A eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais no Brasil

Resumo: Os direitos fundamentais, núcleo duro da Constituição da Republica de 1988, nos últimos anos, tornaram-se assunto da ordem do dia. A teoria unidirecional, também chamada de Eficácia Vertical dos Direitos Fundamentais, surgiu no Estado Liberal com intuito de proteger o cidadão das atuações exacerbadas de um Estado Absolutista Monárquico. Fez-se necessário usar os direitos fundamentais como escudo, como direitos de defesa. Essa teoria é pacífica e unânime, tanto na doutrina como na jurisprudência. Entretanto, a violação dos direitos fundamentais não ocorre somente nas relações entre Estado e indivíduos, mas também nas relações jurídicas entre particulares, pessoa versus pessoa, seja ela natural ou jurídica. Essa teoria é chamada de eficácia horizontal dos direito fundamentais ou Drittwirkung, como preferem os alemães. Discute-se como e até que ponto os direitos fundamentais podem interferir em relações jurídicas eminentemente privadas. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais desafia os maiores constitucionalistas pátrios, pois é um tema consideravelmente recente e extremamente polêmico.


Palavras-chave: direitos fundamentais. eficácia. horizontal. particulares.


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Abstract: Fundamental rights, core of the 1988 Constitution of the Republic, in recent years, became the subject of the agenda. The unidirectional theory, also known as Vertical Effectiveness of Fundamental Rights, appeared in the Liberal State in order to protect citizens from actions exacerbated of an  absolute monarchy state. It was necessary to use the fundamental rights as a shield as defense rights. This theory is peaceful and united, both in doctrine and in jurisprudence. However, the violation of fundamental rights does not only occur in the relations between state and individuals, but also in legal relationships between individuals, person x person, whether natural or juridical.This theory is called the Horizontal Effectiveness of Fundamental Rights or Drittwirkung , as preferred by the Germans. It discusses how and the extent to which fundamental rights may interfere in private legal relationships. The horizontal effectiveness of fundamental rights challenges the greatest constitutional patriotic to speak out, because it is a theme pretty recent and highly controversial.


Keywords: fundamental rights. effectiveness. horizontal. Individuals


1. Introdução


Malgrado haja discussões sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais desde a década de cinqüenta na Europa, no Brasil, esse tema tornou-se pauta de grandes debates jurídicos somente nas últimas décadas.


O eixo central das discussões jurídicas relativas ao tema engloba justamente os limites de aplicabilidade dos direitos fundamentais em relações eminentemente privadas. Quando e como serão inseridos os direitos fundamentais em relações nas quais prevaleça o princípio da autonomia da vontade, pois ambos os sujeitos da relação jurídica são particulares.


2. Os Direitos Fundamentais


Para entender-se com plenitude o tema abordado nesse artigo faz-se necessário desenvolver, primeiramente, os direitos fundamentais, partindo da sua terminologia.


Existem várias expressões sinônimas de direitos fundamentais, a saber: direitos humanos, direitos do homem, liberdades públicas, direitos subjetivos públicos, direitos individuais e até direitos civis.[1]


Várias são as tentativas para explicar-se tamanha variedade de sinônimos. Seguimos a explicação dada por Perez Luño. Os direitos fundamentais são direitos positivados em nível interno, já os direitos humanos são direitos naturais positivados nos tratados e convenções internacionais[2].


Insta trazer à baila a explicação de Sarlet, entendendo como a melhor forma de compreender a categoria dos direitos fundamentais através da diferenciação dos direitos fundamentais, dos direitos humanos e dos direitos do homem. O fator diferencial é o local onde estão previstos esses direitos. Os direitos fundamentais estão reconhecidos e protegidos pelo direito constitucional de cada Estado, previstos no texto constitucional; os direitos humanos estão presentes em tratados internacionais, na esfera dos direitos internacionais e os direitos do homem são direitos inerentes à condição de seres humanos (direitos naturais), ainda não positivados.[3]


Os direitos do homem eram direitos naturais, inalienáveis e sagrados, direitos estes imprescritíveis, alcançando a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão[4].


Num segundo momento é de vital importância expor as características dos direitos fundamentais, como historicidade, universalidade, concorrência, irrenunciabilidade, e limitabilidade[5].


 Entende-se por historicidade o desenvolvimento dos direitos humanos, pois não nasceram planejados, são direitos que estavam latentes e de acordo com a evolução da sociedade, com novos ataques a determinados bens da vida antes não protegidos pelo direito,vieram a emergir.


Os direitos não nascem todos de uma vez, nascem quando podem ou devem. Isso acontece quando há o aumento do poder do homem sobre o homem ou quando ele cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou até mesmo quando permite novos remédios para suas indulgências[6].


A característica da universalidade vem expressa na Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948 com intuito de vedar novas barbáries como as ocorridas na segunda guerra mundial. Ela demonstra que todo e qualquer ser humano, de forma indiscriminada, possui direito aos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais demonstram e retratam uma idéia que surgiu no ocidente. Sendo assim, alguns críticos alegam que os direitos fundamentais não são universais, pois impor um respeito desses direitos em civilizações com costumes e tradições diversos dos ocidentais seria uma violação à autodeterminação dos povos[7].


É uma discussão complexa na qual Daniel Sarmento responde argumentando sobre o respeito ao direito coletivo à manutenção das formações culturais não hegemônicas, positivado em sede constitucional e no âmbito internacional, bem como ao multiculturalismo, desde que este argumento não seja tese de defesa para a prática de atrocidades pelos Estados violadores dos direitos humanos. Assim, os direitos fundamentais seriam extensíveis a todos os seres humanos independentemente de sua cultura ou local onde vivem[8].  


 A universalidade pode ser explicada, para uma melhor compreensão, junto com a característica da irrenunciabilidade. Todo ser humano, possuidor de direitos fundamentais, jamais poderá renunciar a estes direitos. O mero não exercício é permitido, mas a renúncia, nunca[9]. Podemos exemplificar com a situação do ator que tem um contrato televisivo com uma emissora de televisão, a qual impede que o mesmo apareça na concorrente. No caso em tela o ator está cerceado temporariamente de exercer um direito fundamental, seu direito de imagem, mas não está renunciando a este direito. Assim que terminar o contrato ele poderá exercê-lo novamente.


Já a concorrência, repousa no exercício concomitante de mais de um direito fundamental. Por exemplo[10], quando um jornalista de televisão transmite uma notícia ele está usufruindo do seu direito de informação e quando emite uma opinião a respeito está exercendo o direito de opinião.


A característica da limitabilidade dos direitos fundamentais significa que não há direito fundamental absoluto nem ilimitado. Existem limitações na necessidade de assegurar aos outros o exercício desses direitos, bem como há limites externos impostos pela vida em sociedade, traduzidos na ordem pública, ética social e autoridade do Estado[11].


Outro ponto relevante sobre a limitabilidade é o confronto de interesses, no qual surgem dois direitos fundamentais em choque. O julgador deverá solucioná-lo de duas formas. Primeiramente poderá ser solucionado pela Constituição da República, por exemplo[12]: no confronto Direito de Propriedade versus Desapropriação. Nesse caso, a própria Constituição em seu artigo 5º, inciso XXIV, soluciona asseverando que “A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização, em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;” ou o julgador decidirá no caso concreto qual direito irá prevalecer utilizando-se dos princípios da máxima efetividade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade ou razoabilidade.


Para melhor compreensão da ponderação de interesses é importante entender o conteúdo dos princípios citados acima. O princípio da máxima efetividade dá à norma constitucional a mais ampla efetividade social. Canotilho, define esse princípio como “operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese das normas programáticas, é hoje invocado no âmbito dos direitos fundamentais”[13].


Disposto no artigo 1º, inciso III da Constituição da República de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da constituição e, para muitos autores, fundamento para todos os outros princípios. Em que pese o elevado grau de indeterminação, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui critério para integração da ordem constitucional, prestando-se para reconhecimento de direitos fundamentais.


Todo homem tem dignidade e não um preço como as coisas, já que sua natureza o torna um fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio; o que limita, conseqüentemente, o seu livre arbítrio, consoante o pensamento kantiano sobre dignidade[14].


Completando o tripé principiológico utilizado pelo julgador na ponderação de interesses está o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. Busca-se a justa medida, o direito justo e veda-se o excesso e a falta de bom senso nas decisões judiciais. Divide-se em necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. O princípio da necessidade significa que a medida não deve exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja. A adequação assevera que o meio escolhido deve atingir o objetivo pretendido[15]. Já o princípio da proporcionalidade em sentido estrito pretende-se a máxima efetividade e a mínima restrição[16].


O estudo metodológico dos direitos fundamentais sob o ponto de vista de sua historicidade levou à elaboração da idéia de gerações de direitos. Todavia, muitos dizem dimensões com a intenção manifesta de evitar a idéia de sucessão no tempo. Malgrado seja hoje majoritário o termo dimensão, independentemente da expressão que se use, dimensões ou gerações, não se pode negar que elas são importantes para identificar, de forma metodológica, a evolução dos direitos fundamentais. Baseado na mais moderna doutrina constitucional, as dimensões ou gerações dividem-se em cinco.


A primeira dimensão ou geração dos direitos fundamentais surge no embate entre o pensamento liberal-burguês e o Estado Absolutista do século XVIII. São direitos que possuem como característica a proteção do indivíduo em face da atuação do Estado. Dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos que traduzem o valor de liberdade. Podemos citar como exemplos o direito à vida, liberdade, propriedade, até mesmo o habeas corpus e o direito de petição.


Estes direitos têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade como sua maior característica; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado[17].


A segunda dimensão ou geração dos direitos fundamentais surge impulsionada pela revolução industrial européia, na qual as péssimas condições de salubridade em que os trabalhadores exerciam suas atividades fizeram eclodir reivindicações trabalhistas. Foi nesse cenário que surgiram os direitos sociais, econômicos e culturais, que correspondiam ao valor de igualdade.


Foram direitos, que, primeiramente, possuíam uma carga de baixa normatividade, pois demandavam do Estado uma atuação positiva, prestacional. Atuação nem sempre possível porque os recursos estatais, via de regra, são limitados[18].


Posteriormente, foram remetidos à esfera das normas programáticas, sendo este o argumento para a aplicação imediata dos direitos de liberdade e mediata para os direitos de segunda dimensão[19].


A evolução da sociedade, o seu desenvolvimento tecnológico e científico fez mudar-se a concepção individualista predominante para uma preocupação com o todo, com a coletividade (direitos de solidariedade). Foi o surgimento da terceira dimensão ou geração dos direitos fundamentais. Podemos citar como exemplos[20] a preservação ambiental e a proteção ao consumidor.


Até a terceira geração ou dimensão dos direitos fundamentais há um senso comum na doutrina e jurisprudência, contudo, a partir da quarta dimensão/geração dos direitos fundamentais os doutrinadores divergem. Seguindo as lições do Prof. Paulo Bonavides são direitos de quarta dimensão ou geração o direito à democracia, o direito à informação e ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas a relações de convivência[21].


Adriana Galvão Moura esclarece quais são os direitos de quinta dimensão:


Os direitos humanos de quinta dimensão relacionam-se com a realidade virtual e caracterizam-se pela preocupação do sistema jurídico com a difusão e desenvolvimento da cibernética na atualidade, envolvendo a internacionalização da jurisdição constitucional das fronteiras físicas através da “grande rede”[22].


3. A eficácia vertical dos Direitos Fundamentais


Inclinada nos direitos fundamentais de primeira dimensão ou geração, ou seja, os direitos que limitam a atuação dos governantes em face das liberdades individuais dos governados, baseada numa relação vertical entre Estado e particular, surge a Teoria da Eficácia Vertical dos Direitos Fundamentais. Dessa forma os direitos fundamentais eram vistos como liberdades e garantias, ou seja, direitos de defesa do indivíduo perante o Estado. A aplicação dos direitos fundamentais nessa relação vertical, Estado versus particular, não se discute. Como por exemplo, em uma licitação deverá ser obedecido o princípio da isonomia.


No Estado liberal a Constituição regulava apenas as relações entre o Estado e os particulares, enquanto o Código Civil disciplinava as relações privadas. Os direitos fundamentais funcionavam como limites à atuação dos governantes em favor dos governados, tratava-se de direitos públicos subjetivos, oponíveis em face do Estado. Já no Direito Privado o princípio fundamental era o da autonomia privada, ou seja, a liberdade de atuação dos particulares, que deveriam pautar suas condutas apenas nas leis civis.


O princípio da autonomia da vontade ou autonomia privada se fundamenta na ampla liberdade contratual, na discricionariedade contratual dos contratantes em decidir se querem contratar e qual será o objeto do contrato do acordo de vontades, na busca dos efeitos tutelados pela ordem jurídica. Podem as partes celebrar contratos nominados ou fazer combinações, resultando nos contratos inominados, sem a interferência do Estado[23].


 Nesse contexto, o Estado deveria reduzir ao mínimo sua atuação para que a sociedade pudesse se desenvolver harmoniosamente. Entendia-se que Estado e sociedade eram dois universos completamente distintos e incomunicáveis, regidos, respectivamente o Direito Público e o Direito Privado[24].


As idéias liberais traziam essa nítida separação entre o espaço privado e o público, muito bem representada através da expressiva metáfora “do jardim e da praça”, respectivamente[25].


Superado o Estado liberal e o surgimento do Estado Social, a evolução e a complexidade das relações sociais demandaram uma nova forma de visualização do direito privado. Esta concepção primária dos direitos fundamentais não resistiu às mudanças operadas na realidade política, social e econômica, resultando na nova ordem que se convencionou chamar de “sociedade técnica de massa”. Sociedade na qual prevalece a produção em alta escala e em seus negócios jurídicos, o contrato de adesão.


Segundo professor Carlos Roberto Gonçalves “a economia de massa exige contratos impessoais e padronizados (contratos-tipo ou de massa), que não mais se coadunam com ao princípio da autonomia da vontade. O Estado intervém, constantemente, na relação contratual privada, para assegurar a supremacia da ordem pública, relegando o individualismo a um plano secundário. Essa situação tem sugerido a existência de um dirigismo contratual, em certos setores que interessam a toda coletividade. Pode-se afirmar que a força obrigatória dos contratos não se afere mais sob a ótica do dever moral de manutenção da palavra empenhada, mas da realização do bem comum[26]


Somada à sociedade técnica de massa há a entrada em vigor do Código Civil de 2002. O Código Civil anterior cuja entrada em vigor foi no ano de 1916 possuía uma visão extremamente patrimonialista. As relações jurídicas e até mesmo o próprio ser humano giravam em torno do patrimônio. Com o advento do novo Código Civil, o indivíduo passou a ser tratado como centro das relações jurídicas. Superou-se a visão patrimonialista e acatou-se outra, a EXISTENCIALISTA, na qual há uma preocupação com o todo, com a sociedade e não apenas com o indivíduo. Podemos citar como exemplo de institutos movidos por esse fim, a função social da propriedade, a função social dos contratos e a boa fé objetiva.


Nesse momento não há mais a antiga separação do público e do privado que existia no Estado Liberal. Hoje, de forma crescente, tende-se a falar Direito Civil Constitucional[27] e Direito Constitucional Civil.


O surgimento da sociedade técnica de massa, a superação do código patrimonialista de 1916 e a entrada em vigor do Código existencialista de 2002, bem como a mistura entre o Direito Público e o Direito Privado resultaram em uma relativização do princípio da autonomia da vontade e a concreção de um Direito Civil Constitucional.


O Min. Gilmar Mendes ao abordar o princípio da autonomia privada assevera:


“A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas em tema de liberdades fundamentais”[28].


Sendo assim, podemos perceber que, com o atual código civil brasileiro e todas as demais normas de intervenção estatal, o princípio da autonomia da vontade não foi suprimido do ordenamento jurídico brasileiro, houve apenas a superação da supremacia soberana do dogma da vontade, ou seja, o princípio da autonomia da vontade não é mais o único vértice da teoria contratual, outro princípios como a boa fé objetiva, da tutela do hipossuficiente e os princípios constitucionais passaram a orientar o balizamento da teoria contratual[29].


Além do mais, o aumento das grandes empresas e associações tornara-se ameaça para os direitos do homem, que não poderia ser negligenciada ou até mesmo omitida, exigindo que a artilharia desses direitos se voltasse para os particulares. Estes, que até então eram apenas titulares de direitos humanos em face do Estado tornaram-se sujeitos passivos de tais direito. Se a opressão e a injustiça não são provenientes somente dos poderes públicos, mas também das relações privadas travadas no mercado, nas relações laborais, na sociedade civil, até mesmo na família, é lógico que a extensão da incidência dos direitos fundamentais a relações eminentemente privadas faz-se necessário, sob pena de frustração dos ideais morais e humanitários em que eles se lastreiam[30].


3. A eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais


É nesse cenário que surge a Teoria da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Essa expressão tem origem na palavra alemã Drittwirkung. A doutrina brasileira traz como sinônimos da eficácia horizontal dos direitos fundamentais as expressões “eficácia privada”, “eficácia externa”, “eficácia reflexa”[31], “eficácia particular” e até “eficácia civil dos direitos fundamentais” (esta última, cópia do direito português.). Desde o seu surgimento foi trazida à baila uma questão polêmica: como vincular uma relação eminentemente privada, fundamentada na autonomia privada, aos direitos fundamentais se no texto constitucional não existe vinculação alguma expressa?


Malgrado realmente não exista norma constitucional que vincule as relações privadas aos direitos fundamentais, a Constituição da República de 1988 também não veda que os direitos fundamentais vinculem as relações entre os particulares. Mas só esse argumento não é suficiente para justificar essa incidência.


 Entretanto, existem argumentos importantes para fundamentar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais em sua perspectiva objetiva não se prestam apenas para proteger os direitos subjetivos da sociedade face à atuação do Estado, mas também a sociedade que se constitui, em tese, por uma ordem jurídica, política, e valorativa representativa da vontade de seus membros. Sendo assim, Estado e a sociedade devem reconhecer a carga axiológica imanente dos direitos fundamentais.


Essa visão contemporânea dos direitos fundamentais assevera que o Estado, seja ele na função Legislativa, Judiciária ou Executiva, não deve somente abster-se de lesar tais direitos, mas também proteger seus titulares de prováveis lesões vindas de particulares. Esse aspecto representa bem um dos mais importantes desdobramentos da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e liga-se ao Welfare State, no qual o Estado não é mais um inimigo dos direitos do homem (Estado Mínimo), mas uma instituição criada para implementá-los na sociedade civil[32].


Com a perspectiva objetiva surgem posições dogmático-jurídicas, como por exemplo, os conceitos de eficácia irradiante, trazida pelos mais modernos constitucionalistas pátrios.


A eficácia irradiante dos direitos fundamentais traduz-se na preponderância das normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais e na irradiação desses direitos para todas as normas infraconstitucionais, bem como para o Legislativo ao elaborar leis, para a Administração Pública ao praticar sua atividade típica de “governar” e para o Judiciário ao solucionar as lides.[33]


A eficácia irradiante busca a “humanização” da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas, no ato da aplicação, sejam analisadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no texto constitucional[34].


Insta ressaltar ao lado da eficácia irradiante dos direitos fundamentais o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição da República) e o artigo 5º, parágrafo primeiro que assevera a aplicação imediata dos direitos fundamentais. Esses são os argumentos que corroboram a aplicação dos direitos fundamentais em relações eminentemente privadas.


Ademais, existe um dado fático relevantíssimo, que não pode ser desconsiderado. A sociedade brasileira é muito mais injusta que outras de primeiro mundo, como a alemã e a americana, pois nela ainda há o ranço de uma sociedade escravocrata. A elite brasileira ainda mantém “elevadores de serviço”, do “sabe com quem você tá falando?”, dos quartos de empregada minúsculos, reprodução clara da “casa grande e da senzala”[35].


Esse fator triste justifica uma tutela reforçada dos direitos fundamentais em relações privadas no Brasil, em que prevalecem a opressão e a violência[36].


Cogitando-se a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, duas teorias podem ser destacadas: a Teoria da Eficácia Direta ou Imediata e a Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata.


Na Teoria da Eficácia Indireta ou Mediata, os direitos fundamentais são aplicados de maneira reflexa, seja dentro de uma dimensão proibitiva e voltada para o legislador que não poderá editar leis que violem direitos fundamentais ou, ainda, positiva, na qual o legislador deverá implementar os direitos fundamentais, ponderando quais devam ser aplicados às relações privadas.


Nessa teoria os direitos fundamentais não se inserem nas relações privadas como direitos subjetivos, que são invocados baseados na Constituição. Segundo Dürig, a proteção constitucional da autonomia privada pressupõe a hipótese dos particulares renunciarem a direitos fundamentais em relações privadas, o que seria impossível nas relações travadas com o Poder Público[37].


Por outro lado, pela Teoria da Eficácia Direta ou Imediata, alguns direitos fundamentais podem ser aplicados às relações privadas sem que haja a necessidade de intermediação legislativa para a sua concretização. Nesse caso o julgador, após análise do caso concreto, fará a ponderação de interesses e aplicará os direitos fundamentais em uma relação entre particulares sem o intermédio do poder legislativo.


Diferentemente do Direito americano no qual se exclui a incidência de direitos fundamentais em relações privadas e do direito alemão no qual há a incidência destes direitos quando o legislador permite, o sistema de direitos fundamentais inscritos na Constituição brasileira, em especial no artigo 7º, está mais caracterizado pela socialidade, o que permitiria uma maior inserção dos direitos fundamentais nas relações privadas[38].


Ainda assim, parte da doutrina é extremamente contra a aplicação direta dos direitos fundamentais em relações horizontais, ou seja, entre particulares. Os principais argumentos contrários a tal aplicação são a descaracterização do direito privado e da autonomia da vontade, havendo uma colonização pelo Direito Constitucional, a suposta violação aos princípios da segurança jurídica, pois os conflitos são solucionados através de princípios vagos e abstratos, muitas das vezes imprevisíveis; do regime democrático, na medida em que se baseia em prerrogativas excessivas ao juiz ao fazer a ponderação de interesses constitucionais nas lides privadas[39]; da separação de poderes, pois haveria a sobreposição do judiciário em face ao legislativo e à falta de norma regulamentadora.


O Professor João Baptista Villela suscita questão importante em texto de sua autoria. Segundo o ilustre professor, se os direitos fundamentais representam uma conquista, algo que promove o bem universal, por que não os fazer oponíveis a todos[40]?


O próprio professor responde:


“A universalização à outrance tem um custo. E um custo pesado. Significa impor às conseqüências individuais um pensamento único. Ou negar espaço para as diferenças. Se, por exemplo, sou um negro brasileiro, posso ter um forte sentimento de rejeição aos caucasianos que praticaram a escravidão contra meus antepassados. Nessas, condições, preferiria não admitir em meu restaurante um cliente branco. Se não o admito, posso estar sacrificando o seu sagrado direito de alimentar, mesmo estando ele disposto a pagar pela comida o que eu lhe estiver pedindo. Minha conduta pareceria desumana e mesmo odiosa. Mas, e se houver outros restaurantes próximos ao meu, que servem a mesma comida e pelo mesmo preço: Ainda assim, não tenho direito de agir segundo meus sentimentos íntimos? Tem a sociedade o direito de hostilizar as sutis inclinações de humor e de afeto que se formaram nos desvãos da minha alma, e, assim, impor um padrão geral de conduta que me fere e repugna? E que, ainda, no caso concreto, não serve a ninguém? A ninguém? Eu poderia até sentir-me inclinado a pensar: “sim, serve possivelmente a esse [arrogante] cliente branco que, tal como seus antepassados ricos e opressores pode estar querendo se dar ao luxo de ser servido por um negro..” E conclui: “Entre estes dois pólos oscila o problema respeitar – e até que limite? – as modulações e idiossincrasias individuais – ou generalizar os valores que a sociedade considera bons a ponto de os consagrar na Lei Maior” ( VILLELA, 2009, p. 08-09).


O Prof. Villela, malgrado não tenha tomado partido, com essa brilhante exposição nos faz refletir até que ponto é possível a interferência do Estado, na aplicação dos direitos fundamentais, em uma relação privada.


Contudo, os argumentos apontados pelos defensores da inaplicabilidade direta dos direitos fundamentais não possuem respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.


Primeiramente, destaca-se que os adeptos da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais em relações privadas não negam especificidades nessa incidência, nem a ponderação do direito fundamental em tela com a autonomia da vontade dos particulares no caso concreto. Não se trata de uma teoria radical, nem extremada, com resultados liberticidas, ao contrário do que alegam seus opositores, porque ela não prega a desconsideração da liberdade individual no nosso ordenamento jurídico[41].


Ao alegarem a descaracterização do direito privado e da autonomia da vontade já se explicou que com passar do tempo esta tornou-se um valor relativo e não mais a base sólida do direito privado. Poderia haver algum sentido se a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais fosse irrestrita, tal qual na eficácia vertical dos direitos fundamentais. Mas não é o caso. Há uma ponderação de interesses constitucionais feita pelo julgador, inclusive em relação à autonomia da vontade[42], pois esta apesar de relativa não está morta.


O argumento concernente ao caráter antidemocrático e à violação do princípio da separação de poderes também deve ser rebatido, pois defendemos que o legislativo possui legitimidade para propor quando os direitos fundamentais incidirão nas relações privadas. E essas normas devem ser respeitadas pelos magistrados, salvo inconstitucionalidade. Entretanto, quando este não faz o seu papel de legislar ou estas normas estão em descompasso com a Carta Maior poderá o julgador, perante o caso concreto, ponderar os interesses constitucionais, e aplicar os direitos fundamentais de forma direta nas relações privadas[43].


A questão ligada à segurança jurídica é ponderável, mas deve ser refutada. Isso porque até mesmo o uso das cláusulas gerais e de conceitos indeterminados, mediante os quais permitem uma maior valoração do julgador, se seguíssemos esse argumento, elas também não seriam permitidas, pois gerariam insegurança jurídica.


Ademais, a segurança jurídica não é o único nem o valor maior almejado pelo Direito. Temos também, a justiça, em termos de justiça substancial. E nada mais realizador desta do que a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, pois ao lado dos direitos fundamentais há a democracia formando a verdadeira “reserva de justiça” da ordem jurídica, na feliz expressão de Oscar Vilhena Vieira[44].


Para melhor ilustrar o tema abordado neste artigo é fundamental a leitura do acórdão redigido pelo Ministro Gilmar Mendes, no Recurso Extraordinário número 201819, do Rio de Janeiro, inserido no Informativo 405 do Supremo Tribunal Federal – STF. No caso em tela, a União Brasileira de Compositores – UBC, ora Recorrente, excluiu o sócio Arthur Rodigues Villarinho, ora Recorrido, sem as garantias do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV da CR/88). Um caso concreto de aplicação direta da Eficácia Horizontal dos Direitos fundamentais, pois o Recurso Extraordinário foi desprovido.


5. Conclusões


Fica clara a importância dos direitos fundamentais no nosso ordenamento jurídico atual. Além de cláusulas pétreas são, também, um escudo de proteção para o indivíduo, seja nas relações indivíduo e Estado ou particular e particular.


Após demonstrar os argumentos favoráveis e as objeções à Teoria da Eficácia Horizontal dos direitos fundamentais, é mister concluir que há uma crescente na aplicação da eficácia direta, especialmente em relações jurídicas nas quais existem sujeitos de direitos com um certo caráter público, como por exemplo, associações, escolas e clubes associativos. É, também, uma forma indireta ou oblíqua de implementar políticas públicas, ou seja, uma forma de executar normas constitucionais programáticas nem sempre efetivadas na realidade. Seria o que Ferdinand Lassale chamou de Constituição Social, isto é, “a Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder. Caso isso não ocorresse, ela seria ilegítima, caracterizando-se por uma simples folha de papel.[45]


Insta ressaltar que ao utilizar essa teoria o julgador irá deparar-se inevitavelmente com a colisão de direitos fundamentais. De um lado o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana X o princípio da autonomia da vontade.


Será preciso por parte do intérprete, no caso, o juiz, a ponderação de interesses à luz do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, da harmonização, da máxima efetividade e, principalmente, da dignidade da pessoa humana. Não sendo possível harmonizar, o julgador deverá analisar qual dos interesses deverá prevalecer, excluindo os demais.


Portanto, eficácia direta dos direitos fundamentais, na hipótese do legislador infraconstitucional não criar regulações normativas especificando as bases de aplicação dos direitos fundamentais, ou seja, se o legislativo na sua função típica não produzir leis ordinárias e se, em um determinado caso concreto o julgador não puder solucioná-lo através de cláusulas gerais, este poderá aplicar de forma direta os direitos fundamentais.


Frisa-se que não se pretende sobrepor a atuação judiciária sobre a legislativa, até porque estaria sendo violado o princípio da separação de poderes, elencado no artigo 2º da nossa Constituição. O que se defende é que se há previsão legislativa sobre o assunto o juiz deve respeitar o ordenamento infraconstitucional, caso contrário poderá aplicar de forma direta os direitos fundamentais, sempre utilizando dos princípios da máxima efetividade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade ou razoabilidade, buscando o verdadeiro sentido de justiça através da inserção destes direitos em relações jurídicas privadas.


 


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Notas:

[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 31.

[2] PEREZ LUÑO, Antônio E. Los Derechos Fundamentales. 7ª ed. Madrid: Tecnos, 1998. p. 43.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang, op.cit., p. 34.

[4] BONAVIDES, Paulo.  Curso de Direito Constitucional. 16ª ed. São Paulo: Malheiros. p. 562.

[5] LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 672.

[6] BOBBIO, Norberto apud CARVALHO, Kildare Gonçalves.  Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição – Direito Constitucional Positivo. 12ª ed. São Paulo: Del Rey, 2006. p. 477.

[7] SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p. 05.

[8] Ibid., p. 05-06.

[9]LENZA, op. cit., p. 672

[10] Ibid.

[11] CARVALHO, op. cit., p. 493.

[12] LENZA, op. cit., p. 672.

[13] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ªed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 227.

[14] CARVALHO, op. cit., p. 462.

[15] BONAVIDES, op. cit., p. 396-397.

[16] LENZA, op. cit., p. 97.

[17] BONAVIDES, op. cit., p. 563-564.

[18] Ibid., p. 564.

[19] Ibid., p. 565.

[20] LENZA, op. cit., p. 670.

[21] BONAVIDES, op. cit., p. 571.

[22] MOURA, Adriana Galvão. A dignidade da pessoa humana como fundamento da cidadania. In Constituição e Construção da Cidadania.  Luiz Alexandre Cruz Ferreira e Paulo José Freire Teotônio (orgs.). Leme: JH Mizuno, 2005, p. 25.

[23] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume III: Contratos e Atos Unilaterais. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 20.

[24] SARMENTO, op. cit., p. 13.

[25] SALDANHA, Nelson apud Ibid., p. 12.

[26] GONÇALVES, op. cit., p. 04.

[27] Para mais esclarecimentos sobre Direito Civil Constitucional: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo III, São Paulo: Renovar, 2010.

[28] Trecho retirado do acórdão do Recurso Extraordinário 201.819, do Rio de Janeiro, inserido no informativo nº 405 do Supremo Tribunal Federal – STF, 2005.

[29] KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Florianópolis: Momento Atual, 2005, p. 30.

[30] SARMENTO, op. cit., p. 25.

[31] KRETZ, op. cit., p. 85.

[32] SARMENTO, op. cit., p. 129.

[33] LENZA, op. cit., p. 676.

[34] SARMENTO, op. cit., p. 124.

[35] Ibid., p. 238-239.

[36] Ibid., p. 239.

[37] DÜRIG, Günter, apud Ibid., p. 198.

[38] SARMENTO, op. cit., p. 237-238.

[39] Ibid., p. 239.

[40] VILELLA, João Baptista. Texto: Apontamentos sobre direitos humanos e sua garantia judicial. Belo Horizonte: 2009. p. 08

[41] SARMENTO, op. cit., p. 205.

[42] Ibid., p. 240.

[43] Ibid., p. 241.

[44] Ibid., p. 242-243.

[45] LASSALE, Ferdinand apud LENZA, op. cit., p. 25.

Informações Sobre o Autor

Leandro Ávila Ramalho

Assessor Jurídico Parlamentar. Especialista em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL e Mestrando do Programa de Mestrado em Hermenêutica Jurídica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC/MG. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, bem como em processo e elaboração legislativa estadual. Professor de Direito Constitucional da Faculdade Pitágoras de Divinópolis/MG.


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