A fraude contra os credores também chamada de fraude pauliana sofre de acirrada controvérsia a respeito dos efeitos da sentença de procedência da ação pauliana, bem como sua natureza jurídica.
O que ocorre com o ato fraudulento pode variar após o pronunciamento judicial, assumem diferentes contornos.
Prevista a fraude contra os credores no art. 158 e ss do C.C. tem como fim a defesa e preservação dos direitos e interesses de todos os credores quirografários. E para que seja reconhecida, necessita do ajuizamento de ação visando, especificamente, o pronunciamento judicial fundado no art. 269 CPC que reconheça, decretando, conseqüentemente, o vício do negócio jurídico, em virtude do ato ter sido praticado fraudulentamente.
Com o ajuizamento da ação pauliana não se visa a satisfação do crédito de forma direta, mas sim, a possibilidade de tornar possível penhora em uma futura e eventual execução, fundamentando sua utilização na restauração da garantia e não na execução propriamente dita.
Constitui fraude aos credores qualquer manipulação do devedor no sentido de eximir-se de cumprimento de suas obrigações, propiciando desfalques de seu patrimônio através de alienações ou onerações, prejudicando injustamente os credores.
O insigne e saudoso Washington de Barros Monteiro conceituava a fraude contra credores, ainda sob a égide do velhusco Código Civil de 1916 revogado, como sendo o artifício malicioso empregado para prejudicar terceiros.
Correntes doutrinárias acerca dos efeitos da sentença da ação pauliana.
Vige tanto na doutrina e na jurisprudência, sobre os efeitos da sentença de procedência do pedido formulado na ação pauliana, que decreta a fraude contra credores. A primeira corrente entende que ela gera apenas e tão-somente a ineficácia relativa do ato, já a segunda a sua anulabilidade.
Ineficácia relativa do ato fraudulento
O ato fraudulento, após a procedência da ação, seria declarado como ineficaz perante o credor prejudicado, ou seja, o autor da ação pauliana, porém seria válido e eficaz em relação às demais pessoas. Para os defensores dessa corrente, portanto, não se trata de anulabilidade.
Compartilham dessa opinião ilustres processualistas como Cândido Rangel Dinamarco e Humberto Theodoro Junior entre outros (Teori Albino Zavascki, Misael Montenegro Filho, Nelson Rodrigues Netto, Marcos Destefenni, Frederico S. F. Cais, José Eli Salamancha, Marcelo José Bonicio).
Para Dinamarco fiel seguidor da doutrina italiana, a fraude contra credores não acarretará a anulabilidade do ato, o que para ele faz com que a pauliana não tenha natureza jurídica de ação anulatória.
Assevera Dinamarco que a sentença de sua procedência não tolhe todos os efeitos do ato, apenas retiro do negócio jurídico o que é preciso para o credor não sofra prejuízo. Então, a sentença mantém vivo o ato, na parte que não promover prejuízos ao credor.
Perfeitamente justificável que o Código Civil de 1916 a tenha tratado pelo prisma da anulabilidade e não da ineficácia, conforme seus arts. 106-113 posto que fora elaborado antes que viessem à luz as doutrinas que esclareceram a real conseqüência das fraudes praticadas contra a responsabilidade patrimonial; a própria teoria da ineficácia dos negócios jurídicos ainda estaria por ser reformulada e era natural que nem em vez esse Código empregasse os adjetivos eficaz ou ineficaz, nem os substantivos eficácia ou ineficácia.
Mas, é surpreendente que o CC de 2002 redigido em 1975 resista a ineficácia dos atos fraudulento e ainda insista em defender a anulabilidade (arts. 158-165).
Assim procedendo apenas anulando os negócios fraudulentos contra credores portanto devolvendo o bem ao devedor fraudador, teria caráter de repugnante inconstitucionalidade por transgredir à garantia da propriedade e ainda à cláusula due process ( art. 5º., XXII e LIV) porque estar-se-ia apenando o adquirente além do necessário para resguardar o direito do credor, e, conforme o caso, premiando o devedor-alienante pelo ato fraudulento que praticou.
Humberto Theodoro Junior ainda na vigência do CC de 1916 afirmou que a fraude pauliana quando da entrada em CPC de 1974 ainda em vigor, foi alterada em relação aos efeitos decorrentes da procedência da ação pauliana, passando a ensejar a ineficácia do ato em relação ao credor e não a anulação deste, como previa a legislação anterior.
Para este, em razão da legislação posterior ao CC de 1916 dispôs ostensivamente que a fraude deve ser combatida pela ineficácia relativa (art. 592 CPC), não se deve insistir que a ação pauliana seja tratada como ação que visa a anulação do ato do devedor insolvente que prejudicou deliberadamente seus credores, e, sim tal qual ocorre com a fraude à execução.
Na jurisprudência também há os que defendam a ineficácia relativa e não a anulabilidade, como ser vê, exemplificativamente, do trecho da ementa de acórdão relatado pelo Teori Albino Zavascki:
“A fraude contra os credores não gera a anulabilidade do negócio – já que o retorno puro e simples, ao status quo ante poderia inclusive beneficiar credores supervenientes à alienação, que na foram vítimas de fraude alguma, e que não poderiam alimentar expectativa legítima de se satisfazerem à custa do bem alienado ou onerado.”
Portanto, a ação pauliana que, segundo o próprio C.C., só pode ser intentada pelos credores que já o eram ao tempo em que se deu a fraude, vide art. 158, segundo parágrafo do CC/2002, art. 106, parágrafo único, não conduz a uma sentença anulatória do negócio, mas sim à retirada parcial de sua eficácia, em relação a determinados credores, permitindo-lhes excutir os bens que foram maliciosamente alienados, restabelecendo sobre eles, não a propriedade do alienante, mas a responsabilidade por suas dívidas.
Anulabilidade do ato
Ao discorrer sobre a corrente doutrinária, que acredita que a ação pauliana tem efeito de anular o ato fraudulento, fazendo com que o bem retorne ao patrimônio do devedor. Tanto o velhusco código civil revogado como o atual vigente de 2002 há menção expressa que são anuláveis os atos praticados em fraude contra credores fazendo que o bem retorne ao patrimônio do devedor.
É evidente que os atos praticados mediante fraude em detrimento dos credores reduzem o patrimônio do devedor, fazendo com que este se torne incapaz de honrar seus compromissos com os credores previamente constituídos, tornando-se, portanto, insolvente.
Ao comentarem o art. 165 do CC Nelson Nery Jr e Rosa Maria Nery elaboram interessante raciocínio em prol da anulabilidade do ato, e assim nos ensinam:
“No Brasil ex vi legis, a fraude contra credores enseja a anulação do negócio fraudulento. Ao escrevermos sobre o tema, num primeiro momento, também pensávamos que se deveria dar à fraude contra credores o tratamento da ineficácia, seduzidos que estávamos pelas idéias importadas, sem reservas do direito civil italiano. (Nery, Vício do ato jurídico e reserva mental, 1983). Posteriormente escrevemos em outro sentido, modificando nossa opinião anterior como a lei brasileira havia adotado, propositadamente, o sistema da anulabilidade do ato ou negócio havido em fraude contra os credores, seria insustentável de lege lata a opinião de que se trataria de ato ou negócio ineficaz.”
A disposição do CC vigente é a de que os atos praticados em fraude contra credores serão anulados e não simplesmente ineficazes, portanto, beneficiarão todos os credores pré-constituídos e não apenas o autor da ação pauliana ou revocatória..
Se o legislador quisesse assemelhar a fraude contra credores com a fraude à execução, de certo o teria feito, porém, pela redação dos artigos que tratam da fraude contra credores é correto se concluir que tais atos serão anuláveis.
Durante a tramitação do Projeto do CC na Câmara Federal foi apresentada uma emenda, a de 193, pretendendo que a fraude contra os credores acarretasse a ineficácia do negócio jurídico em relação aos credores prejudicados e não sua anulação. A isso respondeu a Comissão Revisora, em seu relatório:
“O Projeto segue o sistema adotado no CC de 1916 segundo o qual a fraude contra credores acarreta a anulação. Não se adotou, assim a tese de que trataria de hipótese de ineficácia relativa. Se adotada esta, teria de ser mudada toda a sistemática a respeito, sem qualquer vantagem prática. Já que o sistema do CC de 1916 nunca deu motivos a problemas, nesse particular. (…)”
Ademais, o termo “revogação”, o CC de 1916 e do projeto é usado para a hipótese de dissolução do contrato pela vontade de uma só das partes contratantes, ( assim como no caso de revogação de doação por ingratidão). É nesse caso a revogação opera apenas ex nunc, e não ex tunc.
Nos sistemas jurídicos que admitem a revogação do negócio jurídico por fraude contra credores, admite-se que o credor retire a voz do devedor (revogação), ao passo que, em nosso sistema jurídico, se permite que o credor, alegando a fraude, peça a decretação da anulação do negócio entre devedor e terceiro. São dois sistemas que se baseiam em concepções diversas, mas que atingem o mesmo resultado prático. Para que mudar?”
Com o retorno dos bens alienados ao patrimônio do devedor antes considerado insolvente, beneficiando, portanto, todos os credores, como aliás, bem esclarece Sílvio Rodrigues:
“A ação revocatória tem por efeito anular os atos praticados em fraude. De modo que julgada procedente a vantagem porventura advinda do ato fraudulento reverte em proveito do acervo sobre o qual se tenha de efetuar o concurso de credores (art. 165 CC). Em outras palavras, o patrimônio do devedor se restaura, restabelecendo-se a garantia original com que contavam os credores. Portanto, os bens alienados voltam ao patrimônio do devedor, as garantias concedidas se aniquilam; e os pagamentos antecipados são devolvidos.”
Outro argumento para que a tese da anulabilidade prevaleça, é o de que apenas se torna imprescindível o ajuizamento de ação, com a conseqüente sentença visando anular o ato fraudulento, sendo absolutamente desnecessária quando o objetivo for ineficácia, como ocorre na fraude de execução.
O próprio STJ acabou por sumular a matéria aderindo claramente à tese da anulabilidade em seu Enunciado 195, nos seguintes termos: “Em termos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra devedores.”
É de se destacar trecho do voto do Min. Antônio de Pádua Ribeiro, proferido em um dos acórdãos que geraram a redação da Súmula 195 do STJ, Corte Especial, EDiv. No Resp 46.192-2-SP, m.v., DJU 05.02.1996: “No caso, porém, há aspecto que, a meu ver, é de difícil superação, porquanto os embargos de terceiros atacam ato de constrição judicial, e a ação pauliana visa, exatamente, à anulação de ato jurídico. É uma ação, cuja sentença a ser proferida, é de caráter constitutivo. Tornar-se difícil conciliar uma ação que visa uma sentença constitutiva com uma outra ação que se objetiva apenas uma sentença de desconstituição de um ato de constrição judicial.”. Assim foi ementado o acórdão no qual foi proferido o voto citado: “Fraude contra credores, Embargos de terceiro/ação pauliana. A fraude é discutível em ação pauliana, e não em embargos de terceiro. Precedentes da 1ª., 3ª., e 4ª., Turmas e da 2ª. Seção do STJ. Embargos de divergência conhecidos pela Corte Especial, mas rejeitados.”
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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