Resumo: O presente estudo parte do método teórico explanatório para analisar o instituto da posse e a função social que lhe foi atribuída pelo Direito ao longo dos anos. Diante disso, promoveu-se uma investigação acerca da função social e será demonstrada qual a sua importância no ordenamento jurídico brasileiro, bem como o fundamento constitucional do instituto em comento, além de sua aplicação na usucapião.
Palavras-chave: posse. Função social.
Abstract: This study of the explanatory theoretical method to analyze the ownership institute and the social function that was assigned to him by the law over the years. Therefore, an investigation was promoted on the social function and will be demonstrated how important the Brazilian legal system, as well as the constitutional foundation of the institute under discussion, as well as its application in adverse possession.
Keywords: possession. Social function.
Sumário: Introdução. I Visão contemporânea do instituto da posse e a função social. II Fundamento constitucional da função social da posse e sua conjectura segundo o Código Civil. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O presente estudo promove uma revisão bibliográfica acerca do instituto da posse a fim de demonstrar a pertinência e a necessidade de se reconhecer e tutelá-la quando esta exerce função social. Assim, há que se investigar também o que seria a função social da posse, buscando demonstrar qual o seu fundamento constitucional, já que a Constituição de 1988 não a contempla expressamente em seu texto.
A questão da função social da posse tem sido amplamente discutida no direito brasileiro, pois cada vez mais tem se visto decisões judiciais que tutelam a posse trabalho e a posse moradia, demonstrando que o instituto vem ganhando destaque na jurisprudência e que o direito à propriedade vem sendo relativizado em prol da posse exercida com função social.
Ademais, pretende-se esclarecer como a função social tem aplicabilidade prática, especialmente quanto ao instituto da usucapião, pois é nela que tem seu corolário.
I VISÃO CONTEMPORÂNEA DO INSTITUTO DA POSSE E A FUNÇÃO SOCIAL
O instituto da posse é um dos mais antigos que se deve ter conhecimento, pois muito antes da existência da propriedade poder-se-ia falar em posse. É algo tangível que o homem, desde o momento em que pegou o primeiro objeto que viu em suas mãos já detinha posse, pois, de uma maneira simplória, a posse pode ser vista como o apoderamento de determinado bem da vida por alguém.
De acordo com Engels (1984), a partir de certa evolução biológica, a mulher começa a restringir com quais machos ela quer copular, exigindo que tal macho também a escolha como única fêmea. A consequência dessa restrição é a diminuição dos grupos de pessoas e uma incipiente criação das famílias monogâmicas. Logo, a partir dessa nova conjectura fica difícil ao macho caçar e pescar em territórios muito grandes, sendo necessário que eles aprendessem a delimitar certos espaços para a produção de alimentos. É nesse momento que o homem estabelece qual é o seu espaço territorial, logo, não admite mais que outros interfiram na área por ele delimitada.
É então, na família monogâmica que surge o instituto da religião. Até esse momento os sujeitos adoravam os deuses lares (seus ancestrais) e os enterravam na sua terra, o que delimitava o espaço da propriedade privada. Percebe-se, neste contexto, que posse e propriedade privada são indissociáveis, pois não se existia um registro imobiliário capaz de separar propriedade e posse em um plano formal e plano fático, onde um mero pedaço de papel distingue a propriedade da posse. Sendo assim, sobre o advento dos referidos institutos, o professor Astolpho Rezende afirma:
“(…) a posse e a propriedade aparecem em constante relação entre os homens; a posse é um fato natural; a propriedade uma criação da lei. Como nasceram uma e outra? É inútil investigar-se, através das diversas teorias imaginadas e desenvolvidas pelos filósofos e pelos juristas, a origem da propriedade, porque, frente a fenômenos jurídicos, é bastante que pesquisemos a origem desses fenômenos na organização romana, porque foi Roma que organizou o Direito, com uma extensa projeção sobre o futuro (REZENDE, 2000, p.1)”.
O período romanístico foi marcado por longos séculos entre a formação, ascensão e queda do império romano, contudo, o referido período tem suma importância histórica ao instituto da posse. É que a perfeita separação entre os institutos da posse e da propriedade somente pode ser enxergada após a promulgação da Lei das XII Tábuas. Conforme pesquisa realizada pelo professor Astolpho Rezende
“(…) o que parece verossímil é que o reconhecimento da posse somente apareceu com a sua proteção por meio dos interditos. Isso só pode ter sido possível após o triunfo da plebe. Só então começou o parcelamento da propriedade, pela distribuição e arrendamento das terras (REZENDE, 2000, p. 20)”.
Diante dessa não separação entre os institutos da posse e da propriedade até o momento da promulgação da Lei das XII Tábuas, razoável a não dissociação entre propriedade e posse defendida pela teoria possessória de Ihering. De acordo com ensinamentos de Maurício Motta e Márcio Alcino Torres:
“(…) Ihering imaginava que o corpus possessório era o exercício visível do direito de propriedade, o fato de agir como proprietário. A posse não seria garantida pelo direito, senão, em vista de garantir a propriedade mesma. Assim, quando fala em corpus, Ihering não tem em vista senão o direito de propriedade.
Para ele, o corpus consiste no fato de agir como proprietário, e o animus é a vontade aplicada ao próprio corpus; sendo a posse, portanto, a vontade de se tornar visível como proprietário. Não há intenção de dono, que seria a affectio tenedi. Não é, portanto, necessária a prova de intenção do possuidor, a ideia de animus já estaria contida na própria ideia de corpus e seria observável quando o possuidor desse à coisa sua devida destinação econômica (MOTA; TORRES, 2009, p. 08)”.
Um pouco antes, na Alemanha, foi criada durante o iluminismo, uma comissão para codificar as leis, onde ganha especial destaque as ideias de Savigny. Em suas investigações sobre a posse, Savigny percebe que os possuidores exercem poder de fato sobre determinada coisa (corpus), ou seja, sob a perspectiva desse teórico, o elemento caracterizador da posse é o poder físico sobre a coisa. Além disso, Savigny afirma que a existência de posse prescinde de que o possuidor tenha a coisa como sua (animus domini), o que demonstra que o corpus era por ele classificado como elemento objetivo, enquanto o animus domini era tido como elemento subjetivo. A inexistência de corpus enseja na mera detenção, enquanto a existência exclusiva da vontade de ser dono não significa nada, pois se trata de mera intenção.
Foi na mesma Alemanha que surgiu a teoria de Ihering, que ao que tudo indica, inspirou-se na doutrina romana para associar a existência da posse à propriedade, já que até aquela época ambas se confundiam, e se separaram tão somente com o surgimento dos interditos possessórios, que até então tinham a função de proteger a propriedade perturbada.
Neste contexto, Ihering criticou a teoria de Savigny, contudo, o autor também dividiu o instituto da posse em elemento subjetivo e objetivo. O elemento objetivo, segundo sua perspectiva, consistia na aparência de propriedade, enquanto o elemento subjetivo consistia na affetio tenendi, a qual prescrevia a gestão da coisa como proprietário. Segundo Ihering os dois elementos não necessariamente precisariam ocorrer ao mesmo tempo, bastando que apenas um deles esteja presente. Assim, conforme salientado anteriormente, para Ihering a posse era uma mera extensão da propriedade e a tutela possessória nada mais era do que uma forma de tutelar a propriedade.
Contemporaneamente, a posse não pode ser vista tão somente a partir dos elementos formulados por Ihering e por Savigny, embora ambas as teorias tenham grande influência no direito brasileiro. A atual conjectura e a constitucionalização do Direito Civil comandam que a posse deve ser vista como a apropriação econômica sobre determinada coisa. Assim, a posse, embora difícil de definir, deve ser vista como a relação estabelecida entre cidadão e coisa, de modo que aquele aja como dono daquela e lhe dê a destinação para a qual foi criada.
Assim, a posse consiste na manifestação exterior da apropriação econômica da coisa, ou seja, analisada a situação no plano fático, o possuidor é aquele que tem a coisa sob sua dependência e a faz servir para a satisfação de suas necessidades econômicas e sociais. O animus, segundo esta perspectiva, verifica-se quando há vontade de apropriação da coisa e de exploração desta, desde que tal vontade corresponda a um ideal de interesse público consoante costumes e opinião pública.
Em posicionamento semelhante, Maurício Mota e Márcio Alcino Torres afirmam:
“A posse, na realidade, consiste em uma manifestação exterior da apropriação econômica da coisa, isto é, um estado fático tal que revela o senhorio de fato da coisa, aquele que a tem sob sua dependência e que faz servir para a satisfação de suas necessidades econômicas e sociais. O animus aplicado ao corpus será, por conseguinte, a vontade de realizar a apropriação econômica da coisa, a vontade de agir como senhor de fato da coisa. A posse refere-se a uma vontade do indivíduo que deve ser respeitada pela necessidade mesma de todos de apropriação e de exploração econômica das coisas, desde que essa vontade corresponda a um ideal de interesse público consoante os costumes e a opinião pública (MOTA; TORRRES, 2009. p. 10)”.
Nesta toada, o corpus se materializa através da consciência social sobre o senhorio da coisa e a possibilidade, consoante esta perspectiva social, de dispor dela e de que ninguém tente usurpá-la. Assim, a posse seria o poder de plena disposição de uma coisa e se materializa quando do estabelecimento de independência econômica do possuidor no desfrute da coisa. Tratando ainda sobre o tema, José Carlos de Matos Peixoto disserta:
“A consciência social considera esses fatos suficientes para indicar a senhoria sobre a coisa, necessária à aquisição da posse. Assim, o corpus é a possibilidade de dispor da coisa, segundo a consciência social, entendida esta como o aspecto negativo da relação possessória (o aspecto positivo é a atuação do possuidor), ou seja, consistente na abstenção socialmente aceita por parte de terceiros em relação à coisa possuída (PEIXOTO, 1936, p. 145-146)”.
É nessa questão do corpus que se observa os primeiros indícios da função social da posse, pois, este elemento somente se consubstancia no momento em que o possuidor dá destinação à coisa, pois se assim não for, não há como a sociedade reconhecê-lo como dono.
Mas antes de falar propriamente da função social da posse é necessário esclarecer que o Direito vem abandonando a perspectiva patrimonialista perpetrada durante o Estado Liberal para adotar uma perspectiva social, contudo, dentro dos moldes de um Estado Democrático, embora assuma facetas de Estado Social conforme se demonstrará adiante.
A Constituição de 1988 constituiu um marco no reconhecimento de princípios jurídicos e de positivação de direitos fundamentais, o que levou à constitucionalização do Direito Civil, que até então estava marcado pelo caráter altamente patrimonial. O centro da legislação deixa de ser as coisas para tutelar, antes de tudo, as pessoas, e é aí que determinados institutos passam a atuar não mais como meros institutos jurídicos, mas como mecanismos de aplicação prática de princípios e de direitos fundamentais.
Neste contexto, necessário se faz que determinados institutos sejam imbuídos de uma função social, pois na sociedade democrática disciplinada pela Constituição e cujo corolário é o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, as coisas passam a ter uma função coletiva, ao contrário da função meramente egoística que detinham sob a égide do Código de 1916, embora este contivesse alguns institutos que coadunavam com os ideais que aqui se expõe.
É justamente nesse momento que se torna imprescindível abandonar a ideia de Ihering de que o exercício da posse constitui mera faculdade do proprietário, para visualizá-la como apoderação econômica sobre a coisa, enquanto utilização desta para as finalidades a que se destina.
Isso porque, qualquer bem ocioso perde a sua utilidade prática e bens não utilizados constituem bens que não cumprem a sua finalidade diante da sociedade e não agregam qualquer benefício a esta.
É nesta toada que ganha destaque a função socializante do Direito e de seus institutos, pois cabe aos seus institutos tutelar mais do que a esfera individual de cada cidadão, mas as projeções dos direitos individuais na esfera coletiva. Essa mesma ideia é defendida por Miguel Reale como princípio da sociabilidade. Eis o que o referido autor diz sobre o tema:
“O princípio da sociabilidade invadiu a órbita dos direitos em geral para circunscrever a sua utilização condicionada a uma finalidade social, a um benefício real que legitime o exercício do direito, pois, inexistindo benefício ou o resultado de ordem moral ou de ordem econômica, não se justifica a utilização da coisa (REALE, 1986, p. 14)”.
Essa função socializante, em termos práticos, significa dar à coisa destinação econômica e/ou social, pois dada tal destinação, os benefícios serão experimentados por toda a sociedade. A função social de determinado instituto faz com que este se torne mecanismo de transformação do meio e de transformação da realidade humana segundo a perspectiva de Cortiano Júnior. Sobre o tema o autor pondera:
“Recuperar a transcendência das coisas, reaver o que a titularidade das coisas tem de instrumento para a realização concreta da existência humana, significa ver a apropriação dos bens por outros olhos. Estes olhos devem enxergar que as coisas de que o homem se apropria servem para realizar o homem e não para serem realizadas no homem (CORTIANO JÚNIOR, 2002)”.
Essas ideias a muito florescem. Tomás de Aquino (2005, p. 158), há muito tempo dizia que “os bens temporais outorgados por Deus ao homem, são, certamente, de sua propriedade; o uso, ao revés, deve ser não somente seu, senão também de quantos possam sustentar-se com o supérfluo dos mesmos”. Márcio Alcino Torres e Maurício Mota afirmam sobre as ideia de Aquino:
“Portanto, Aquino, seguindo Aristóteles, assegura, consoante a prudência, a legalidade e a necessidade da apropriação privada no âmbito da atual condição humana em termos de maior benefício para o bem comum e, ainda, na orientação dos bens para a ordem, a eficiência, segurança e paz, não desconectada dos valores instrumentais da moderna liberdade. Assim, o estado de direito obriga à conclusão que o regime da apropriação privada provê, via de regra, o melhor meio para o florescimento da sociedade humana (MOTA; TORRES, 2009, p. 31)”.
Neste contexto observa-se que Tomás de Aquino não tinha objetivo de criar uma teoria política em torno da propriedade privada, mas seus ideais de caridade e filantropia foram fundamentais para a configuração da função social como se enxerga hoje. Assim, desde Aquino, e noticia-se, desde Aristóteles, já se observa a necessidade de que a propriedade privada seja utilizada de modo que toda a sociedade dela se beneficie, seja no âmbito econômico ou no âmbito social.
Existem autores que sustentam, inclusive, que as coisas possuídas em abundância por uma pessoa, devem ser utilizadas para sustento dos pobres, tudo isso, fundamentado em critérios do Direito natural. Eis a posição defendida por Aldo Francisco Migot:
“Os bens que o homem tem são legítimos desde que tenham a finalidade de lhe garantir um espaço vital digno e suficiente para a vida pessoal e social. Se os bens, por direito natural, pertencem a todos, cada indivíduo tem direito à sua parte, sem o que não se cumpriria a destinação universal, ao menos se se considerar que possuir e desfrutar tudo em comum não é prescrição de direito natural, nem é possível na prática.
Tudo o que ultrapassa a necessidade do espaço vital e tudo aquilo que não é bem administrado ou que, por qualquer razão, pela extensão ou pelo mal uso, prejudicar a outrem, deve ser submetido aos critérios da comunidade, isto é, do bem comum. Salientando que o comum e o que é direito de todos, segundo Tomás, é sempre prioritário (MIGOT, 2003, p. 89)”.
Embora não se concorde que a função social fundamenta-se no Direito natural, não se pode deixar de perceber que foi através da religião e dele que a função social adquiriu seus contornos atuais. No que concerne à posse, a função social ganha destaque, pois ela e o instituto estão de tal forma conectados que é quase impossível separar um do outro.
Assim, observa-se que a posse, na visão contemporânea do Direito Brasileiro, deve ser vista como apropriação econômica e social sobre a coisa. Impossível então visualizar a existência de posse no plano fático se não há, pelo possuidor, a utilização da coisa para a finalidade a que se destina. A função social da posse apresenta-se quando o possuidor utiliza determinado bem, que outrora não havia sido utilizado da forma como deveria ou que estava ocioso, dando-lhe a destinação necessária, e que de certa forma, traga benefícios econômicos e sociais.
Ana Rita Vieira Albuquerque, em texto brilhante e pioneiro sobre a função social da posse, afirma que:
“A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender às exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito de dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos institucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos (ALBUQUERQUE, 2002, p. 40)”.
Vê-se que as ideias da autora amarram todos os argumentos trazidos à tona até então, pois ela rechaça a posse enquanto consectário da propriedade e retira dela o caráter de mero instituto acessório, valorizando a posse de forma como antes não era valorizada pelo ordenamento jurídico. A função social da posse é vista a partir da necessidade social da transformação das coisas em proveito do ser humano, da terra para o trabalho, para a moradia ou para ambos. De acordo com as ideias perpetradas por Marizélia Peglow da Rosa (2008, p. 3), é na posse trabalho e na posse moradia que se importa para o plano fático a questão da função social da posse. Ainda sobre a temática a autora enfatiza:
“Por isso pode-se dizer que a função social da posse não é limitação ao direito de posse. É sim, exteriorização do conteúdo imanente da posse, permitindo uma visão mais ampla do instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia diante de outros institutos jurídicos como o do direito de propriedade. A posse possui como valores sociais a vida, a saúde, a moradia, igualdade e justiça (ROSA, 2008, p. 3)”.
É importante esclarecer que a função social da posse é identificada no Direito brasileiro desde muito antes do país deter uma legislação própria. Segundo Juventino Gomes de Miranda Filho:
“Se buscarmos as motivações para a funcionalização da posse na instituição territorial brasileira, não iremos encontra-las, por certo, na inspiração do legislador que redigiu a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Iremos descobri-la na vetustíssimo regime três vezes centenário das concessões das sesmarias, em que o domínio da terra se adquire mercê do Príncipe, como no regime de ocupação territorial, em que a titulação, tem causa no direito construído pelo possuidor e reconhecido pela autoridade da lei ou da sentença (MIRANDA FILHO, 2010, p. 26)”.
Contudo, por se tratar de uma discussão teórica nova, a Constituição de 1988 não disciplinou expressamente a função social da posse, porém, enfatiza-se que esta constitui uma decorrência do princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Embora o texto constitucional não tenha tratado expressamente da questão da função social da posse, o Código Civil trouxe diversos institutos que o contemplam.
II FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E SUA CONJECTURA SEGUNDO O CÓDIGO CIVIL
Conforme explicitado no capítulo antecedente, a função social da posse não foi contemplada expressamente no texto constitucional, mas fundamenta-se essencialmente no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Vários doutrinadores e juristas criticam esse princípio por afirmar que sua amplitude abriga qualquer tipo de interpretação, tornando qualquer argumento constitucional se bem abordado.
Essa crítica não merece guarida quando se trata da função social da posse, pois o aspecto prático e o caráter social do instituto encontram guarida no referido princípio, importando-o do plano formal para o plano fático. Sendo assim, Ingo Wolfgang Sarlet afirma que entende-se:
“Por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2005, pág. 62)”.
O mesmo autor continua sua argumentação sobre o princípio em debate afirmando que é:
“(…) o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana (SARLET, 2005, p. 124)”.
Conforme previamente delineado, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é responsável pela constitucionalização de todo o direito, constitucionalização esta que fez com que o direito civil atenuasse o paradigma patrimonial experimentado no Código de 1916 para adotar um paradigma protetor da pessoa humana e dos direitos fundamentais. A axiologia da nova Constituição fez com que vários conceitos fossem adequados ao princípio trazido à baila. É neste contexto que Maria Cecília Bodin de Moraes afirma que a dignidade da pessoa humana é um princípio através do qual:
“(…) se busca atingir através de uma medida de ponderação que oscila entre dois valores, ora pendendo para a liberdade, ora para a solidariedade. A resultante dependerá dos interesses envolvidos, de suas consequências perante terceiros, de sua valoração em conformidade com a tábua axiológica constitucional, e determinará a disponibilidade ou indisponibilidade (MORAES, 2001, p. 190)”.
Diante disso, infere-se que a aplicação prática da função social da posse está ligada à posse trabalho e à posse moradia, pois já foi exaustivamente explicitado que somente existe posse quando há a apoderação econômica e/ou social de determinado cidadão sobre uma coisa e a utilização desta para a finalidade a que se destina. Em se tratando de bens imóveis a função social, que se traduz nessa utilização da coisa para a finalidade a que se destina fazendo com que ela, além de uma utilização particular, alcance uma utilidade social, é facilmente observada quando se toma em estudo a posse trabalho e a posse moradia.
Por óbvio, a posse moradia se materializa quando o possuidor utiliza o bem para sua moradia e para a moradia de sua família, enquanto a posse trabalho se verifica quando o possuidor usa o bem para o desenvolvimento de atividades econômicas, que podem ser exercidas por este ou em conjunto com seus familiares ou com outras pessoas.
No Código Civil a função social da posse está intimamente atrelada ao instituto da usucapião, pois é nela que se encontra a aplicação mais rica do instituto. A usucapião, utilizada como substantivo feminino após a promulgação do Código Civil de 2002, é, nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira (1990, p.103) “a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei”. Logo, a posse prolongada permite a aquisição da propriedade e de outros direitos reais através da ação de usucapião.
A usucapião especial urbana ou usucapião constitucional, como foi apelidada pela doutrina, vem disciplinada nos artigos 183 da Constituição Federal, no artigo 1.240 do Código Civil e na Lei 10.257/01 (Estatuto das Cidades) a partir do artigo 9º, e tem por finalidade assegurar o direito fundamental à moradia, tendo em vista que privilegia com redução de tempo o possuidor que habita o imóvel a ser usucapido.
Assim, além dos requisitos gerais, esta espécie de usucapião requer que o possuidor resida no imóvel, não seja proprietário de outro e que a área do bem não seja superior a 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados). Neste contexto, a posse mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini deverá ser comprovada pelo prazo de cinco anos.
Assim como a usucapião especial urbana, a usucapião especial rural foi elevada à ordem constitucional, estando prevista no artigo 191, além de ser disciplinada pelo Código Civil em seu artigo 1.239 e na Lei nº. 6.969/81. Logo, além dos requisitos essenciais, a usucapião especial rural requer a existência de posse de área rural não superior a cinquenta hectares, pelo prazo de cinco anos, que ao imóvel tenha-se dado destinação econômica quando tornado produtivo pelo possuidor ou por sua família, além de ser usado como moradia e que, finalmente, o possuidor não seja proprietário de outro imóvel.
Neste contexto, percebe-se que esta modalidade de usucapião foi apelidada de usucapião pro labore, já que exige que o imóvel rural obtenha destinação produtiva.
Finalmente, no artigo 1.241, parágrafo único, observa-se a presença do justo título decorrente da posse unida ao tempo. Acerca da função social e do instituto da usucapião Marizélia Peglow da Rosa enfatiza:
“Percebe-se nos artigos 1.238 e 1.242, do Código Civil, a redução dos prazos para a usucapião extraordinária e ordinária, respectivamente, nos casos envolvendo bens imóveis, em relação ao Código Civil anterior. Na usucapião extraordinária o prazo é reduzido de 15 (quinze) para 10 (dez) anos; e, na ordinária de 10 (dez) para 5 (cinco) anos. Entendemos que nos dois casos podemos dizer que a redução acontece diante da situação da posse trabalho para os casos em que aquele que tem a posse, utiliza o imóvel com intuito de moradia, ou realiza obras e investimentos de caráter produtivo, com relevante caráter social e econômico pode usucapí-lo. Essas reduções estão de acordo com a solidariedade social, com a proposta de erradicação da pobreza e, especificamente, com a proteção do direito à moradia, prevista no artigo 6° da Constituição Federal.
Também não se pode deixar de ressaltar os parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228, do Código Civil, onde o dispositivo do parágrafo quarto elenca a perda da propriedade, ou seja, o proprietário é privado da coisa esbulhada em troca de uma indenização a título de desapropriação indireta em favor de um terceiro; e, o parágrafo quinto aborda as questões referentes ao pagamento da indenização e o registro da sentença. Como podemos ver essa desapropriação judicial é dada pela posse-trabalho que demonstra, mais uma vez, a função social da posse (ROSA, 2008, p. 7)”.
Logo, a função social da posse se legitima em relação à usucapião porque torna efetiva a tutela de direitos fundamentais que encontram guarida no princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Esses direitos fundamentais que se quer destacar são a moradia e o trabalho, pois a função social da posse se materializa, no Código Civil na posse trabalho e na posse moradia. Assim, os direitos fundamentais sociais descritos no artigo 6º da Magna Carta são tutelados quando o possuidor que é titular deste vê-los violados.
CONCLUSÃO
De acordo com o exposto, pode-se concluir que a posse deve ser vista como a apoderação econômica e/ou social de uma coisa pelo possuidor. Essa relação de apoderação prescinde da utilização do bem pelo possuidor para a finalidade a que se destina. Sendo o bem devidamente utilizado está-se diante da função social da posse, pois esta consiste na destinação adequada da coisa, fazendo com que esta cumpra, além de suas finalidades egoísticas, benefícios de ordem social.
Sendo assim, imperioso esclarecer que a função social da posse encontra guarida no princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual, todo ser humano tem direito a realizar seu projeto de vida boa, sendo, responsável, contudo, pelas suas escolhas e pelo seu desenvolvimento.
O dito princípio comanda que o direito à moradia e o direito ao trabalho sejam tutelados pelo ordenamento jurídico. No que tange à função social da posse, essa se materializa especialmente no instituto da usucapião, para que haja a aquisição originária da coisa, o possuidor deve dar função social a esta.
Verifica-se, portanto, que através da proteção da função social da posse, o instituto da posse vem ganhando destaque no ordenamento jurídico brasileiro, ganhando o mesmo status conferido à propriedade e tornando-se instrumento de justiça social.
Advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduanda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Assessora jurídica da Câmara Municipal de Gouveia-MG
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