Introdução
A Constituição Brasileira de 1988, à semelhança de Constituições anteriores, tem a pretensão de erigir em sistema o conjunto de normas que tratam da tributação. Daí o capítulo I do Título VI (“Da Tributação e do Orçamento”) ser denominado “Do Sistema Tributário Nacional”.
Um sistema pressupõe um conjunto harmônico de normas articuladas entre si, abordando de forma plena toda a matéria de que se cuida. A simples constatação da existência de regras jurídicas, por si só, não permite falar-se em sistema. Nossa primeira Constituição já trazia algumas regras, embora escassas, sobre matéria tributária; todavia, seria exagero referir-se a elas como constituindo um “sistema tributário”.
A construção do denominado “sistema tributário nacional” foi obra lenta e, sem dúvida, ainda não encerrada.
O “sistema tributário nacional” encontra-se amplamente desenvolvido no texto da Constituição Federal, contemplando, entre outras matérias, a enunciação das espécies tributárias, das competências dos entes federados para a instituição de tributos, das garantias dos contribuintes e das limitações constitucionais ao poder de tributar.
Não obstante, são acerbas as críticas às regras tributárias existentes, reflexos de políticas tributárias as mais diversas e contraditórias, que se revelam como um conjunto de regras caóticas, desarmônicas e fugazes, a desafiar o hermeneuta ou a quem pretenda elaborar um trabalho de cunho científico.
A História mostra que o tributo sempre esteve associado aos momentos marcantes da Humanidade. No campo jurídico e político, o tributo foi o indutor das tomadas de grandes decisões, sendo íntima a relação do Direito Tributário com o Direito Constitucional. No Brasil, a própria Constituição tomou a si o trabalho de estabelecer, de forma minuciosa e contraproducente, as principais regras de tributação.
Aborda-se neste trabalho o equilíbrio entre a “imunidade recíproca” dos entes federados e o Imposto Predial e Territorial Urbano, mostrando-se a dificuldade do Supremo Tribunal Federal em dar efetividade ao § 3º do art. 150 da Constituição e as vacilantes fundamentações de alguns Acórdãos do STF. As normas atribuidoras de imunidade tributária devem ser interpretadas de forma sistêmica, contemplando-se os demais princípios existentes na Constituição, entre eles o da “livre concorrência” (art. 170,IV). Por outro lado, a inconsistência de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, relativamente à incidência do IPTU sobre os “terrenos de marinha”, quando examinadas em face ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em matéria de imunidade recíproca, tem propiciado o aumento dos grupos de pressão sobre o Congresso Nacional, objetivando a alteração do art. 32 do CTN, de forma a proibir tal incidência. Essas tentativas têm sido frustradas em razão do prejuízo financeiro que acarretaria aos Municípios.
1. A menção a “sistemas” nas Constituições brasileiras.[1]
A linguagem utilizada nos textos constitucionais é indicativa da forma de pensar dominante no momento de sua elaboração. Sob essa perspectiva, cumpre registrar que o vocábulo “sistema” encontrava-se ausente do texto de nossa Constituição de 1824, tendo sido adotado em 1891 para referir-se ao sistema de governo. Posteriormente, o termo foi utilizado em diversas situações, porém somente com a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, é que se chegou à menção de um “sistema tributário”.
A primeira constituição republicana, de 1891, utiliza o termo “sistema” fora do contexto tributário, para consignar no art. 83 que: “Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados”. Assim, a idéia de que as regras que regem os Poderes constituem um “sistema de governo” já está presente.
O termo “tributo” não é utilizado pela Constituição de 1891, embora o verbo tributar o seja, dispondo a Constituição que “só é lícito a um Estado tributar a importação de mercadorias estrangeiras, quando destinadas ao consumo no seu território, revertendo, porém, o produto do imposto para o Tesouro federal” (§ 3º do art. 9º) e que “É proibido aos Estados tributar bens e rendas federais ou serviços a cargo da União, e reciprocamente” (art. 10).
A Constituição brasileira de 1934 utiliza o termo “sistema” em diversas oportunidades, fazendo referência a “sistema monetário” (art. 5º-XII), “sistema de medidas” (art. 5º, XIX, h), “sistema proporcional” (art. 23 e § 1º do art. 3º das “Disposições Transitórias”), “sistema eleitoral e de representação” (art. 91,I-b), “sistema monetário e de medidas” (art. 91-j), “sistemas educativos” (art. 150,”c”, art. 151, e art. 156), “sistema da representação proporcional” (art. 181). No entanto, não há menção a “sistema tributário”, embora o substantivo tributo e o adjetivo tributário sejam utilizados diversas vezes, havendo referência à “rendas tributárias” (art. 141), “receita tributária” (art. 147 e § 3º do art. 177) e “diferença tributária” (art. 19-IV).
A Constituição de 1937 não utiliza o termo “sistema”, embora utilize os vocábulos “tributar”, “tributo” e “tributário”, com a enunciação da competência exclusiva dos Estados (art. 23) e a da União (art. 20).
O texto original da Constituição de 1946 utiliza o termo “sistema” em vários momentos: “sistema monetário e de medidas” (art. 5º -XV-m), “sistema de representação proporcional” (art. 56), “sistema federal de ensino” (art. 170, caput e parágrafo único).; “sistemas de ensino” (art. 171 e art. 172), “sistemas” (parágrafo único do art. 171).
2. A instituição do “sistema tributário nacional” – A Emenda nº 18, de 1º de dezembro de 1965.
A estrutura tributária brasileira veio a sofrer profunda alteração com o advento da Emenda nº 18, de 1º de dezembro de 1965. Essa Emenda introduziu em nosso ordenamento jurídico o denominado “sistema tributário nacional”, que foi adotado pelas Constituições posteriores, com significativas mutações.
Dispunha o art. 1º da Emenda nº 18, de 1965:
“Art. 1º O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria, e é regido pelo disposto nesta Emenda, em leis complementares, em resoluções do Senado Federal, e, nos limites das respectivas competências, em leis federal, estadual ou municipal.”
O “sistema” tem sua estruturação estabelecida na própria Emenda, que estabeleceu suas vigas fundamentais, com a enumeração das espécies tributárias (e a menção aos empréstimos compulsórios e impostos extraordinários na iminência ou caso de guerra externa), das vedações, das competências tributárias, das distribuições de receitas tributárias e de algumas disposições finais e transitórias (art. 25 a 27).
A Emenda Constitucional em apreço explicitou as espécies tributárias existentes no “sistema tributário nacional”. Não podia ser mais claro o texto: “O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria”. E o art. 5º é contundente: “Os impostos componentes do sistema tributário nacional são exclusivamente os que constam desta Emenda, com as competências e limitações nela previstas”. No entanto, o art. 4º permitiu à União, em casos excepcionais definidos em lei complementar, instituir empréstimos compulsórios. E o art. 17 permitiu à União, na iminência ou no caso de guerra externa, instituir, temporariamente, impostos extraordinários.
O “sistema” foi estruturado de forma a contemplar vedações à União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 2º e art. 3º). Entre essas vedações encontra-se a “imunidade recíproca”.
Além disso, o “sistema tributário nacional” é integrado por normas de diversas fontes, com efeitos jurídicos diferenciados, a saber: leis complementares, resoluções do Senado Federal, leis federais, leis estaduais e leis municipais.
Cabe ressaltar que embora a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, faça menção à lei complementar, não existia naquele momento lei complementar como espécie formal de lei, distinta da lei ordinária. Por essa razão, foi por meio de lei ordinária, a Lei nº 5.172, de 1966, que o legislador da União deu prosseguimento à construção do “sistema tributário nacional”. [2]
3. A Lei nº 5.172, de 1966 (Código Tributário Nacional)
A Lei nº 5.172, editada em 25 de outubro de 1966, com fundamento na Emenda Constitucional nº 18, de 1965, e entrando em vigor em 1º de janeiro de 1967, “dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios”.
A Lei nº 5.172, de 1966, veio a ser denominada “Código Tributário Nacional”, por determinação do art. 7º do Ato Complementar nº 36, de 13 de março de 1967.
Consta do art. 1º da Lei nº 5.172, de 1966, que:
“Art. 1º Esta Lei regula, com fundamento na Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, o sistema tributário nacional e estabelece, com fundamento no artigo 5º, inciso XV, alínea b, da Constituição Federal, as normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sem prejuízo da respectiva legislação complementar, supletiva ou regulamentar.”
O artigo transcrito é esclarecedor: a Lei 5.172, de 1966, não obstante ser lei ordinária, regulava o “sistema tributário nacional”, com fundamento na Emenda Constitucional nº 18, de 1965. O legislador interpretou a menção à “leis complementares” prevista na citada emenda constitucional como estando sendo atendida pela edição da lei ordinária, que visava à complementar a estrutura do sistema tributário nacional.
Além disso, a Lei nº 5.172, de 1966, com fundamento no inciso XV, alínea b, da Constituição Federal, estabelecia as “normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”. Ora, o dispositivo constitucional citado como fundamento fazia referência à competência da União para legislar sobre “normas gerais de direito financeiro”. Assim, as “normas gerais de direito tributário” foram entendidas, naqueles momentos iniciais da formação de nosso sistema tributário, como integrantes das “normas gerais de direito financeiro”, ficando expressamente consignado que essas “normas gerais” eram aplicáveis a todas as esferas de governo, o que não deixa de alterar o equilíbrio dentro da Federação.
Cabe também constatar que o art. 1º da Lei nº 5.172, de 1966, ao ressaltar que as ditas “normas gerais” eram aplicáveis a todos os entes federados, acrescentou que isso ocorria “sem prejuízo da respectiva legislação complementar, supletiva ou regulamentar”. E o art. 2º da mesma Lei proclamou:
“Art. 2º O sistema tributário nacional é regido pelo disposto na Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, em leis complementares, em resoluções do Senado Federal e, nos limites das respectivas competências, em leis federais, nas Constituições e em leis estaduais, e em leis municipais.”
O Código Tributário Nacional está estruturado em dois livros: o LIVRO PRIMEIRO cuida do SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL e o LIVRO SEGUNDO cuida das NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO.
Essa estruturação não se revela lógica, eis que as “normas gerais” integram o próprio sistema tributário nacional.
O LIVRO PRIMEIRO, ao disciplinar a estrutura do SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL, trata das “disposições gerais” (Título I), da “competência tributária” (Título II), “dos Impostos” (Título III), “das Taxas” (Título IV), da “Contribuição de Melhoria” (Título V), e “das distribuições de receitas tributárias” (Título VI). Há, assim, a preocupação em definir tributo e suas espécies e de dispor sobre as competências tributárias, inclusive de seus limites (capítulo II do Título II), sobre os requisitos para reconhecimento de imunidades tributárias, e de aspectos nucleares dos impostos enumerados na Emenda nº 18, de 1965 (com a definição de fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes).
O LIVRO SEGUNDO do Código Tributário Nacional cuida das NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO, dispondo sobre a “Legislação Tributária” (Título I), a “Obrigação Tributária” (Título II), o “Crédito Tributário” (Título III) e a “Administração Tributária” (Título IV). Portanto, as NORMAS GERAIS dizem respeito às fontes do Direito Tributário e à obrigação tributária (da qual o crédito tributário é elemento constitutivo), e dos poderes administrativos do Fisco.
Ao Código Tributário Nacional foram acrescentadas disposições finais e transitórias, a partir do art. 209.
A estruturação do sistema tributário nacional, estabelecida pelo Código Tributário Nacional em 15 de outubro de 1966, foi abalada diversas vezes, até mesmo antes de entrar em vigor (veja-se o Decreto-lei nº 27, de 14 de novembro de 1966). O Código Tributário Nacional sofreu o impacto da promulgação da Constituição de 1967 e da Constituição de 1988, e de diversas Emendas Constitucionais, além de ter tido sua redação alterada pelo advento de várias leis complementares (ou de diplomas legais com efeitos de lei complementar).
4. A Constitucionalidade dos dispositivos do Código Tributário Nacional que definem fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, em face da Emenda Constitucional nº 18, de 1965.
O Código Tributário Nacional, conforme assinalado, em seu LIVRO PRIMEIRO dispôs sobre as competências tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, adotando o agrupamento estabelecido na Emenda Constitucional nº 18, de 1965: “impostos sobre o comércio exterior”, “impostos sobre o patrimônio e a renda”, “impostos sobre a produção e a circulação” e “impostos especiais”.
O Código Tributário Nacional definiu os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos previstos na Emenda 18, de 1961, ressalvados os “impostos especiais” (para os quais apenas definiu o fato gerador do “Imposto sobre Operações Relativas a Combustíveis, Lubrificantes, Energia Elétrica e Minerais do País”). GERALDO ATALIBA foi um dos autores que, pioneiramente, dedicou-se à analise dos conceitos aqui referidos. [3] Veja-se, igualmente, AMILCAR DE ARAUJO FALCÃO [4]
Tendo em vista que a Emenda nº 18, de 1965, na trilha já seguida pelos textos constitucionais referidos anteriormente, atribuiu competências tributárias aos entes federados, indicando as matérias suscetíveis de serem tributadas por esses entes, caberia ao Código Tributário Nacional dispor sobre fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes desses impostos?
Essa indagação trouxe inquietude para alguns constitucionalistas. Isto porque não seria possível ao CTN aumentar ou diminuir a competência de cada um dos entes participantes da Federação, cuja autonomia e competências são hauridas diretamente da Constituição Federal. Assim, o professor Geraldo Ataliba, nas memoráveis lições no curso de bacharelado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirmava que nessa parte, ou o CTN apenas repetiria o disposto pela Constituição (e seria ocioso), ou divergiria da Constituição (e seria nulo).
No pensar de muitos, o fato gerador, a base de cálculo e o contribuinte já estariam implícitos na outorga constitucional de competências tributárias.
A possibilidade de lei federal, na vigência da Constituição de 1946, afetar competências legislativas dos Estados ou dos Municípios parecia afrontar a própria idéia de Federação, que não admite submissão hierárquica entre os entes federados.
O LIVRO PRIMEIRO do CTN fundamentava-se na Emenda nº 18, de 1965, porém a referida Emenda não explicitava ter o legislador que viesse a complementá-la poderes para dispor sobre os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes dos impostos nela discriminados.
5. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01, de 1969.
Em 15 de março de 1967 entrou em vigor nova Constituição, cujo capítulo V do Título I referia-se ao “Sistema Tributário”, longamente distribuído entre os artigos 18 e 28. Merece destaque o disposto no § 1º do art. 19, que proclamava:
“§ 1º – Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre os conflitos de competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder tributário.”
Deve ser ressaltado que o art. 49-II da nova Constituição previa, dentro do processo legislativo, de nova modalidade de lei: a lei complementar. Essa lei estava sujeita a regime próprio de votação, estatuído no art. 53 da Constituição:
“Art 53 – As leis complementares à Constituição serão votadas por maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, observados os demais termos da votação das leis ordinárias.”
As inúmeras discussões derivadas da vigência da Emenda nº 18, de 1965, e do Código Tributário Nacional ainda estavam em plena efervescência, quando o mundo jurídico teve que enfrentar o advento da Constituição de 1967, e das múltiplas questões que foram postas.
Uma dessas questões dizia respeito justamente à eficácia jurídica do Código Tributário Nacional, editado como lei ordinária, tendo em vista de que o ordenamento constitucional agora exigia lei complementar, em sentido formal e próprio, para regular os aspectos essenciais do sistema tributário nacional. [5]
Uma outra questão de grande relevância dizia respeito ao equilíbrio federativo: até que ponto a lei complementar poderia imiscuir-se na competência dos Estados e dos Municípios para instituírem os impostos que lhes eram outorgados pela própria Constituição ?
Conforme foi dito acima, o Código Tributário Nacional, no Título III do LIVRO PRIMEIRO, tratou dos Impostos, e não teve pejo: para os impostos previstos na Emenda nº 18, de 1965 (com a ressalva dos “impostos especiais”, como já observado), definiu os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes. Tratava-se de atitude ousada, entendida necessária para a implantação de um sistema tributário nacional. A atribuição de competências tributárias pela Constituição, para ter efetividade, exigia uma demarcação mais nítida, para evitar que, embora mantendo a denominação jurídica de imposto de sua competência, o ente federado não invadisse, sorrateiramente, matéria tributável alheia.
No entanto, a Constituição de 1946 adotava a Federação como forma de Estado, preservando as competências tributárias de forma explícita.
A Constituição de 1967, no § 1º do art. 19, outorgava à lei complementar as seguintes atribuições: a) “estabelecer normas gerais de direito tributário”; b) “dispor sobre os conflitos de competência tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”; e c) “regular as limitações constitucionais do poder tributário”. Em qual dessas atribuições poderia ser fundamentada a definição de fato gerador, base de cálculo e contribuintes dos impostos cuja competência para sua instituição residia no próprio texto constitucional?
Ora, as normas gerais de direito tributário integram o LIVRO SEGUNDO do Código Tributário Nacional. A explicitação dos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes fazem parte do LIVRO PRIMEIRO, que se fundamentava no Emenda nº 18, de 1965. Com a substituição da Constituição de 1946 (e, portanto, da Emenda nº 18, de 1965) pela Constituição de 1967, qual seria o fundamento para a lei complementar pretender dispor sobre fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (matéria contida no LIVRO PRIMEIRO do Código Tributário Nacional)? Poderia se afirmar que assim agindo o legislador complementar estaria preventivamente dispondo sobre conflitos de competência tributária que poderiam vir a surgir?
Os dispositivos do Código Tributário Nacional que definem os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes dos impostos nele discriminados, passaram a submeter-se a novo teste de constitucionalidade: não lhes basta a compatibilidade com a Emenda nº 18, de 1965, para não terem nascidos mortos; impõe-se, a partir de 15 de março de 1967, a compatibilidade com a nova Constituição, para serem recepcionados na nova ordem constitucional. Isto porque, como se sabe, a doutrina tem sustentado que o advento de nova Constituição mantém vigentes apenas os dispositivos legais com ela compatíveis.
As atribuições da lei complementar tributária, definidas § 1º do art. 19 da Constituição de 1967, foram mantidas pelo § 1º do art. 18 da Emenda Constitucional nº 01, de 1969, com ligeira alteração de redação, nos seguintes termos:
“§ 1º Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sôbre os conflitos de competência nesta matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar”.
6. A Constituição de 1988.
Na Constituição de 1988, o Capítulo relativo ao “sistema tributário nacional”, compreendido pelos artigos 145 a 162, está dividido em seis seções, respectivamente denominadas “Dos Princípios Gerais”, “Das Limitações Constitucionais do Poder de Tributar”, “Dos impostos da União”, “Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal”, “Dos Impostos dos Municípios” e “Da Repartição das Receitas Tributárias”.
Ao dispor sobre a estrutura do sistema tributário nacional, a Constituição de 1988 estabelece que (texto original):
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”.
A atual Constituição mantém as atribuições da lei complementar tributária para dispor sobre conflitos de competência e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; porém, ao se referir ao estabelecimento de “normas gerais”, introduz significativas alterações, relativamente ao texto anteriormente vigente, não somente por referir-se a “normas gerais em matéria de legislação tributária”, enquanto o texto anterior referia-se a “normas gerais de direito tributário”, como também por expressamente permitir que tais normas gerais apresentem a “definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”.
A Constituição vigente, ao incluir entre as “normas gerais de legislação tributária” a definição de tributos (e de suas espécies), e a definição de fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, rompeu a estrutura do Código Tributário Nacional (que não inclui essas definições entre as “normas gerais”, tendo-as inserido no LIVRO PRIMEIRO, que cuida do “sistema tributário nacional”.
Ao expressamente atribuir à lei complementar competência para estabelecer “normas gerais” com a definição de fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos “discriminados nesta Constituição”, o art. 146-III da Constituição de 1988 induz à reflexão sobre o significado de “normas gerais”. Afinal, o que deve ser entendido como “norma geral” ? Sabe-se que a generalidade é atributo de toda norma jurídica. Anteriormente à vigência da nova Constituição, a expressão “normas gerais”, no sistema tributário, estava ligada às fontes e à estrutura da obrigação tributária, de forma que era facilmente identificável a “norma geral” como aquela que fosse aplicável a todos os tributos. A inclusão, entre as “normas gerais”, da definição de fato gerador de um específico imposto, redunda em novas considerações. A norma aplicável a um único imposto (por exemplo, a definição de fato gerador do IPTU), pode ser entendida como norma geral ?
A partir de um ponto de vista exclusivamente de técnica impositiva, é perfeitamente razoável que caiba à União, mediante lei complementar, definir os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes de impostos de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Com efeito, tendo a Constituição preordenado o conjunto das regras tributárias como integrantes de um sistema tributário, pouca efetividade ocorreria se os entes periféricos da Federação, em busca de aumento de arrecadação, ou até mesmo sem esse propósito, viessem a definir esses elementos da obrigação tributária de forma desarmônica e conflitante. O dispositivo constitucional (art. 146-III,a) garante a uniformização das definições desses tributos em todo o território nacional. Embora as legislações estaduais e municipais possam diferir entre si, a Constituição assegura um núcleo comum em todo o território brasileiro.
O art. 146-III, a da Constituição limita as atribuições conferidas aos entes periféricos da Federação.
A delicada questão da subordinação dos legisladores dos Estados e dos Municípios aos ditames da Lei Complementar tem sido alvo de polêmicas, envolvendo o próprio conceito de federação.
7. A impossibilidade de um ente federado instituir imposto incidente sobre outro integrante da Federação (“imunidade recíproca”)
O reconhecimento da impossibilidade de os membros da Federação cobrarem impostos sobre “o patrimônio, a renda ou os serviços, uns dos outros”, é tradicional em nosso Direito. A Emenda nº 18, de 1965, traz esse comando explicitamente no art. 2º, IV, a. O Código Tributário o repetiu no art. 9º, IV, a.
Essa imunidade foi mantida pela Constituição de 1967 (art. 20,III,a), pela Emenda nº 1/69 (art. 19,III,a), e pela Constituição de 1988 (art. 150,VI,a). A imunidade implica a não existência de competência tributária para instituir impostos, relativamente a pessoas (imunidade subjetiva) ou coisas (imunidade objetiva), em face de expressa determinação constitucional.
SACHA CALMOM, após lembrar que a doutrina, em peso, posiciona a imunidade no capítulo da competência, passa em revista a posição de juristas ilustres, como PONTES DE MIRANDA, BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, ALIOMAR BALEEIRO, GERALDO ATALIBA, ULHOA CANTO, SOUTO MAIOR e CELSO CORDEIRO MACHADO. [6]
A imunidade prevista no art. 150,VI, a, da atual Constituição é também reconhecida como “imunidade ontológica”, pois resulta da impossibilidade de um ente federado exigir imposto de outro ente, em razão de inexistência de poder de império entre os entes federados.
Todavia, a nova Constituição dispõe no § 3º do art. 150, a propósito da imunidade recíproca, que:
“§ 3º – As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel”.
Destarte, enquanto reconhece a existência da “imunidade recíproca”, a Constituição expressamente admite que os bens integrantes do patrimônio da entidade imune não estão ao abrigo da imunidade quando “relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados ou em haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário”. Além disso, não exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativo ao bem imóvel.
O § 3º transcrito permite o fracionamento da relação jurídica, no caso de patrimônio, rendas ou serviços de entidades imunes, de forma que a sujeição passiva tributária venha a atingir o particular.
As conseqüências, relativamente ao IPTU são importantes, como a seguir se verá.
8. A competência municipal para instituir o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana.
Na Federação brasileira é reconhecida a competência dos Municípios para a instituição do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana.
Na implantação do “sistema tributário nacional”, o art. 10 da Emenda Constitucional nº 18, de 1965, estabelecia que “compete aos Municípios o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana”.
A competência constitucional dos Municípios para a instituição do IPTU foi preservada pelas constituições supervenientes, em termos praticamente idênticos: “compete aos Municípios decretar impostos sobre: I – propriedade predial e territorial urbana” (Constituição de 1967, art. 25-I); “compete aos municípios instituir imposto sobre: I – propriedade predial e territorial urbana” (Emenda nº 1, de 1969, art. 24) e “Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I – propriedade predial e territorial urbana” (Constituição de 1988, art. 156-I).
Deve ser observado que os textos constitucionais referem-se ao imposto como incidindo sobre a propriedade (predial e territorial urbana), não se trata apenas de imposto sobre imóvel. O elemento “propriedade” é integrante da definição da competência tributária: para que o Município possa fazer essa imposição tributária impõe-se que o imóvel seja propriedade de alguém.
Na vigência da Emenda Constitucional nº 18, de 1965, cujo art. 10 estabelecia que “compete aos Municípios o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana”, foi promulgado o Código Tributário Nacional, que assim dispôs sobre esse imposto:
“Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
§ 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:
I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II – abastecimento de água;
III – sistema de esgotos sanitários;
IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;
V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.
§ 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.
Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.
Parágrafo único. Na determinação da base de cálculo, não se considera o valor dos bens móveis mantidos, em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade.
Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.
Pode-se aplicar, especificamente sobre os artigos 32 a 34 do CTN, as mesmas considerações anteriormente já formuladas, sendo passível de verificação a constitucionalidade desses artigos, que abrangeria muitos aspectos, tais como: a limitação da competência dos Municípios aos “bens imóveis por natureza ou por acessão física” corresponderia à exata tradução do comando constitucional que se referia a “propriedade predial e territorial” ? Poderia o legislador da União definir o que deve ser entendido como “urbano” para fins tributários ?
Ao se referir ao “domínio útil” e a “posse” como fato geradores do IPTU, teria o legislador da União ampliado a competência do Município ? Se o “domínio útil” e a “posse” integram a propriedade, sua explicitação é tautológica ?
Outra indagação cabe: o Fisco pode lançar o IPTU, discricionariamente, contra qualquer um dos três contribuintes referidos no art. 34 ou a enumeração de três fatos geradores e dos três correspondentes contribuintes comporta o “benefício de ordem”?
Conforme já salientado, a recepção dos artigos 32 a 34 do CTN pela Constituição de 1967 (e, a seguir, pela Emenda nº 1/69 e pela Constituição atual) depende de esses dispositivos terem satisfeitos os requisitos de constitucionalidade em face da Emenda nº 18, de 1965.
É certo, porém, que a Hermenêutica Constitucional estabelece a presunção de constitucionalidade da lei, que somente será tida como inconstitucional se não for possível interpretá-la de forma a compatibilizar seu comando com o mandamento constitucional.
O fato é que os Fiscos e os Tribunais têm aceito a plena vigência desses dispositivos, não obstante com interpretações nem sempre convergentes.
Embora o art. 146-III,a da Constituição vigente determine caber à lei complementar a definição dos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos nela discriminados, é de se indagar se as definições constantes dos artigos 32 e 24 do Código Tributário Nacional foram recepcionadas pelo atual ordenamento constitucional, tendo em vista terem sido promulgadas ainda na vigência da Emenda Constitucional nº 18, de 1965.
Ao definir como fato gerador do IPTU a “propriedade”, o “domínio útil” ou a “posse” de bem imóvel por natureza ou acessão física, e como contribuintes o “proprietário do imóvel”, o “titular de seu domínio útil” e “seu possuidor a qualquer título” (art. 32 e 34), o CTN produziu grande balbúrdia na doutrina. A jurisprudência, gradativamente, fixou alguns pontos importantes.
Embora o CTN adote como contribuinte o “possuidor a qualquer título”, a jurisprudência predominante recusa reconhecer a sujeição passiva relativamente aos inquilinos e aos comodatários de imóveis, sob a alegação de não exercerem eles posse com “animus domini”.[7] Além disso, passou-se a discutir fenômenos como “posse direta” e “posse indireta”, “posse desdobrada” e “posse exclusiva”, “possuidor por direito real” e “possuidor por direito pessoal”. Vale dizer: a jurisprudência rechaça o possuidor a qualquer título, pois examina o título do possuidor, para verificar se ele pode ser contribuinte do IPTU. Os promitentes compradores, quando possuidores imóvel, são reconhecidos como contribuintes.
9. A imunidade dos bens e serviços de domínio da União e o IPTU.
A possibilidade de se decompor a propriedade (propriedade plena) em seus elementos constitutivos, para efeitos do Direito Tributário, traz importantes conseqüências, quando se aborda a questão da imunidade tributária, pois permitiria a incidência tributária sobre o possuidor ou detentor de bem público, principalmente no caso de exercício de atividade lucrativa.
Alguns Municípios têm sustentado que a imunidade recíproca é “intuitu personae”, razão pela qual não subsistiria quando o imóvel estivesse sendo utilizado por terceiros, máxime quando se tratar de utilização econômica.
Relativamente ao IPTU, tendo em vista a pluralidade de fatos geradores e de contribuintes, conforme definidos nos art. 32 e 34 do CTN, passou a existir um problema prática de grande relevância. É que imóveis do domínio da União podem vir a encontrarem-se em poder de terceiros, como “titulares de domínio útil”, ou como “possuidores a qualquer título”. Pode o Fisco municipal, relativamente a imóveis do domínio da União, lançar o IPTU contra esses terceiros?
10. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal tem decidido que os imóveis do domínio da União não podem ser objeto de lançamento do IPTU, mesmo quando explorados comercialmente por terceiros. Examinares dois casos recentes.
10.1 – Assim, consta da ementa do RE 253.394-7/SP, de 26 de novembro de 2002, (que envolvia a cobrança de IPTU sobre imóveis que compõe o acervo patrimonial do Porto de Santos): “Impossibilidade de tributação, pela Municipalidade, independentemente de encontrarem-se tais bens ocupados pela empresa delegatária dos serviços portuários, em face da imunidade prevista no art. 150,VI, a, da Constituição Federal”.
No voto do Ministro Ilmar Galvão, no RE 253.394-7, é declarado que: “O acórdão, ao invocar a norma do art. 32 do CTN, além de incidir no mau vezo de buscar na lei a interpretação da Constituição, não atentou para a circunstância de que o art. 32 do CTN não pode ser interpretado como tendo englobado, no conceito de posse, de forma indiscriminada, o ocupante de bem público, sempre em caráter precário; o mero detentor, como o locatário; e, finalmente, o possuidor com animus domini; esse, sim, responsável pelo tributo incidente sobre o imóvel privado de que tem a posse, na qualidade de substituto do proprietário, figura de ordinário desconhecida ou, no mínimo, alheia ao destino do bem tributado”.
Do trecho do voto transcrito, extrai-se que a ocupação de bem público seria sempre a título precário, vedando-se sempre a cobrança de IPTU. Já no caso de imóvel privado, é preciso examinar a presença do animus domini, quando o possuidor seria “responsável” pelo IPTU (isto é, poderia ser o contribuinte).
No julgamento em referência, chama a atenção o voto do Ministro Moreira Alves, citado em outros julgamentos, segundo o qual o que deve ser suscitado não é o problema de posse com animus domini, mas o de posse exclusiva. Extrai-se do voto que, no entendimento do Ministro Moreira Alves, o possuidor com posse exclusiva pode ser contribuinte do IPTU. O Ministro contrapõe a “posse exclusiva” à “posse desdobrada”, esse segundo tipo de posse ocorreria nos casos de locação e comodato, e o possuidor direto não poderia ser o contribuinte.
No mesmo julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence reconheceu a presença da imunidade recíproca em virtude de “o bem público da União está afetado a um serviço público federal em poder da concessionária, como instrumentalidade da concessão”.
10.2 – No R.E. 451.152-5- RJ, julgado em 22 de agosto de 2006, em que o imóvel estava sendo comercialmente utilizado por uma academia de ginástica, há a seguinte ementa:
“Recurso Extraordinário. 2. IPTU. Imóvel da União destinado à exploração comercial. 3. Contrato de concessão de uso. Posse precária e desdobrada. 4. Impossibilidade de a recorrida figurar no pólo passivo da obrigação tributária. Precedente. Recurso extraordinário a que se nega provimento”.
Segundo o Ministro Relator, Gilmar Mendes “… a recorrida não preenche nenhum dos requisitos para ser contribuinte do IPTU, porquanto é detentora de posse precária e desdobrada decorrente de contrato de concessão de uso”. O Relator faz remissão ao RE 265.749 e ao RE 253.394-7, de 26 de novembro de 2002.
Neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa não acompanha o voto do relator, por entender, com fundamento no § 3º do art. 150 da Constituição, que “reconhecer a aplicabilidade da imunidade recíproca à tributação de imóvel locado a particulares, para exploração de atividade econômica de cunho privado, redundaria, em última análise, em privilegiar a exploração econômica particular, e não o pacto federativo”.
11. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
O STJ tem decidido que, em caso de bem enfitêutico dado pela União em aforamento, por força do disposto no art. 34 do CTN, “cabe ao detentor do domínio útil, o enfiteuta, o pagamento do IPTU” e que “A imunidade que possa ter o senhorio, detentor do domínio indireto, não se transmite ao enfiteuta” (RESP 267.099-BA). No caso, a recorrida era a COMPANHIA DAS DOCAS DO ESTADO DA BAHIA-CODEBA.
Entretanto, o STJ tem proclamado que (RESP 825.902-MG):
“1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que o contribuinte do IPTU é o proprietário do imóvel, o titular do domínio útil ou o possuidor por direito real (art. 34 do CTN). Tratando-se de posse fundada em relação de direito pessoal, exercida, portanto, sem animus domini, mostra-se descabida a cobrança do imposto.
2. Na hipótese, a posse exercida sobre os chamados “leitos ferroviários”, para fins de prestação de serviço público, não gera para a concessionária a condição de contribuinte do IPTU”.
Cabe aqui lembrar que, ao “manicômio jurídico-tributário”, de que falava ALFREDO AUGUSTO BECKER, deve ser acrescentado o “manicômio processual”. Além de as normas tributárias serem abundantes e confusas, as competências dos tribunais acrescentam mais alguns problemas, tendo em vista que a questão da imunidade tributária pode ser levada até ao Supremo Tribunal Federal por meio de recurso extraordinário (desde que presentes outros pressupostos), enquanto a aplicação do CTN, se não houver sido questionada a constitucionalidade de algum dispositivo, deve ser apreciada pelo STJ (salvo alguma situação excepcionalíssima). Daí a aberração: enquanto o Supremo reconhece imunidade à COMPANHIA DOCAS DO ESTADO DE SÃO PAULO – CODESP (em decisão censurável, que não esgotou o exame da aplicação do § 3º do art. 150 da Constituição), o STJ mantém a cobrança de IPTU contra a COMPANHIA DOCAS DO ESTADO DA BAHIA-CODEBA (aplicando o art. 34 do CTN).
12. Os terrenos de marinha.
Os Fiscos municipais vêm realizando cobrança de IPTU, relativamente aos denominados “terrenos de marinha”, de propriedade da União, o que tem ocasionado grande pressão por parte das pessoas envolvidas, no sentido de abolir essa cobrança.
Em decorrência dessas pressões, têm tramitado na Câmara dos Deputados projetos de lei complementar visando a impedir os Municípios de instituírem IPTU, relativamente a terrenos de marinha.
O Projeto de Lei Complementar nº 116, de 2007, de autoria da deputada Elcione Barbalho, determina a inclusão, no art. 32 do Código Tributário Nacional, do seguinte § 3º:
“§ 3º Excluem-se da incidência deste imposto os imóveis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ainda que ocupados ou possuídos por particulares.”
Em sua justificativa, a autora do projeto afirma que:
Os terrenos de marinha e seus acrescidos são de propriedade da União, por força do disposto no art. 20, VII, da Constituição Federal, e objeto de enfiteuse ou aforamento, por determinação expressa do art. 49, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. (…)
“A despeito da precariedade inerente à ocupação de bens públicos, que bastaria para justificar a prevalência da imunidade recíproca assegurada pelo art. 150, VI, a, da Carta Política, a jurisprudência dominante é no sentido da incidência do IPTU sobre os terrenos de marinha”.
A autora do projeto aponta a contradição do STJ, cuja jurisprudência exige posse animus domini para a caracterização do possuidor como contribuinte, enquanto aceita o enfiteuta de terreno de marinha como contribuinte, não obstante a precariedade da posse do enfiteuta de terreno de marinha.
No mesmo sentido, o Projeto de Lei Complementar nº 222, de 2004, determinava a inclusão ao art. 32 do CTN de parágrafo com a seguinte redação: “No que se refere aos terrenos de marinha, o fato gerador do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) não abrange os casos de posse e de domínio útil”.
Projetos de lei com esse conteúdo enfrentam grandes dificuldades na Comissão de Finanças e Tributação, onde os relatores são advertidos dos problemas financeiros que ocorreriam aos Municípios, na hipótese de aprovação dos projetos. É que, em grande parte, os Municípios mantêm a infra-estrutura de serviços urbanos, relativamente a imóveis que ocupam terreno de marinha. Assim, argumentos de natureza financeira acabam prevalecendo, no sentido de não aprovação do projeto. Além disso, a não tributação dos ocupantes desses terrenos revelar-se-ia como um privilégio inaceitável.
Por esse motivo, o Projeto de Lei Complementar nº 222, de 2004, acabou sendo arquivado; e no caso do Projeto de Lei Complementar nº 116, de 2007, o relator divulgou seu voto pela rejeição da proposição.
CONCLUSÕES
A imunidade tributária da União e a incidência de IPTU sobre os imóveis da União utilizados por particulares.
1. O denominado “sistema tributário nacional” encontra-se amplamente desenvolvido no texto da Constituição Federal, contemplando, entre outras matérias, a enunciação das espécies tributárias, das competências dos entes federados para a instituição de tributos, das garantias do contribuintes e das limitações constitucionais ao poder de tributar.
2. O Estado Brasileiro adota a forma federal, sendo a manutenção da Federação cláusula pétrea de nosso ordenamento constitucional.
3. Ao enunciar as competências tributárias, a Constituição Federal atribui aos Municípios competência para instituir imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (art. 156-I).
4. Ao enunciar as limitações constitucionais ao poder de tributar, a Constituição explicita que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre “patrimônio, renda ou serviço, uns dos outros”. Trata-se da denominada “imunidade recíproca”, de caráter ontológico, que é clássica em nosso direito constitucional tributário.
5. Assim, não resta dúvida de que o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana não poderá incidir sobre bens imóveis que sejam propriedades da União.
6. Todavia, a própria Constituição Federal estabelece que compete à lei complementar tributária definir os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos discriminados na Constituição (entre eles, o denominado IPTU).
7. Tem sido admitido que o Código Tributário Nacional, promulgado como lei ordinária na vigência da Emenda Constitucional nº 18, de 1965, foi recepcionado pelos ordenamentos jurídicos advindos após sua promulgação. Os dispositivos do Código Tributário Nacional que dispõem sobre matérias, relativamente às quais o ordenamento constitucional exige lei complementar, passaram a ser considerados como tendo eficácia de lei complementar.
8. Entre os dispositivos do Código Tributário Nacional que possuiriam eficácia de lei complementar encontram-se os art. 32, 33 e 34, que definem, respectivamente, o fato gerador, a base de cálculo e o contribuinte do IPTU.
9. Acontece que o Código Tributário Nacional definiu como fato gerador do IPTU “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física” (art. 32), e como contribuinte “o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título” (art. 34).
10. As definições estabelecidas pelo Código Tributário Nacional têm permitido que surjam polêmicas sobre a exigibilidade do IPTU sobre pessoas outras que o proprietário do imóvel.
11. As polêmicas adquirem significativa importância nos casos em que imóveis pertencentes ao domínio da União são, por diversas razões e por diversos títulos, entregues a particulares. Nessas circunstâncias, muitos Municípios entendem ser possível a cobrança do IPTU, lançados contra os particulares que detém a posse ou o domínio útil dos imóveis da União.
12. Trata-se, portanto, de tema de grande interesse, relativo à extensão da imunidade constitucional. Não tendo possibilidade de lançar o imposto contra a União, seria legítimo que o Município, aplicando os dispositivos do Código Tributário Nacional e escolhendo as alternativas oferecidas pela lei complementar, viesse a instituir o imposto contra o titular do domínio útil ou do possuidor ?
13. A interpretação favorável aos Municípios encontra-se alicerçada no próprio texto da Constituição Federal, que a propósito da imunidade recíproca entre os entes federados, dispõe no § 3º do art. 150 que:
“§ 3º – As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel”.
14. No entanto, o Supremo Tribunal Federal vem rechaçando as tentativas municipais de tributar os titulares do domínio útil e os possuidores dos bens da União, com argumentos que ensejam melhores reflexões.
15. O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência que não se harmoniza com a do Supremo Tribunal Federal, aceitando a tributação sobre o titular do domínio útil, mesmo quando a proprietária é a União.
16. A questão da incidência do IPTU sobre os “terrenos de marinha” tem sido alvo de grandes polêmicas, e os grupos de pressão têm realizado diversos movimentos contrários a essa tributação.
17. Na própria Câmara dos Deputados têm tramitado projetos de lei complementar, com o objetivo de proibir aos Municípios manterem a cobrança de IPTU sobre “terrenos de marinha”.
18. A questão jurídica tem profundos desdobramentos políticos e financeiros. Alguns municípios mantém infra-estrutura urbana em regiões dominadas por “terrenos de marinha”, e não podem deixar de cobrar o imposto.
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor e Pesquisador no Curso de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília
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