A extinção da figura do Curador

O art. 194 do código, que previa a nomeação do curador em favor do réu menor, assim entendido aquele que contasse menos de 21 anos (e mais de 18, por óbvio), foi revogado. Com efeito, com o advento do novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), já defendíamos a não recepção desse dispositivo, já que o estatuto novel conferiu capacidade absoluta ao maior de 18 anos, ao dispor, em seu art. 5º, que com essa idade cessa a menoridade (cf. “Alguns reflexos de novo código civil no direito processual penal”. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, nº 24, Porto Alegre, 2004). Finalmente a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, afastando qualquer espécie de dúvida que ainda pairasse, revogou o art. 194, extinguindo, assim, a figura do curador para essa hipótese (de ser ver, porém, que em situações diversas ainda há previsão do curador como, por exemplo, nos arts. e 631 do CPP).

Discussão que, porém, ainda remanesce consiste na necessidade de nomeação de curador para o menor de 21 anos que for ouvido na fase policial na qualidade de indiciado, seja durante o flagrante, seja no curso regular do inquérito.

No entendimento de Antonio Alberto Machado (Prisão cautelar e liberdades fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2005, p. 90), a revogação operada no art. 194 do CPP não se aplica à fase policial. Quisesse o legislador extinguir a figura do curador no inquérito policial e, decerto, teria feito referência ao art. 15 do CPP, dando-o como revogado. Todavia, se revogou apenas o art. 194, implica dizer que dispensou o curador apenas para o interrogatório judicial, não estendendo tal dispensa àquele dispositivo do art. 15 do código. Argumenta, ainda, o ilustre autor e membro do Ministério Público paulista, que é exatamente durante o inquérito, onde o indiciado é ouvido “no ambiente normalmente opressivo e hostil das delegacias de polícia”, que a necessidade de tal cautela ganha força.

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Posição um pouco diversa, mas nem por isso menos interessante, é a defendida por Antonio Milton de Barros. Segundo esse autor, a figura do curador realmente se acha extinta, inclusive para o interrogatório policial, na medida em que o art. 6°, V, do CPP, determina a oitiva do indiciado “com observância, no que for aplicável”, do disposto nos arts. 185 e ss., do código, que tratam, exatamente, do interrogatório judicial. Por isso, prossegue, extinta a figura do curador, essa opção do legislador deve ser aplicada, também, ao inquérito. A partir daí surge a inovação proposta pelo eminente professor. Entende, com efeito, que se é certo que ao interrogatório administrativo devem ser observadas, “no que for aplicável”, as regras previstas para o interrogatório judicial, por conseqüência passa a ser obrigatória, na polícia, a presença do defensor, por conta da nova disciplina do art. 185 do CPP (Barros, Antonio Milton. A exigência de curador no interrogatório. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 11.11.2005).

Não é o entendimento que animou uma terceira corrente, para quem a figura do curador acha-se extinta, quer para o interrogatório judicial (art. 194), quer para o interrogatório policial (art. 15). Assim, Carlos Frederico Coelho Nogueira: “Entrando em vigor o novo Código Civil, tornar-se-á superado o art. 15 do CPP, pois os maiores de 18 anos serão considerados plenamente capazes para os atos da vida jurídica (art. 5º, caput). Deixará, portanto, de existir a figura do ‘indiciado menor’, dado que os maiores de 18 não podem ser indiciados em inquérito policial, por força de sua inimputabilidade penal” (Comentários ao código de processo penal, São Paulo: Edipro, 2002, vol. 1, p. 381). Vale observar, apenas, que tal comentário é anterior à edição da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, e é por ela reforçado.

É, também, a posição de Tourinho Filho, ao afirmar, sob a rubrica “O curador no auto de prisão em flagrante” que “hoje, tendo o novo Código Civil fixado o término da menoridade aos 18 anos, não se pode admitir, sem cometer colossal heresia, nomeação de curador para uma pessoa plenamente capaz” (Processo penal, São Paulo: Saraiva, 27ª. ed., 2005, vol. I, p. 267). Assim, completa em outra passagem, “reclamar da Autoridade Policial a nomeação de curador ao indiciado que ainda não completou 21 anos […] é render imoderada, ridícula e despropositada vassalagem ao art. 2.943 do Código Civil. Nesse caso o intérprete deve preferir a idéia à forma, a noção superior e abstrata á regra positiva imperfeita” (ob.cit., vol. 2, p. 479). Nesse sentido, posicionam-se, ainda, Julio Fabbrini Mirabete (Processo penal, São Paulo: Atlas, 17ª. ed., 2004, p. 98), Guilherme de Souza Nucci (Código de processo penal comentado, São Paulo: RT, 2ª. ed., 200, p. 90) e Antonio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional, São Paulo: RT, 4ª. ed., 2005, p. 291).

Comungamos desse entendimento. O art. 15 do CPP exigia a nomeação de curador em prol do “indiciado menor”. Ora, o conceito de menoridade não se traduz em um dado abstrato, aleatório, mas, antes, é extraído do Código Civil. Por qual razão sempre se entendeu, de forma absolutamente unânime, que o menor referido nos arts. 15, 194 e 262, do CPP, era aquele que contasse menos de 21 anos ? Simples, porque o Código Civil de 1916, em seu art. 6º, inc. I, considerava relativamente incapazes “os maiores de dezesseis e os menores de vinte e um anos”. Não é e nunca foi uma criação do Código de Processo Penal, senão um conceito que o legislador de processo penal tomava de empréstimo ao Código Civil. Se é assim, com o objetivo de preservar a evidente harmonia que deve haver entre os conceitos, é claro que o menor de 21 anos, com o advento do Código Civil de 2002, não mais é considerado relativamente incapaz. Não faria nenhum sentido que aos olhos do Direito Civil a pessoa com, por exemplo, 19 anos, fosse totalmente capaz e, sob a ótica do Processo Penal, esta mesma pessoa ainda necessitasse da assistência de um curador. De tal sorte que o menor a que se referem os arts. 15 e 262 do CPP, simplesmente desapareceu. Hoje, ou o agente conta mais de 18 anos e, pelas razões expostas, fica dispensada a nomeação de curador ou ele tem menos de 18 anos e, por conseqüência, é inimputável, escapando, assim, do inquérito policial ou da ação penal, na exata dicção do art. 27 do Código Penal.

Apesar do exposto, uma questão instigante não foi ainda respondida. É a proposta formulada por Antonio Milton de Barros, quando indica a necessidade de nomeação de defensor àquele que é interrogado na fase policial. Seu principal argumento – repita-se – consiste no fato de que, passando o art. 185 do código a exigir a presença de defensor no interrogatório e sendo aplicáveis as regras do interrogatório judicial, também para o inquérito, por conseqüência, se exigiria o acompanhamento de advogado.

Ousamos discordar. A discussão é um tanto profunda e guarda íntima relação com a natureza jurídica do interrogatório. É praticamente uníssona a doutrina quando confere ao inquérito a natureza de um procedimento administrativo, cujo objetivo principal é a colheita de provas, algumas delas, como v.g. a pericial, incapaz de serem repetidas em Juízo. O procedimento se diz administrativo, em contraste com o procedimento judicial, exatamente pelo fato de que, no inquérito, não se observam boa parte dos princípios constitucionais exigidos, apenas, para o processo judicial, dentre eles a publicidade, a ampla defesa e o contraditório. É também por isso que não se tolera uma condenação com base, única e exclusivamente, na prova produzida na polícia. Não porque se tenha alguma espécie de preconceito contra essa prova e tampouco em virtude da autoridade policial não ser merecedora de confiança. Mas pelo simples fato – repita-se – de que uma condenação deva ser submetida ao crivo da publicidade, da ampla defesa e do contraditório, inexigíveis no inquérito policial, pela sua própria natureza. do

É sob tal perspectiva que deve ser analisada a expressão no que for aplicável, contida no art. 6º, inc. V, do CPP. Ou seja, as regras que tratam do interrogatório judicial têm incidência no interrogatório policial naquilo que respeitem a natureza jurídica deste ato. Assim, por exemplo, o direito ao silêncio, tutelado no art. 186 do código, se aplica, também, ao interrogatório policial, máxime em virtude de sua previsão constitucional (art. 5º, LXIII, da CF). Verifica-se, nesse instituto, inicialmente exigido para o interrogatório judicial, plena aplicabilidade ao inquérito. Ou, ainda, sendo dois os indiciados, parece claro deva a autoridade policial atentar ao disposto no art. 191 do CPP. Já a obrigatoriedade da presença do defensor, reclamado para o interrogatório em juízo (art. 185), não se coaduna com a natureza do inquérito. Claro que ele poderá estar presente, acompanhando o interrogatório policial, em atitude, aliás, que sempre foi admitida, mesmo antes das alterações trazidas pela Lei nº 10.792/03. De resto, a assistência do advogado, em caso de prisão em flagrante, encontra previsão constitucional (art. 5º, LXIII, da CF). Mas sempre em caráter facultativo, não como verdadeira obrigatoriedade, capaz, por exemplo, de acarretar o relaxamento do flagrante ante a ausência do defensor.

Insisto, portanto, que a nova disciplina do interrogatório judicial deve ser observada, no inquérito policial, no que for aplicável, conforme indica o art. 6°, V, do CPP. Imaginar-se o contrário obrigaria, por exemplo, que no interrogatório realizado na polícia pudessem as partes formular perguntas às testemunhas, conforme previsto no art. 188 do código, estabelecendo-se verdadeiro contraditório. Para tanto, cumpriria à autoridade policial notificar previamente o Ministério Público, a fim de que participasse do ato. Ou seja, em todo e qualquer interrogatório, fosse caso de flagrante ou não, um membro do parquet – além do advogado – deveria estar presente, pois só assim o art. 188 do código estaria sendo efetivamente observado. Trata-se, à evidência, de exigência descabida, que não guarda nenhuma relação com o caráter administrativo do interrogatório.

Isso sem dizer – em observação calcada em regra de experiência – que, sob o aspecto prático, a obrigatoriedade da presença de um defensor, quase sempre, será prejudicial ao indiciado. Com efeito, constar do ato o nome de um advogado que, na maioria das vezes, não tem qualquer compromisso com a proteção do indiciado e que se presta a desempenhar um papel meramente decorativo, acabará sendo nociva àquele primeiro. Foi isso que se verificou com a figura do curador que, a fim de se atender a uma formalidade legal, era escolhido dentre pessoas que se encontravam na delegacia ou, quando não, era mesmo um policial (RSTJ 129/477), ou parente da vítima (STJ – HC nº 5.952-GO – DJU de 6.10.97, p. 50.015) ou mesmo pessoa analfabeta (RT 645/298, 602/370). De sorte que a presença do advogado acabará conferindo razoável valor probatório à confissão do réu realizada na fase policial, no momento de se proferir a sentença, quando, em verdade, sua atuação foi nenhuma, justificada apenas para satisfação de um requisito formal.

Não se ignora a existência de respeitável posicionamento doutrinário a exigir a instalação da ampla defesa e do contraditório também no inquérito policial. É o entendimento de Rogério Lauria Tucci (Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo: RT, 2004, p. 211), calcado na letra do art. 5º, inc. LV, da Constituição, segundo a qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifei). Trata-se, porém, de tese que não encontrou apoio do STF que, em inúmeras oportunidades, reafirmou a não exigência do contraditório no inquérito policial (STF – 1ª. T. – HC nº 69.372-SP – Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 7.5.1993, p. 8.328). Em verdade, o processo administrativo, mencionado pelo constituinte e que reclama a observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, é aquele capaz de, ao seu final, culminar com a imposição de alguma penalidade, como, por exemplo, o instaurado para apuração de falta cometida por funcionário público, que pode levar à advertência, suspensão, etc. Ao inquérito policial, por não infligir qualquer sanção, dispensam-se os princípios constitucionais.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ronaldo Batista Pinto

 

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP Universidade Estadual Paulista. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades COC de Ribeirão Preto – SP.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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