digamos, uma visão mais ecológica ou uma leitura isolada, e capenga, da sustentabilidade em sua dimensão ambiental, à dar primazia a proteção ambiental e garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado, sem adentrar nos efeitos sociais da medida, preocupando-se apenas com a imediata cessação da degradação, que é o foco da proteção.

Seria algo como se, a partir do discurso ecológico e preservacionista, a esfera ambiental estivesse acima das questões sociais, que não se inseririam no âmbito de atuação do Direito Ambiental.

É justamente nesse contexto que a dimensão social do princípio da sustentabilidade pode atuar de forma a permitir uma solução que contribua para uma sociedade ambientalmente sustentável e ao mesmo tempo socialmente justa.

Isso porque permeado pela dimensão social da sustentabilidade é inadmissível o desprezo do contexto social da problemática apresentada. É intuitivo que a exclusão desse dado, gera uma decisão potencialmente causadora de danos sociais e, consequentemente, amplia a situação de pobreza no conflito ambiental analisado.

Vale dizer, decisões que prestigiam a proteção ambiental puramente, e que determinam a desocupação da área de preservação permanente e demolição da edificação existente no imóvel, sem se preocupar com o destino dos ocupantes, deixando-os à própria sorte, causam um incremento da pobreza e, por isso, devem ser tidas como insustentáveis.

Aliás, pode-se até conjecturar que situações que desconsideram o aspecto social das ocupações irregulares em questão, em que a vulnerabilidade social dos ocupantes é latente, é bem possível que tais pessoas ocupem outra área também de forma inadequada e, como isso, causem novos danos ambientais.

A premissa de que o meio ambiente estaria sendo protegido é, portanto, indisfarçavelmente falsa, pois o efeito é reverso. Não haverá proteção ambiental desacompanhada de proteção à direitos fundamentais básicos, como o da moradia.

Não se pode garantir o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e, ao mesmo tempo, descurar outros direitos fundamentais, no caso o da moradia, diante do caráter indivisível e interdependente dos direitos fundamentais e que, em última análise, compõem a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, afirma Tiago Fensterseifer[19]:

Sem o acesso a tais condições existenciais mínimas, não há que se falar em liberdade real ou fática, quanto menos em um padrão de vida compatível com a dignidade humana. A garantia do mínimo existencial trata-se, em verdade, de uma premissa ao próprio exercício dos demais direitos fundamentais, sejam eles direitos de liberdade, direitos sociais, ou mesmo direitos de solidariedade, como é o caso do direito ao ambiente. Por trás da garantia constitucional mínimo existencial, subjaz a ideia de respeito e consideração, por parte da sociedade e do Estado, pela vida de cada indivíduo, que, desde o imperativo categórico de Kant, deve ser sempre tomada como um fim em si mesmo, em sintonia com a dignidade inerente de cada ser humano.

Segundo Denise Schmitt Siqueira Garcia e Heloise Siqueira Garcia[20] a manutenção de um mínimo existencial é indispensável para se alcançar uma proteção ambiental efetiva, sendo necessário a adoção de políticas pelos poderes constituídos de implementação dos direitos fundamentais:

Só que para isso também é necessário lembrar que para se falar em proteção ambiental, devem-se levar em consideração outros fatores além do simples fato de não derrubar uma árvore, de proteger uma reserva, etc, ou seja, faz-se necessário a manutenção do mínimo existencial, que são os direitos fundamentais necessários para manutenção da Dignidade humana.

Para o atendimento de todas essas premissas acima explícitas faz-se necessário uma aprimoramento de políticas públicas nos países. Considerando Políticas públicas o conjunto de normas elaboradas pelo Poder Legislativos, das ações realizadas pelo Poder Executivo, bem como pela fiscalização pelo Poder Judiciário da garantia dos Direitos fundamentais quando houver essa provocação pela sociedade, eis que quando o Poder Judiciário interfere nas Políticas Públicas ele faz um controle de constitucionalidade, ou seja, pode controlar a aplicação do artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Logo, sob a dimensão social do princípio da sustentabilidade, tem-se que decisões que ignorem os aspectos sociais não se sustentam nem mesmo sob o a premissa da sustentabilidade, e qualificam-se, isto sim, como insustentável.

Com efeito, na hipótese adotada como problemática, de ocupação irregular de área de preservação permanente pela população de baixa renda, a decisão de resolução desse conflito, ou mesmo a política pública de enfrentamento, não se conforma com a mera desocupação forçada da área e a demolição das construções existentes.

Para atender o princípio da sustentabilidade é obrigação do Poder Público garantir o direito à moradia dessa população, mediante políticas públicas que permitam o acolhimento e alocação em ambientes adequados, seja pela inclusão em projetos de habitação ou locação social, enfim adote medidas que tornem mais precárias as condições de quem já está em situação de vulnerabilidade.

Por outro lado, caso se trate de uma área de ocupação consolidada, já impactada, sem as características que lhe gravavam como uma área de preservação permanente, a dimensão social do princípio da sustentabilidade exigirá a regularização fundiária e mesmo a concessão de direito real de uso de bem público, cumpridos os demais ditames legais.

A solução proposta parecer ser a que remete à construção de uma sociedade ambientalmente sustentável e um avança da justiça ambiental, com valorização da vida e dignidade da população.

 

  1. CONCLUSÃO

O princípio da sustentabilidade, valor supremo constitucional, dotado de carga axiológica que impregna o sistema jurídico, tem por objetivo garantir uma vida saudável às pessoas, sem prejudicar as gerações futuras, que não podem ser privadas das bases vitais que mantém a vida com qualidade no planeta.

Tem caráter multidimensional e deve ser analisado com essa profundidade, evitando-se uma leitura superficial e incompleta do princípio, que prioriza apenas uma ou outras dessas dimensões em detrimento das demais, gerando um claro desequilíbrio e, por consequência, uma decisão insustentável.

O enfoque teórico do presente artigo foi justamente uma dessas dimensões, a social, que estabelece uma clara relação entre a degradação ambiental e a pobreza, propugnando a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais sociais e de uma maior distribuição de renda, de modo a diminuir as notórias desigualdades sociais.

Não é possível pensar em proteção ambiental sem que haja um enfrentamento das mazelas sociais existentes, eliminação da miséria, garantia de um mínimo existencial ou a redução do abismo social que gera imensa diferença na qualidade de vida dos mais pobres e da classe de elite.

Não há como se exigir um nível de consciência ambiental de quem sequer consegue prover o seu sustento pessoal e familiar ou uma vida com dignidade, despida de garantias básicas.

O cenário brasileiro é preocupante e há muito ainda a ser feito para a concretização da dimensão social do princípio da sustentabilidade, especialmente no que toca às políticas públicas de moradia. Sem isso, dificilmente se alcançará a redução dos níveis de degradação ambiental.

Esse contexto é um dos fatores que leva à ocorrência de ocupações irregulares de área de preservação permanente por pessoas de baixa renda, situação que deve ser analisada e solucionada a partir da dimensão social da sustentabilidade, excluindo-se decisões que causem maior precarização dos direitos fundamentais sociais dos ocupantes.

O Estado, por meio dos poderes constituídos, inclusive o Judiciário, deve efetivar os direitos sociais para que haja a preservação ambiental, e não impor soluções oblíquas que visem apenas a retirada de pessoas das áreas protegidas, sem prestar-lhe a correspondente assistência social e preservação dos direitos sociais em jogo, como na hipótese discutida no presente artigo.

O desenvolvimento sustentável, capaz de garantir o bem estar das gerações atuais e futuras, exige uma implementação da dimensão social, com toda a carga axiológica que a acompanha no tratamento das demais questões ambientais.

 

REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS

GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Dimensão social do princípio da sustentabilidade: uma análise do mínimo existencial ecológico. In: SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; GARCIA, Heloise Siqueira (Orgs). Lineamentos sobre sustentabilidade segundo Gabriel Real Ferrer. Livro Eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: <http://www.univali.br/ppcj/ebook> 1. ed. Itajaí : UNIVALI, 2014.

FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção ambiental – A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU e o meio ambiente. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/meio-ambiente/. Acessado em 02/05/2018.

REAL FERRER, Gabriel. Calidad de vida, medio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía ¿Construimos juntos el futuro? Revista Eletrônica Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 17, n. 3, 3º quadrimestre de 2012. Disponível em: http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/4202. Acesso em 02/05/2018.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

 

[1] Aluno do MINTER em Ciências Jurídicas. Artigo elaborado para a disciplina Governança Transnacional e Sustentabilidade, ministrado pela professora Dra.Denise Schmitt Siqueira Garcia.

[2] Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza. Acessado em 02/05/2018.

[3] BOSSELMAN. Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança. Tradução Phillip Gil França. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 25.

[4] FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 15-16.

[5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU e o meio ambiente. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/meio-ambiente/. Acessado em 02/05/2018.

[6] GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009, p. 43.

[7] REAL FERRER, Gabriel. Calidad de vida, medio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía ¿Construimos juntos el futuro? Revista Eletrônica Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 17, n. 3, 3º quadrimestre de 2012, p. 315. Disponível em: http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/4202. Acesso em 02/05/2018.

[8] VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 40.

[9] FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. p. 60.

[10] GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Dimensão social do princípio da sustentabilidade: uma análise do mínimo existencial ecológico. In: SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; GARCIA, Heloise Siqueira (Orgs). Lineamentos sobre sustentabilidade segundo Gabriel Real Ferrer. Livro Eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: <http://www.univali.br/ppcj/ebook> 1. ed. Itajaí : UNIVALI, 2014. p. 44-45.

[11] FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. p.59.

[12] FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. p. 109.

[13] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 587-588.

[14] FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção ambiental – A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 84.

[15] GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Dimensão social do princípio da sustentabilidade: uma análise do mínimo existencial ecológico. In: SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; GARCIA, Heloise Siqueira (Orgs). Lineamentos sobre sustentabilidade segundo Gabriel Real Ferrer. Livro Eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: <http://www.univali.br/ppcj/ebook> 1. ed. Itajaí : UNIVALI, 2014. p. 46.

[16] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. p. 588.

[17] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. p. 589.

[18] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 719.

[19] FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção ambiental – A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008 p. 271.

[20] GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; GARCIA, Heloise Siqueira. Dimensão social do princípio da sustentabilidade: uma análise do mínimo existencial ecológico. In: SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; GARCIA, Heloise Siqueira (Orgs). Lineamentos sobre sustentabilidade segundo Gabriel Real Ferrer. Livro Eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: <http://www.univali.br/ppcj/ebook> 1. ed. Itajaí : UNIVALI, 2014. p. 51-52.

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