A evolução do Princípio da Legalidade e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa

Sumário: Introdução; 1. A evolução do Estado moderno e o princípio da legalidade; 2. A doutrina da discricionariedade administrativa; 2.1. Evolução do conceito de discricionariedade desde o nascimento do Estado moderno; 2.2. Discricionariedade na norma e no caso concreto; 3. A interpretação dos conceitos jurídicos; 4. Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados; 5. Limites da discricionariedade; 6. Controle jurisdicional da discricionariedade administrativa; Considerações finais; Referências.

Resumo: A atividade discricionária da Administração Pública está submetida ao princípio da legalidade. Trata-se, portanto, de uma margem de liberdade que não desvincula a Administração das rigorosas amarras normativas da regra de competência. Não pode ser apenas uma atividade respaldada pela lei específica. A atividade discricionária não deve apenas obediência à lei que a legitima, mas a todo o ordenamento normativo, ao conjunto de princípios constitucionais que arrimam o Estado de direito, com intenção de satisfazer a finalidade normativa vinculada – o interesse público. Todo ato administrativo, quer vinculado quer discricionário, deve buscar o cumprimento do interesse público. Toda atividade discricionária, em verdade, está vinculada ao interesse público, à satisfação dos direitos fundamentais, devendo ser adequada, necessária e razoável.

Palavras-Chaves: Controle Jurisdicional. Discricionariedade Administrativa. Princípio da Legalidade. Conceitos Jurídicos Indeterminados.

Introdução

A idéia de controle dos atos administrativos é inerente à própria noção de Estado de direito, quer no controle interno, realizado no interior da própria Administração, quer no controle externo, sobretudo o jurisdicional.

O administrador não é o dono dos bens que administra, exercendo apenas uma função administrativa delimitada pela sua competência funcional. Não é lícito ao administrador dispor dos bens ou fazer atuar a Administração segundo seu interesse, suas paixões e sonhos. Sempre deve prevalecer o interesse público, o fim último da atividade administrativa, a função teleológica das normas que regem o direito público.

Como é sabido, o homem tende a abusar do poder quando dele dispõe, ou extrapolando suas competências (excesso de poder), ou atuando contrariamente ao previsto pela lei (desvio de poder). Neste sentido, a noção de controle sempre esteve estreitamente ligada à concepção do poder sendo controlado pelo poder, a doutrina dos “freios e contrapesos”. Daí o fortalecimento do Poder Judiciário, a fim de fiscalizar a legalidade e a legitimidade tanto na atuação da Administração, como na formação das leis pelo Poder Legislativo.

O Executivo, no desempenho de suas atribuições funcionais, pratica competências vinculadas e discricionárias. Os atos discricionários são aqueles que a Administração pode praticar com certa margem de liberdade e discrição, conferida pela lei, na escolha da solução mais adequada à situação concreta, decidindo seu conteúdo e o modo de realização.

Essa liberdade, no entanto, não desvincula a Administração das rigorosas amarras normativas da regra de competência. A discricionariedade é delegada à Administração para que seja adotada a solução mais oportuna, em vista das circunstâncias do caso concreto.

O ato realizado segundo competências discricionárias, para ser válido, deve ser o mais adequado dentre os possíveis ao Poder Público. Não pode ser apenas um ato respaldado pela lei específica, por uma regra de conduta. Deve se coadunar a todo o ordenamento legal, de acordo com os princípios constitucionais que arrimam o Estado de direito, com intenção de satisfazer a finalidade normativa, o interesse público.

A atividade discricionária deve estar inter-relacionada não apenas à lei que a legitima, mas a todo o ordenamento normativo. Em última análise, todo ato administrativo deve visar o interesse público para ser válido, seja vinculado seja discricionário. Toda atividade discricionária, em verdade, está vinculada ao interesse público, à satisfação dos direitos fundamentais, devendo ser adequada, necessária e razoável.

Neste sentido, pode-se dizer que a decisão discricionária será ilegítima, ainda que não transgrida nenhuma norma concreta e expressa, se desarrazoada e desproporcional. Se desprovida de racionalidade, adequação entre os meios empregados e os fins normativos desejados, se desnecessária e excessiva a atuação do administrador, apesar de aparentemente legal e legítima, restará viciada de ilegalidade e injustiça.

1. A evolução do Estado moderno e o princípio da legalidade

A noção de Administração Pública[1], conforme atualmente concebida, está bastante ligada à idéia de Estado moderno, o Estado liberal-individualista que sucedeu ao feudalismo medieval. Pode-se dizer que a Administração somente se estruturou a partir da formação do Estado de direito, quando surgiu a distinção entre as três funções precípuas do Estado: a legislativa, a executiva e a jurisdicional.

A Administração Pública, entretanto, no alvorecer do Estado moderno[2], apresentou uma etapa bastante interessante e peculiar, o chamado Estado de polícia, adotado enquanto reinante a forma de governo denominada monarquia absolutista. No Estado de polícia a Administração se encontra legalmente incondicionada, sem limites na sua atuação. A fonte de todo o direito é a pessoa subjetiva do rei, representante divino na terra[3], sendo que a sua vontade é a lei suprema. O rei é o criador, executor e julgador da e segundo a lei, podendo, entretanto, decidir contrariamente à norma que ele mesmo instituiu. Esta forma de Estado foi-se atenuando, gradativamente, primeiro com a separação entre a figura subjetiva do rei e as relações entre o fisco e os súditos, que passaram a não mais ser reguladas pelo direito de polícia (‘jus politiae), mas pelo direito civil[4].

A separação entre o Estado propriamente dito, dotado de soberania e regulado pelo direito de polícia, e o Fisco, entidade de direito privado, destituída de soberania, é, certamente, o ponto característico do Estado absolutista. “Apenas o Fisco entra em relações jurídicas com os particulares, contrata, se obriga, comparece em juízo, só contra ele podem os particulares reivindicar direitos subjectivos”[5]. O Estado absolutista pode ser visto como um Estado de transição, e aí reside sua importância capital, na medida em que houve uma centralização do poder político na figura do monarca, diferentemente do modelo descentralizado característico da organização política feudal, preparando o advento do Estado liberal, fundado no modo de produção capitalista[6].

A divisão entre o Estado absolutista e o Estado de direito se ateve, basicamente, à mudança de conteúdo que sofreu o princípio da legalidade, sobretudo pelas necessidades econômicas e sociais enfrentadas pela burguesia emergente do século XVIII, influenciada pelo apogeu do pensamento iluminista, base do liberalismo e das lutas pela garantia de liberdade aos cidadãos frente aos governos despóticos.

Enquanto no Estado absolutista a Administração se apresentava legalmente incondicionada, o Estado de direito impôs um condicionamento da Administração à lei. A lei passou a ser limite ao Estado, que se viu plenamente vinculado ao princípio da legalidade.

Esta sensível mudança no conteúdo do princípio da legalidade, passando de fonte de legitimação ao poder ilimitado do rei a efetivo limite à atuação do Estado, deve-se, sobretudo, às transformações sócio-econômicas ligadas à revolução liberal-burguesa. A burguesia emergente necessitava de um ente forte o bastante para garantir seu direito à liberdade e à propriedade. No liberalismo clássico, a lei tinha a função de garantir, por meio do Estado, a segurança da burguesia, seu direito à “liberdade de propriedade”[7].

Ocorre que o princípio da legalidade no Estado liberal teve uma concepção bastante diversa daquela conhecida atualmente. A Administração Pública podia fazer não só o que a lei expressamente permitisse, mas também tudo o que a lei não proibisse. “Essa concepção de legalidade, que acabou por gerar conseqüências funestas, ficou conhecida como doutrina da vinculação negativa da Administração, já que, por ela, a lei apenas impõe barreiras externas à liberdade de autodeterminação da Administração Pública”[8].

Atualmente, a Administração está adstrita aos mandamentos legais, podendo apenas atuar como e nos limites que a lei determina, sendo que a inexistência de lei corresponde a um não fazer para o administrador público. A atividade administrativa contemporânea está intimamente jungida ao princípio da legalidade positiva, sendo que a Administração Pública não poderá atuar senão depois que o legislador tenha fixado o modelo prefigurativo de suas ações futuras.

O princípio da legalidade no Estado contemporâneo[9], contrariamente ao período do Estado liberal, determina que a Administração só pode fazer o que expressamente previsto em lei, sendo que a ausência de norma proibitiva ao Poder Público, corresponde a uma previsão negativa a sua atuação. A ausência de lei regulando determinada situação concreta tem o mesmo significado, para a Administração, da existência de prescrição legal vedando a atuação administrativa. A falta de lei à Administração corresponde a uma vedação, um não fazer[10].

Estreitamente ligada à concepção de legalidade como vinculação negativa à Administração, a discricionariedade administrativa surgiu como uma esfera de atuação administrativa livre de vinculação à lei e de controle jurisdicional. A discricionariedade encerrava um espaço de atuação conferido ao administrador público, que não era alcançado pelas limitações legais, mas pela lei legitimado.

Desta forma, pode-se caracterizar a discricionariedade administrativa, no Estado liberal, como um poder eminentemente político, que nem era limitado pelo Legislativo e nem controlado pelo Judiciário. A discricionariedade, neste período, era entendida como um poder conferido ao administrador para, livremente, desempenhar as atividades administrativas, não sendo admitido o controle jurisdicional.

2. A doutrina da discricionariedade administrativa

Contextualizada a temática da Administração Pública no Estado moderno e fixados os parâmetros jurídico-políticos do princípio da legalidade, bem como sua fulcral relevância à atividade administrativa e ao Direito Público em geral, cabe um ligeiro apanhado concernente à evolução conceitual da discricionariedade no decorrer do Estado de direito: Estado liberal, Estado social e Estado democrático de direito.

Antes, porém, de abordar a evolução do conceito de discricionariedade, parece oportuna a discussão relativa à expressão “ato discricionário”. A rigor, é plausível a afirmação da inexistência de atos discricionários puros, atos administrativos totalmente discricionários – aqueles em que o administrador não se encontra, sob nenhum aspecto, vinculado à prescrição legal. Não existem, do mesmo modo, atos administrativos totalmente vinculados, onde não reste ao administrador a menor parcela de discrição na execução do ato.

Todo o atuar administrativo, por mais discricionário que seja, encontra-se invariavelmente vinculado à competência do agente e à finalidade última da lei: o interesse público. Não existe discricionariedade com relação ao sujeito a quem a lei atribui competência para a prática de determinado ato administrativo. A competência é inderrogável e imprescritível, podendo ser exercida a qualquer tempo. É o “quantum” de função que a lei atribui ao agente que ocupa determinado cargo público, para o desempenho de uma função pública a ele confiada.

A finalidade também é elemento vinculado de todos os atos administrativos – discricionários ou regrados. A atividade administrativa deve sempre buscar a satisfação do interesse público, a finalidade desejada pela lei. O fim do ato deve sempre coincidir com o fim da lei. Ato discricionário contrário à finalidade legal é ato nulo.

Todavia, no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello é possível haver discrição quanto à finalidade, já que esta é expressa mediante conceitos práticos, indeterminados, sendo que tal indeterminação propicia ao administrador alguma discrição quanto à finalidade do ato administrativo. E cita o jurista pátrio exemplo de uma lei dispondo que “deverão ser expulsos da sala de cinema os casais que se beijarem indecorosamente, a fim de se preservar a moralidade pública”. Sendo o conceito de “moralidade pública” variável no tempo e no espaço, remanesceria discricionariedade ao administrador na valoração dos atos que são atentatórios à moralidade pública e os que com a mesma estão acordes[11].

Cabe asseverar que a posição de Celso Antônio não representa o entendimento dominante. Ainda que a lei, valendo-se de conceitos práticos, não estabeleça critérios objetivos à identificação da finalidade pública, no caso concreto, sempre estará adstrita ao interesse público. Os atos administrativos que não satisfizerem o interesse público devem ser invalidados por desvio de finalidade [12].

Do mesmo modo, a vinculação administrativa, que pode ser entendida como a tipificação legal da única forma de atuação do administrador público, também não deve ser tomada em termos absolutos. Em verdade, como suso grafado, não existem atos administrativos totalmente vinculados.

Embora o legislador já tenha pré-delineado o único comportamento possível, tolhendo por completo a possibilidade de o agente emitir qualquer juízo subjetivo ou valoração pessoal, cabe-lhe decidir, com certa margem de liberdade, o momento da execução do ato. Sempre restará ao agente uma margem de discrição para decidir sobre o momento mais oportuno à prática do ato vinculado, dentro é claro de certos limites legais.

Retomando a discussão tangente à expressão “ato discricionário”, a vista das considerações alinhadas, parece de maior coerência falar-se em “faculdades discricionárias na prática de determinados atos administrativos”. Diz-se que a Administração goza de certo poder de escolha, de valoração acerca da melhor medida à prossecução de uma finalidade pública reputada necessária pelo legislador. Trata-se de uma faculdade cometida à Administração, para que, valorando as circunstâncias do caso concreto, defina a medida mais idônea, a solução mais adequada ao alcance da finalidade legal, o espírito da lei.

Apenas a fim de prestigiar uma expressão já sobremaneira difundida e enraizada na doutrina do Direito Administrativo, tanto pátrio como alienígena, continuará sendo usada a locução “ato discricionário”, para fazer referência à discricionariedade administrativa, faculdade que dispõe a Administração Pública na execução de algumas atividades administrativas.

2.1. Evolução do conceito de discricionariedade desde o nascimento do Estado moderno

Nos termos brevemente delineados, o Estado moderno, em uma primeira etapa, ficou caracterizado pelo que se convencionou cunhar de Estado absolutista, um período onde o Estado se achava “legalmente incondicionado”, servindo o princípio da legalidade para legitimar o governo arbitrário do rei. O único preceito jurídico vigente era que o rei possuía direito ilimitado para administrar, restando tal direito fundamentado pela vontade divina.

A segunda etapa do Estado moderno inicia a era do “Estado liberal de direito”[13], período em que o poder do rei é limitado pela lei, como modo de garantir a propriedade e a liberdade dos cidadãos, seus direitos subjetivos. O Estado não devia ofender os direitos e liberdades inalienáveis dos indivíduos, nem intervir na ordem social ou econômica, caracterizando-se pelo não intervencionismo e pela posição fundamentalmente negativa.

Neste primeiro momento do Estado de direito, a discricionariedade administrativa, pelo próprio contorno dado ao princípio da legalidade, era entendida como uma esfera de atuação conferida à Administração Pública, livre de vinculação à lei e de qualquer sindicabilidade jurisdicional. Não cabia ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo discricionariamente praticado, já que, pelo princípio da legalidade, ao administrador era dado fazer tudo o que a lei expressamente não proibisse[14].

No início do século XX, com a crise do modelo liberal-individualista do Estado liberal, surgiu o “Estado social de direito”[15], como uma resposta às mazelas sociais e desigualdades brutais provocadas pelo modelo estatal individualista e não intervencionista.

Os contornos da discricionariedade administrativa, sob a influência do positivismo jurídico, sofreram sensíveis modificações. A discricionariedade devia ser explicada dentro do sistema jurídico, como um poder emanado da norma legal e por ela limitado. Destarte, com a mudança do paradigma axiológico do princípio da legalidade, a Administração passou a só poder fazer o que a lei permitisse, passando de uma vinculação negativa (Estado liberal) a uma vinculação positiva à lei. Então, toda e qualquer ação administrativa devia se achar condicionada por uma lei formal.

A discricionariedade deixou de representar uma esfera de liberdade que dispunha o administrador para exercer determinada atividade administrativa, para se tornar uma faculdade limitada pela lei, passível de controle pelo Poder Judiciário. Maria Silvya Zanella Di Pietro entende que, ainda que o Estado social de direito tenha trazido inegáveis avanços, como a circunscrição de toda a atividade da Administração Pública sob a égide da lei, trouxe um retrocesso. A lei deixou de ser manifestação da vontade geral do povo e instrumento de garantia dos direitos fundamentais, já que o Poder Legislativo passou a não mais ser o único a editar normas legais, passando a assumir posição de dependência frente ao Executivo, além de promulgar leis em sentido apenas formal, desvinculadas da idéia de justiça[16].

O agigantamento do Poder Executivo no Estado social acabou, por certo, minimizando a atuação do Legislativo. A Administração Pública, para resolver os anseios de uma sociedade cada vez mais dinâmica e complexa, necessita de uma célere produção normativa, situação que não se coaduna a peculiar morosidade do Poder Legislativo.

Não parece, contudo, que a atuação legiferante do Executivo deva ser encarada como sinal de retrocesso. Como o Estado social[17], sobretudo na função administrativa, chamou para si encargos que anteriormente não desempenhava, consolidando sua máxima intervenção social, surgiu a necessidade premente e diuturna de leis que regulassem o atuar executivo, desentravando a máquina administrativa.

Com o advento do chamado “Estado democrático de direito” foi-se deixando a idéia do positivismo formalista, que não dava conta das promessas do Estado social, com a introdução da “participação popular” no processo político, abandonando-se as noções de justiça formal, de legalidade, para se adotar a idéia de Estado submetido ao Direito, Estado de direito em uma concepção jus-filosófica, a busca pela “justiça material”, substantiva. Esta mudança no paradigma de Estado trouxe sensível alteração no conteúdo axiológico do princípio da legalidade.

O princípio da legalidade e da submissão da Administração ao Direito não pode mais ser visto a partir do legalismo estrito, do positivismo fragmentado que impede sua aplicação otimizada, imbuída de cunho valorativo. Acerca dessa nova roupagem do princípio da legalidade, o entendimento de Juarez Freitas:

“Assim, a subordinação da Administração Pública não é apenas à lei. Deve haver o respeito à legalidade sim, mas encartado no plexo de características e ponderações que a qualifiquem como razoável (…) A legalidade devidamente adjetivada razoável requer a observância cumulativa dos princípios em sintonia com a teleologia constitucional”[18].

Segundo Geraldo Ataliba, “a lei é, no direito constitucional brasileiro, necessariamente genérica, isônoma, abstrata e irretroativa (…) A ela são submetidos não só os cidadãos e habitantes do território do Estado, mas também os governantes e o próprio Estado”[19]. E arremata o jurista pátrio, numa comunhão do princípio da legalidade com o princípio republicano, asseverando que “(…) pelo princípio da legalidade afirma-se, de modo solene e categórico, que, sendo o povo o titular da coisa pública e sendo esta gerida, governada e disposta a seu (do povo) talante (…) os administradores, gestores e responsáveis pelos valores, bens e interesses considerados públicos são meros administradores, que, como tais, devem obedecer à vontade do dono (…)”[20].

Reforçados os contornos do princípio da legalidade, sobremaneira avizinhado ao conceito de justiça material, a discricionariedade administrativa ganhou uma série de limitações constitucionais, sendo que o atuar administrativo não deve apenas estar amparado por um permissivo legal. Deve, sobretudo, estar de acordo com os princípios e valores constitucionais que vinculam a Administração. Estes valores principiológicos estão espraiados por todo o texto da Constituição da República[21], desde o preâmbulo até às disposições constitucionais transitórias, alguns até repetidos de modo exaustivo.

Pela evolução jurídico-política do Estado e pela mudança de concepção do princípio da legalidade, desde o surgimento do Estado moderno até o atual Estado democrático de direito, não se pode negar a mudança no conceito de discricionariedade administrativa. A concepção de discricionariedade por oposição à legalidade, ou seja, uma faculdade de atuação da Administração fora e acima da lei, insuscetível de controle pelo Judiciário, é incompatível com o atual Estado democrático de direito[22].

Não se pode mais pensar a discricionariedade como uma margem de atuação conferida ao administrador, onde age livremente, sem observância às regras de direito ou uma conduta antecipadamente prevista, e executa uma atividade administrativa, desempenhando uma função pública. A discricionariedade administrativa se encontra limitada pelos princípios constitucionais e pelas máximas que regem o Estado democrático de direito, só se cogitando de liberdade de atuação conforme o Direito.

A Administração está submetida ao princípio da legalidade, só podendo atuar sob o pálio da lei, não a lei em sentido formal, mas em sentido material, lei enquanto Direito, materialmente concebida. Daí a possibilidade e a necessidade do Poder Judiciário controlar a atividade discricionária da Administração, não apenas sob o ângulo da legalidade formal, mas principalmente sob o prisma axiológico do ato discricionário, por vezes até adentrando no exame do mérito administrativo, a fim de averiguar se ali não se escondem ilegalidades e contrariedades aos princípios constitucionais.

Após este apanhado acerca da evolução da discricionariedade desde o advento do Estado moderno, sendo que seus contornos sempre estiveram intimamente atrelados à noção de legalidade administrativa, parece oportuno estabelecer um conceito de “discricionariedade administrativa”. Discricionariedade é uma parcela de liberdade que a lei confere ao administrador para que possa escolher o melhor ato possível, quando no caso concreto, pela existência de expressões vagas ou por disposição da norma, exista mais de uma solução juridicamente válida, reservada a possibilidade do Poder Judiciário rever o ato praticado. No entendimento de Celso Antônio:

“Discricionariedade é a margem de liberdade que remanesce ao administrador para eleger, segundo critérios conscientes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair, objetivamente, uma solução unívoca para a situação vigente”[23].

A discricionariedade pode ser entendida como uma “faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto”[24], uma liberdade de agir conferida ao agente público para satisfazer o interesse público. A discrição conferida pela lei ao administrador, no exercício da atividade administrativa, caracteriza uma função pública, um “munus público”, uma faculdade atribuída ao agente público[25].

A lei deixa ao administrador possibilidades de escolher mais de uma conduta, desde que circunscrita à moldura normativa, entre as que atendam à finalidade legal e à consecução do interesse público. Por não conseguir prever, abstratamente, a melhor solução à determinada situação, por conta das especificidades do caso concreto, o legislador deixa ao administrador a faculdade de decidir qual a melhor solução, o melhor comportamento administrativo capaz de resolver o fato em discussão.

2.2. Discricionariedade na norma e no caso concreto

Cabe a inquirição no que tange as razões motivadoras da discricionariedade, os motivos da sua existência como faculdade conferida ao agente público. Se a lei determina, de modo vinculado, uma parte do atuar administrativo, há uma forte razão para que a outras atividades administrativas deixe uma margem de discrição ao agente na prática do ato previsto. Deve-se partir, entretanto, da premissa de que a norma jurídica sempre impõe à Administração o melhor comportamento, a prática do ato que, efetivamente, atenda ao interesse público.

A norma jurídica só deixa de prever o comportamento administrativo apropriado frente a uma situação determinada quando tal vinculação ameaça comprometer a intenção legal. A lei sempre pretende que a conduta do administrador atenda com perfeição a finalidade a que foi instituída. “Se a lei regula vinculadamente a conduta administrativa, está com isto declarando saber qual o comportamento único que, a seu juízo, atenderá com exatidão, nos casos concretos, ao interesse público por ela almejado”[26].

O ato praticado pela Administração deve, da melhor forma possível, atender ao interesse público, fim último de toda norma jurídica. Ocorre que, por vezes, dadas as peculiaridades da situação, o engessamento da atividade administrativa pode comprometer o cumprimento da intenção da norma.

Portanto, a discricionariedade é conferida à Administração Pública para que escolha o ato que melhor atenda à finalidade legal. A discrição existe para que se possa tomar a solução mais adequada frente à situação hipoteticamente prevista na norma jurídica. “A conduta que não atingir de modo preciso e excelente a finalidade legal, não é aquela pretendida pela regra de Direito”[27].

Quando a lei deixa ao administrador o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, não está, de modo algum, abrindo mão de exigir que se pratique o ato mais apropriado. Está, pelo contrário, confirmando a necessidade da solução mais oportuna, tanto que deixa ao administrador a liberdade de elegê-la.

Daí porque a atividade discricionária da Administração deverá estar de acordo com as regras de boa administração, ser conveniente ao alcance da finalidade legal, e, sobretudo, consentânea à ordem normativa constitucional. A atividade discricionária se encontra sob o jugo da legalidade, formal e materialmente, no sentido de “justiça material”, cabendo ao Judiciário averiguar acerca do atuar administrativo, garimpando as ilegalidades onde quer que se escondam.

A discricionariedade pode ser tanto prevista, expressamente, pelo legislador no texto da lei, como pode surgir apenas quando da solução do caso concreto. Neste caso, a discrição pode surgir da insuficiência da norma em prever todas as situações possíveis no mundo do ser, ou, ainda, da existência de conceitos indeterminados, fórmulas elásticas, que comportem valorações ou juízos axiológicos quanto ao alcance e sentido de tais expressões[28].

A existência de norma jurídica que regule determinada situação, deixando certa margem de liberdade ao agente público para realizar a finalidade prevista não significa que, no caso concreto, na aplicação da norma, restará qualquer parcela de discrição ao comportamento administrativo. A discricionariedade, embora existente ao nível legal, pode desaparecer ante as peculiaridades de alguma situação do mundo do ser. Assim, mesmo que indeterminado o conceito de alguma expressão contida na norma, pode ocorrer que no confronto da lei com as peculiaridades do caso concreto, só reste ao administrador um único comportamento legal, um único ato adequado e capaz de satisfazer à finalidade da lei.

Parece forçosa a conclusão de que a discricionariedade pode tanto residir na hipótese da norma jurídica como no seu mandamento[29], todavia, a discrição na norma não implica discrição na sua aplicação “in concreto”, na confrontação do ser com o dever ser. A possibilidade de a Administração agir com certa liberdade, dentro dos limites do ordenamento, deve ser averiguada, interna e externamente, no caso concreto, na apreciação da situação como posta ao administrador. Assim, poder-se-á decidir se a situação enfrentada comportava o agir discricionário e, sobretudo, se o ato praticado foi o mais adequado à persecução da finalidade da norma.

3. A interpretação dos conceitos jurídicos

Adiante será objeto de análise a relação entre a discricionariedade administrativa e os “conceitos jurídicos indeterminados”, “conceitos práticos” fruto de expressões vagas, fluidas, elásticas, que não comportam um único entendimento, “contrario sensu”, variam de sentido tanto no aspecto temporal como no espacial.

Expressões como “moralidade pública”, “notório saber”, “bem comum”, “tranqüilidade pública”, “relevância e urgência” e incontáveis outras que, por sua imprecisão conceitual, acabam por aceitar significações diversas e, em certos casos, conflitantes.

Parece, portanto, de extrema relevância a definição do que se entende por conceitos jurídicos e a delimitação do alcance de sua interpretação como meio hábil à averiguação da legitimidade da atuação da Administração Pública, quando da atividade discricionária oriunda da imprecisão dos conceitos jurídicos prescritos na hipótese da norma.

Sob o prisma material, o conceito é o núcleo irradiador de um significado, isto é, o elemento identificador de algo, o significado do termo, do signo. Todo conceito tem uma compreensão (conotação), donde ressai o conteúdo formal do termo, e uma extensão (denotação), pela qual se revela a propriedade que o termo tem de ser aplicável a vários objetos, uma pluralidade de significações[30].

Os conceitos jurídicos são, portanto, termos de significação, expressões ou sinais que objetivam uma significação, que pode ser atribuída a uma coisa, a um estado de coisas ou a uma situação que tenha relação com o direito. Os conceitos jurídicos pretendem expressar o significado de uma coisa ou de uma situação, atuando como sinais de significação, meios pelos quais podem ser expressos determinados elementos. Os conceitos jurídicos, em última análise, são medidas significativas, o sentido explicativo de determinado termo jurídico[31].

O objetivo dos conceitos jurídicos não é o conhecimento ou a descrição da essência de coisas, estados ou situações, mas a viabilização da aplicação de uma norma jurídica ou de um conjunto de normas à realidade de uma coisa, estado ou situação. Os conceitos jurídicos são sinais valorativos, ou, na expressão de Eros Roberto Grau “signos de predicados axiológicos”[32].

Nesta linha de entendimento cabe deduzir que, “apenas e tão somente na medida em que o ‘objeto’ – a significação – do conceito jurídico possa ser reconhecido uniformemente por um grupo social poderá prestar-se ao cumprimento de sua função, que é a de permitir a aplicação de normas jurídicas, com um mínimo de segurança e certeza”[33].

Desta dependência do reconhecimento por um grupo social para o cumprimento de suas funções, consequentemente, os conceitos jurídicos, segundo Regina Helena Costa, têm por características básicas a não correspondência com a realidade e a constante mutabilidade de sua compreensão. Divergem do real, em decorrência de ser o Direito uma criação cultural, que freqüentemente se vale da ficção em função da aplicação de um juízo de valor[34].

Passada esta rápida exposição atinente à expressão “conceitos jurídicos”, já se nota a extensão da importância que toma o tema da interpretação dos conceitos jurídicos, interpretação no sentido da compreensão do conteúdo material das regras jurídicas, do ato de atribuir um sentido ou um significado aos termos constantes da norma jurídica.

Como afirma Celso Antônio, “nos casos de discricionariedade, o administrador também interpreta, mas não se esgota nisso sua função.(…) Concluído o ‘iter’ interpretativo, defronta-se com possibilidades plúrimas, justamente pelo fato da norma admitir soluções múltiplas, suscetíveis quaisquer delas de dar implemento à finalidade proposta e satisfação à vontade legal (…)”[35].

Segundo Paulo Bonavides, interpretação é uma “operação lógica, de caráter técnico mediante o qual se investiga o significado exato de uma norma jurídica, nem sempre clara ou precisa (…) Em verdade, a interpretação mostra o direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade”[36]. Trata-se da vinculação da norma geral, genérica, às conexões concretas, a aplicação do abstrato ao concreto, a inserção do fato à hipótese da norma.

A interpretação da norma deve cingir-se à busca do seu conteúdo correto, sua intenção e extensão, o fim a que se propôs a lei com o uso de determinada expressão, determinado termo jurídico. Deve o executor da lei, valendo-se de regras de hermenêutica[37], questionar acerca da intenção da norma, quando se valeu do termo empregado, ainda que impreciso. Que fim pretendeu a lei quando resguardou a “moralidade pública”, quando exigiu o “notório saber”.

4. Discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados

Como ficou consignado quando se discutiu a discricionariedade na norma jurídica e no caso concreto, o poder de discrição administrativa pode aparecer de formas distintas: ou expressamente previsto na norma, ou na insuficiência do texto legal, ou na ausência de fixação da conduta a ser adotada, ou – e é este aspecto que agora interessa – quando a lei usa certos conceitos indeterminados, imprecisos, ensejando uma esfera de liberdade à Administração na solução da situação concreta.

Os conceitos jurídicos são expressões que comportam termos significativos. Estes termos ou signos jurídicos podem ser vagos, imprecisos, plurissignificativos. A indeterminação não reside no conceito jurídico, mas em sua expressão, em seu termo significativo. Não se pode falar, ainda, de imprecisão da palavra usada, uma vez que a fluidez reside na significação do conceito, no seu conteúdo plurissignificativo[38].

Segundo Afonso Rodrigues Queiró, os conceitos jurídicos podem ser divididos em “conceitos práticos”, aqueles que apresentam certa imprecisão, pluralidade de significados, indeterminação e, “conceitos teoréticos”, que, por oposição, são aqueles conceitos jurídicos compostos de expressões precisas, unissignificativas, determinadas. A discricionariedade surge, destarte, circunscrita aos “conceitos de valor” utilizados na norma jurídica, aos “conceitos não-teoréticos”. Os conceitos teoréticos são aqueles das ciências empírico-matemáticas, de contornos absolutamente individualizáveis, com valor objetivo e universal. Vale dizer que, quando a lei adota conceitos teoréticos não remanesce discricionariedade à Administração. Pode restar margem a dúvidas, sanáveis mediante interpretação, segundo os processos de hermenêutica administrativa, mas nunca poder discricionário à atividade administrativa, discrição na aplicação do conceito jurídico ao caso concreto.[39]

Como esclarece o jurista alemão Martin Bullinger, espelhando a atual doutrina alemã a respeito da discricionariedade e da “margem de apreciação” da Administração Pública na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, a “concretização de preceitos legais de valor, assim como sua aplicação ao caso concreto constitui, em maior ou menor medida, um fenômeno normal da aplicação do direito e fica, assim, reservada à última instância judicial, seja no direito civil, no direito penal ou no direito administrativo”[40].

Não é, por conseguinte, aceitável a isenção de controle jurisdicional das decisões da Administração, fundada na sua “margem de apreciação” acerca dos conceitos práticos. Deve o Poder Judiciário revisar a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados pela Administração, examinando sua adequação à lei.

Diversamente, existem autores que não aceitam a indeterminação dos conceitos jurídicos como explicação à possibilidade de discrição na atividade administrativa. Entendem que a moldura normativa definida como conceito indeterminado ou prático, só possibilitaria uma escolha, a melhor à persecução da finalidade legal. A fluidez ou indeterminação dos conceitos jurídicos só existiria “in abstracto”, não subsistindo nos casos concretos, por ocasião de sua aplicação. Para estes autores, “a indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso”[41].

Em que pese a maestria da tese mencionada, não parece a mais acertada. Os conceitos práticos, conduzindo a um exame valorativo de sua significação, resultam em faculdades discricionárias ao administrador, na escolha da solução ao caso concreto.

Se a norma jurídica se vale de “conceitos de valor” para regular uma dada situação, os critérios a serem adotados pelas autoridades administrativas serão sempre necessariamente discricionários. Neste sentido, entende Luciano Ferreira Leite que “sempre que a hipótese legal contiver conceito de valor ou grau de imprecisão que obrigue a enunciar juízo subjetivo, estará ele no campo da discricionariedade”[42].

Cabe assinalar que, independentemente de onde resida a discricionariedade administrativa, se na hipótese da norma ou em seu mandamento, se na finalidade, como quer Celso Antônio, a discrição administrativa vai se expressar em um único elemento que é o conteúdo do ato, já que é na ocasião em que se pratica o ato, na providência adotada, que realmente se traduz a discrição.

O conteúdo do ato é, em última análise, a tradução do poder discricionário da Administração Pública, salvo nos casos em que a Administração tem a possibilidade jurídica de deixar de praticar o ato. Neste caso, a discricionariedade vai se traduzir nesta omissão[43].

O conteúdo do ato administrativo[44], em verdade, traduz-se no confim último onde se revela a discricionariedade administrativa, o espaço decisório onde se personifica a discrição do agente administrativo na solução do fato concreto. Não importa se prevista na hipótese da norma ou em seu mandamento, se por expressa disposição normativa ou pela utilização de termos indeterminados e plurissignificativos, a discrição administrativa vai se manifestar na extensão dispositiva, decisória ou enunciativa do ato, enfim, em seu conteúdo.

5. Limites da discricionariedade

Como defendido, a discricionariedade não é uma faculdade conferida pela lei ao administrador, possibilitando-lhe uma esfera de ilimitada liberdade na atividade administrativa. A liberdade posta ao administrador para eleger uma solução à situação prevista pela lei deve se mostrar adstrita aos contornos legitimados pelo ordenamento normativo, a fim de vedar a reforma jurisdicional, pois que o exame, como se verá, é sempre possível.

Os conceitos jurídicos podem apresentar certo grau de indeterminação e imprecisão de significado. No entanto, pela própria natureza conceitual, têm limites de significação. Existe em cada conceito jurídico indeterminado uma zona de determinação positiva e uma zona de determinação negativa, donde não ressai qualquer discrição à atuação administrativa. A discricionariedade reside apenas naquela zona conceitual fronteiriça, cinzenta, faixa de dúvida entre a determinação positiva e a determinação negativa.

A discricionariedade possui, por conseguinte, limites sumamente estreitos quando da confrontação da disposição imprecisa da norma com o caso concreto. Mas se vai além: ainda que na faixa cinzenta de indeterminação dos conceitos jurídicos, a Administração não é totalmente livre para eleger a solução ao caso concreto. Deverá obedecer a critérios de racionalidade e proporcionalidade[45] na prática do ato discricionário, sujeitando-se ao posterior exame jurisdicional do ato praticado.

A Administração Pública, em última análise, somente atuará com discrição quando, no caso concreto, por expressa previsão legal ou por imprecisão conceitual do mandamento, restar a possibilidade de solucionar a situação por mais de uma maneira, sendo que não se mostre possível determinar, razoavelmente, qual o melhor ato a ser praticado.

Se o ato praticado vencer o crivo da razoabilidade e racionalidade restará ilegal e inconstitucional sua reforma pelo Poder Judiciário, posto que, neste caso, o juiz estaria fazendo as vezes do administrador.

Segundo Celso Antônio existem duas teorias que buscam “retraçar o perímetro da discricionariedade e detectar as distorções e abusos administrativos cometidos sob o abrigo de sua confortadora cobertura: a teoria do desvio de poder e o exame dos motivos do ato[46]. Por estes institutos pretende-se, na esfera jurisdicional, delimitar as fronteiras da discricionariedade e contê-la dentro de seus legítimos limites, purgando eventuais excessos.

O desvio de poder consiste na utilização pelo agente público de uma competência para atingir finalidade diversa da natureza da competência exercida. O agente usa a competência outorgada para alcançar finalidade diferente da prevista em lei. No desvio de poder ocorre o que Seabra Fagundes chamou de “burla da intenção legal”, situação em que “a autoridade agiu contrariando o espírito da lei. Não importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato seja inválido, por divergir da orientação legal”[47].

Sustenta Caio Tácito ser o desvio de poder “um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal”[48].

Outra via eficaz ao controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária, com sua circunscrição dentro dos limites legais, é o exame dos motivos do ato[49]. “Por meio dele o que se põe em causa, o que se examina é a situação de fato em que se embasou a Administração para a prática do ato. Verifica-se, inicialmente, a materialidade do pressuposto de fato, isto é, se ocorreu ou não o acontecimento em que a Administração se estriba”[50]. Deve-se examinar se o acontecimento em questão responde ao pressuposto normativo, se o fato objetivo se amolda à prefiguração hipotética contemplada na norma.

Quando o motivo previsto na norma toca a realidades conceituais teoréticas, da sua confrontação à situação de fato não ressai discricionariedade à Administração, contudo, por vezes, o motivo legal comporta configuração imprecisa, vaga, fluida, donde resta ao administrador valorar a situação fática e decidir se está ou não dentro da moldura normativa predeterminada. Nestes casos, compete ao Poder Judiciário examinar se a atividade administrativa se conteve nos limites razoáveis de discricionariedade, quando da apreciação tangente à materialidade do pressuposto de fato exigido à prática do ato administrativo[51].

Adiantando o assunto a ser abordado a seguir, o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, o professor Celso Antônio entende que, quando couber ao administrador decidir se o motivo ocorrido tem ou não a relevância para ensejar a atuação administrativa, se presente o pressuposto de fato hipoteticamente prescrito na norma, “pelo fato da lei outorgar ao critério do agente a apreciação ‘ponderada’ do motivo, só é possível a correção jurisdicional do ato quando a decisão do administrador seja indisputadamente desarrazoada, contrária ao senso comum”[52]. Nestes casos, excedendo a Administração aos limites da discricionariedade, cabe a revisão jurisdicional do ato.

6. Controle jurisdicional da discricionariedade administrativa

Não sendo a discricionariedade uma faculdade ilimitada conferida pela lei ao administrador, oportuna é a discussão acerca do exame jurisdicional do seu cabimento e, se cabível, o controle de seus limites. É dever do Poder Judiciário, como guardião do ordenamento jurídico e zelador do Estado democrático de direito, examinar toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão a direitos dos cidadãos. Compete-lhe, pois, rever a atividade administrativa quando o Poder Público se vale de discrição descabida ou extrapola os limites da faculdade discricionária estabelecida na lei.

Segundo Johnson Barbosa Nogueira, a “lei é um marco de possibilidades enfeixados na chamada moldura legal. Dentre estas possibilidades, há a mais justa em determinado momento histórico”[53]. Cabe ao administrador encontrar a solução mais justa dentre as lícitas, ou seja, as circunscritas à moldura normativa.

Interessante o entendimento de Regina Helena Costa, quando afirma que se o legislador optar pela utilização de conceitos de experiência, determináveis mediante interpretação, o controle jurisdicional é amplo, já que compete ao Judiciário, como função típica, interpretar o alcance das normas jurídicas para sua justa aplicação. Se o legislador, por outro lado, usar conceitos de valor, ensejando apreciação subjetiva do executor da norma, o controle jurisdicional será apenas um controle de contornos, de limites, pois, do contrário, estar-se-ia substituindo a discricionariedade administrativa pela judicial, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico[54].

O controle jurisdicional deve alcançar todos os atos administrativos, quer vinculados quer discricionários. Nos atos vinculados o controle pelo Poder Judiciário é amplo, irrestrito. Quanto aos atos discricionários, cabe ao Judiciário o exercício de um controle negativo da discricionariedade, isto é, o exame acerca da adequação do ato praticado pela administração, no uso de faculdades discricionárias.

Não compete ao juiz dizer se a solução praticada pelo administrador foi a melhor possível, já que se trata de um juízo valorativo, axiológico, subjetivo do agente público, mas sim, no caso concreto, dizer se a decisão tomada é desarrazoada e desproporcional, anulando o ato praticado por vício de legalidade, por afrontar a princípios constitucionais.

Por vezes, pode-se demonstrar que uma única solução – diferente da tomada pela Administração – seria a adequada para a realização da finalidade normativa. Em outros casos tal determinação não se mostra possível, restando apenas demonstrar que aquela específica medida adotada não era idônea a atender, com exatidão, a finalidade da lei. Portanto, em determinados casos, não é possível dizer qual o comportamento único obrigatório para atender o interesse público; pode-se, por outro lado, demonstrar que a solução específica adotada não atende o interesse público cristalizado na norma[55].

Com razão discorreu Luciano Ferreira Leite, para quem “o que cabe ao Judiciário verificar em sua atividade de controle dos atos administrativos baseados na discricionariedade dos agentes, é se a escolha levada a efeito pela Administração se manteve nos lindes do razoável, não transbordando os limites a que está sujeita pelo ordenamento jurídico positivo”[56].

Ainda que a decisão administrativa discricionária seja formalmente legal, portanto dentro da moldura da lei, se no caso concreto não se mostrar razoável e justa, capaz de satisfazer às finalidades legais, deve o Poder Judiciário, exercendo o controle negativo da discricionariedade administrativa, invalidar o ato praticado. Entretanto, se o ato praticado vencer o crivo jurisdicional da razoabilidade, mesmo que reste solução que melhor atenda à intenção legal, não cabe ao Poder Judiciário rever a medida administrativa.

Considerações finais

A Administração Pública atua sob o pálio da legalidade, somente podendo fazer o que a lei permite, diferentemente dos particulares que só sucumbem à expressa proibição legal. Em sede de Direito Privado, a inexistência de norma significa uma permissão para agir, ao passo que no Direito Público deve-se interpretar tal fato como um obstáculo à atuação. Portanto, diferentemente dos contornos que o princípio da legalidade tomou no início do Estado moderno, onde a Administração, em uma situação bastante semelhante aos particulares, podia fazer tudo que a lei não proibisse.

Estas mudanças no conteúdo do princípio da legalidade foram motivadas, principalmente, pelo modelo estatal liberal-individualista e pela ascensão da burguesia capitalista, que não podendo mais continuar refém do arbítrio despótico do Estado absolutista, preferia, a fim de garantir sua liberdade, segurança e propriedade, submeter-se à lei, desde que, esta submissão alcançasse também o Poder Público.

A discricionariedade administrativa, com a evolução do princípio da legalidade, deixou de ser uma faixa de atuação onde o administrador público podia agir fora dos limites da lei, posto que por ela legitimado, para se tornar uma esfera de atividade na qual o administrador, dentro dos confins legais, apreciando determinada situação concreta, decide pela solução que melhor satisfaça o interesse público.

A escolha da medida administrativa discricionária pode ser revista pelo Poder Judiciário, desde que contrária ao ordenamento normativo, mostrando-se, pois, viciada quanto aos aspectos tanto de legalidade como de merecimento e razoabilidade.

Compete ao Judiciário analisar a atuação administrativa discricionária, anulando as medidas tomadas em flagrante desacordo à finalidade da lei, em claro transbordamento aos limites fixados à discrição conferida. O reconhecimento da possibilidade de controle jurisdicional da discricionariedade administrativa se constitui em importante passo rumo à consolidação de um efetivo Estado democrático de direito, que transcenda aos limites meramente formais e se faça sentir firmemente na idéia de justiça material.

 

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Notas:
[1] A fim de sanar quaisquer confusões, é mister informar que o uso da expressão escrita com letras minúsculas se refere à atividade administrativa, restando a grafia com maiúsculas – Administração Pública – quando alusiva ao conjunto de entidades jurídicas que podem desenvolver a atividade administrativa de interesse coletivo. Neste sentido, o acordo semântico proposto por Marcello Caetano. CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. vol. I, Coimbra: Livraria Almedina, 1991, p. 5-6.
[2] O ‘moderno’ emprego da expressão ‘Estado’ (do latim “status”), na intenção de configurar sociedades políticas organizadas, teve início com o livro “O Príncipe”, escrito por Niccolo Machiavelli em 1513, obra que representa um importante marco para a ciência política e para o estudo da teoria do Estado. MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. Tradução de Roberto Grassi. 18. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
[3] A evolução do absolutismo pode ser dividida em dois períodos: o primeiro que se estende até princípios do século XVIII, onde a monarquia firma-se no “direito divino”; e, uma fase subsequente, quando se procura atribuir ao poder uma fundamentação racionalista dentro do ambiente de iluminismo dominante, conhecido como “despotismo esclarecido”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 80.
[4] Importante frisar a dissertação da professora Maria Silvya Zanella Di Pietro, onde o tema do Estado de polícia é tratado com propriedade e afinco. DI PIETRO, Maria Silvya Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 11-13.
[5] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Op. cit., p. 80.
[6] Interessante se mostra a análise de Antonio Carlos Wolkmer acerca da evolução histórica do Estado moderno e das razões de seu aperfeiçoamento: “Ora, o Estado, enquanto fenômeno histórico de dominação, apresenta originalidade, desenvolvimento e características próprias para cada momento histórico e para cada modo de produção. Isso pode ser comprovado com a escravidão na antigüidade, com a subordinação plena das organizações políticas ao poder da Igreja no feudalismo e com a secularização e unidade nacional na modernidade. Assim sendo, o moderno Estado centralizado é produto das condições estruturais inerentes ao capitalismo burguês europeu, não sendo, portanto, mero reflexo evolutivo ou aperfeiçoamento de outros tipos históricos de Estados anteriores (Estado Antigo, Cidade-Estado, Estado Medieval)”. WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1990, p. 21.
[7] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo: ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. 2. ed. São Paulo: Editora Abril, 1978.
[8] DI PIETRO, Maria Silvya Zanella. Op. cit., p. 19.
[9] Por Estado contemporâneo, entende-se o atual modelo estatal, onde, ainda que remanescentes alguns traços do Estado social, de cunho paternalista e intervencionista, nota-se uma acentuada diminuição da atuação do Estado na sociedade, em uma visível intenção de consolidação de um modelo de “Estado mínimo”, bastante semelhante ao Estado Liberal, o que se está alcunhando de “Estado neoliberal”. É inegável a crise do Estado de bem estar social, “Estado-providência”, sendo que, gradativamente, está sendo transferida à esfera privada, a manutenção de vários setores bases do Estado social, como saúde, educação, previdência, sistemas de comunicação e geração de energia elétrica, em uma firme marcha à instituição do “Estado mínimo”.
[10] Sobre os contornos que ganha o princípio da legalidade quando aplicado à Administração Pública, o entendimento de Hely Lopes Meirelles: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 1999, p. 82.
[11] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade – fundamentos, natureza e limites. Revista de Direito Administrativo, vol. 122, out./dez., 1975, p. 10-12.
[12] Segundo o jurista luso Afonso Rodrigues Queiró, “um ato discricionário só é válido se prosseguir um fim de interêsse público, e precisamente aquêle fim que a lei teve em vista ao conferir o poder ao órgão que o praticou”. QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. A teoria do “desvio de poder” em Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo, vol. VII, jan./mar., 1947, p. 73.
[13] É utilizada a expressão “Estado liberal de direito” pelo simples fato de ter sido consagrada pela ciência política, mesmo sabendo-se que não é a mais coerente. Em última análise, o atual modelo de Estado também pode ser definido como liberal, já que garante inúmeros direitos individuais e, cada vez mais, diminui sua intervenção na economia, conduzindo-se para a forma de Estado mínimo. Em verdade, dever-se-ia falar em “Estado legal”, pois que, com a derrocada do Estado absolutista e a ascensão do Estado de direito, houve, de fato, uma verdadeira substituição do império da vontade do monarca pelo império da vontade da lei. A lei passou a ser a vontade soberana, sob a qual se colocavam o Estado e os Cidadãos.
[14] Importante, para contextualizar os contornos do princípio da legalidade no Estado liberal, é a análise do disposto no art. 5° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789: “Art. 5°. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene”. Textos básicos sobre derechos humanos. Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua Viva. Apud. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. et . alli. Liberdades públicas. São Paulo: Saraiva, 1978.
[15] Os marcos iniciais do Estado social, conforme largamente difundido por historiadores e estudiosos de ciência política, são as Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919 (Constituição de Weimar). Entretanto, a evolução do modelo estatal intervencionista pode ser notada na Alemanha desde a segunda metade do século XIX, em concomitância com a crise do modelo liberal-individualista de Estado. Pode-se, pois, adotar como termo inicial do Estado social, o governo do Kaiser alemão Otto Von Bismarck.
[16] DI PIETRO, Maria Silvya Zanella. Op. cit., p. 28.
[17] Bastante relevante se mostra a diferenciação entre o Estado social, ora referido, e o Estado socialista soviética que surgiu no início do século XX. Como bem ensina Paulo Bonavides, não “se pode confundir o Estado social, sobretudo da segunda metade do século XX, do constitucionalismo democrático concretizador dos direitos fundamentais dos cidadãos, com o Estado socialista soviético, que substituiu os autoritarismos liberais e burgueses pelo totalitarismo socialista”. BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 152.
[18] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 60-61.
[19] ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 124.
[20] Idem, p. 125.
[21] Por Constituição da República entenda-se a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
[22] NOGUEIRA, Johnson Barbosa. A discricionariedade administrativa sob a perspectiva da teoria geral do Direito. Curitiba: Genesis – Revista de Direito Administrativo Aplicado, Ano 1, n.° 03, dezembro, 1994, p. 736.
[23] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 3. Tiragem, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 48.
[24] DI PIETRO, Maria Silvya Zanella. Op. cit., p. 41.
[25] Segundo Celso Antônio, na “função o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queria ou não queria. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. Op. cit., p. 14.
[26] Idem, p. 33.
[27] Idem, p. 36.
[28] DI PIETRO, Maria Silvya Zanella. Op. cit., p. 47-48.
[29] Maria Silvya Di Pietro, embasada na doutrina do jurista alemão Hans Kelsen, ensina “que as normas jurídicas constam de duas partes: hipótese da norma, onde se desenvolvem os fatos que podem ocorrer, e o mandamento da norma, onde se definem as conseqüências jurídicas dos fatos descritos. Ocorrendo o fato que a hipótese da norma descreve, incide o mandamento”. Idem, p. 50.
[30] COSTA, Regina Helena. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. Revista de Direito Público, Ano 23, nº 95, Jul./Set., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 126.
[31] Segundo Eros Grau, os conceitos jurídicos “nos seus atos de expressão, isto é, nos seus termos (…) são signos de signos, ou seja, signos de significações atribuíveis – ou não atribuíveis – a coisas, estados ou situações (…) O objeto do conceito jurídico expressado, assim, é uma significação atribuível a uma coisa, estado ou situação e não a coisa, estado ou situação”. Os conceitos jurídicos, em si mesmo, não são atos de expressão, não albergam significação, a significação reside nos seus termos. Os termos são as expressões dos conceitos jurídicos, os sinais (signos) de significação das coisas, estados ou situações. Por conseguinte, os conceitos jurídicos expressados através de seus termos têm como objeto significações atribuíveis a uma coisa”. GRAU, Eros Roberto. Nota sobre os conceitos jurídicos. Revista de Direito Público, Ano XVIII, n.° 74, abril/junho, 1985, p. 218.
[32] Idem, p. 220.
[33] Idem, p. 218.
[34] Trás a autora, a fim de justificar sua posição, exemplo citado por Engisch, a respeito do conceito de filho, no sentido de que a distinção entre filiação legítima e ilegítima, não existe no plano biológico, mas para o Direito, gera conseqüências relevantes. Daí a idéia de ficção valorativa defendida. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 126.
[35] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e legalidade. São Paulo: Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.° 04, 1973, p. 15.
[36] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 398-99.
[37] Sobre a distinção entre hermenêutica e interpretação, se existe ou não, interessante o entendimento de Celso Ribeiro Bastos, para quem a interpretação reporta-se a uma situação de fato, real ou hipotética, enquanto a hermenêutica estabelece-lhe regras para o bom entendimento dos textos legais. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997, p. 18-23.
[38] Eros Roberto Grau, defendendo a tese de que a indeterminação não reside nos conceitos jurídicos (idéias universais), mas em suas expressões (termos), entende mais adequado a referência a ‘termos indeterminados de conceitos jurídicos’ e não ‘conceitos jurídicos indeterminados’. GRAU, Eros Roberto. Nota sobre os conceitos jurídicos. Op. cit., p. 219.
[39] QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. Op. cit., p. 52-80.
[40] BULLINGER, Martin. A discricionariedade da Administração Pública. Apud. COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 131.
[41] ENTERRÍA, Eduardo Garcia de, e FERNÁNDES, Tómas-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 393.
[42] LEITE, Luciano Ferreira. Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 71.
[43] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. Op. cit., p. 21-22.
[44] O conteúdo se constitui no elemento dispositivo dos atos administrativos, a parte principal e essencial da atuação administrativa. Por meio do conteúdo é que a Administração Pública exterioriza sua atuação, decidindo, opinando, certificando, em suma, repercutindo no ordenamento normativo. Difere-se o conteúdo do ato de seu objeto, uma vez que aquele se refere ao objeto, pressuposto existencial sobre o qual dispõe o ato administrativo.
[45] Para uma análise acerca dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade pode-se consultar o seguinte artigo: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O combate à sonegação fiscal e o direito ao sigilo bancário: a constitucionalidade da Lei Complementar n.º 105/2001 e da Lei n.º 10.174/2001 sob o enfoque da teoria dos direitos fundamentais. In BALTHAZAR, Ubaldo Cesar e, PALMEIRA, Marcos Rogério (orgs.). Temas de Direito Tributário. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001.
[46] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade – fundamentos, natureza e limites. Op. cit., p. 16.
[47] SEABRA FAGUNDES, Miguel. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 72-73.
[48] TÁCITO, Caio. Desvio de poder no controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais. Revista Trimestral de Direito Público, n.° 04, 1993, p. 32.
[49] Os motivos do ato administrativo devem ser entendidos como os pressupostos fáticos que autorizam ou exigem a atuação administrativa. A prática do ato administrativo se sujeita à ocorrência de determinada situação objetiva, que tanto pode estar prevista na norma como pode ser “escolhida” pela Administração, sendo que, neste caso, a validade do ato fica condicionada à efetiva existência do motivo que o determinou (“teoria dos motivos determinantes”).
[50] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade – fundamentos, natureza e limites. Op. cit., p. 18.
[51] Idem, Ibidem.
[52] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e legalidade. Op. cit., p. 21.
[53] NOGUEIRA, Johnson Barbosa. Op. cit., p. 749.
[54] COSTA, Regina Helena. Op. cit., p. 136.
[55] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Controle judicial dos atos administrativos. Revista de Direito Público, Ano XVI, n.° 65, jan./mar., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 35-36.
[56] LEITE, Luciano Ferreira. Op. cit., p. 74.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

José Sérgio da Silva Cristóvam

 

Doutorando em Direito Administrativo pela UFSC. Mestre em Direito Constitucional pela UFSC. Especialista em Direito Administrativo pelo CESUSC. Professor de Direito Administrativo da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Professor de Direito Administrativo da Escola Nacional de Administração (ENA/Brasil), em convênio com a École Nationale d’Administration (l’ENA/França). Professor Titular de Ciência Política e Teoria Geral do Estado e Professor Substituto de Direito Administrativo no Curso de Graduação em Direito da UNIDAVI, bem como em Cursos de Pós-Graduação em Direito da UNIDAVI, CESUSC, UNISUL, UNOESC, UnC e diversas outras instituições. Professor em cursos preparatórios para Concursos Públicos e Exames de Ordem, nas disciplinas de Direito Constitucional e Direito Administrativo. Membro fundador do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores na Rede Estadual de Ensino de Santa Catarina (SINTE/SC). Advogado militante na seara do Direito Público, Sócio do Escritório Cristóvam & Palmeira Advogados Associados S/C

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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